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A autoficção e o romance contemporâneo

Autofiction and the Contemporary Novel

Resumo

Este artigo parte da ideia de que o mundo de hoje se caracteriza pela exposição da vida privada, o que acarreta mudanças nas figurações do romance. Haveria, assim, um entrecruzamento entre a autoficção e o romance contemporâneo, que se apropria de elementos das escritas de si a fim de dar a impressão de que é baseado em fatos reais. Após estabelecer uma arqueologia da autoficção na França, onde o termo surgiu, o artigo apresenta alguns problemas éticos que transparecem quando escritores decidem desnudar-se em público, levando consigo familiares e amigos.

Palavras-chave:
autoficção; romance contemporâneo; escritas de si; literatura francesa

Abstract

This article’s starting point is the idea that today’s world is characterized by the exposure of private life, which entails changes in the figurations of the novel. Thus, there is an intersection between autofiction and the contemporary novel, in which the latter appropriates elements of self-writing to give the impression that it is based on real facts. After establishing an archaeology of autofiction in France, where the term was coined, this article presents some ethical problems that arise when authors decide to reveal themselves in public, dragging relative and friends along with them.

Keywords:
autofiction; contemporary novel; self-writings; French literature

Résumé

Cet article part de l'idée que le monde d'aujourd'hui se caractérise par l'exposition de la vie privée, ce qui entraîne des changements dans les figurations du roman. Il y aurait, ainsi, un entrecroisement de l'autofiction avec le roman contemporain, qui s'approprie les éléments des écritures de soi afin de donner l'impression qu'il s'inspire d'une histoire vraie. Après avoir établi une archéologie de l'autofiction en France, où le terme surgit, l'article présente quelques problèmes éthiques qui transparaissent lorsque les écrivains décident de se dénuder en public, amenant avec eux les amis et la famille.

Mots-clés:
autofiction; roman contemporain; écritures de soi; littérature française

Tout le problème vient du fait que l’écrivain soit devenu, au fil du temps, plus important que le livre (Dany Laferrière).

Introdução: a era da extimidade

A maneira de construir e encarar as categorias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações, com a proliferação de relatos e romances nos quais as fronteiras entre elas parecem se desvanecer. O surgimento do termo “autoficção” contribuiu ainda mais para embaralhar a questão, ao juntar, de maneira paradoxal, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se opor.

A expansão do fenômeno é sintoma dos novos tempos. Creio poder afirmar que se vive hoje a era da extimidade, já que se exibe aquilo que sempre foi considerado intimidade; assim, fala-se em “extimidade” quando o que, em princípio, deveria ficar reservado ao domínio do privado é exposto pelo sujeito. O termo extimidade (extimité) foi usado pelo psicanalista francês Serge Tisseron1 1 O termo apareceu posteriormente no artigo “Clinique de la perversion”, no Séminaire Livre XVI, de Lacan. Embora o seminário tenha sido apresentado em 1969, ele só foi publicado em 2006. Na verdade, no texto de Lacan só aparece o adjetivo “extime”, o substantivo aparece na relação dos itens abordados (“a extimidade do objeto”), lista provavelmente feita por Jacques-Alain Miller, o organizador do livro. O objeto a (ou o pequeno a), que designa a falta, a causa do desejo, ou ainda a queda (com a perda do paraíso), se situaria num lugar “extimo”, reunindo o íntimo à radical exterioridade (LACAN, 2006:249). Nesse artigo, Lacan trata das relações entre sadismo e masoquismo, exibicionismo e voyeurismo, ou seja, um não existe sem o outro. François Jullien (2013) utiliza extimo para refletir sobre a relação sexual em que desejo e violência estão presentes; como exemplo literário, ele cita a Histoire d’O de Pauline Réage, em que a mulher é continuamente violentada pelo homem amado; já na pintura, ele menciona o quadro L'origine du monde, de Courbet, que retrata de modo muito realista o sexo feminino; a tela, que pertenceu a Lacan, hoje se encontra no Musée d’Orsay. em L’intimité surexposée [2001] numa reflexão sobre o reality show francês Loft story. Ele distinguia extimidade de exibicionismo, termo que lhe parecia inadequado para designar o comportamento dos participantes do programa televisivo. Para ele, a extimidade - movimento que leva cada um a desvelar uma parte de sua vida íntima, tanto física quanto psíquica - sempre existiu, só que ela não só se exacerbou ultimamente como passou a ser reivindicada. Intimidade e extimidade, inseparáveis da autoestima, seriam os dois movimentos que a constituem, como a sístole e a diástole da identidade. Para Serge Tisseron, não se deve confundir o íntimo (que corresponde à interioridade) com a intimidade, que é suficientemente formulada para poder ser transmitida a outrem. Assim, o desejo de extimidade afetaria a intimidade, não o íntimo. Com isso, a relação do sujeito com o mundo se definiria por quatro dimensões: sua relação com o íntimo, com a intimidade, com o privado e com o público. Para Serge Tisseron, a noção de extimidade é inseparável da noção de identidades múltiplas, pois cada um decide qual faceta quer tornar visível (TISSERON, 2009TISSERON, Serge. Entretien avec Serge Tisseron : cet obscur désir de s’exposer. Paris, 2009. Disponível em Disponível em https://www.psychologies.com/Planete/Vivre-Ensemble/Articles-et-Dossiers/Entretien-avec-Serge-Tisseron-cet-obscur-desir-de-s-exposer Acesso em 09/04/2012. www.fr.wikipedia.org/Acessos em 17/01/2014 e 30/01/2020.
https://www.psychologies.com/Planete/Viv...
). O uso que se faz do termo extimidade na crítica literária que trata da autoficção se aproxima mais dessa noção do que do sentido psicanalítico de Lacan e de Jullien.

Romance: gênero impuro

O florescimento das escritas de si causa um impacto no romance. Como já apontava Mikhail Bakhtin, em artigo de 1941, o romance é um gênero inacabado, em constante devir, que desde o início se apropriou de elementos de outros gêneros literários (tragédia, comédia, drama) e extraliterários (cartas, diários, confissões e métodos da retórica judiciária) (BAKHTINE, 1978BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du roman. Traduit par Daria Olivier. Paris: Gallimard, 1978., p. 467). Quanto ao primeiro tipo de apropriação, basta lembrar o Quixote, paródia do romance de cavalaria; quanto ao segundo tipo de apropriação, dele derivaram tanto o romance epistolar do século XVIII quanto o romance que parodia o diário íntimo; Rousseau, em As Confissões, usou procedimentos retóricos tanto da confissão quanto da prática judiciária.

A riqueza do romance decorre de sua maleabilidade: sem regras fixas, tem uma possibilidade infinita de se adaptar aos novos tempos. Bakhtin considera que, quando o romance se torna dominante, como é o caso atualmente, todos os outros gêneros se “romanizam”, todos os outros tendem à desagregação. O romance pode evoluir e absorver os outros gêneros porque é o único que é fruto da Idade Moderna. “Ele antecipou e ainda antecipa a evolução futura de toda a literatura. Eis por que, tornando-se dominante, ele contribui para a renovação de todos os gêneros, contamina-os por sua própria evolução, seu próprio inacabamento” (BAKHTINE, 1978BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du roman. Traduit par Daria Olivier. Paris: Gallimard, 1978., p. 444). Se os gêneros antigos e elevados focalizavam o passado de heróis, o romance representa o presente de gente comum e o presente “é transitório, fugaz, é uma espécie de continuidade eterna, sem começo nem fim.” O presente é inacabado, não tem substância, e o romance o retrata sem cânones (BAKHTINE, 1978BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du roman. Traduit par Daria Olivier. Paris: Gallimard, 1978., p. 455). Se existe um paradigma do romance - o romance balzaquiano -, ele foi criado para ser imediatamente quebrado, parodiado, transformado.

Por ser um gênero impuro, o romance se hibridiza em contato com outros gêneros, podendo se utilizar de todos os procedimentos, como afirma Marthe Robert (1972ROBERT, Marthe. Roman des origines et origines du roman. Paris: Gallimard, 1972.:15): a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; ele pode se apresentar como fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopeia; ele não sofre nenhuma proibição e nenhuma prescrição; em geral em prosa, ele pode, eventualmente, recorrer também à poesia. Quanto ao mundo real, o romance pode pintá-lo de maneira fiel, como pode deformá-lo, falseando as proporções e as cores.

A minha hipótese é que o romance hoje se transforma ao utilizar procedimentos das chamadas escritas de si. Em romances recentes, de jovens escritores (sobretudo), mesmo quando se trata de puras ficções, alguns elementos biográficos presentes no paratexto (quarta capa, orelha) e/ou no próprio texto indiciam uma escrita de cunho autobiográfico ou uma autoficção. O leitor pode ser levado a crer que se trata de autoficção, sobretudo quando o romance é escrito em primeira pessoa, quando na verdade o entrecho é totalmente inventado, a única verdade é a presença de um narrador que tem alguma semelhança com o autor.

A autoficção (arqueologia)

Para Claude Burgelin, as origens da autoficção remontam a Proust. “A subjetividade com suas discordâncias e suas variações de registro tornou-se atriz e heroína da narração” (BURGELIN, 2010BURGELIN, Claude. Pour l’autofiction. In: BURGELIN, Claude, GRELL, Isabelle, ROCHE, Roger-Yves. Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010., p. 10). Um outro aspecto do romance de Proust que teve desdobramentos subsequentes foi a problematização simultânea do desejo e da (im)possibilidade de escrever um romance. Esta é, sem dúvida, a herança de Marcel Proust que está muito presente no romance contemporâneo: a autorreflexividade, a presença do escritor em suas crises e dificuldades no trabalho de criação. Quando o protagonista de um romance é um escritor às voltas com seu ofício, como na Recherche de Proust, o pacto de leitura fica embaralhado de imediato porque o leitor não pode deixar de pensar que se trata do próprio escritor. Aliás, essa foi a principal razão de o modo de leitura do romance proustiano ter sido ambíguo desde sua publicação: a marca do autor está muito mais forte na encenação dos dramas do escritor às voltas com seu ofício do que nas anedotas ligadas à vida familiar ou mundana que atravessam o romance.

A leitura que Barthes faz da relação entre o monumental romance de Proust e a vida do escritor me parece bastante esclarecedora da contribuição de Proust para transformar o romance do século XX no sentido de se abrir para o autobiográfico de uma maneira não linear e não confessional. No artigo “Durante muito tempo, fui dormir cedo”, Barthes assinala, de um lado, o hibridismo genérico que advém da hesitação de Proust entre as formas do ensaio e do romance, cuja resultante seria a criação de um terceiro gênero; por outro lado, o desvio dos fatos vividos. “Essa desorganização da biografia não é a sua destruição. Na obra, numerosos elementos da vida pessoal são conservados, de maneira identificável, mas esses elementos estão de certo modo desviados” (BARTHES, 1988BARTHES, Roland. Durante muito tempo fui dormir cedo. In: O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. Prefácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 283-293., p. 287). Talvez o desvio mais significativo seja o do eu enunciador: trata-se de um eu que não se lembra da vida passada como na autobiografia tradicional, o eu enunciador narra seu desejo de escrever, não sua vida propriamente dita. Assim, as relações entre os dois estão esgarçadas, deslocadas. Em outro artigo, “Vidas paralelas”, inspirado pela biografia de Proust escrita por George Painter, Barthes estabelece um paralelismo entre a vida vivida e a vida escrita: entre as duas não há analogia, mas homologia. Ao contrário do que afirma a doxa, que a arte imita a vida, “não é a vida de Proust que encontramos em sua obra, é sua obra que encontramos na vida de Proust” (BARTHES, 2004BARTHES, Roland. Vidas paralelas. In: Inéditos vol.2. Crítica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 170-175., p. 173).

Como Barthes se identificava com Proust (BARTHES, 1988BARTHES, Roland. Durante muito tempo fui dormir cedo. In: O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. Prefácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 283-293., p. 285), apesar de nunca ter conseguido fazer o romance que desejava, escreveu textos em forma de fragmentos, notadamente Roland Barthes por Roland Barthes, de teor autobiográfico, em que tudo é deslocado, os biografemas se mesclando com o imaginário e o ensaio. Já de início ele pede ao leitor que imagine o livro dito por uma personagem de ficção, ou seja, o eu enunciador não se confunde com o eu civil. Esse livro teve um forte impacto na França porque revertia a “morte do autor” e reentronizava-o através de uma escrita autobiografemática, não mais a autobiografia linear, mas uma autobiografia esburacada, com a enunciação de alguns biografemas.

Apesar de todas as denegações, o livro fornece muitos dados autobiográficos através da “encenação de um imaginário” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003., p. 121) em diferentes graus. O destaque em termos autobiográficos seriam as fotografias presentes no início do livro: através das fotos, o leitor tem a genealogia do autor, os ancestrais, a mãe, o pai, o próprio Barthes em todas as idades, fotografias que o “sideram” (que pungem?). A ausência de pai, como no caso de Sartre (As palavras), teria significado falta de conflito edipiano?

O sujeito desdobrado que busca assinar seu imaginário no livro se esforça para se desviar da imagem fixa, joga lucidamente com aspas, parênteses, ironias, mas percebe que “o imaginário vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a própria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003., p. 120-121).

Em oposição à metafísica clássica, que não tinha medo de falar de dois homens dentro de si (que acabavam se reconciliando), Barthes afirma que falar do sujeito dividido hoje significa outra coisa: “é uma difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal, nem estrutura de sentido: não sou contraditório, sou disperso” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003., p. 160). A questão que se coloca diz respeito não propriamente ao sujeito-autor, mas ao sujeito tout court, o sujeito fragmentado, que vai além da simples contradição porque são muitas as pontas que constituem seu ser, o eu é uma invenção constante em seu devir. “Não digo: ‘Vou descrever-me’, mas: ‘Escrevo um texto e o chamo de R.B.’. Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há referente?” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003., p. 69).

O livro inova em termos genéricos porque hibridiza romance, ensaio e autobiografia, à semelhança de Proust, na análise que ele próprio faz da obra de Proust. O que ele diz de Proust pode ser aplicado a Roland Barthes por Roland Barthes com a diferença que o romance de Proust tem intrigas e personagens, que se entrelaçam de maneira a atingir uma completude (aliás, interminável e inatingível devido à morte que chega), enquanto no livro de Barthes só há fragmentos que, ao ser montados, não fecham o puzzle. Em vez de personagens, o que se vê é o desdobramento de vários Barthes: doravante o sujeito só pode ser pensado em sua multiplicidade e dispersão. Até o Je est un Autre de Rimbaud foi ultrapassado pelo estilhaçamento do espelho: o eu são vários outros.

Um outro evento literário que contribuiu para o florescimento das escritas de si foi o aparecimento de textos que buscavam testemunhar, de forma transposta pela literatura, as experiências traumáticas da guerra, notadamente dos campos. Robert Antelme, que participou da resistência ao lado de sua mulher, Marguerite Duras, foi preso e deportado para os campos de Buchenwald e Dachau; de volta à França, publicou em 1947 L’espèce humaine. Elie Wiesel, judeu húngaro deportado, que passou anos na França depois da guerra, publicou La nuit em 1958. Já Jorge Semprun, espanhol de nascimento, exilado na França após a liberação do campo de Buchenwald, passou 15 anos sem conseguir escrever sobre sua experiência porque qualquer tentativa de volta memorial ao cenário da morte levava-o ao impulso de suicídio. Finalmente, em 1963, ele publicou Le grand voyage, no qual conta a viagem de trem até o campo de Buchenwald, misturando lembranças da sua militância na guerra civil espanhola e na resistência francesa, da sua prisão e tortura pela Gestapo e dos anos passados no campo. No mesmo ano (1963), Primo Levi publicou seu segundo livro, A trégua; seu primeiro, É isso um homem?, escrito logo após a sua volta ao lar, foi recusado pelas grandes editoras italianas; publicado por uma pequena editora em 1947, passou despercebido porque ninguém queria ouvir falar disso (o que realiza o seu sonho obsessivo de que ele iria contar a experiência do campo de Auschwitz e ninguém o escutaria). O livro seria publicado pela editora Einaudi em 1958, numa edição revisada e ampliada, e, a partir daí, começou a ser traduzido. Primo Levi publicou Os afogados e os sobreviventes um ano antes de sua morte em 1987.

Tanto a impossibilidade de escrever de Semprun quanto a recepção fraca dada a Levi têm a ver com o que Leonor Arfuch (2013ARFUCH, Leonor. Mujeres que narran; autobiografía y memorias traumáticas. In: ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografía; exploraciones en los límites. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013, p. 73-104., p. 84) chamou de "temporalidades da memória". Haveria, segundo ela, no devir testemunhal, momentos em que a palavra pode ser dita e escutada. Varia tanto o teor dos textos quanto a percepção do público conforme o escritor e/ou o leitor estão mais próximos ou mais distantes dos acontecimentos. Em L’écriture ou la vie, Semprun se pergunta como é possível contar o vivido e responde que só conseguirão dar substância e densidade à narrativa aqueles que puderem transformar seu testemunho em objeto artístico. “Só o artifício de uma narrativa controlada conseguirá transmitir parcialmente a verdade do testemunho” (SEMPRUN, 1994SEMPRUN, Jorge. L’écriture ou la vie. Paris: Gallimard, 1994.:26). Talvez a figura de linguagem do testemunho seja a metonímia: em L’écriture ou la vie, ele usa o cheiro do crematório para designar o horror, a náusea diante da morte. Há um hibridismo genérico que faz com que cada livro dele seja um testemunho pessoal em forma de obra literária que ultrapassa o simples depoimento.

Nos anos 1980 surgem também livros testemunhais de escritores com AIDS, como Hervé Guibert, cuja obra impressiona em quantidade e variedade considerando que ele morreu com 36 anos de idade. Antes de ter sido diagnosticado com a doença (1988), ele já havia publicado numerosos livros de base autobiográfica, entre outros La mort propagande (1977), Mes parents (1986). O livro À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990GUIBERT, Hervé. À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie. Paris: Gallimard, 1990.) teve grande repercussão porque ele escancarou sua doença e sua evolução numa época em que a AIDS era tabu (basta lembrar que seu amigo Michel Foucault escondeu a doença até o fim).

O termo autoficção, criado por Serge Doubrovsky2 2 Eu desenvolvo de maneira mais extensa a criação da autoficção no livro Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro:EdUERJ, 2013. em 1977DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Gallimard, 1977. na quarta capa do livro Fils, sinaliza não tanto o aparecimento dessa modalidade de romance que se inspira nos dados empíricos da vida do autor, mas antes o início de uma nova era, em que o privado se torna cada vez mais público, em que o romance passa a vampirizar as escritas de si, seja como elemento verídico do entrecho, seja sob a forma de simulacro. Se os anos 1960 e 1970 foram o período da descoberta dos livros de testemunho da guerra, é preciso lembrar que o próprio Doubrovsky é um autor obcecado pelo período da ocupação alemã durante a qual ele e sua família tiveram de se esconder em Paris. Em Le livre brisé, por exemplo, seus sentimentos em relação ao seu papel durante a guerra são ambíguos porque, embora fosse vítima, no momento da enunciação sente-se culpado porque não lutou como outros jovens que deram sua vida na resistência.

No entanto, se hoje Doubrovsky é considerado o pioneiro criador da autoficção, sua obra não teve impacto imediato e não se falou em autoficção na França até o início dos anos 1990. Segundo Anne Chemin (2013CHEMIN, Anne. “Fils”, père de l’autofiction. Le Monde Culture et Idées. 18.07.2013. Disponível em Disponível em https://www.lemonde.fr/culture/article/2013/07/18/fils-pere-de-l-autofiction_3449667_3246.html Acesso em 05/02/2014.
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), foi em 1992 que se realizou o primeiro colóquio sobre o tema; todavia, já no início dos anos 2000, a autoficção tornou-se um assunto incontornável. Philippe Forest, autor de várias autoficções, inclusive L'enfant éternel (1997), que tematiza a morte de sua filha, diz que não conhecia a obra de Doubrovsky quando começou a escrever, tendo-se inspirado mais em Roland Barthes (Roland Barthes por Roland Barthes), Philippe Sollers (Femmes) e Robbe-Grillet (Le miroir qui revient) (apudCHEMIN, 2013CHEMIN, Anne. “Fils”, père de l’autofiction. Le Monde Culture et Idées. 18.07.2013. Disponível em Disponível em https://www.lemonde.fr/culture/article/2013/07/18/fils-pere-de-l-autofiction_3449667_3246.html Acesso em 05/02/2014.
https://www.lemonde.fr/culture/article/2...
), o que demonstra que, se Doubrovsky inventou o termo, ele definitivamente não inventou a coisa.

Autoficção (crítica)

Nos livros franceses de crítica, o termo é, com frequência, questionado, menosprezado, mesmo quando isso é feito de forma retórica para depois desfazer o desprezo e se posicionar a favor de suas possibilidades. É o que faz Claude Burgelin no capítulo introdutório do livro Autofiction(s)GASPARINI, Philippe. Autofiction. Paris: Seuil, 2008., que reúne textos dos participantes do colóquio realizado em Cerisy em 2008. Expressões como “gênero bastardo, que cheira a mistura e compromisso”, “escrita egolátrica sem outra ambição senão o narcisismo”, “gênero sem superego”, “gênero mal definido”, “especialidade francesa demais” (BURGELIN, 2010BURGELIN, Claude. Pour l’autofiction. In: BURGELIN, Claude, GRELL, Isabelle, ROCHE, Roger-Yves. Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010., p. 5-7) dão lugar em seguida a uma avaliação positiva: “A autoficção alarga o campo da exploração de si, trabalha-o e o fertiliza de outra maneira sem, entretanto, abandonar realmente os vestígios e os rastros dos fatos” (BURGELIN, 2010BURGELIN, Claude. Pour l’autofiction. In: BURGELIN, Claude, GRELL, Isabelle, ROCHE, Roger-Yves. Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010., p. 15).

Embora muitos críticos franceses contestem o seu uso, considero que a autoficção deve ser pensada como um elemento que faz parte do processo de transformação do romance no último quarto do século XX e que se fortalece no novo século. Como Paul de Man afirma, a questão da percepção do conteúdo autobiográfico em maior ou menor escala sempre existiu. E acrescento: o romance contemporâneo tende a reforçar isso, aumentando os indícios de autobiografia, a despeito de sua ficcionalidade. A meu ver, a tendência hoje é se considerar autoficção sempre que a narrativa indicar que se inspira nos fatos da vida do autor. Em relação ao nome do protagonista, ele pode coincidir com o nome do autor (ou algum apelido) ou estar ausente. A autoficção seria uma nova versão do bom e velho romance autobiográfico, que nunca teve sucesso junto à crítica, a qual o considerava um filho bastardo. Em tempos de redes sociais e reality shows, o escritor tornou-se midiático e não teme mais se mostrar, enquanto o público leitor quer mais “verdade” mesmo em livros que são etiquetados de “romance”.

Como diz Dany Laferrière numa boutade, “toda narrativa é forçosamente autobiográfica mesmo quando a história parece longe de nossa vida pessoal” (LAFERRIÈRE, 2013LAFERRIÈRE, Dany. Journal d’un écrivain en pyjama. Paris: Grasset , 2013., p. 165). O formato da autoficção se assemelha ao do romance na maneira de contar histórias, seja de maneira fragmentária, seja de maneira mais coesa e contínua; a parte de ficção não significa fabulação, inventividade ou fantasia, mas o tipo de linguagem. O autor de autoficção dá intensidade e vivacidade a sua narrativa compactando pessoas para criar personagens e magnificando acontecimentos que na vida real podem ter sido insignificantes, o que equivale a dizer que ele faz (quase?) exatamente a mesma coisa que o autor de romances. Vejamos o que dizem alguns autores de autoficção (Serge Doubrovsky, Camille Laurens et Chloé Delaume) sobre seu trabalho textual.

Nesse livro [Fils] tudo é verdadeiro, mas tudo foi misturado pelo trabalho da escrita. Esse famoso dia de 24 horas é inteiramente fictício, claro, mas os fatos que o preenchem são verdadeiros. Tomemos o famoso sonho com o monstro marinho: é autêntico, mas nunca o mencionei ao meu psicanalista. As palavras do meu psicanalista são verdadeiras, mas não foram pronunciadas na mesma sessão. Os estudantes também existiram, mas não estavam lá no dia do curso sobre Racine (DOUBROVSKY apudCHEMIN, 2013CHEMIN, Anne. “Fils”, père de l’autofiction. Le Monde Culture et Idées. 18.07.2013. Disponível em Disponível em https://www.lemonde.fr/culture/article/2013/07/18/fils-pere-de-l-autofiction_3449667_3246.html Acesso em 05/02/2014.
https://www.lemonde.fr/culture/article/2...
).

Quando conto uma cena de vida conjugal, me inspiro em todas as cenas que vivi, seja com este ou aquele homem. O que conta não é se as coisas realmente aconteceram, é antes que o livro encontre o som exato, como se diz som exato em música. Não acredito na ideia de que se possa ser sincero ou autêntico. Para mim, a única verdade que conta é a verdade sentida (LAURENSLAURENS, Camille. L'amour, roman. Paris: P.O.L. Editeur, 2003. apudCHEMIN, 2013CHEMIN, Anne. “Fils”, père de l’autofiction. Le Monde Culture et Idées. 18.07.2013. Disponível em Disponível em https://www.lemonde.fr/culture/article/2013/07/18/fils-pere-de-l-autofiction_3449667_3246.html Acesso em 05/02/2014.
https://www.lemonde.fr/culture/article/2...
).

O eu fala, mas eu invento, claro! Até porque é difícil dizer certas coisas. (...). O debate “fatos verdadeiros”-“fatos reconstruídos” me parece idiota: a memória e a verdade se reconstroem permanentemente. Só há verdade na língua: o que conta é que ela seja exata. A língua é uma bomba: ela não trapaceia (DELAUME apudCHEMIN, 2013CHEMIN, Anne. “Fils”, père de l’autofiction. Le Monde Culture et Idées. 18.07.2013. Disponível em Disponível em https://www.lemonde.fr/culture/article/2013/07/18/fils-pere-de-l-autofiction_3449667_3246.html Acesso em 05/02/2014.
https://www.lemonde.fr/culture/article/2...
).

Para Régine Robin, a autoficção é ficção, o sujeito narrado é um sujeito fictício justamente porque é narrado, ou seja, é um ser de linguagem (ROBIN, 1997ROBIN, Régine. Le Golem de l’écriture. De l’autofiction au Cybersoi. Montréal: XYZ, 1997., p. 17). Dany Laferrière corrobora ao dizer que todo narrador se parece com o autor, contudo, um é feito de carne e sangue enquanto o outro é feito de letras e tinta (LAFERRIÈRE, 2013LAFERRIÈRE, Dany. Journal d’un écrivain en pyjama. Paris: Grasset , 2013., p. 276); são, portanto, realidades de ordem diferente. Para escrever autoficção, como para escrever romance, é preciso pensar na arte da composição narrativa, e isso só se consegue com artifício, portanto, não se pode pensar em restituir “toda a verdade” do acontecimento porque o acontecimento pertence ao domínio do vivido e a escrita literária pertence ao domínio da linguagem. Como escreve Dany Laferrière (2013LAFERRIÈRE, Dany. Journal d’un écrivain en pyjama. Paris: Grasset , 2013., p. 98) no Journal d’un écrivain en pyjama, não se pode confundir o que se passa na vida com o que se lê num livro, são universos diferentes, com códigos diferentes, porque a realidade nos escapa sempre; o trabalho do escritor é fazer o leitor acreditar no universo que foi filtrado por sua sensibilidade. Em outras palavras, a literatura sempre lidou com a verossimilhança, não com a verdade, mesmo se o autor se inspira nos fatos de sua vida.

Ética e exposição da intimidade na literatura francesa

A autoficção suscita com alguma frequência questões éticas, como lembra Claude Burgelin: “A autoficção tem volens nolens de obedecer a uma obrigação ética. Escrever sobre si leva rapidamente ao assassinato ou à devoração canibal, já que isso supõe escrever sobre os outros, a começar os mais próximos, sobre os quais são feitos comentários cortantes” (BURGELIN, 2010BURGELIN, Claude. Pour l’autofiction. In: BURGELIN, Claude, GRELL, Isabelle, ROCHE, Roger-Yves. Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010., p. 19).

Na França já houve vários processos, polêmicas, querelas, envolvendo obras de autoficção. O próprio Serge Doubrovsky foi objeto de polêmicas envolvendo seu romance Le livre brisé (1989DOUBROVSKY, Serge. Le livre brisé. Paris: Grasset & Fasquelle, 1989. ). Quando foi à televisão apresentar o livro, em que narra a relação conturbada e a morte de sua mulher, foi interpelado pelo apresentador do programa Apostrophes, Bernard Pivot, nesses termos: Alors, on se sent comment quand on a tué sa femme? (E aí, como você se sente depois de ter matado sua mulher?). (CUSSET, 2007, p. 197). Em 1997 seu primo Marc Weitzmann publicou ChaosGAUDEMAR, Antoine de. Caïn Chaos. Mort du père et haine du frère, monstres du passé, mensonges et culpabilité: une autofiction de Marc Weitzmann, qui a déjà produit des frictions. Marc Weitzmann. Chaos. Grasset, 250 pp., 99 F. Libération, 11 septembre 1997. Disponível em Disponível em https://www.liberation.fr/livres/1997/09/11/cain-chaos-mort-du-pere-et-haine-du-frere-monstres-du-passe-mensonges-et-culpabilite-une-autofiction_215814 Acesso em 17/01/2014.
https://www.liberation.fr/livres/1997/09...
, romance que tematiza os problemas familiares em relação à Shoá, no qual Doubrovsky aparece como personagem que teria manipulado e torturado sua mulher, uma pessoa emocionalmente frágil, a fim de realizar seu projeto literário. Além do mais, o romance sugere uma relação sado-masoquista entre Doubrovsky e sua mulher Ilse, austríaca que se sentia culpada pela perseguição aos judeus. Curiosamente, há no fim do livro agradecimentos a Serge Doubrovsky, que reagiu violentamente, dizendo que seus atos e palavras foram deformados.

Dentre os inúmeros casos rumorosos que surgiram na França, vou mencionar só alguns. Camille Laurens, pseudônimo de Laurence Ruel, já tinha publicado romances quando perdeu um filho pouco depois do parto. Escreveu sua primeira autoficção, Philippe (1995), na qual apresenta o caso como negligência médica. Foi processada e teve de suprimir o nome do médico para que o livro pudesse continuar circulando. Anos depois, sentiu-se vampirizada por Marie Darrieussecq quando esta publicou o romance Tom est mort (2007), no qual ela teria se apoderado de seu luto. Publicou o artigo “Marie Darrieussecq ou le syndrome du coucou”, em La Revue Littéraire, acusando-a de “plágio psíquico”. Depois da polêmica envolvendo as duas escritoras, até então publicadas pela mesma editora, Camille Laurens foi obrigada a sair da POL. Escreveu então Romance nerveuse (2010), no qual criticou a midiatização excessiva e a deformação de seus argumentos, exprimindo o sentimento de ter sido traída pelo dono da editora, Paul Otchakovsky-Laurens. Já em L’amour, Roman (2003), o problema foi com o ex-marido: depois de narrar as agruras do casamento e da separação, foi processada por ele, Yves Mézières, que não gostou nada da maneira como foi retratado. Apesar de ter ganhado o processo, na segunda edição o nome dele foi mudado; ele contra-ataca com Mosaïque de seuil (2009).

Christine Angot causou enorme impacto ao publicar o romance autoficcional L’inceste (1999ANGOT, Christine. L’inceste. Paris: Stock, 1999a.), no qual conta que, aos 14 anos, foi seduzida pelo pai quando o encontrou no momento em que ele aceitou reconhecê-la. Até então, filha bastarda, assinava o nome da mãe, Schwartz. Na sociedade francesa, causou incômodo a irrupção dessa voz de mulher que desvendava um segredo de Polichinelo, que pais e outras figuras paternas abusam de meninas3 3 No livro Le consentement (2020), Vanessa Springora conta como foi seduzida e abusada pelo escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 14 anos. Premiado e cultuado, o escritor nunca escondeu suas preferências sexuais, tendo publicado uma obra imensa em que sua pedofilia está sempre explicitada. Após a reviravolta causada pela publicação do livro de Springora, as editoras retiraram de circulação a maior parte de sua obra. Andréa Bescond escreveu a peça Les chatouilles que, em 2018, levou ao cinema (com Eric Métayer) e que, no Brasil, recebeu o título de A inocência roubada. Nos dois casos, o predador sexual é amigo dos pais e se insinua com as meninas. . Os homens, que dominam o jornalismo literário, pareciam criticá-la pelo crime do pai, chamando-a de provocadora e histriônica. Ela continuou se referindo ao incesto em obras subsequentes: em Une semaine de vacances (2012ANGOT, Christine. Une semaine de vacances. Paris: Flammarion , 2012.), descreve o modus operandi do predador sexual que oscila entre a sedução, a chantagem e a força para obrigá-la a praticar os atos sexuais que lhe dão prazer, a felação e a sodomia. Tudo o que ela queria era ter o amor do pai, sem contato físico, opção que ele não lhe dá em nenhum momento. Trata-se de uma novela pornográfica em duplo sentido (não só por detalhar os atos sexuais como pela ignomínia do comportamento do pai). Já em Un amour impossible (2015ANGOT, Christine. Un amour impossible. Paris: Flammarion , 2015.), ela faz um balanço sobre a história de amor que uniu seus pais, de classes sociais diferentes, sobre o incesto, sobre a morte do pai e, principalmente, tenta entender a razão que levou seu pai a abusar dela. Considera que, ao mesmo tempo que a reconhecia, ele a punia, rebaixando-a, humilhando-a. Numa conversa com a mãe, diz-lhe que ele transgredia o interdito do incesto para fazê-la compreender que na sua classe social não se tem filho com uma judia pobre (2015ANGOT, Christine. Un amour impossible. Paris: Flammarion , 2015., p. 211). A despeito das repercussões dessas obras, o caso não chegou aos tribunais. Todavia, Angot teve problemas na justiça a pedido de Élise Bidoit, ex-mulher de seu companheiro, Charly Clovis, após a publicação de dois romances: Le marché des amants (2008) e Les petits (2011ANGOT, Christine. Les petits. Paris: Flammarion, 2011.), nos quais Élise Bidoit aparece de forma muito negativa. No primeiro caso, Angot fez um acordo, aceitando desembolsar 10.000 euros e, no segundo, foi condenada pelo tribunal a pagar a soma de 40.000 euros à litigante por atentado à vida privada.

Outros casos envolvendo ex-cônjuges movimentaram a vida lítero-mundana da França. Christine Fizscher, em La dernière femme de sa vie (2011), narrou sua relação amorosa de nove anos com um homem que, apesar de não receber o nome real de Claude Lanzmann, autor do filme Shoah, tinha tantas coisas em comum com ele que era facilmente identificável (amigo de Sartre, amante de Simone de Beauvoir, diretor de uma revista, escritor). Lanzmann se recusou a comentar. Já Patrick Poivre D’Arvor que, além de escritor, é um apresentador de televisão muito famoso, publicou Fragments d’une femme perdue (2009) e foi processado por Agathe Borne, ex-namorada ali retratada. Foi condenado a pagar-lhe 33.000 euros; o tribunal proibiu novas impressões do livro por ele ter usado cartas dela sem autorização, o que configura plágio ou falsificação.

Outros conflitos também apareceram na imprensa. Dan Franck, em La séparation (1991), chocou sua ex-mulher Elizabeth Franck, que leu o manuscrito antes da publicação, já que trabalhava na editora que iria publicar o livro (Seuil). Justine Lévy, filha de Bernard-Henry Lévy, causou um certo frisson no meio intelectual-mundano, com Rien de grave (2004), por causa dos grandes nomes que envolvia. Seu marido, Raphaël Enthoven, teria sido seduzido por Carla Bruni, então casada com seu pai, Jean-Paul Enthoven, grande amigo de BHL, pai de Justine. Como ficou tudo entre familiares e amigos, não houve processo: aliás, o título já indicava que não era nada grave.

Um episódio um pouco diferente envolveu o escritor Patrick Modiano, que se tornou malgré lui personagem do romance Oublier Modiano (2011), de Marie Lebey, a qual se apropriou das lembranças presentes nos romances e narrativas do autor, mesclando-as com as suas. Através de seu advogado, Modiano se declarou chocado diante dos sentimentos que lhe são atribuídos em relação a episódios dolorosos de sua infância, em particular ao seu irmão Rudy, morto aos 10 anos de idade. Esse tipo de “ficção biográfica de escritor” (DION; FORTIER, 2010DION, Robert, FORTIER, Frances. Écrire l'écrivain; formes contemporaines de la vie d'auteur. Montréal: Les Presses de l'Université de Montréal, 2010., p. 11), em que o biógrafo acaba por se identificar e se misturar com o biografado, muito comum na França, é uma maneira pós-moderna de encenar a vida de autores consagrados, geralmente já mortos. No caso em questão, houve um incômodo porque Modiano não apreciou a homenagem, considerando abusiva a proximidade da escritora, que ele, aliás, não conhecia.

Na ficção biográfica de autores reais, o escritor contemporâneo tende a fazer, através da biografia de um escritor canônico morto, uma autoanálise (uma autobiografia oblíqua), pois falar de outro escritor é poder falar de si, seja dos dramas existenciais, seja da postura do escritor frente a questões éticas e políticas, seja de problemas de ordem estética. Como aponta François Dosse, “o biógrafo expõe o seu ‘eu’, o percurso que ensejou o encontro com o sujeito biografado, a relação pessoal entre ambos”. E ele continua dizendo que “o biógrafo costuma inserir-se na vida alheia a ponto de a separação entre autobiografia e biografia quase desaparecer” (DOSSE, 2009, p. 100). No caso dos escritores que escrevem biografia sobre outro escritor, isso é ainda mais acentuado.

Considerações finais

A popularização do termo “autoficção” e a transformação do romance com a crescente incorporação de elementos autoficcionais e biográficos é um sintoma de novos tempos em que a vida privada torna-se cada vez mais pública, como se para existir fosse preciso mostrar o que se faz e o que se sente. O Facebook é um espelho de nossa época: aí vemos casais que fazem declarações de amor, que festejam seus aniversários de casamento, pais e mães que declaram amor a seus filhos e vice-versa, bebês que são mostrados em várias poses. Para festejar seu décimo aniversário em 2014, o Facebook sugeriu fazer a “autobiografia” de cada um a partir das postagens nos últimos anos. Assim, não foi a casa que foi invadida pela rua, foram seus habitantes que puseram um grande olho/câmera a fim de mostrar o que se passa nela, às vezes até nos quartos.

A autobiografia clássica, mesmo confessando seus “pecados” (como Rousseau, que se refere ao prazer que teve ao receber palmadas nas nádegas, a famosa fessée, aos 8 anos, dadas por Mademoiselle Lambercier), era pudica se comparada com as autoficções do século XXI. No romance autobiográfico, o autor se escondia por trás do personagem, que tinha outro nome, e pela distorção dos acontecimentos, de maneira a burlar um pouco a decodificação das chaves de leitura.

Hegel falava de Zeitgeist em sua filosofia da História para designar o ar do tempo, o espírito do tempo que muda cada vez que as condições materiais e mentais mudam. A percepção do tempo e do espaço mudou nos últimos 50 anos, eu sou capaz de perceber isso: a televisão, a popularização do uso do avião, a internet, o telefone, todos os meios de comunicação interligaram o mundo, encurtando as distâncias e acelerando o tempo. A percepção do público e do privado também mudou: o que era escondido, protegido, reservado, hoje é banalizado ao se tornar de acesso quase irrestrito.

Nesse quadro social, o romance, gênero proteiforme par excellence, foi-se transformando e vampirizando as escritas de si de modo que não há pacto possível com o leitor senão um pacto de ambiguidade, de indecidibilidade. O modo de leitura vai depender talvez do nível de informação e de expectativa de cada um: um leitor pode ler O amante, de Marguerite Duras, como puro romance, outro poderá ficar se indagando se houve um amante chinês na vida da autora (o que nunca se saberá). Annie Ernaux, por exemplo, afirma em suas entrevistas que não faz autoficção nem romance, ela diz que escreve narrativas autobiográficas. Ora, o leitor pode perfeitamente ler Os anosERNAUX, Annie. Os anos. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Três estrelas, 2019., por exemplo, como romance, porque seu modo de escrita é romanesco, ainda que baseado em elementos de sua vida. Quanto mais distante o leitor está do autor, no tempo e no espaço, mais sua leitura será romanesca. Os jogos estão feitos e eles estão embaralhados.

Referências

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  • ANGOT, Christine. Les petits Paris: Flammarion, 2011.
  • ANGOT, Christine. Une semaine de vacances Paris: Flammarion , 2012.
  • ANGOT, Christine. Un amour impossible Paris: Flammarion , 2015.
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  • 1
    O termo apareceu posteriormente no artigo “Clinique de la perversion”, no Séminaire Livre XVI, de Lacan. Embora o seminário tenha sido apresentado em 1969, ele só foi publicado em 2006. Na verdade, no texto de Lacan só aparece o adjetivo “extime”, o substantivo aparece na relação dos itens abordados (“a extimidade do objeto”), lista provavelmente feita por Jacques-Alain Miller, o organizador do livro. O objeto a (ou o pequeno a), que designa a falta, a causa do desejo, ou ainda a queda (com a perda do paraíso), se situaria num lugar “extimo”, reunindo o íntimo à radical exterioridade (LACAN, 2006LACAN, Jacques. Clinique de la perversion. In. Le Séminaire. Livre XVI. D’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006.:249). Nesse artigo, Lacan trata das relações entre sadismo e masoquismo, exibicionismo e voyeurismo, ou seja, um não existe sem o outro. François Jullien (2013JULLIEN, François. De l’intime. Loin du bruyant Amour. Paris: Grasset, 2013.) utiliza extimo para refletir sobre a relação sexual em que desejo e violência estão presentes; como exemplo literário, ele cita a Histoire d’O de Pauline Réage, em que a mulher é continuamente violentada pelo homem amado; já na pintura, ele menciona o quadro L'origine du monde, de Courbet, que retrata de modo muito realista o sexo feminino; a tela, que pertenceu a Lacan, hoje se encontra no Musée d’Orsay.
  • 2
    Eu desenvolvo de maneira mais extensa a criação da autoficção no livro Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro:EdUERJ, 2013.
  • 3
    No livro Le consentement (2020), Vanessa Springora conta como foi seduzida e abusada pelo escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 14 anos. Premiado e cultuado, o escritor nunca escondeu suas preferências sexuais, tendo publicado uma obra imensa em que sua pedofilia está sempre explicitada. Após a reviravolta causada pela publicação do livro de Springora, as editoras retiraram de circulação a maior parte de sua obra. Andréa Bescond escreveu a peça Les chatouilles que, em 2018, levou ao cinema (com Eric Métayer) e que, no Brasil, recebeu o título de A inocência roubada. Nos dois casos, o predador sexual é amigo dos pais e se insinua com as meninas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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