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“Um tanto pueril”: a criança e a palavra literária como agentes (cosmo)políticos

“Somewhat Childish”: The Infant and the Literary Word as (Cosmo)political Agents

Resumo

Descontruindo algumas correlações entre a oposição prosa/poesia (tomada também como metonímia da oposição literatura/não-literatura) e a oposição adulto/criança, retomamos algumas bases da reflexão sobre biopolítica, para pensar a infância dentre a série de agentes cuja exclusão da comunidade política (junto com as figuras do Oriente, da mulher, do selvagem e outros seres supostamente destituídos de fala, de logos) paradoxalmente os reinveste de força e interesse político, seja como objetos de uma expansão dos regimes instituídos de visibilidade e controle, seja como possíveis instigadores de modos outros de ação, que exigem repensar o que significam agência e política. Assim, passando por uma análise da transcriação haroldiana do fragmento 52 de Heráclito sobre a criança e de Sagatrissuinorama de João Luiz Guimarães, buscamos delinear algumas implicações desse intrincado fenômeno recente de politização da infância para o ensino de literatura.

Palavras-chave:
educação e literatura; poesia e infância; literatura contemporânea; biopolítica

Abstract

By deconstructing some correlations between the opposition prose/poetry (also taken as a metonymy of the opposition literature/non-literature) and the opposition adult/child, we take up some bases of reflection on biopolitics to conceive childhood among the series of agents whose exclusion from the political community (along with the figures of the Orient, the woman, the savage and other beings supposedly devoid of speech, of logos) paradoxically reinvests them with force and political interest, either as objects of an expansion of the established regimes of visibility and control, or as possible instigators of other modes of action, which require rethinking what agency and politics mean. Thus, through an analysis of Haroldo de Campos’ transcreation of Heraclitus’ fragment 52 on the child and João Luiz Guimarães’ book Sagatrissuinorama, we seek to outline some consequences of this intricate contemporary phenomenon of the politicization of childhood for the teaching of literature.

Keywords:
education and literature; poetry and childhood; contemporary literature; biopolitics

Résumé

En déconstruisant des corrélations entre l’opposition prose/poésie (également prise comme métonymie de l’opposition littérature/non-littérature) et l’opposition adulte/enfant, nous reprenons quelques bases de la réflexion sur la biopolitique, pour penser l’enfance parmi la série d’agents dont l’exclusion de la communauté politique (aux côtés des figures de l’Orient, de la femme, du sauvage et d’autres êtres supposés dépourvus de parole, de logos) leur redonne paradoxalement force et intérêt politique, soit comme objets d’une expansion des régimes de visibilité et de contrôle établis, soit comme possibles instigateurs d’autres modes d’action, qui obligent à repenser ce que sont l’agence et la politique. Ainsi, par l’analyse de la transcréation du fragment 52 d’Héraclite sur l’enfant faite par Haroldo de Campos et de Sagatrissuinorama de João Luiz Guimarães, nous cherchons à esquisser certaines conséquences de ce phénomène contemporain complexe de politisation de l’enfance pour l’enseignement de la littérature.

Mots-clés:
éducation et littérature; poésie et enfance; littérature contemporaine; biopolitique

Na verdade, eu nunca quis ser poeta. Em primeiro lugar, porque a prosa sempre me fascinou mais que a poesia. As coisas que mais me interessavam - a análise psicológica, o vislumbre de um fragmento da realidade, a visão de uma época e um mundo, a explicação racional das coisas - tudo isso era domínio do romance, do conto, da novela, do ensaio. Já a poesia tinha algo de enviesado, uma afetação um tanto irritante; por exemplo, essa coisa de trocar de linha sem mais nem menos, sem nenhum respeito pela lógica nem pela gramática; e a exploração do som das palavras, uma coisa que eu achava um tanto pueril [...]. (Britto, 1991BRITTO, Paulo Henriques. I, too, dislike it. In: MASSI, Augusto (org.). Artes e ofícios da Poesia. Porto Alegre: Artes e ofícios, 1991. p. 263-267., p. 264).

Iniciamos nossa reflexão com um depoimento do poeta Paulo Henriques Britto, registrado no livro Artes e ofícios da poesia, organizado por Augusto Massi em 1991BRITTO, Paulo Henriques. I, too, dislike it. In: MASSI, Augusto (org.). Artes e ofícios da Poesia. Porto Alegre: Artes e ofícios, 1991. p. 263-267.. Nele talvez já possamos observar o gesto de suspeita oblíqua de Britto para com a “afetação” da poesia, gesto que seria constitutivo da poética desse autor e de toda uma tradição crítica moderna (Cf. Veras, 2015VERAS, Eduardo. Paulo Henriques Britto e a angústia do sentido. Estudos Linguísticos e Literários, n. 51, v. 1, 2015.). Porém, o que nos interessa reter aqui é o adjetivo “pueril”. Diante da perspicácia realista, da racionalidade explicativa e da profundidade psicológica da prosa - qualidades adultas, seria possível dizer -, enjambements, aliterações, rimas, etc. soariam como coisa de criança. E não há algo de infantil em tratar a linguagem, não como organon imaterial e convencional para a ordenação e explicação das coisas, mas como coisa material ela mesma, espécie de brinquedo de montar e desmontar?

Essa correlação entre a oposição prosa/poesia (que em certo sentido poderia ser tomada como metonímia da oposição linguagem cotidiana/linguagem literária) e a oposição adulto/criança não é nada desconhecida, pelo contrário, ela seria ubíqua, uma espécie de estrutura impensada ou pressuposto metafísico frequentemente reproduzido. Poderíamos vê-lo presente, dentre muitos outros casos, nas proposições de Sartre em Que é a literatura?, quando o filósofo reserva à prosa a capacidade de dizer o mundo, de engajar-se nele e com ele, ao passo que a poesia - embora Sartre tome todo o cuidado para fazer disso não uma recusa da palavra poética, mas um motivo para apreciá-la em sua diferença - reteria o poeta numa espécie de suspensão, como se, evocada a opacidade da linguagem, a densidade material do signo o impedisse de acessar plenamente o mundo, de falá-lo: “O homem que fala está além das palavras, perto do objeto. O poeta está aquém [...]. A palavra, que arranca o prosador de si mesmo e o lança no meio do mundo, devolve ao poeta, como um espelho, a sua própria imagem” (Sartre, 2004SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004., p. 13 e 16).

Assim, teríamos, de um lado, a palavra que, em sua existência conscientemente arbitrária e convencional, desencantada e imaterial, instiga a ação humana, a responsabilidade política, o engajamento. De outro, a palavra poética, tomada em seu estado “selvagem” (2004SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004., p. 14), em seu peso material - seja ele sonoro, rítmico, oral, ou sintático, gráfico, tátil, visual, escrito -, sempre, de certo modo, aquém da fala, da ação, da agência em interação com o mundo, e - nesse sentido - aproximada à infância, à minoridade cuja exclusão é um dos traços definidores da cidadania política plena, não só em termos jurídicos (e podemos pensar nas constantes disputas em torno do marco da dita maioridade penal, eleitoral, sexual, etc.), mas também nos termos filosóficos da razão moderna, iluminista, bastando evocar aqui a resposta de Kant à pergunta “O que é o iluminismo?”: “É a saída do homem de sua menoridade” (1985KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985., p. 100).

Vê-se como o desencantamento moderno do mundo seria inseparável de sua prosaicização tradutível (Pinheiro, 2016PINHEIRO, Tiago Guilherme. Cenas de contato: o sentido do tátil na poesia de André Vallias. In: RIBEIRO, Gustavo Silveira; PINHEIRO, Tiago Guilherme; VERAS, Eduardo H. N. (org.). Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível. Belo Horizonte: Quixote-do, 2018. p. 161-186., p. 181) e como essa experiência foi identificada com certa conquista da maioridade, opondo-se à infância. Se, nas reflexões de Sartre, a linguagem se oferece em “estado selvagem” para o poeta que nela se embrenha, mas já domesticada para o prosador que, atravessando-a, passa a falar, agir e se responsabilizar junto ao mundo, um quiasma muito mais antigo - que tem seu lócus mais célebre na Política, de Aristóteles, e tem sido amplamente discutido por Agamben, Rancière e boa parte da filosofia contemporânea (Dolar, 2006DOLAR, Mladen. A voice and nothing more. Cambridge: MIT Press, 2006., p. 201) -, faz da política atributo exclusivo do ser que fala, que detém o logos, dela excluindo aqueles seres - animais, crianças, escravos, mulheres, etc. - que só tem voz, canto, gemido, choro. Essa estrutura impensada seria observável na polissemia do termo “majorité” (maioridade /maioria) em francês: tanto ao indicar a idade em que o Delfim pode assumir o trono ou em que a criança se emancipa para a cidadania quanto ao indicar o grupo majoritário de políticos na assembleia deliberativa ou legislativa, majorité designa justamente a transição do contínuo burburinho de vozes, afecções e ruídos para o discurso articulado, que se reconhece como uma vontade, individual (num caso), ou coletiva (no outro).1 1 Cf. https://cnrtl.fr/definition/majorite.

Levantamos esses pontos para dar uma noção da profunda sistematicidade que unifica as ideias de política, maioridade, racionalidade desencantada, linguagem imaterial, convencional, prosaica, comunicativa e instrumental, contraefetuando um vínculo igualmente intrincado entre criança, encantamento sinestésico e linguagem poética. Esses elos esquemáticos são incessantemente contrariados, reforçados, nuançados, enfim, transformados. De um lado, ao menos desde Baudelaire, a poesia moderna se reafirma como experiência de “correspondências” sinestésicas entre linguagem e mundo (Nancy, 2001NANCY, Jean-Luc. Muses. Paris: Galilée , 2001., p. 27 e 165), de resistência à prosaicização.2 2 É preciso, obviamente, distinguir entre a prosa como linguagem cotidiana recortada por práticas instrumentais e a prosa como linguagem privilegiada dos gêneros narrativos modernos (romance, conto). Por outro lado, seja no próprio Baudelaire diante da matéria social da cidade, no coloquialismo do modernismo brasileiro e inúmeras outras experiências poéticas, as exigências do signo poético e da ironia crítica moderna se tensionam e se articulam de inúmeras maneiras. Um momento decisivo desse acerto de contas é a poética de Mallarmé e dos simbolistas, com seus versos altamente evocatórios, sinestésicos e sua busca pela relação entre as coisas e pelo “fio dessas relações que formam os versos e as orquestras” (1945MALLARMÉ, Stéphane. Œuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1945., p. 383).

Trata-se, aliás, de um acerto de contas que excede o debate poético. Ao ler os Escritos de linguística geral, de Saussure, em suas afinidades históricas com a poesia simbolista, Maniglier afirma que, para o linguista genebrino, o próprio signo deve ser percebido como cascata sinestésica de acontecimentos qualitativos heterogêneos que se correlacionam e diferenciam em vários planos (sonoros, gráficos, táteis, visuais, fonéticos, semânticos etc.). A língua seria, assim, feita dos mesmos elementos que ela exprime: nuances, detalhes, matizes de ser, sempre-já intimamente duplos (por isso, o signo seria uma coisa dupla, mais que associação de duas coisas), a um só tempo quase-materiais e quase-ideais, nem redutíveis à materialidade (sonora ou verbal), nem plenamente independentes dela (um fonema, por exemplo, só pode ser recortado sonoramente pelo conjunto de demandas semânticas de uma língua). Nesse sentido, aprender uma língua não é memorizar indexações entre signos e objetos, é adentrar uma experiência qualitativa socialmente partilhada. Tal como notaram os poetas simbolistas, a relação entre palavras e coisas não é de predicação, mas de evocação: ao procurar o melhor jeito de dizer algo, buscamos não tanto a associação lógica correta, mas a “impressão que captura mais vivamente uma nuance qualitativa” (Maniglier, 2023MANIGLIER, Patrice. A Vida Enigmática dos Signos: Saussure e o nascimento do estruturalismo. Tradução de Fábio Roberto Lucas e Fernando Scheibe. Apresentação de Vladimir Safatle. Revisão e prefácio de Roberto Zular. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2023., p. 267).

Conceber o aprendizado linguístico como coa(m)bi(en)tação de uma experiência qualitativa sensorial partilhada reforça a relevância da literatura e da poesia dentro do processo educativo. Reforça também sua dimensão materialista, a ideia de que a educação é uma práxis, que mesmo em suas dimensões intelectuais envolve um elo necessário entre os cinco sentidos e os sentidos inteligíveis: no cascateamento sinestésico que, para Maniglier, constitui o signo, podemos escutar ressoando reflexões de Nancy, para quem a autoafecção de cada sentido, o sentir-se sentir, longe de ser uma experiência que lhe define uma área específica de atuação, desdobra um campo em que ele vibra ao mesmo tempo dentro e fora de si mesmo: “ressoar opera como ‘luzir’ ou como ‘sentir’ no sentido de exalar um odor, ou ainda como o ‘apalpar’ do tato [...] cada sentido é um caso e um desvio de tal ‘(se) vibrar’, e todos os sentidos vibram entre eles, uns contra os outros, e de uns aos outros” (Nancy, 2002NANCY, Jean-Luc. À l’Écoute. Paris: Galilée , 2002., p. 22-23). Assim, o contato de um sentido consigo mesmo (“se sentir”) e o contato de um pensamento consigo mesmo (autorreflexão) se tornam elos de uma mesma série contínua de diferenciações: “O sentido (sensível) faz sentido (inteligível), ele é justamente isso, a intelecção de sua receptividade como tal; o sentido (inteligível) se sente, ele é justamente isso, a receptividade de sua inteligibilidade” (Nancy, 2001NANCY, Jean-Luc. Muses. Paris: Galilée , 2001., p. 54).3 3 Quando a tradução não é indicada na bibliografia, as obras em língua estrangeira são citadas em tradução nossa. Aqui, a dimensão semântica da palavra, seu sentido inteligível, longe de ser disposta numa oposição metafísica insuperável em relação aos sentidos sensíveis, torna-se parte de sua rede de interações, transbordamentos, expectativas, empréstimos...

“A educação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até agora”, afirma Marx (2004MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução, apresentação e notas de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 110) ao sublinhar que esse trabalho passa por transformações históricas, que nossos cinco sentidos não estão presos a uma determinação permanente. Essa frase é tomada por Haroldo de Campos na epígrafe de seu livro A educação dos cinco sentidos. O primeiro poema, que dá título ao livro, é uma ode à constituição sensorial e material da palavra, e valeria uma análise a parte, que não teremos condições de realizar aqui, especialmente porque nos demoraremos mais na leitura de outro texto do livro, a tradução do fragmento 52 de Heráclito, que Haroldo apresenta na série “Heráclito Revisitado” (1985CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 65-73) e que expomos em uma transcrição fonética do grego e na tradução de Martim Reyes da Costa Silva:

αἰὼν παῖς ἐστι παίζων, πεσσεύων· (aiṑn paȋs esti paízōn pesseúōn)
παιδὸς ἡ βασιληίη (paidòs hē basilēíē)

tempo de vida é criança brincando, movendo as peças:
o reinado da criança.
(Silva, 2021SILVA, Martim Reyes da Costa. Jogos de linguagem e reflexividade em Heráclito de Éfeso. 2021. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2021., p. 38).

Trata-se de uma das mais analisadas frases desse filósofo pré-socrático, sobretudo nos estudos de educação,4 4 Para uma noção sobre a amplitude dessas discussões, cf. Kennedy e Kohan (2006). por conta da ligação entre a brincadeira de criança e o aión, palavra grega que designa o tempo em sua intensidade, com as projeções incorporais das memórias e desejos. Não é difícil compreender por que tal enunciado heraclitiano tem atraído educadores, em sua busca por práticas educativas que se realizem nessa temporalidade prenhe de sentido, distante da sucessividade homogênea e externa dos corpos, nomeada pelo termo chronos. Resta, ainda, indagar o que é esse reinado da criança, essa neocracia (Cf. Fernandes; Cardoso, 2023FERNANDES, Breno; CARDOSO, Elizabeth. O tópos da neocracia: introdução & genealogia. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 25, n. 49, p. 139-164, mai./ ago., 2023. ), quais suas afinidades e diferenças em relação à soberania política adulta, em que medida ela reitera as práticas usuais de poder, em que medida se aproxima mais daquela forma poética de soberania, que Derrida concebe a partir da “majestade do absurdo” e do presente, do Meridiano de Paul Celan, cujo gesto

tenta transformar o próprio sentido da majestade ou da soberania, fazê-la mudar de direção, mantendo ainda assim seu velho nome ou pretendendo lhe dar seu sentido mais digno. Existe a majestade soberana do soberano, do Rei, e existe, mais majestosa e diferentemente majestosa, mais soberana e diferentemente soberana, a majestade da poesia, do absurdo [...]. (2008DERRIDA, Jacques. Séminaire la Bête et le Souverain - Volume I (2001-2002). Edição estabelecida por Michel Lisse, Marie-Louise Mallet e Ginette Michaud. Paris: Galilée, 2008., p. 307).

Com isso em mente, vamos ao fragmento 52 de Heráclito transcriado por Haroldo de Campos para “resgatar a linguagem heraclitiana de sob a pátina convencional das versões prosaicas, usando, para tanto, técnicas da poesia de vanguarda (inclusive espacialização)” (1985CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 110):

aión

vidatempo:
um jogo de
criança

(reinando
o Infante
Infância).
(Campos, 1985CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 65).

O poema começa reproduzindo o termo em grego “aión” e depois com um neologismo para traduzi-lo: “vidatempo”. Esse gesto introduz do texto original o som da sílaba “on” - que em Heráclito já ecoava em aiṑn, paízon, pesseuôn - e reverbera na cadeia de sons nasais, em tempo, criança, reinando, infante, infância. Essa repetição insistente também não deixa de soar, seja com a assonância do ditongo “ai/αι”, seja com a aliteração de “p/π” do texto heraclitiano (paȋs, paízōn, pesseúōn, paidòs, respectivamente: criança; brincando; jogando um jogo de tabuleiro; criança como genitivo de “basilēíē”, reinado) (Lopes, 2021LOPES, André Pereira Leme Lopes. Heráclito B52 DK: contribuições à semântica do jogo. Trans/form/ação, Marília, v. 44, n. 1, p. 17-34, 2021., p. 18). Em Heráclito, a sonoridade de “aiṑn” ressoa na desinência dos dois verbos no particípio presente: “pesseúōn”, “movendo as peças”, e “paízōn”, verbo derivado de “país”, “criança”, algo como “fazendo criancice” ou “sendo criança”. Reforça-se, assim, a ideia de que esse tempo vivo é um tempo contínuo, sempre em movimento. Anagramaticamente presente em “reinando”,5 5 Agradeço a Nicolas Ranieri (Unicamp) por me haver sinalizado essa relação anagramática, em conversa pessoal. o enxerto do termo “aión” na transcriação haroldiana também atua no sentido de infundir ao poema como um todo esse ambiente sonoro anasalado, que parece se expandir no ritmo do gerúndio e nos pôr dentro do instante dessa reinação (ou dessa reinação do instante; Cf. Derrida, 2008DERRIDA, Jacques. Séminaire la Bête et le Souverain - Volume I (2001-2002). Edição estabelecida por Michel Lisse, Marie-Louise Mallet e Ginette Michaud. Paris: Galilée, 2008., p. 306).

Nesse sentido, impossível deixar de notar como Haroldo desloca, em sua transcriação, o poliptoto “paȋs, paízōn” e o tempo do particípio presente para o final, transformando o “reinado da criança”, antes imagem que concluía o fragmento, em “reinando o infante infância”, ação em curso, em fluxo - e o que poderia ser mais heraclitiano? Se, como sugere André Lopes, as possíveis implicações cívicas do fragmento de Heráclito estariam no verbo pesseúōn, palavra que deriva de “pessós”, peça de um jogo “com regras específicas que têm que ser seguidas corretamente” e pressionariam a criança a ir “além da infância”, para “dominar a arte (téchnē) de jogar bem” (2021LOPES, André Pereira Leme Lopes. Heráclito B52 DK: contribuições à semântica do jogo. Trans/form/ação, Marília, v. 44, n. 1, p. 17-34, 2021., p. 31), na transcriação de Haroldo, a dimensão política, posta em devir, em particípio presente, não só reafirma o infante em sua condição infantil mas o substancializa, transforma-o na própria “infância” como tal. Nos termos de Agamben, diríamos que o poeta brasileiro toca aí naquele experimentum linguae que articula afinidades entre poesia e infância e se oferece como modelo privilegiado de resistência às constrições da biopolítica (Agamben, 2005AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.; Palo, 2019PALO, Maria José. Literatura de infância: a fábula infantil. Fronteiraz, n. 23, p. 189-204, 2019.; Nancy, 2001NANCY, Jean-Luc. Muses. Paris: Galilée , 2001., p. 167-170), como veremos a seguir.

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Sob o signo da biopolítica (e suas variáveis: necropolítica, tanatopolítica, geontologia, etc.)6 6 Ver, entre outros: Mbembe (2003), Povinelli (2023) e Han (2019). e da metodologia da arqueologia do saber, foucaultianas, no âmbito dos estudos da criança e da infância, tem sido cada vez mais colocado em questão o discurso, tipicamente moderno, que cria a noção de “criança” como o não-adulto (Fernandes; Cardoso, 2023FERNANDES, Breno; CARDOSO, Elizabeth. O tópos da neocracia: introdução & genealogia. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 25, n. 49, p. 139-164, mai./ ago., 2023. ). Uma consequência dessa desconstrução da noção de criança criada pela Modernidade e assumida em nossos tempos como “natural” - embora nada tenha da natureza em si do ser que costumeiramente denominamos de criança - é experimentada atualmente com uma crescente politização da infância. Segundo essa abordagem, tal como a figura do Oriente, da mulher, do selvagem, etc. foram construídas pela falta ou ausência do sujeito colonizador tido como universal, também a criança figurou como constructo em falta em relação ao adulto. Essa construção, que performa uma relação de poder e, portanto, de dominação, em partes foi camuflada sob a intenção do cuidado e da proteção: salvaguardando a criança do que se quer proteger nela e dela, pressupondo-lhe, assim, uma inocência intrínseca, ela estaria em posição de confortável ignorância em relação aos adultos.

Perante a desconstrução genealógica da noção de criança, esse construto ficcional outro do adulto na condição de sujeito universal, o próprio lugar do ensino de literatura se torna uma questão. Por um lado, alguns dos efeitos das mudanças pelas quais passam a noção de criança podem ser mais bem abordados na literatura e seu ensino como agentes interessados nessa desconstrução e, por outro lado, a literatura também surge como um espaço em que as consequências políticas e pedagógicas desse processo são postas à prova e experimentadas. Ao refletirmos sobre o ensino da literatura a partir dessa nova configuração do ser criança - e criança é diferente da infância (Fernandes; Cardoso, 2023FERNANDES, Breno; CARDOSO, Elizabeth. O tópos da neocracia: introdução & genealogia. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 25, n. 49, p. 139-164, mai./ ago., 2023. ) -, tentamos entender como pensar o ensino da literatura diante dessa crescente politização da infância.

Embora o legado das convoluções de junho de 2013 no Brasil ainda esteja em disputa mesmo no campo das esquerdas, as diferentes vozes que se debruçaram sobre esse período tendem a valorar, em uníssono, de maneira positiva, a atividade política dos estudantes de ensino médio público de São Paulo, em 2015. A greve dos estudantes por melhores condições de ensino, contra o fim do ensino obrigatório de filosofia e sociologia no ensino médio, com seu gerenciamento coletivo, cuidado exemplar com os espaços e bens físicos das escolas, foi vista seja como fôlego novo nas cada vez mais acanhadas estratégias das esquerdas convencionais de organização, reivindicação e resistência,7 7 Cf. “Paulo Arantes debate movimentos de junho de 2023 10 Anos Depois”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= Mwvimkk1kei e https://revistaforum.com.br/news/2015/11/26/paulo-arantes-so-uma-educao-calamitosa-pode-ser-jogada-na-vala-comum-da-relao-custo-beneficio-14515.html (Acessado em jan. 2023); seja como o que poderíamos chamar de acontecimento apropriativo menor, capaz de criar uma ruptura no tempo dos negócios e instaurar, mesmo momentaneamente, uma temporalidade prenhe de (im)possibilidades e contradicções (Palbart, 2016PELBART, Peter Pal. Carta aberta aos secundaristas. São Paulo: N-1, 2016.). Em ambos os casos, a criança em (cosmo)politização aparece como símbolo de uma agência poiética, capaz de renovar e rejuvenescer o político como uma figura ainda não territorializada por práticas e discursos decisórios. Se no modelo grego antigo de democracia eram os mais velhos, os varões anciões, quem participavam da vida política, agora experimentamos um peso maior da esperança no político depositada na força poiética da juventude, mesmo que isso por vezes esteja sempre em perigo de ser territorializado no culto, tão bem explorado pelo capitalismo, ao novo e à sempiterna juventude, e a exclusão do velho e do ancião na vida social relevante.

Desse modo, a politização da infância faz com que a criança se torne agente (cosmo)político, o que se agrava com a crise ecológica: o velho embate entre “pais e filhos” - que determinou toda uma geração da intelligentsia russa da segunda metade do século XIX e foi decisiva para a revolução que ocorrera no início do século passado, graças à representação literária de Turguêniev, e, depois, para as respostas de Tchernichévski (O que fazer?) e Dostoiévski (Memórias do subsolo) - , entre gerações, agora sob uma ameaça do fim da espécie e do esgotamento do planeta, coloca a criança no centro da agência e dos debates políticos interseccionais em torno da ecologia. Com efeito, como está aludido no nome da principal organização “ecorradical” em atuação na Europa e principalmente na Alemanha, Die letzte Generation (A última geração), talvez fosse o caso de pensarmos não mais em termos de geração boomer, x ou y, mas termos em vista que todos fazemos parte, literalmente, das gerações finais que irão existir de nossa espécie.

Nesse sentido, seria preciso saber ouvir aqueles que vêm por último, suas reivindicações finais. Assim se afigura uma agência política, por exemplo, no âmbito ambientalista europeu de Greta Thunberg. Sua agência cosmopolítica hesita entre uma palavra vigorosa contra as medidas insuficientes dos governos europeus e mundiais como reação à crise climática e a percepção de que ela seria fantoche de interesses geopolíticos do mainstream ocidental - afinal, segundo aquela estrutura ancestral que a exclui da política, a criança é facilmente manipulável por interesses dos adultos e sua agência não passaria na verdade de sombra das agências do poder que a utilizaria por sua capacidade de produzir empatia em outros adultos a quem se quer manipular ou, ao menos, convencer, graças à sua imagem de criança inocente. Apesar da repetição dos pressupostos da não-agência da criança, essa hipótese não pode ser simplesmente descartada, pois no mínimo vale como alerta sobre os perigos e entraves das operações ontológicas de revisão dos agenciamentos em suas relações com o político.

Ora, a modificação do entendimento acerca do agenciamento político da criança faz parente(ses) com reflexões recentes sobre o agenciamento da experiência literária. Com efeito, muitos (por exemplo: Povinelli, 2023POVINELLI, Elizabeth A. Geontologias. São Paulo: Editora Ubu, 2023.; Nodari, 2019NODARI, Alexandre. Alterocupar-se: obliquação e transicionalidade na experiência literária. Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 57, 2019.) veem na literatura um espaço de jogo privilegiado para a experiência possível do animismo no mundo desencantado dos saberes universitários, com suas operações de alterocupação do sujeito, variações de pontos de vista que, muitas vezes, remetem à extinta voz média do grego antigo, isto é, à experiência do pronome reflexivo “se” ou do “a gente”, à experiência de continuidade e retroatividade ou reboteio (Flusser chamaria de “intersubjetividade”) das ações de um sujeito e seus circundantes ou o ambiente que o circunda. Passa-se a entender um efeito não a partir de uma ação de um sujeito, mas numa perspectiva ambiental ou de sistema, como fruto de múltiplas, diferentes e complexas redes de agenciamentos, decisões e intencionalidades em cadeia. O sujeito deixa de ser algo estático e passa a ser percebido mais à heraclitiana, como um momento processual, um verbo em particípio passado sedimentado de um processo de um verbo em particípio presente em constante transformação.

Vale notar que essas modificações na noção de agência não estão apenas ligadas à experimentação de certo animismo que retorna no edifício das ciências universitárias, mas são também efeitos dos entrelaçamentos entre os estudos literários, ecológicos e midiáticos, entre outros (como os da criança, feministas, cibernéticos e antropológicos). Em particular, os estudos teóricos das mídias já há bastante tempo ressaltam o que poderíamos chamar de agência do meio (do instrumento) como determinantes nas ações que se faz por meio de tais instrumentos. Um teórico como Kittler foi por vezes criticado por atribuir à agência das mídias um determinismo excessivo sobre as ações humanas ditas “livres”; essas críticas, porém, podem pôr em questão o excesso de determinismo midialógico, mas dificilmente seriam capazes de negar a determinação e a agência dos meios sobre os sujeitos que agem supostamente de maneira livre e deliberada. Em certo sentido, os estudos midiáticos podem ser vistos como advogando uma volta do naturalismo em outra chave, não racista e colonial - não se afirmaria mais, por exemplo, que o calor dos trópicos seria a razão para supostamente não haver pensamento racional no sul do Equador -, mas eco-lógico, em rede, em sistema, processual. Com isso, contribui com seu quinhão de dedo na ferida narcísica do sujeito supostamente universal. Kittler (2016KITTLER, Friedrich. Mídias ópticas: curso em Berlim, 1999. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.), aliás, também ressaltava intensamente a relação entre tecnologia e guerra, ou seja, o modo como a tecnologia moderna está entrelaçada com projetos de poder imperialistas, necropolíticos e coloniais, embora ele mesmo não utilizasse esses termos.

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O que está em jogo, portanto, parafraseando Aristóteles, é o lugar do político. E, como consequência, o que está em jogo no lugar do político é a própria educação como um mecanismo exterior à política de tornar outros-que-sujeitos em sujeitos políticos. A educação vale aqui como uma Bildung, o processo da passagem de um material informe potencial em uma forma determinada. A partir do momento em que o modelo rui, em que a educação não pode mais ser entendida como informando o informe, o puramente potencial, em que a educação passa a ter que lidar com a criança como algo também sempre já atual, a questão sobre o que se entende por educação fica colocada em seu significado mais agudo. Nessa colocação surge a questão pelo que a literatura pode fazer, que tipo de ensino de literatura pode ser pensado diante de sujeitos políticos engajados nos debates políticos, de identidade, de gênero, de raça, de colonialidade e sobre a ecologia? Nesse sentido, não se pode perder de vista as diferenças que fazem diferenças entre os outros humanos e, desses também com os outros-que-humanos. A criança é um outro do sujeito político diferente de como o oriental, o selvagem, a mulher, etc. são outros do mesmo sujeito político supostamente universal. A literatura para as infâncias tem seus desafios próprios, que não deixam de se entrelaçar e conviver, em diferença e produzindo diferença, com os outros agora tornados em sujeitos.

A teórica indiana Spivak se arrisca, nesse sentido, a repensar as proposições de uma Bildung estética de Schiller para além do endereçamento de Schiller dessas proposições ao príncipe e a pessoas de classes dominantes, que não precisam se preocupar com tarefas como limpeza e preparo de refeições. Esse repensamento é posto por Spivak não pelo interesse em retomar as ideias de Schiller, mas sim pelo de se (des)apropriar dos debates propostos por ele. Sua questão é como pensar a educação estética na era da globalização, ou seja, à luz do feminismo, pensando a literatura como instituição como acessível não apenas para o europeu, mas também para a subalternidade interseccional pós-colonial, indígena e feminina. Segundo ela, “nós precisamos aprender a fazer violência à diferença epistemológica e lembrar que isso é o que ‘é’ a educação, e então manter esse trabalho de deslocar a crença no terreno da imaginação” (Spivak, 2012SPIVAK, Gayatri. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Cambridge: Harvard University Press, 2012., p. 13).

Já com o filósofo francês contemporâneo Morizot somos levados a pensar numa educação estética no interstício entre a ecologia e a criança. Um dos sintomas para o que ele chama de crise da sensibilidade para com o outro não-humano ou mais-que-humano é não só o fato de que os sons de animais e da natureza em geral serem percebidos como silêncio pelos ouvidos cosmopolitas contemporâneos, mas a associação a uma regressividade infantil ao sentimentalismo para com animais: “nossas relações com a natureza dos animais e com o reino animal são infantilizadas, primitivizadas. É um insulto aos animais, e é um insulto às crianças”. Seria essa a “maior violência invisível de nossa civilização para com os animais”, a saber, “ter feito deles em figuras para crianças”? (Morizot, 2022MORIZOT, Baptiste. The ecological crisis as a crisis of sensibility. In: MORIZOT, Baptiste. Ways of Being Alive. Medford: Polity Press, 2022., p. 9). Em seguida, Morizot, filósofo de campo, lembra que a crise ecológica é sobretudo uma crise de atenção política, sem deixar de apontar que falar em uma crise da atenção não significa postular que um modo anterior seria melhor ou mais livre, mas que se trata, justamente, de refundar a percepção e a estética tendo em vista também a crise ecológica: “as coisas não necessariamente eram melhores antes, e não se trata de voltar aos modos de vida nus nas florestas. O ponto é inventar esses modos de vida” (Morizot, 2022MORIZOT, Baptiste. The ecological crisis as a crisis of sensibility. In: MORIZOT, Baptiste. Ways of Being Alive. Medford: Polity Press, 2022., p. 9).

Talvez a questão que queríamos encontrar, a questão que co-responde ao que está aqui em questão, seria: de que maneira o ensino de literatura pode co-responder aos desafios e demandas da infância e adolescência em crescente politização? Como fazer do ensino de literatura ao mesmo tempo um catalizador do tempo do acontecimento e um lugar de experimentação e responsabilidade perante os desafios da (im)possiblidade do político na condição de an-arquia? Na medida em que se questiona o caráter artificial da categoria de criança, vê-se como não se trata de questionamentos que deveriam ou poderiam orientar apenas a prática de ensino de literatura infantil ou nas escolas, mas a prática de ensino de literatura ou mesmo simplesmente de ensino em geral.

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A literatura para as infâncias, nesse sentido, há tempos tem não só percebido essas mudanças nas relações entre a criança, a política, a literatura e o ensino, como tem em muitos casos respondido responsavelmente a isso. Um exemplo que vale a pena se demorar é o livro Sagatrissuinorana, escrito por João Luiz Guimarães e ilustrado por Nelson Cruz.

Sagatrissuinorama encena essa transformação pela qual passa a criança no século XXI. Diante do crime e desastre ambiental do extrativismo mineral ganancioso da Vale pelo rompimento das barragens do Rio Doce e do Córrego do Feijão em Mariana e Brumadinho, a criança e o ficcional não ficam incólumes (Oliveira; Andrade, 2022OLIVEIRA, Tiago Mendes de; ANDRADE, Daiane Silva de; FERNANDES, Daniela R. de Sousa. Sagatrissuinorana: o real atravessa a ficção. Em Tese. Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 293-299, set.-dez. 2022., p. 293). Ao tematizar tal evento de destruição socioambiental, o que o (re)conto infantil faz é repetir na ficção, como um motivo em vias de se tornar mitologia, o “real traumático” que está no fundamento (ou na falta de fundo) do advento da criança na condição de sujeito político.

Em evento na PUC-SP no segundo semestre de 2023, ao falar do modo como a ilustração joga com a relação entre história e estória, entre real e ficção, Guimarães lembrou do dito de Aira de que uma narrativa sempre narra outra narrativa, a saber, a narrativa da própria narrativa narrada. Seria, para o autor da parte escrita do livro, isso que estaria encenado na parte ilustrada da obra: na parte sombreada, se passa o conto de fadas dos três porquinhos, a narrativa ficcional; na parte ensolarada, ocorre a narrativa histórica, factual, ambientada em um vale mineiro. Este vale seria o “nonada” em que se misturam “fatos que ouvi” e que “não foram de fato. Ou quase” (Guimarães, 2020GUIMARÃES, João Luiz. Sagatrissuinorana. São Paulo: ÔZé Editora, 2020.) e “o que (...) há (...) maldade humana” (Guimarães, 2020GUIMARÃES, João Luiz. Sagatrissuinorana. São Paulo: ÔZé Editora, 2020.).

Inspirado, como o título evidencia, também na obra de Guimarães Rosa, a narrativa da narrativa narrada, segundo seu autor comentava no evento, não exatamente contradiz a conhecida afirmação de Rosa no prefácio de Tutaméia de que a “estória não quer ser história” (Rosa, 1985ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., p. 7), mas narra a impossibilidade desse desejo do ficcional de não adentrar a história.

Acontece, entretanto, que a outra parte dos termos equacionados permanece plana em Sagatrissuinorama: o fato positivo da “história”, o real que emerge e rompe com a não partição da criança na política e com o desejo da ficção de não se positivar em história, é um evento, um acontecimento, traumático, que traz consigo o clamor por uma elaboração que, por sua própria natureza traumática, não será factual e positiva, mas fragmentada, repetitiva e inacabada.

Assim seria a recontação “à vera” do conto dos três porquinhos: a verdade aparece na repetição do conto de fadas em ambientação tropical como sendo o trespassar da lama no vale “no meio do redemoinho, mastigando, banguela, com suas gengivas de terra, o tão frágil e breve corpo - delobodeporcodecasadetudo”. O corpo “mastigado” em meio ao redemoinho generaliza a singularidade das contraposições narrativas do conto - o lobo, os porcos, as casas - em um “tudo” vítima dos efeitos da “maldade humana”. Tudo - “delobodeporcodecasadetudo” (Guimarães, 2020GUIMARÃES, João Luiz. Sagatrissuinorana. São Paulo: ÔZé Editora, 2020.) - se torna uma palavra só, um corpo só, o que revela as afinidades entre lobo e porco (e casa) perante um terceiro (quarto) que adentra o conto de supetão, arrastando o resto consigo. O desastre ambiental vale como aniquilação não só do meio-ambiente histórico, mas também do meio-ambiente imaginário e ficcional. A ambientação do conto dos três porquinhos, oriundo do hemisfério norte, no sul global, em terreno de extrativismo voraz, não leva a um nacionalismo ingênuo, mas “à vera” do modo de vida conclamado inclusive pela fábula original. Afinal, contra os perigos do lobo mau, do caos e da natureza “lá fora”, há que se construir um teto todo seu de alvenaria resistente, sem preguiça. O problema consiste tanto na relação dos materiais desse teto de alvenaria com o extrativismo colonial, quanto com a solidez relativa desse teto apenas em relação aos perigos e intempéries da natureza personalizados no lobo mau, mas não em relação aos perigos das consequências nefastas do próprio modo de vida extrativista, moralizado, no (re)conto, na figura da “maldade humana”.

Ao reelaborar o conto da carochinha dos três porquinhos e a linguagem e os motivos literários de Guimarães Rosa, ambientando o (re)conto no vale mineiro, Sagatrissuinorama funciona como uma espécie de dispositivo literário que desprograma os programas dos aparatos literários e morais dos elementos literários bricolados, como também promove não uma interpretação desses elementos, mas sim uma apropriação crítica e criativa deles. Ao deslocar o local geográfico da fábula, o (re)conto dispara, na recontação da fábula, uma variação de perspectiva não contida no ponto de vista original de três porquinhos, produzindo estranhamento e novas camadas de significação e de consequências éticas. Nesse sentido, vale como exemplo de uma outra possibilidade de educação estética ou de proposta pedagógica literária em sala de aula perante o fenômeno da politização da infância.

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  • 1
  • 2
    É preciso, obviamente, distinguir entre a prosa como linguagem cotidiana recortada por práticas instrumentais e a prosa como linguagem privilegiada dos gêneros narrativos modernos (romance, conto).
  • 3
    Quando a tradução não é indicada na bibliografia, as obras em língua estrangeira são citadas em tradução nossa.
  • 4
    Para uma noção sobre a amplitude dessas discussões, cf. Kennedy e Kohan (2006KENNEDY, David; KOHAN, Walter. Aion, Kairós and Chronos: fragmentos de uma conversa infindável sobre infância, filosofia e educação. Childhood and Philosophy, v. 4, n. 8, p. 5-22, 2020.).
  • 5
    Agradeço a Nicolas Ranieri (Unicamp) por me haver sinalizado essa relação anagramática, em conversa pessoal.
  • 6
    Ver, entre outros: Mbembe (2003MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture 1 , v. 15, n. 1, p. 11-40, January 2003. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11.
    https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11...
    ), Povinelli (2023POVINELLI, Elizabeth A. Geontologias. São Paulo: Editora Ubu, 2023.) e Han (2019HAN, Byung-Chul. O que é poder? Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.).
  • 7
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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