Resumo
Pela análise de “Cassandra Float Can”, este artigo investiga como a escrita de Anne Carson está ligada a aspectos historicamente desenvolvidos pela teoria do ensaio. Entre a constelação de referências e a aproximação comedida, o ensaísmo foi conceituado via ensaios que apontavam originalidade na mescla de conteúdos. No texto discutido, no entanto, Carson cerca seu tema também por um uso recombinado de diferentes formas, como a poesia e a tradução. Esses usos estão em diálogo franco com o argumento principal da autora no trabalho, de que traduzir é alterar, ou cortar, superfícies.
Palavras-chave: Anne Carson; ensaísmo; tradução
Abstract
Through an analysis of “Cassandra Float Can”, this article discusses how Anne Carson’s writing is tied to features traditionally developed by essay theories. Among the constellations of references and the measured approach, essayism was conceptualized through essays that pointed to originality in the blending of contents. In the text under analysis, however, Carson examines the topic also by blending different forms, such as poetry and translation. These practices are in an open dialogue with the author’s main argument in the mentioned work - to translate is to alter, or to cut, surfaces.
Keywords: Anne Carson; essayism; translation
Resumen
A través del análisis de “Cassandra Float Can”, este artículo investiga cómo la escritura de Anne Carson se vincula con aspectos históricamente desarrollados por la teoría del ensayo. Entre la constelación de referentes y el enfoque mesurado, el ensayismo fue conceptualizado a través de ensayos que señalaron la originalidad en la mezcla de contenidos. Sin embargo, en el texto analizado, Carson aborda su tema también mediante el uso combinado de diferentes formas, como la poesía y la traducción. Estos usos están en diálogo directo con el argumento principal de la autora, que postula que traducir es alterar, o cortar, superficies.
Palabras clave: Anne Carson; ensayismo; traducción
Em “Cassandra Float Can”, texto em que Anne Carson discute o “Agamênon” de Ésquilo, uma espécie de início lírico, marcado pela livre apresentação de Cassandra, é interrompido no terceiro parágrafo por um corte de caráter pessoal. O breve trecho, em que a experiência particular aparece em destaque, expõe não só a relação cultivada pela autora com a tradução, o ensaísmo e as demais formas assumidas por sua escrita, mas também com o próprio texto que lemos em primeiro lugar. De repente e sem meias palavras, o leitor é informado em tom metalinguístico sobre a natureza do pouco que leu até agora, além daquilo que encontrará não só nos parágrafos restantes, mas em toda a obra de Carson. Franqueza e curiosidade se misturam em um tipo de confissão que convida à investigação apenas iniciada algumas linhas acima, investigação essa que inclui, além de objeto, também sujeito e forma.
Às vezes sinto que passo toda minha vida reescrevendo a mesma página. É uma página com ‘Ensaio sobre tradução’ escrito no topo, seguido por alguns parágrafos de boa e forte prosa. Eles começam a se romper no meio da página. A sintaxe piora. Perfurações aparecem. No final não há tanta coisa sobrando, só uns cacos de língua vagando nas margens, como se quisessem se tornar uma arte de pura forma. (Carson, 2016, n. p., tradução minha).1
Tal qual “uma arte de pura forma” (“an art of pure shape”), definir os contornos do que escreve Carson é tarefa que parece, se não totalmente inadequada, ao menos claramente complexa. Junto aos temas abordados também estão as inúmeras formas assumidas e sempre embaralhadas com prazer, o que inclui tradução, poesia, ensaio, romance, dramaturgia, pastiche, aforismo, análise filológica, tese acadêmica, crítica de arte e outros - sem que se aprofunde, ainda, em suas incursões pela performance e artes plásticas. As variadas carapuças vestidas pela autora não funcionam apenas como leque aberto em que, de diferentes posições e intensidades, sopra seu conhecimento direcionado por claras intenções. A mistura de formatos se aproxima mais, ainda nas metáforas zefirinas, de uma espécie de pipa - por ligado que esteja a um condutor, em última instância o brinquedo de papel também voa ao sabor variado do vento. É pela junção entre condução consciente e variação intempestiva, entre “parágrafos de boa e forte prosa” e “cacos de língua vagando nas margens”, que o pensamento de Carson se mantém no ar, flutuando.
Essa estereoscópica natureza formal aparece com maior claridade em “Cassandra...” não apenas pela confissão que abre o terceiro parágrafo, momento em que fica explicitado o caminho errático percorrido pelo raciocínio da autora, mas também pelos diferentes formatos adotados por Carson para investigar, no texto, a figura de Cassandra. Estão entre eles a tradução, a poesia, a análise filológica, o ensaio, o relato pessoal e, com ainda maior ambição, a forma indefinida que surge nos dois cortes (“cut”), ou versões, oferecidos ao fim do trabalho. A adoção desses modelos, bem como suas constantes mutações, não segue agenda automática, aleatória ou apenas exibicionista, como num tipo de elasticidade intelectual que se justificasse por si só. Antes, faz sentido pensar o mosaico formal como uma condição de pensamento que traz ao objeto escolhido, sobretudo, uma salutar variedade de alongamentos e extensões. Mais ainda, faz sentido pensar essa mistura como método. Se não um método rigoroso e sistemático, então um exercício de declinação em que, assim como acusa o terceiro parágrafo do texto, desvia-se de determinada ordem para encontrar reverberação e sentido em outra, estabelecendo uma conversa marcada por reveladores e proveitosos rodeios.
“Desvio”, “reverberação”, “condição de pensamento”, “mutação”, “caminho errático”, “forma indefinida”, “mistura”, “investigação”, “variação intempestiva” e “conversa” são termos historicamente associados ao ensaísmo. Correndo algum risco, não seria exagero afirmar que o trabalho de Carson em textos como, além de “Cassandra...”, “Dirt and Desire: Essay on the Phenomenology of Female Pollution in Antiquity” (Carson, 2001), “Essay on What I Think the Most” (Carson, 2001), “O gênero do som” (Carson, 2020), “Variações sobre o direito de permanecer calado” (Carson, 2023), “Desprezos: Um estudo sobre o que é e o que não é lucro em Homero, Moravia e Godard” (Carson, 2023) e “Eros, o doce-amargo” (Carson, 2022), é em grande parte devedor da caleidoscópica tradição do gênero. Em uma improvável realidade em que classificar o trabalho da autora fosse indispensável, chamar essas investigações de ensaios pode soar como a menos imperfeita das definições a se escolher, já que esse tipo de texto possui justamente na multiplicidade e indefinição suas marcas fundamentais.
Não por acaso, aponta Starobinski, se a palavra “ensaio” vem do verbo francês “essayer” (tentar), também deriva do latim “exagiare” (pesar), termo que se avizinha de “exame” (Pires, 2018, p. 13). Não por acaso, ainda, se desde Montaigne e a aurora do ensaísmo no século XVI não se apresentam volumes canônicos e unívocos sobre a natureza desse gênero literário, mas apenas tradicionais ensaios sobre o ensaio, é porque a tarefa de defini-lo funciona como espécie de esporte dentro dos seus próprios domínios, apontando caminhos sem nunca atingir resposta final. Em outras palavras, definir o ensaio é assunto que costuma funcionar melhor se endereçado, com a liberdade marcante do gênero, por outros ensaios.
Entre as mais celebradas tentativas de desdobrar a forma ensaística estão, entre outros, o já citado “É possível definir o ensaio?”, de Starobinski, “O ensaio e sua prosa”, de Bense, “Sobre a essência e a forma do ensaio”, de Lukács, além de “O ensaio como forma”, de Adorno. Para Bense, escrever ensaios é dar contorno a ideias em ritmo experimental no momento mesmo em que se escreve, de modo a “inventar o objeto” conforme a investigação é feita, “farejando a verdade” sem jamais apreendê-la com as mãos - ao correr da pena, em resumo (Pires, 2018, p. 115). Já Lukács, na conceituação que faz em carta a Leo Popper, afirma que o teor desses textos está sobretudo no nível pessoal, uma vez que os temas abordados na investigação, em última instância, funcionam como espécie de “trampolim” para o ensaísta dobrar-se sobre si e oferecer sua originalidade: “O ensaísta precisa concentrar-se em si mesmo, achar-se e construir algo a partir de si” (Pires, 2018, p. 106). Neste ponto, Lukács aproxima-se dos ensaios originais de Montaigne e sua célebre introdução, em que o nobre francês afirma derivar de si mesmo todo o conteúdo em seguida, como reflexo íntimo do que é e daquilo em que acredita (Montaigne, 2010, p. 37).
Adorno, por sua vez, nega-se a enxergar no ensaio apenas uma forma literária de não ficção, preferindo ver um completo método de pensamento, modo em que é possível conhecer e criar via aproximações e recuos intermitentes, animados que são por uma pulsante curiosidade. Não se trata de enxergar as convenções como camisas de força, mas testar até onde é possível distendê-las e se aproveitar de sua elasticidade em um gênero que permite contorcionismos regulados. Justamente por dispor de liberdade que aparenta não ter fim, escrever ensaios é também não se perder no vazio da argumentação irrestrita e pouco objetiva, na exibição injustificada e no ritmo vago, mas saber dosar elementos e ideias diferentes sem nunca abandonar um claro raciocínio. A ramificada aproximação de um objeto, portanto, costuma acontecer ao mesmo tempo em que se questionam também as definições das formas e seus métodos, resultando em uma expedição sempre dupla. Disponível ao ensaísta está não só uma nova dinâmica de combinação e recombinação, como também uma postura inquiridora por excelência, diz Adorno: “Nos processos de pensamento, a dúvida quanto ao direito incondicional do método foi levantada quase tão-somente pelo ensaio” (Adorno, 2003, p. 25).
Se esse “direito” costuma se apresentar como “incondicional”, o questionamento às dinâmicas formais parte do ensaísmo pelo acolhimento da indefinição que também o define. Certas vezes classificado como “o não gênero” por sua recusa aos rótulos, afirma Lazar que o ensaio pode ainda ser enxergado como “o gênero queer”, forma literária em que as acepções correlatas das palavras inglesas “genre” e “gender” estão visíveis, apontando para uma categoria literária “difícil ou impossível de ser caracterizada” (Lazar, 2020. p. 17). Se a história dos estudos de literatura começa e se estabelece sobretudo por uma classificação em subdivisões temáticas, afirma o autor, o ensaio nasce e se mantém vivo ao recusar essa estabilidade, não se contentar com binarismos e fazer dessa “estranheza” sua força mais característica.
Mas se há algo que une o ensaio, ao menos entre as conceituações citadas, é o ato de reconhecê-lo como investigação de um tema feita às apalpadelas, aos poucos, sem ritmo acadêmico, sem pretensão a grandes respostas e, sobretudo, servindo-se de uma díspar constelação de referências. É principalmente pela mistura de aproximações críticas que se torna possível, enfim, aproximar-se ao modo ensaístico. Assim, o ensaísmo não pretende reinventar as formas por geração espontânea e direta, ou como afirma Pires, a originalidade do gênero está menos na invenção e no puro exame que na associação: “Ao ensaísta cabe menos a análise que busca esgotar e fixar o sentido do objeto do que a busca de diferentes contextos, já existentes, que possam a ele se associar” (Pires, 2015, p. 69).
A mesma ideia de miríade intelectual faz que Aira, em “O ensaio e seu tema”, aponte para uma natureza dupla no gênero de não ficção. Ao afirmar que um ensaio surge pela mínima união de dois temas que se interpõem e, analisados em conjunto, fazem nascer uma investigação original, o autor propõe a fórmula definida por “A e B” (Pires, 2018, p. 235). O produto dos dois assuntos escolhidos para o diálogo não seria uma soma, no entanto, mas uma mistura: “Minha hipótese é que o tema do ensaio são dois temas” (Pires, 2018, p. 237). Esse eco entre ambos os pontos representaria “um desvio (uma perversão, pode-se dizer) do interesse” que está presente em toda produção artística, desvio que surgiria ao apanhar um interesse isolado e “casá-lo abruptamente com outro interesse”. Mas, ainda que a fórmula “A e B” pretenda sua originalidade na mistura de conceitos pouco próximos de início, a chave está na inteligência do ensaísta, ou na sua capacidade de criar pontes de maneira original, diz Aira. Isso só é possível, ainda, com a presença de uma “subjetividade direta” que se atualiza na “espontaneidade” do autor. Se ao contista cabe “conhecer seu ofício”, ao poeta “ser original” e ao romancista “transmudar a experiência”, cabe ao ensaísta “ser inteligente” (Pires, 2018, p. 239).
Na combinação central ao ensaísmo apontada por Aira, Starobinski, Bense, Lukács, Adorno, Lazar e Pires, surge uma mesclada liga de conteúdos, o que acaba por desafiar as formas padronizadas. A originalidade está, em outras palavras, na ponte que se faz entre os temas de modo livre, mas nunca gratuito, dinâmica que se constrói pela capacidade do ensaísta em pensar os pontos de maneira inventiva e curiosa, jamais dada de imediato - mesmo itinerário que se vê com clareza em “Cassandra Float Can”. Para abordar o tema escolhido, Carson reúne a tragédia de Ésquilo, sua experiência infantil e como tradutora, as abreviaturas de Husserl, o artista Gordon Matta-Clark e a etimologia da própria palavra “etimologia”, tudo com vistas a investigar um assunto final: a incontornável intraduzibilidade das coisas ou mesmo, por outro lado, a possível tradução de tudo.
O ritmo da escrita vai de um elemento a outro como quem deseja se perder pelo caminho, o que aparece no trecho em que um desses desvios é anunciado sem reservas, e o rumo do trabalho, até então focado em Cassandra, passe momentaneamente para o espólio literário de Husserl: “Rachaduras, cortes, quebras, talhos, fendas, retalhos, rasgos, decepas, interseções cônicas, rupturas, etimologias. Aqui vai outra que eu gosto. Não tem nada a ver com Cassandra (precisamos dar um tempo da Cassandra)” (Carson, 2016, n. p. , tradução minha).2 Ainda que Carson anuncie ser preciso “dar um tempo da Cassandra”, a referência a Husserl ou outros elementos temáticos que “não têm nada a ver” com a personagem cumpre o propósito constelar de todo bom ensaio, circulando um ponto central. O que define uma espécie de “método Carson” e funciona no sentido anunciado pelo início do terceiro parágrafo de “Cassandra...”, no entanto, é verificar que a autora não se satisfaz com uma combinação empreendida apenas ao nível do conteúdo, mas também ao nível da forma.
De modo analítico, dos parágrafos de prosa forte aos cacos de língua vagando na margem, é possível observar em “Cassandra...” a tendência a uma “arte de pura forma”, na medida em que o texto avança e as questões formais vão invadindo a mancha gráfica. Da análise de “Agamênon” ao relato pessoal, do comentário etimológico à dinâmica do ensaio, Carson caminha num ritmo que vai deixando de lado a compreensão mais imediata sobre a ideia de tradução e a aproximando do ato de cortar, ou alterar formalmente a matéria. Os cortes representados pela opção de Ésquilo em manter os gritos incompreensíveis de Cassandra, as milhares de abreviações de Husserl, os prédios mutilados de Matta-Clark e a prática do etimologista, que “faz cortes mostrando o Ser enquanto flutua dentro das coisas” (Carson, 2016, n. p.), acontecem ao mesmo tempo em que o texto lido, aos poucos, também vai sofrendo alterações formais.
Em outras palavras, um tipo de “sintaxe vai decaindo”, na medida em que caminhos são abertos para a exploração cada vez mais livre do tema proposto, uma movimentação que acontece em diferentes camadas e reflete, na prática, a ideia desenvolvida no texto - de que traduzir é também alterar superfícies. Tal raciocínio aparece na manutenção do grito intraduzível de Cassandra na peça, alarido que é ao mesmo tempo delírio, profecia e verso de métrica perfeita, tudo executado por uma personagem que desconhece o idioma grego falado na tragédia. A passagem, a primeira em que Cassandra diz algo depois de permanecer calada por centenas de versos, é desencadeada pela provocação de Clitemnestra: “Qual o problema, você não fala grego?”. A afronta é respondida pelo célebre “OTOTOTOI POPOI DA”, cujo significado prático é desconhecido, abrindo o monólogo da personagem que profetiza os maiores desastres. A frase, que normalmente é traduzida pela exortação genérica “Alas!”, ganha outra direção ao ser mantida em toda sua intraduzibilidade e exclamação de letras maiúsculas.
Ésquilo gostaria que víssemos os véus voando na mente de Cassandra, que nos perguntássemos em que nível de si mesma ela traduz um rasgo puro de emoção troiana para um verso trágico grego de métrica perfeita, e o que a tradução tem a ver com as artes da profecia. Porque nos dois casos há a atitude de cortar superfícies até o local que está embaixo sem motivo. O que o futuro está fazendo embaixo do passado? Ou métrica grega dentro de silêncio troiano? E como te altera vê-lo ali flutuando, e como isso pode flutuar? (Carson, 2016 n. p., tradução minha).3
No mesmo sentido e ao fim do texto, já indicados em Husserl e Matta-Clark dois exemplos de corte e tradução que fogem da literatura, Carson afirma que o grito de Cassandra, “uma etimologia e uma visão profética”, é responsável por “partir ao meio nossa ideia sobre o que é saber grego” (Carson, 2016, n. p.). A atitude da personagem “remove paredes e piso e de repente estamos num local a ser demolido” - é dessa forma que Cassandra pode flutuar para fora da linguagem, ou da clara significação da linguagem, rumo ao espaço recém demolido da tragédia de que faz parte. É dessa forma, também, que Carson pode então prosseguir para os cortes mais intensos que fará no texto, ao final, quando os cacos de língua já se instalam no espaço restante no papel.
A investigação começa por três traduções dos últimos versos ditos na peça por Cassandra antes de morrer. Três aproximações que são, sobretudo, cortes encerrando a primeira versão (“cut”) de “Cassandra Float Can”. Da primeira opção para os versos, mais tradicional, ouve-se a personagem relacionar a humanidade com a volatilidade da sorte, uma dinâmica pela qual Cassandra diz sentir “a maior pena” e que é representada pela esponja que apaga o desenho num piscar de olhos. Na segunda tradução, menos dogmática, a personagem faz associação parecida nos três primeiros versos para então, no quarto, introduzir a ideia de flutuação e terminar com uma fria rubrica: “Você que mal flutua e como flutua e pode / você / De você tenho dó / Sai Cassandra” (Carson, 2016, n. p.).4 Na terceira opção, os versos são traduzidos por frase única, mais próxima dos termos técnicos presentes na construção civil: “Local derrubado e removido” (Carson, 2016, n. p.).5
As três traduções, para além de reverberarem o caminho até os “cacos de língua” e dar conta do ato de cortar discutido no trabalho, são também um radical desvio na forma praticada até então pelo texto em prosa. Funcionam, no nível formal, como a constelação de conteúdos opera num ensaio mais tradicional: distendem o entendimento pela recombinação de elementos, pela sugestão de ligações jamais dadas de imediato.
A súbita mudança, no entanto, não é apenas um reflexo ou exemplo dos aspectos discutidos até então no texto, mas configura abordagem original que aponta para nova maneira de investigar a mesma questão. Em outras palavras, é como se Carson, já cansada dos parágrafos de “boa e forte prosa” em que escavava o tema ao nível da constelação de conteúdos, agora preferisse se aproximar do assunto pela alteração da forma - o que, não por acaso, também é o tópico em discussão. Parece dizer, ainda, que só assim é possível considerar Cassandra como essa personagem merece, uma vez que a intraduzibilidade é aquilo que define seus gritos, relação que passa pelas traduções possíveis e pelos cortes desejáveis.
É mesmo a palavra “corte”, mais especificamente, que aparece por extenso nos títulos que também batizam as duas breves versões de “Cassandra Float Can” apresentadas em sequência, logo após a chamada “Original Cut” terminar com as citadas três propostas de tradução para os versos 1327-30 de “Agamênon”. Tanto “Birthday Cut”, quanto “Final Cut” são compostas por poemas que se utilizam não só das ideias, mas em especial de uma seleção de palavras empregadas no primeiro texto, para abordar a mesma discussão de forma sucinta, lírica e questionadora. Se “Birthday Cut” sugere uma pergunta que une Cassandra ao ato de reescrever ou traduzir - “Ela é o feixe ocular da reescrita? / É o inglês apresentado o lar da descrença como se ela tivesse silêncio local?” (Carson, 2016, n. p.)6 -, “Final Cut” usa versos de uma só palavra para fazer ressoar o tema de outro modo, talvez mais direto e jocoso: “gritando / essas / etimologias / flutuam / até / almoço / quebra / alas / apenas / saia / !” (Carson, 2016, n. p.).7
A exploração formal nos termos das duas versões ou cortes finais pode ser pensada de maneiras que retomam as referências apresentadas na “Original Cut” com a inventividade que uma “arte de pura forma” pode oferecer. De certo modo, o fato de selecionar palavras usadas anteriormente, em prosa, para tratar do mesmo assunto em verso, transformando 10 páginas de texto corrido em poemas curtos, aponta para um tipo de abreviação e abertura. Nas 30 mil páginas escritas por Husserl em abreviaturas e citadas por Carson, cabe lembrar, transparece um desejo por concisão que se mostra contraditório, de modo que reduzir palavras também traz outras questões, como o exagero surgido da praticidade. Da mesma forma, os prédios de Matta-Clark e sua busca pelas “bordas finas” sugerem, por buracos nas paredes, uma realidade recôndita e secreta que depende da remoção do excesso para ser percebida e acessada.
São modalidades de corte entrevistas nas duas versões finais do ensaio com a adição de que, graficamente, o prédio construído pela mancha gráfica do texto inicial é literalmente cortado pelas novas variantes. A estrutura resultante é agora menor, cheia de quebras e recuos, local de onde é possível enxergar passagens insuspeitadas anteriormente. Na marcha do mesmo raciocínio, não é temerário afirmar que essas atitudes, abreviar palavras ou cortar prédios, também constituem um tipo de tradução que aponta, outra vez, para o desafio que é verter qualquer linguagem para outra, ou silêncio troiano para perfeita métrica grega.
A quebra no nível formal, tal como aponta Aira pela fórmula “A e B” no aspecto temático, vem aqui objetivamente pela junção da prosa do ensaio, do verso da poesia e da dissemelhança da tradução. Esse movimento é responsável por estender a outras alturas o questionamento que Adorno confere ao ensaísmo em “O ensaio como forma”. Se o ensaio é responsável por duvidar do “direito incondicional do método”, ou desafiar os limites dos gêneros textuais, Carson aumenta o escopo pela adição de outros modos formais, colocando ainda mais ingredientes na mistura já rica em temperos temáticos. O resultado embaralha definições que se pretendam rigorosas a respeito de limites para a escrita, modos de desenvolver uma ideia textualmente ou roteiros a se seguir numa pretensa separação entre conteúdo e forma.
Seguir tal caminho só é possível, ainda, pela referenciação constelar que une memórias, autores e ideias díspares, associando-os no texto pelo ponto comum da tradução e sua retomada no pensamento da autora, tal qual refrão. Não só pelo tema escolhido, no entanto, é possível pensar que o ensaísmo, além de um “não gênero”, é também a forma em que diferentes materiais são constantemente traduzidos e retraduzidos em uma ideia comum, proposta que em si mesma constitui o raciocínio do ensaísta em idas e vindas. Ainda que Carson pareça digredir, por vezes verbalizando essa necessidade, clara está sua atitude de associação e montagem, o que encontra reverberação também na alteração das formas. Dito de outro modo, se só tentativas de tradução podem endereçar um ensaio sobre tradução, é porque ensaiar e traduzir parecem dois elementos mais próximos que distantes.
Essa espécie de método, que em “Cassandra...” vai da reflexão do ensaio à liberdade da poesia passando pela tradução, soa menos como sistema definido por antecedência, e mais como curiosidade irresistível a se atualizar com o correr da pena, investigação e escrita se empurrando mutuamente, como já apontara Carson no início do texto. Para além de oferecer explicações, a autora sugere que falar sobre tradução, seu “único” tema, também envolve traduzir erraticamente, ocupando uma posição e se arriscando no processo. Mais uma vez, não interessa tanto a resposta quanto o caminho percorrido, o traçado do raciocínio, a maquinaria das referências e a maneira como esses elementos culminam na diversidade final, brincando com as formas. Em suma, dizer que “Cassandra...” é um ensaio só é possível se essas nuances, mais que levadas em conta, também são encaradas como método de pensamento que apontam para fora do gênero ensaístico, em eterna movimentação.
Uma camada abaixo, todo esse jogo entre forma e conteúdo faz vibrar ainda o ponto principal de “Cassandra...”: traduzir a peça de Ésquilo não deve se resumir em encontrar as palavras mais fiéis à significação dos termos no texto, mas sobretudo se esforçar para, como o autor grego, manter os gritos delirantes de Cassandra. Nesse sentido, é preferível a opção pelo desconhecido e intraduzível à suposição de uma equivalência completa e imediata que ignore o verdadeiro drama em cena, ainda que essa escolha venha às custas de uma pretensa coerência. Pode-se dizer que a coerência de Cassandra, como a de Carson nesse texto, está justamente no alargamento das noções de tradução a partir do que se julga incompreensível ou confuso à primeira vista, posição que deve acompanhar a tarefa de qualquer tradutor, seja ele uma professora de grego, um filósofo com obsessão por abreviaturas ou um artista plástico conhecido por cortar prédios.
É dessa forma que a tradução pode se tornar, para retomar a descrição da autora, uma “arte de pura forma” a que seus textos, todos “ensaios sobre tradução”, acabam por conduzir ao fim. São só esses cacos de língua vagando nas margens do papel, fragmentos aparentemente ilógicos, que dão sentido real aos parágrafos de boa e forte prosa, oferecendo uma compreensão que é, antes de tudo, uma experiência de tradução em proveito das formas. Esse improvável método, ainda, vai do ensaio à poesia e resulta em três versões radicalmente diferentes de um mesmo texto apenas porque interessa entrever buracos ou aberturas nessas palavras flutuantes, o que inclui gritos eternamente desconhecidos.
Referências
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- CARSON, Anne. Cassandra Float Can. In: CARSON, Anne. Float Londres: Jonathan Cape, 2016. s.p.
- CARSON, Anne. Eros, o doce-amargo Tradução de Julia Raiz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
- CARSON, Anne. Men in the Off Hours Nova York: Vintage Books, 2001.
- CARSON, Anne. O gênero do som. Tradução de Marília Garcia. Serrote, v. 34, p. 114-136, 2020.
- CARSON, Anne. Sobre aquilo em que eu mais penso - Ensaios Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34 , 2023.
- LAZAR, David. O gênero queer. Tradução de Marília Garcia. Serrote, v. 35-36, p. 16-23, 2020.
- MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
- PIRES, Paulo Roberto (org.). Doze ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: IMS, 2018.
- PIRES, Paulo Roberto. O fantasma de Montaigne: Ensaio e vida intelectual no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. 232 p.
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1
“Sometimes I feel I spend my whole life rewriting the same page. It is a page with “Essay on Translation” at the top and then quite a few paragraphs of good strong prose. These begin to break down toward the middle of the page. Syntax decays. Perforations appear. By the end there is not much left but a few flakes of language roaming near the margins, looking as if they want to become an art of pure shape”.
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2
“Cracks, cuts, breaks, gashes, splittings, slicings, rips, tears, conical intersects, disruptions, etymologies. Here is another one I like. It has nothing to do with Cassandra (we need a rest from Cassandra).”
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3
“Aeschylus would like us to see veils flying up in Cassandra’s mind, would like us to be wondering at what level of herself she is translating some pure gash of Trojan emotion into a metrically perfect line of Greek tragic verse and what that translation has to do with the arts of prophecy. Because in both cases there is some action of cutting through surfaces to a site that has no business being underneath. What is the future doing underneath the past? Or Greek metrics inside Trojan silence? And how does it alter you to see it there floating and how can it float?”
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4
“You who barely float and how you float and can / you / You I pity / Exit Cassandra”.
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5
“Site demolished and removed ”.
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6
“Is she the beam eyball of rewriting? / Is the rendered English home to disbelief like she has site silence?”
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7
“screaming / these / etymologies / float / until / lunch / broke / alas / just / exit / !”
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
25 Abr 2024 -
Aceito
26 Jun 2024