RESUMO
Este texto tem como objetivo oferecer uma releitura do conceito de autoria de Michel Foucault, definido e comentado a partir de três textos fundamentais: A Arqueologia do Saber, O que é um autor? e A Ordem do Discurso. A hipótese é de que a autoria pode ser lida como um dispositivo – o dispositivo da autoria ou autoral – e que, dessa perspectiva, pode ser problematizado a partir do conceito de resistência e da preocupação ética do chamado “último Foucault”. Para defender tal hipótese, recorre-se inicialmente à descrição do conceito do dispositivo e do conceito de autoria, na arqueogenealogia e segundo alguns comentadores. Depois, traça-se uma discussão entre o dispositivo da autoria e as possibilidades de resistência e de criação subjetiva, presentes em conceitos como epimeleia heautou, crítica ou dessubjetivação. Por fim, sugere-se que o dispositivo da autoria pode ser lido ainda foucaultianamente, desde que segundo a ordem de uma política e de uma luta agonística entre os viventes e os dispositivos.
Autoria; Dispositivo; Arqueogenealogia; Michel Foucault
ABSTRACT
This paper aims to offer a new reading of the notion of authorship in Michel Foucault, defined and discussed from three fundamental texts: The Archaeology of Knowledge, What is an author? and The Discourse Order. The hypothesis is that authorship can be read as an apparatus and, from this perspective, it may be questioned from the concept of resistance and ethical concern the so-called “final Foucault”. To defend this hypothesis, we resort to the first apparatus concept description and the concept of authorship in archaegenealogy and according to some commentators. Then draws up an argument between the apparatus of authorship and the possibilities of resistance and subjective creation, present in concepts like epimeleia heautou, criticism or unsubjectivation. Finally, it is suggested that the authorship can be read since after the politics order of a policy and a fight between the subject and apparatus.
Authorship; Apparatus; Archagenealogy; Michel Foucault
Introdução
“O que é autorar?”, eis uma pergunta que, ao menos desde a última metade do século XX, tem marcado tanto o campo dos estudos da linguagem (em particular) quanto as ditas “humanidades” e a filosofia. Desde a alardeada morte do autor, engendrada pela escritura hexagonal dos anos sessenta e setenta, até a politização do papel da autoria em teorias contemporâneas, a relação entre os dispositivos da escrita e a produção de formas mais ou menos livres, mais ou menos criativas de um sujeito escrever e inscreve-se como autor, ainda surge como uma problematização sobre qual cabem interrogações de várias ordens.
Neste texto, pretendo reativar a problematização foucaultiana da autoria seguindo algumas premissas éticas aventadas pelo francês em seus textos tardios (FOUCAULT, 2006, 2009c, 2010, 2011, 2013a) A hipótese a ser defendida é de que há, entre a aparição da problemática do autor – seja como função autor, seja como procedimento de ordenação discursiva (FOUCAULT, 2015, 2012, 2002) – e os deslocamento da arqueogenealogia em direção à ética, uma distopia produzida no discurso foucaultiano, cuja importância reside em vislumbrar um procedimento de autorar que, menos que uma função codificada dos dispositivos, funcionaria estrategicamente deslocando as possibilidades subjetivas, segundo formas mais livres e críticas.
Dito de outro modo, para além das descrições da função autor na discussão arqueogenealógica, o objetivo é observar de que forma o chamado “último Foucault” e a possibilidade da produção ética do si mesmo podem lançar novas luzes ao questionamento da autoria, no sentido de pensá-la segundo a modalidade de uma “experiência-limite” ou de um “escritismo de si” e de uma das formas de criação diante dos dispositivos do poder-saber. Autorar, em última medida, poderia ser entendido como um procedimento de dessubjetivação e de resistência e, nesta esteira, de construção de deslocamentos dos próprios dispositivos – contrariamente às hipóteses centradas, até a década de setenta, na circunscrição e na censura de um poder jurídico-legal (que o próprio Foucault, como se verá adiante, veio a denegar).
Para tanto, o texto tem início com a apresentação do conceito de dispositivo, em sua acepção foucaultiana e nas leituras que recebe, notadamente de Giorgio Agamben, mais recentemente. A partir daí, recorre-se à uma revisão geral do itinerário do conceito de autor (função, procedimento, categoria antropológica) na arqueogenealogia para, finalmente, assumir a hipótese, sugerida por Roger Chartier, de que a autoria configuraria um dispositivo, que aqui passo a chamar de dispositivo da autoria ou de dispositivo autoral. Na parte final do trabalho, estabeleço um confronto entre a experiência da escrita do próprio Foucault e sua problematização da epimeleia heautou e da crítica kantiana, por um lado, e a circunscrição quea discussão foucaultiana mais conhecida da autoria exige, por outro. Nesse caso, então, passo a fazer a defesa da tese, junto a Judith Butler (2015), de que é no modelo de escritura e de liberdade que o arqueogenealogista pretende para si é que residiria uma nova forma, estratégica e dessubjetivada, de autoria.
O dispositivo, o sujeito e a resistência
O conceito de dispositivo foi utilizado por Michel Foucault em diversas ocasiões durante o período que se convencionou chamar como a “analítica do poder” (MACHADO, 2009; DREYFUS; RABINOW, 1995). Ainda que um dos capítulos de A Vontade de Saber carregue o título de O dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, 2009b), é numa entrevista à International Psychoanalytical Association, em 1977, que o francês elabora, em linhas gerais, o que compreende pelo conceito:
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos a do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.
Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos. [...] Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudança de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes.
Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. (FOUCAULT, 2009a, p.244).
Foucault (2009a) ainda afirma que a constituição dos dispositivos obedeceria a dois processos: um, de “sobredeterminação funcional” em relação à dispersão de seus elementos e aos demais dispositivos; outro, de “preenchimento estratégico”, entendido como o mecanismo plástico de reutilização dos dispositivos a partir de novas urgências históricas.
Um dispositivo seria uma rede complexa e relacional, constituídos: de um campo de visibilidades, que permite fazer emergir objetos que se dão a ver conforme critérios específicos; de um campo de enunciações, que estratificam o visível em regimes de dizer possíveis; de linhas de força, relacionadas ao poder-saber e às estratégias e às urgências a que ele responde (DELEUZE, 1990). Num dispositivo, portanto, ocorre o que Foucault (2012) sugeria a respeito das “formações discursivas” e suas regras de formação (de objetos, de conceitos, de estratégias). Como aponta Deleuze, em sua leitura do dispositivo foucaultiano, um dispositivo ainda seria responsável pela formação de duas linhas, devidamente tensas e relacionadas: de objetivação, produzindo vontade de verdade e sujeitos; de subjetivação, resistindo e recriando novas linhas, dispositivos-outros e formas mais (ou menos, no limite) criativas de ser um si-mesmo (DELEUZE, 1990).
O que chama atenção no conceito de dispositivo é, portanto, a centralidade que o conceito dá à produção da tríade poder-saber-sujeito no percurso da arqueogenealogia. Isso corresponde a dizer que o pertencimento ao dispositivo é a condição da ação e a possibilidade de deslocamento deste solo sobre o qual nos produzimos e que é a possibilidade de qualquer produção de si – mais ou menos livre. Ligado ao problema da política, no dispositivo não se trata mais de aparelhos de Estado e de sua exigência ideológica de ser sujeito, à Althusser (1980). Foucault (2009a) já havia afirmado que o dispositivo obedecia a duas regras contrárias a uma teoria do poder central e a qualquer dependência “em última instância” à infra-estrutura econômica. Assim é que afirma que há distribuições e apropriações do saber que se deslocam continuamente e em diversos níveis (“Regra das variações contínuas”) e que há um duplo condicionamento entre estratégias globais e táticas locais num dispositivo (“Regra do duplo condicionamento”).
Destarte, um dispositivo não tem o mesmo funcionamento de um aparelho, justamente porque a teoria do poder que sustenta sua existência teórico-prática é de outra ordem. Em Foucault, a cabeça do rei foi cortada e em seu lugar estabeleceu-se uma problemática do poder que funciona segundo vetores de força, numa rede de relações microfísicas e intercambiáveis, capazes de engendrar diferença, deslocamento e outras multiplicidades. Neste caso, o reino é da micropolítica e o dispostivo é, pois, o conceito operacional exigido por essa anatomia política do poder: “Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.” (FOUCAULT, 2013b, p.29).
Como afirma a partir de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2013b), o poder com que opera a arqueogenealogia não é da ordem da propriedade, mas de táticas e estratégias móveis, que passam por sujeitos, grupos, maquinarias. Outrossim, o poder também não passa a ser subsumido pela repressão ou pela proibição, mas aparece como um constante investimento, de vetores contrários ou similares. Foucault (2013b, p.30) sugere que é preciso renunciar “[...] à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do contrato e da conquista; [...]”. Sua tese é de que há uma “anatomia política”, na medida em que é o próprio corpo que se deixa atravessar pelo poder, ora dócil, ora resistente.
A dependência entre uma teoria microfísica do poder e o conceito de dispositivo é discutida de forma exemplar por Giorgio Agamben. Para o filósofo italiano, “dispositivo” corresponde a um termo técnico essencial ao pensamento foucaultiano, não obstante a ausência de uma caracterização teórica precisa. Agamben (2014) faz notar justamente a relação entre os dispositivos e os viventes, como apontava Foucault. O italiano recorre, para isso, a uma breve genealogia do termo. De início, mostra a marca da fratura metafísica da oikonomia entre o segundo e o sexto séculos da Igreja. A “administração do oikos”1 exige uma separação incorporada na Trindade: enquanto Deus está no plano ontológico, Cristo figura como aquele que governa, que administra. A esquizofrenia está armada em tal separação, visto que esta oikonomia cristã exige uma separação entre a ação política (na figura de Cristo) e o Ser (Deus, que não se detém nas questões da práxis).
É dessa “herança teológica” (AGAMBEN, 2014, p. 36) que se formula o conceito em Foucault: uma atividade pura de constituição dos sujeitos sem relação ao ser. O italiano aproxima a etimologia de dispositivo (“dis-ponere”) do que Heidegger definiu como Gestell: o modo pelo qual o desvelamento do mundo é dado ao homem. Em A questão da técnica,Heidegger (2007) pontua que a essência da técnica moderna não é nada de técnico, mas a possibilidade de cálculo e arranjo do mundo dos viventes em relação à condição de faticidade: “A essência da técnica repousa na armação.” (HEIDEGGER, 2007, p.387), inferida como uma condição sempre-já de existência dos viventes. Todavia, na filosofia da Gestell, tratava-se de inteligir duas questões, aproximadas mas não idênticas: dispor do mundo como ser-no-mundo (a que Heidegger chamará de Dasein) é participar do mundo da técnica em sua positividade; no entanto, o modo pelo qual a técnica atual existe (no século XX) é o do cálculo do mundo e da metafísica, portanto, negativo e perigoso.
Agamben (2014, p.37) observa a estreita relação entre essas séries de discursos sobre a relação dos homens que vivem e o mundo. Em comum, a oikonomia cristã, a Gestell e o dispositivo revelam “[...] um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens”. A partir dessa aproximação, o autor passa a fazer distinções em relação ao dispositivo foucaultiano.
É neste momento que o texto de Agamben aponta que da relação entre os dispositivos e os corpos vem à tona um terceiro elemento, mediano: o sujeito. No mundo contemporâneo, dada a multiplicidade dos dispositivos, a categoria de subjetividade tem, necessariamente, que perder a sua força, pois são muitos os “processos de subjetivação” (AGAMBEN, 2014, p.40). A “armação” do contemporâneo exige, então, a perda de uma consistência subjetiva e, no limite, o questionamento da consistência que esta subjetividade detinha até então, por aquilo que, via Foucault, aprendeu-se a chamar de filosofias antropológicas ou da consciência.
O que pretende a reconceituação de Agamben do conceito de dispositivo? Precipuamente, marcar que a “hominização” é um processo de produção de mediações entre os viventes e o mundo, na forma dos dispositivos. A questão é, diria-se, pós-foucaultiana, justamente porque os dispositivos não estariam marcando apenas um modelo de mundo ocidental (geralmente, delineado a partir do cristianismo e consolidado em sua organização nos séculos XVIII e XIX), mas seriam a potência exigente e incontornável de toda mediação “viventes x mundo”, funcionando como máquinas de subjetivação que podem ser transformadas, deslocadas e recriadas. Nesse caso, ainda, multiplicados em variadas formas – dispositivos seriam desde celulares até controles de televisão, para além dos “tradicionais” dispositivos do saber-poder foucaultiano, como o da sexualidade.
Porém, a captura dos dispositivos, responsável pelas formas de subjetivação2 no mundo moderno e contemporâneo, como ensinou Michel Foucault, traz no bojo a implicação do perigo, visto que tais dispositivos não são passíveis de “profanação”. Tudo se passaria, segundo Agamben (2014), na forma de um “eclipse da política” e da autonomia do governo dos corpos dóceis, já que a miríade dos dispositivos disponíveis teria tornado, a um só tempo, os processos de subjetivação frágeis em demasia e as capacidades de governo cada vez mais totalizantes – o que o italiano aproxima da “catástrofe”.
Uma urgência será pontuada por Agamben (2014, p.51): “a profanação dos dispositivos”, responsável por um des-governo que interviria nos processos de subjetivação. Tal urgência, como se sabe, é uma espécie de implicação da ética do chamado “último Foucault”, relida por Agamben. Em 1982, em discussão com Rabinow e Dreyfus, Michel Foucault apontava que eram três os tipos de luta: contra as formas de dominação, contra as formas de exploração e, a mais urgente, “[...] as que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e garante, assim, sua submissão aos outros [...]” (FOUCAULT, 2014a, p.123). É sobre a administração de nosso si-mesmo pelos dispositivos que incide a pergunta foucaultiana sobre “quem somos nós?”. Em outros termos, a política é retomada na “profanação” (conceito de Agamben) dos dispositivos e das subjetividades que eles engendram. No caso de Foucault, é de uma recusa e de uma criação que também se fala, a “tarefa filosófica” da atualidade:
Sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar o que somos. Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos dessa espécie de “dupla obrigação” política que são a individualização e a totalização simultânea das estruturas do poder moderno. (FOUCAULT, 2014a, p.128).
A tarefa de Foucault poderia ser caracterizada como uma empresa de dessubjetivação: as invenções de si, assim, funcionariam como espaços de liberdade nos dispositivos, reescrevendo-os de forma crítica. É justamente segundo uma agonística diante de suas estruturas e da individuação (dos dispostivos) que as lutas devem ser travadas: “Mais do que um ‘antagonismo’ essencial, valeria mais a pena falar de um ‘agonismo’ – de uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta” (FOUCAULT, 2014a, p.134).
Na forma de uma agonística3, pois, é que se tratará da relação entre o sujeito e o dispositivo neste artigo. No tocante à autoria, a próxima seção pretende observar as características gerais de irrupção e de funcionamento estratégico do dispositivo da autoria.
A autoria como dispositivo
O problema da autoria, nos estudos discursivos, pode ser lido a partir das considerações de Michel Foucault. Na arqueogenealogia, são três textos que se remetem diretamente à problemática: A Arqueologia do Saber, O que é um autor? (ambos de 1969) e a aula inaugural do Collège de France, A Ordem do Discurso (publicada, originalmente, em 1970). Nos três casos, a leitura foucaultiana aponta: para a necessidade de se desnaturalizar o autor como uma entidade dada ou natural; para a produção da autoria no interior de regulações e ordens do discurso.
Assim é que, no capítulo dois da Arqueologia..., As Regularidades Discursivas, Foucault (2012, p.26) elabora uma discussão que exige um “trabalho negativo” sobre noções que obedecem ao tema da “continuidade” – a tradição, a obra, o livro. Nesta negação, o francês questiona as possibilidades de se circunscrever uma obra e pergunta:
[...] o nome de um autor denota da mesma maneira um texto que ele própiro publicou com seu nome, um texto que apresentou sob pseudônimo, um outro que será descoberto após a sua morte, em rascunho, um outro ainda que não passa de anotações, uma cadernete de notas, um “papel”? (FOUCAULT, 2012, p. 28-29).
É, pois, no problema da obra como totalidade de produção de um sujeito, que funciona como uma denotação, que a pergunta se situa. O texto faz notar que o motivo pelo qual assentamos a certeza da obra na existência de um autor é a assunção de uma expressão individual a ser preservada, comentada, perscrutada – que seria da ordem da “realidade”. A circularidade que Foucault propõe diz respeito à “função de expressão” de que uma obra é sempre resultante. No entanto, como garantir a unidade entre o nome de Nietzsche em seus fragmentos autobiográficos, em seus textos filosóficos ou nos cartões-postais em que assina “Dionysos” ou “Kaiser Nietzsche”?
Contra as formas da continuidade, o que se abre é o domínio vasto dos acontecimentos discursivos, anárquicos (porque prescindindo de arché) a se descrever por meio de uma arqueologia que opera segundo um anti-humanismo. Ao invés da origem e da expressão de um sujeito individual, os enunciados e o jogo de suas relações tecidas na filigrana, “[...] que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente.” (FOUCAULT, 2012, p.35).
O autor terá análise mais detida ainda em 1969, na conferência – seguida de debate – realizada na Sociedade Francesa de Psicanálise4 e pouco depois editada no Bulletin de La Société Française de Philosophie. O texto ganhou notoriedade com o título de O que é um autor? e marca, desde o início, um projeto e uma retificação. Projeto, porque Foucault trata de, imediatamente, assinalar que apenas entrevê a questão. Retificação e mea culpa pois, contreluimême, o autor tinha se utilizado – e assim permanecerá fazendo – do “nome do autor” exatamente no livro em que supunha a “morte do sujeito”, As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 2000).
O que ele examina, então, é a escritura, segundo a falência do tema da expressão. Há, portanto, uma libertação do tema da expressão subjetiva, já que o texto é um jogo precedente do significante,condição da tomada da palavra; além disso, a escritura sanciona o parentesco entre a marca e a morte pois, ao contrário da escrita na Antiguidade, seu problema é o do sacrifício, do apagamento do sujeito em nome do texto e seu jogo.
Tal problemática é, certamente, retomada de Barthes (em 1968), para quem a figura do autor é a marca da escritura moderna, que lhe pede uma identidade e uma confissão de legitimidade sobre o texto. Não obstante a tirania desse Autor, grafado em maiúscula, o sacrifício estava também marcado na modernidade, via Mallarmé, Flaubert, Proust ou Brecht. A inversão em direção à textualidade exige o fim da decifração e das posições estáveis do autor e do leitor:
Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura [...] (BARTHES, 1988, p.57).
Assim como em Barthes (1988), é justamente o tema da escritura que “[...] permite não somente dispensar a referência ao autor, mas dar estatuto à sua nova ausência.” (FOUCAULT, 2015, p.274). O “bloqueio transcendental” operado por Mallarmeé e Beckett, por exemplo, indicam o fim de uma presença. Não obstante a força desse desaparecimento, a proposta de leitura da função autor vai além: “[...] não basta, evidentemente, repetir como afirmação vazia que o autor desapareceu.[...]” (FOUCAULT, 2015, p. 275). O que recupera é o jogo de forças, táticas e estratégias que essa função de autoria ocupa para além do texto e da linguagem, no nível dos discursos.
Nesse jogo, interessa pensar qual a relação específica que o autor detém com o nome próprio. O nome próprio não tem um funcionamento qualquer, mas é a garantia da homogeneidade, da autenticação, da explicação coerente do conjunto de um obra. Ademais, o nome assegura um status diferencial na cultura, já que “[...] se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira [...]” (FOUCAULT, 2015, p. 278). Portanto, o nome do autor não responde à realidade possível de um nome próprio e de seu referente. Sua relação de apontamento é de outra ordem, que não a do estado civil: na “ruptura dos discursos” que carregam, diferencialmente e segundo estratégias marcadas, a função autor, “[...] característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade.” (FOUCAULT, 2015, p.278, grifo nosso).
A função autor é, assim, um discurso portador5 tipicamente ocidental, com quatro características diferenciais : é uma forma de propriedade relativa aos textos, iniciada entre os séculos XVIII e XIX, que garante a posse e também a punição do autor por sua transgressão (o autor e a censura são, como se vê, figuras coexistentes); é exercida de maneira diferencial, conforme os discursos – nesse sentido, deflaciona-se (num “quiasmo) a função-autor nas físico-matemáticas e opera-se à sua exigência fundamental no campo da literatura; é uma operação complexa que faz a atribuição de autoria a um indivíduo, ainda que o que exista é uma “[...] pluralidade de ego [...] “ (FOUCAULT, 2015, p.283), uma dispersão de sujeito que a função-autor tem como finalidade organizar; finalmente, e por consequência, a autoria é uma reconstrução do “material inerte” a partir dos significantes – os pronomes pessoais e o sistema dêitico – que apontam para o exterior. As quatro características são assim resumidas:
[...] a função autor está ligada aos sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definidade pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos [...] (FOUCAULT, 2015, p. 283-284).
A função autor tem lugar apenas numa cultura em que o sujeito e sua liberdade são erigidos como valores supremos. O autor, nesse caso, é “[...] apenas uma das especificações possíveis da função sujeito.” (FOUCAULT, 2015, p.291). Trata-se de inverter a questão, colocando no lugar da liberdade e da expressão do sujeito, as condições pelas quais se tornou possível um processo que permite ao sujeito, em sua dispersão, aparecer como signatário e responsável pelo discurso. Em outra versão da mesma conferência, realizada na Universidade de Bufalo, em 1970, a posição antropológica que sustenta a tese da autoria (relacionada à obra e à origem) vem à tona:
[...] o autor não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. (FOUCAULT, 2015, p.292).
Eis que o autor é apenas um dos modos de inteligir o fim do romantismo dos discursos e dos sentidos ilimitados, cujo acontecimento-censura é o de “[...] uma limitação da proliferação cancerígena”6. Num assomo marxiano, Foucault afirma, ainda, que a função autor desempenha um papel regulador depois do século XVIII, industrial e burguês, calcado no individualismo e na propriedade privada.
A retomada do problema da autoria e de suas circunscrições dá-se em 1970, na aula inaugural do Collège de France. Na ocasião, aparece a defesa da hipótese de trabalho, a saber: que,em toda sociedade, há uma série de mecanismos que controlam, selecionam, organizam e distribuem a produção dos discursos e pretendem conjurar seus perigos (é essa a hipótese, digamos, “logofóbica”, que se defenderá então) e o seu caráter de acontecimento (FOUCAULT, 2002).
Didaticamente, é possível separar os mecanismos de que trata a aula inaugural em três grupos7: o dos procedimentos externos, três grandes “sistemas de exclusão” (FOUCAULT, 2002, p.19) relativos ao jogo entre o poder, o desejo e suas censuras, de que fazem parte a interdição, a separação entre a razão e a loucura e a vontade de verdade – esta última, que tem um suporte institucional e perfaz uma economia dos saberes; o dos procedimentos internos, cuja função é de, no interior mesmo dos discursos, construir a submissão do acaso, por meio do comentário, do autor e da disciplina (a “polícia do verdadeiro”). O terceiro grupo torna rarefeitos aqueles que podem falar: o ritual, as sociedades do discurso, as doutrinas e os sistemas de apropriação social do discurso (os dispositivos pedagógicos têm destaque) limitam a entrada na ordem do discurso, exigindo ora a legitimidade de um status, ora o compartilhamento de um segredo.
Antes de me deter no procedimento da autoria, tema deste escrito, é mister recordar a crítica que Foucault (2002, p.46) realiza contra três temas centrais da filosofia moderna. O primeiro deles, “[...] o tema do sujeito fundante [...]”, depositário dos sentidos e garantia de explicitação das coisas para além da história e do discurso. O segundo, correspondente ao sujeito, o tema da “experiência originária”, de um reconhecimento primitivo que cabe ao sujeito auscultar (FOUCAULT, 2002, p.47). O terceiro tema é o da “mediação universal”, que permitiria ao discurso reverberar em transparência direta – e acessível ao sujeito universal como fundamento – à verdade secreta das coisas.
Contra essa teoria do significante, de uma civilização muito respeitosa em relação ao discurso, impõe-se restituir a espessura dos enunciados, questionando a vontade de verdade do sujeito, destituindo a questão da origem e exigindo o apelo à série e ao acontecimento e, desse modo, rompendo com “[...] a soberania do significante.” (FOUCAULT, 2002, p. 51).
O que essa crítica à antropologia filosófica, retomada de As Palavras e as Coisas, instaura com relação ao tema da autoria? A necessidade de uma inversão. Destarte, contra a continuidade e o papel positivo de um sujeito fundante de todo texto, o autor, “[...] é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso.” (FOUCAULT, 2002, p. 52). É, pois, somente da perspectiva de uma inversão da antropologia e de suas figuras centrais que se pode aventar que há uma função autor, delineada, dessa sorte, na forma de um procedimento.
Volto algumas páginas precedentes para contemplar o procedimento da autoria. A raridade de sua condição é a peça-chave da interpretação foucaultiana. Se o autor é um princípio de agrupamento do texto, “[...] como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2002, p. 27), ocorre que há muitos discursos que circulam sem que se lhes exija um autor – é o caso de conversas, receitas e afins. Entretanto, há domínios que exigem a presença do autor, como a literatura, a filosofia e a ciência. Note-se, porém, que haveria um enfraquecimento da autoria no discurso científico a partir do século XVII e um reforço da função nos discurso literário – diferença, aliás, já abordada em O que é um autor?
A questão central de Foucault é, para além da marcação de distinções entre os discursos, o modo como o autor funciona controlando a proliferação da linguagem, dando aos enunciados um projeto e uma coerência ligados à consciência criadora de um sujeito único: “O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2001, p.27).
Designemos a problematização da autoria de que se ocupa Foucault nestes três textos precedentemente elencados como um dispositivo da autoria, do mesmo modo que pretende Chartier (2014, p.29): “[...] como um desses dispositivos que, segundo ele, deviam assegurar esta rarefação de uma significação proliferante”8. No enunciado de Chartier, todavia, indica-se o “como” e a marca de um distanciamento – algo que faz as vezes de, cujo funcionamento parece com. Aqui, porém, vou adiante e sugiro que a autoria é, por si só, um dispositivo, mas conforme leu Agamben (2014): um dos jogos e das maquinarias que obrigatoriamente fazem a mediação entre o mundo e os viventes. Dessa perspectiva, o dispositivo da autoria seria uma espécie possível de produzir formas de subjetivação. Ao retornar a Foucault e à função autor, segundo um dispositivo, poderíamos vislumbrar uma série de efeitos relativos ao sujeito.
Faço um parêntese histórico, porém, no sentido de remontar a irrupção de um dispositivo autoral. Chartier (2014) retoma as discussões de Foucault (exatamente trinta anos depois, na mesma Sociedade Francesa de Psicanálise) para reivindicar a revisão da “vaga cronologia” que apenas sugeriu o arqueólogo. Chartier (2014) mostra, através da historiografia contemporânea, que foi em 1709 que, na Inglaterra, a publicação de textos foi alterada pelo parlamento: permitiu-se, via copyright, que os autores se tornassem seus editores e tivessem o direito de propriedade assegurado (pela duração de 14 anos, suplementada de mais 14). Os processos judiciais abertos desde então, de acordo com Chartier (2014, p.43), defendiam “[o] princípio segundo o qual o autor de um texto é o seu proprietário perpétuo e tem sobre ele a posse imprescritível [...]”. Propriedade e originalidade, desta feita, caminhariam para formar um vértice, pois a materialidade da obra não funcionaria mais como garantia, mas sim a criação, imaterial e subjetiva. Isso tudo, antes do que previra Foucault: não no final do século XVIII, mas em seu mais tenro início.
Nessa revisão da cronologia de Foucault, ele ainda aponta que a relação de desmaterialização e criatividade já aparecia como um problema no teatro de Ben Johnson ou nas edições de O Paraíso Perdido, de Milton. Outrossim, mesmo antes da impressão, os séculos XIV e XV já testemunhavam, nos primeiros autores em língua vulgar, a unidade entre livro, obra e nome do autor (CHARTIER, 2014, p.61). É, pois, no que Chartier chama de “ordem dos livros” que se deve rever a genealogia foucaultiana. Não obstante o apontamento de que, na Idade Média e no Renascimento, muitos textos circulavam anonimamente, foi também nessa época que, nos discursos do que se poderia chamar de ciência – novamente, contrariamente ao “quiasmo” de Foucault de que haveria um decréscimo de autoria científica – autenticam a experiência por uma presença: a do nome próprio, o sujeito tornado autor.
Fecho o parêntese. Cabe descrever, em traços gerais e na forma de uma hipótese de trabalho, o dispositivo da autoria. Primeiramente, entender sua irrupção, com Chartier (2014, 2002), segundo a materialidade da ordem dos livros que se concatena com a ordem dos discursos, durante um período reconhecido, em muitos dos textos foucaultianos, como a Época Clássica (FOUCAULT, 2000). Depois, delinear as estratégias que produzem um dispositivo da autoria, típico de alguns discursos ocidentais: aquelas que relacionam formas de ser sujeito, saber-poder e maquinarias, e que têm como função precípua a circunscrição dos sentidos e a instauração de uma escrita regida pela propriedade e pelo apelo à subjetividade criadora, origem dos textos que circulam no mundo.
O debate é, como se vê, caro à arqueogenealogia. O dispositivo da autoria aqui defendido não recorre às ficções de um poder repressivo e que censura os sujeitos, segundo a ordem de proibições ou de injunções do dizer (ainda que o nome do autor possa funcionar na forma da censura, da marca a ser silenciada, como algumas vezes sugere Chartier). Pelo contrário, o entendimento desse dispositivo assume a produtividade do poder, microfísico e corpóreo. Justamente por isso é que a autoria, ao exigir a desmaterialização da obra em nome do sujeito exterior, origem do sentido e força de sua coerência, pode ser lida como parte de um poder difuso, de tecnologias ubíquas, que coloca em jogo campos distintos e exige o investimento dos indivíduos e de seus corpos em sujeitos – autores, responsáveis dóceis pelo dito, mas que podem inaugurar “[...] inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças.” (FOUCAULT, 2013b, p.30).
Foco de instabilidade, então, esse dispositivo autoral guarda no bojo tanto as possibilidades de um deslocamento plástico constante – Deleuze (1990) o afirma, exigindo as transformações dos dispositivos em novos dispositivos – quanto as resistências (já aqui apresentadas) nas discussões de Foucault e recuperadas no conceito de profanação, descrito na seção precedente, defendido por Agamben (2014).
Assim, como resistência, deslocamento e profanação, é possível imaginar um remanejamento tático da concepção de autoria. Se nos textos de 1969 e 1970 a função autor era descrita como um mecanismo de sujeição e de circunscrição, estratégico numa economia logofóbica dos discursos, já em 1977, é o próprio Michel Foucault que recorre à crítica. Referindo-se propriamente ao A Ordem do Discurso, ele afirma que houve um erro na concepção de poder daquela aula, assumido juridicamente de forma negativa (FOUCAULT, 2014). Adiante, como se sabe e se viu acima, o poder toma contornos microfísicos (contra o modelo da soberania e da lei) e a hipótese da repressão é amplamente contestada. Como pensar a autoria e, na hipótese deste escrito, o deslocamento do dispositivo da autoria, de acordo com um vetor que aponta para novas relações entre os viventes e os dispositivos?
É sobre o aparecimento raro desse discurso da liberdade agonística e crítica e de sua relação com o dispositivo autoral que se debruça a próxima seção.
O dispositivo da autoria e as formas éticas
Retomo os três textos em que, detidamente, Michel Foucault debruçou-se sobre a função autor, a fim de elencar, neste momento, os deslocamentos que a leitura exige rumo a outro entendimento do dispositivo da autoria.
Inicio com o prefácio de A Arqueologia do Saber, no qual Foucault (2012, p.21, grifo nosso) exigiria para si uma espécie de liberdade no jogo da escrita, no célebre trecho: “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.” A relação do filósofo com a escritura é particular e seu aparecimento é precedido de um riso, à Nietzsche: “[...] não, não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo.” (FOUCAULT, 2012, p.21). Que espaço de liberdade é este de que fala Foucault quando exige a liberdade?
Passo à conferência de Bufalo, de 1970 (ainda, O que é um autor?), sugere que há transformações na sociedade e que ‘[...] a função autor desaparecerá de uma maneira que permitirá uma vez mais à ficção e aos seus textos polissêmicos funcionar de acordo com um outro modo, [...] mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar.” (FOUCAULT, 2015, p.292). De qual experiência e de que outras determinações possíveis fala o francês?
Por fim, assim como fez Chartier (2002), recorto as palavras iniciais de A Ordem do Discurso:
Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo [...] (FOUCAULT, 2002, p.6, grifo nosso).
Neste trecho que abre a conferência, como se vê, as figuras da morte do autor, da denegação da origem e da obra, do pertencimento à escritura, da suspeição, estão todas postas à prova, saltando à inspeção (e ironicamente, ao que parece, marcadas). Não obstante, chama ainda mais a atenção o artifício daquele que, de forma diversa do que supõe a ordem dos discursos, comete enunciados, toma parte no desenrolar das séries discursivas, manipulando-as, deslocando-as, problematizando-as. Que prerrogativa é essa que permite a Foucault observar o que há de “cotidiano e cinzento”naquilo que, perigosamente, prolifera?
Fontes Filho (2006-2007) observa que9, na trajetória foucaultiana, malgré lui, a escritura e a autoria também aparecem segundo a ordem dessa “outra experiência” que se vislumbra nos recortes acima elencados e que remonta a Bataille, Blanchot, Klossowski e Nietzsche. O filósofo francês teria muitas vezes se valido da possibilidade de que seus livros fossem “auto-explorações”, “experiências-limite”. Na mesma esteira, Leme (2012) sustenta que a questão dos limites da razão, denunciada desde A História de Loucura, em 1961, por meio dessas “experiências-limite” (de que tomam parte Blanchot e Bataille, Nietzsche e Artaud), e mais tarde relacionada à pastoral cristã a aos exercícios ascéticos, configura um espaço de errância sempre aberto: “[...] um saber que se funda numa voz interior e que se efetiva na desobediência, o que é a desrazão senão isso?” (LEME, 2012, p.43).
Voltando à questão da autoria, cabe perguntar sobre a potência dessa errância e dessa abertura, não-identitária e resistente, que Foucault evoca quando se observa no interior do dispositivo da escrita, obedecendo à função autor e a ela resistindo – na Arqueologia, em O que é um autor? ou em A Ordem do Discurso. Uma resposta possível, cerne do debate deste artigo, é a viragem do francês rumo às práticas de liberdade e de governo, capazes de solicitar outras formas de subjetividade e, nesse cadinho, de deslocamento do dispositivo da autoria.
É desse deslocamento que se ocupam as subseções a seguir.
A ética e a crítica
Passemos de sobrevoo sobre os quiprocós relativos à periodização dos trabalhos de Foucault e de suas “fases”10. Importa, aqui, atentar para o jogo de modificações que ele mesmo exige a fim de não ser capturado – como se viu, logo acima. Da perspectiva de uma temática comum das pesquisas da arqueogenealogia, em Sujeito e Poder, Foucault (2014, p.119) assume o sujeito como “o tema geral de minhas [dele] pesquisas”. Não obstante, assume que sua investigação toma, ao final, outro rumo: “[...] consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida” (FOUCAULT, 2014, p.121).
Os textos dessa fase final, a que chamaremos – junto a seus comentadores – de fase ética, voltam-se para o problema das “estéticas da existência, “[...] nosso trabalho sobre nós mesmo como seres livres” (FOUCAULT, 1995 apud DREYFUS; RABINOW, 1995, p.347), cuja capacidade é a de ultrapassar a sujeição dos códigos morais do dispositivo num “[...] trabalho realizado no limite de nós mesmos”. Tal inflexão ainda mira o sujeito e a resistência, mas passa a se inscrever na senda do pensamento crítico, descrito nos cursos da década de oitenta no Collège de France.
Um olhar sobre A Coragem da Verdade, curso dos anos oitenta publicado apenas em 2009 na França, permite considerar que há uma partição no saber do ocidente: por um lado, as formas espirituais e aletúrgicas, que relacionam verdade e ética do sujeito do dizer; por outro, as formas epistemológicas, que têm como ponto de dominância o momento cartesiano e a separação entre o conhecimento científico evidente e o sujeito (FOUCAULT, 2011, p.4). Ao propor a genealogia das formas aletúrgicas, o que o francês gostaria era investigar “[...] quais foram os processos, na história da subjetividade e do pensamento, que levaram a uma “desespiritualização’ da filosofia, isto é, à colocação de sua centralidade no conhecimento e não no cultivo de si [...]” (GALLO, 2011, p.382).
Nessas formas greco-latinas de o sujeito se relacionar com a verdade, Gallo (2011, p.372) aponta uma variação entre a resistência da teoria dos dispositivos e a criação ética,típica de uma terceira fase do pensamento foucaultiano: “Uma coisa é dizer que todo o exercício de poder implica resistência; outra, bastante diferente é dizer que a ética do cuidado de si significa a produção de práticas de liberdade [...]”. Assim, nesse percurso que vai da aparição textual da resistência em A Vontade de Saber (FOUCAULT, 2009b) até a década de oitenta, quando o filósofo inflaciona o papel dos sujeitos e suas estratégias de liberdade, uma série de deslocamentos se operam naquilo que o francês passa a chamar de uma atitude “crítica” e de uma “ontologia do presente”.
No interior dessa preocupação crítica da fase dita “ética”, em que sujeito e conhecimento se implicam peremptoriamente, Foucault observará a distinção entre o gnôthi seauton (“conhece-te a ti mesmo”) e a epimeleia heaotou (“cuida de si mesmo”) (FOUCAULT, 2011, 2013a, 2006), invertendo-a em nome de um discurso da resistência e da urgência ética do pensar. Teria sido Descartes o responsável por separar as duas instâncias (o sujeito ético e a verdade). O que se infere da tradição greco-latina é a relação dos sujeitos consigo em práticas ascéticas, constantes e contínuas, único acesso à verdade das coisas e, ainda, à verdade de si: “[...] a sua preocupação [dos antigos], seu tema, era construir um tipo de ética que fosse uma estética da existência” (FOUCAULT, 1995 apud DREYFUS; RABINOW, 1995, p.225). Nos antigos, Foucault (2011) faz notar que o discurso do “cuidado de si” inaugura uma atitude de autogoverno, distante daquela dos dispositivos biopolíticos e da governamentalidade – o dispositivo de exercício do poder liberal-burguês.
Atento para a distinção que faz Castelo Branco (2011, p. 156): entre uma governamentalidade burguesa e liberal, de exercício de um poder pelos dispositivos disciplinares, biopolíticos e de segurança e, por outro lado, pela distopia de uma governabilidade, “[...] entendida como o autogoverno de indivíduos livres e autônomos.”. A governabilidade diz respeito à liberdade e ao cuidado de si, a uma ética possível e criadora nos dispositivos, que acabam por deslocá-los. Já a governamentalidade circunscreve-se às práticas de codificação, de uma resistência vetorial. Entre as duas, a assunção de uma novidade no texto foucaultiano: “Eu creio solidamente na liberdade humana.” (FOUCAULT, 1994, p. 693 apud CASTELO BRANCO, 2011, p. 160).
Na nova empreitada, Foucault retoma o tema da governamentalidade e passa a averiguar quais as possibilidades de, no interior dos dispositivos de governo, existir espécies de autogoverno, de criação e invenção de si des-sujeitada – o que aqui estamos supondo como a governabilidade. É dessa perspectiva de uma ação e de uma reinscrição dos sujeitos nos dispositivos, dos escritos dos finais da década de setenta e do começo dos anos oitenta, que se postula um reaparecimento da instância subjetiva, pois, é também bipartido entre o código e as práticas criativas de si (DELEUZE, 2005; BUTTURI JUNIOR, 2012). Em entrevista ao Magazine Littéraire, Foucault (2010, p.244) ratifica essa diferenciação:
Não acredito que haja moral sem um certo número de práticas de si. É possível que essas práticas de si estejam associadas a estruturas de código numerosas, sistemáticas e coercitivas. [...] Mas também é possível que constituam o foco mais importante e mais ativo da moral e que seja em torno delas que se desenvolva a reflexão.
O foco mais ativo a que se refere marca o trabalho do sujeito sobre si mesmo. A essa dobra subjetiva (DELEUZE, 2005), o francês vai aproximar a liberdade e a crítica, retomada do kantismo. Em O que é a crítica? (1978) e O que são as Luzes? (1984), Foucault (2005, p.5) relê o momento kantiano de configuração de uma “[...] atitude crítica, na forma de um “[...] o desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade”. O espaço da liberdade, inscrito em Kant através da expressão Sapere Aude, revela “[...] certa vontade decisória de não ser governado, esta vontade decisória, atitude ao mesmo tempo individual e coletiva de sair, como dizia Kant, de sua minoridade.” (FOUCAULT, 1978, p.19).
Nessa releitura do modelo kantiano, não em suas Críticas ontológicas mas em sua função de pensar o presente é que Foucault advoga que o fundamento da Aufklärung kantiana poderia ser repensado como a saída da minoridade, via coragem de pensar. A relação proposta é de problematização diante dos discursos da verdade, sempre pensados segundo o momento presente. Nessa crítica, o caráter de resistência é entendido também como experimentação que a modernidade kantiana traria inscrita em seus enunciados:
[...] a filosofia como superfície de emergência de uma atualidade, a filosofia como interrogação sobre o sentido filosófico da atualidade a que ela pertence, a filosofia como interrogação pelo filósofo desse ‘nós’ de que ela faz parte e em relação ao qual ela tem de se situar, é isso, me parece, que caracteriza a filosofia como discurso da modernidade. (FOUCAULT, 2013a, p.14).
Interrogar a atualidade, no entanto, não é apenas resistir, stricto sensu, na forma de um duplo do poder: é produzir uma nova instância, dessubjetivada. No chamado “último Foucault”, é mesmo apontar para o papel criativo da subjetividade, sua função ativa nos deslocamentos estratégicos dos diagramas do poder-saber. É essa dessubjetivação o centro de discussão da próxima subseção.
A dessubjetivação
Segundo Deleuze (2005, p.109), a novidade dos textos da década de oitenta e surgida em O uso dos prazeres (FOUCAULT, 2009c), na problematização das práticas de si e da subjetivação seria o aparecimento de “[...] uma dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, mas que não depende deles”. Agonisticamente, o aparecimento da instância subjetiva é também bipartido. Haveria uma necessária ligação entre sujeito e moral11 cujo imperativo seria o de se distinguir entre dois “modelos” de intersecção entre código e formas de subjetivação. De um lado, supõe-se a existência de morais sistemáticas, capazes de subsumir todas as formas de comportamento, em que a subjetivação opera com pouca liberdade - dir-se-ia, com menos resistência. De outro lado, no domínio da ética, Foucault salvaguarda a dinamicidade do trabalho sobre si, dando como exemplo o paradigma grego (FOUCAULT, 2009c).
Como faz notar Foucault, a reflexão da genealogia acaba por açambarcar tanto o domínio das histórias da moral quanto o domínio das histórias da ética e da constituição dos sujeitos. Se, portanto, havia uma constituição entre poder e resistência, justamente porque o primeiro criava campos de positividades discursivas a que devia dominar e que a ele deveria resistir, o posicionamento adotado pelo “último Foucault” é o de que existem deslocamentos subjetivos, dobras do lado de dentro (DELEUZE, 2005), adequadas ao caráter “transversal” dos dispositivos e dos diagramas.
Retomando a temática da resistência, a aposta da dobradura subjetiva, “[...] irredutível aos saberes e poderes dos quais deriva” (WEINMANN, 2006, p.21) promoveria um movimento incessante de pressão subjetiva, que existe também como recodificações de “mais liberdade”, visto que os dispositivos e diagramas são, por excelência, atravessados pelo falhamento e prenhes de transformação. Estratégias de luta “renitentes”, “insubmissão” e fronteira entre liberdades e poder são chamadas à baila nessa “agonística”, que define as possibilidades do sujeito contra as identificações e tendo por base formas de subjetivação éticas – ou dessubjetivadas. Como já se observou nas seções precedentes, essa dimensão transformadora – da teoria e da luta – foi assumida pelo francês em diversas ocasiões, sobretudo porque a espécie de embate a se travar, no mundo contemporâneo, seria com as formas de poder que constituem identidades – as posições de sujeito. Contra elas, o próprio Foucault exigia a liberdade e a estética da existência: “Eu não quero, recuso-me, sobretudo, a ser identificado, a ser localizado pelo poder” (FOUCAULT, 2014a, p.250).
Finalmente, cabe perscrutar como o dispositivo da autoria aqui aventado pode ser profanado e deslocado, de acordo com a viragem ética do arqueogenealogista. Para isso, a próxima seção tratará da leitura que Judith Butler faz das escritas de si como foco de políticas de des-identificação criadas por Michel Foucault.
O si mesmo e a performance autoral
O tema do governo de si em Foucault (2014b), como se afirmou anteriormente,tinha como base uma discussão sobre a produção de uma vida como objeto de arte. Sua pesquisa notou que, na Antiguidade pagã e cristã, um problema da escrita de si também deveria ser considerado. Tratava-se dos hypomnêmata, cadernos de anotações (carnês) sobra a vida diária e a oikonomia que suscitavam uma tekhne tou biou, ou seja, uma técnica de si e um cuidado. Dos gregos aos cristãos, os hypomnêmata teriam passado por transformações, “[...] uma mudança dramática entre os hypomnêmata evocados por Xenofonte, em que se tratava somente de se lembrar dos elementos de um regime elementar [tekhne], e a descrição das tentações noturnas de Santo Antônio.” (FOUCAULT, 2014b, p.233).
A mudança narrada refere-se à retomada do cuidado de si pelo cristianismo, agora para o exercício do poder pastoral e para a salvação transcendental da alma. No entanto, em ambos os casos o que Foucault (2014b) faz entender é que são exercícios, um voltar-se sobre si mesmo que podem ser lidos nos registros de si, nesses escritismos de si antigos. Certamente, enquanto a epimeleia heautou grega funcionava no sentido de garantir a soberania do indivíduo e a produção de um regime ético também forjando exercícios de escrita de si, a epimeleia ton allon dos cristãos invertia o processo e criava uma relação de obediência em relação ao pastor, deslocando a liberdade desse escritismo.
Entre esses dois modelos, os hypomnêmata novamente sugerem que há uma margem de liberdade entre o sujeito e o dispositivo da escrita. Não se pode falar, logicamente, de um dispositivo da autoria presente nesses textos. Apenas, cabe observar a tarefa não irrelevante de um exercício de si que passa pela escrita e pelo sujeito – um dispositivo específico da Antiguidade – de que Michel Foucault se ocupa em seus últimos textos (a edição é de 1984).
Esse escrever sobre si mesmo, na forma de uma estética da existência, é um dos modelos de que parte Judith Butler (2015), no intuito de questionar a produção de uma política para além da filosofia da substância e do reconhecimento. É nesse questionamento que a norte-americana vai se utilizar de Foucault, notadamente de seus textos da década de oitenta, que ora discuto. Butler (2015, p.35) se rende ao fato de que as “formas éticas” são calcadas em “regimes de verdade”. No limite, tais regimes engendram limites de “engendramento de si”. Porém, menos do que um quadro invariável, os “regimes de verdade” de que fala Foucault seriam utilizados segundo uma relação – uma dobra, como se disse em seções anteriores deste texto: “[...] Foucault não defende apenas que exista uma relação com essas normas, mas também que qualquer relação com o regime de verdade será ao mesmo tempo uma relação comigo mesma.” (BUTLER, 2015, p.35).
A autora evoca uma consequência fulcral: ao colocar-se criticamente em relação aso regimes de verdade, acabo por questionar o solo onde posso ser, ou seja, os limites de minha condição ontológica são colocados em suspenso (BUTLER, 2015). Mais profundamente, é a não-conformação da vida à norma, no modelo das estéticas da existência, que permite que a autoprodução de formas de subjetividade – aqui, finalmente, positivas – que desfaz a própria capacidade do dispositivo de assujeitar, de exigir e codificar prazeres, práticas e sujeitos. Para Butler (2013), quando Foucault se pergunta sobre “como não ser governado?”, acaba por engendrar uma atitude crítica em que a virtude toma o lugar da resistência. Virtude, porém, que é sempre um processo:
Ela, antes, forma-se no embate de uma troca específica entre um conjunto de regras ou preceitos (que já estão dados) e uma estilização de atos (que expande e reformula esse conjunto prévio de regras e preceitos). Essa estilização do “eu”, em relação à regras, acaba por constituir uma “prática”. (BUTLER, 2013, p.169).
Da contingência dos códigos e dos dispositivos, de uma lado, e das próprias identidades subjetivas, de outro,é que aparece a instância da liberdade e que se inaugura uma “ontologia precária” (BUTLER, 2013, p.172). Para os dois casos, constitutivos de uma crise, são a “profanação” (AGAMBEN, 2014) e o desassujeitamento (BUTLER, 2013, 2015) as formas de desobediência ativa de que dispõe este novo “des-sujeito”.
Que implicações teriam tais deslocamentos para um dispositivo da autoria, como aqui delineado?
Na seção O “eu” e o “tu” do livro Relatar a si mesmo, Butler (2015) se utiliza da precariedade ontológica para inquirir sobre os limites do narrar a si mesmo. Tal como os hypomnêmata, então, a autora vislumbra que a narração é um ato performativo, porquanto é elaborado segundo a exigência de uma repetição e de uma encenação, jamais tendo a garantia nem de dispositivos fixos nem de identidades substantivas. Mais adiante, mostra que esse narrar performativo de si, desde a problemática grega, resulta numa ação incompleta, seja porque o sujeito está sempre-já num compartilhamento do mundo com outros sujeitos, seja porque os dispositivos já colocaram modos de narrar e de ser disponíveis, a serem problematizados. O resultado é que “[...] a ética certamente não pressupõe apenas a retórica (e a análise do modo de interpretação), mas também a crítica social.” (BUTLER, 2015, p.170).
É essa incompletude performativa da escrita de si que, então, exige que se repense a função autor e o dispositivo da autoria, no que eles guardam em relação à sujeição e a produção de formas de sujeito pouco livres. Como apontou amiúde Michel Foucault, a escrita poderia destacar-se da “moral do estado civil” de que ele falava no prefácio da Arqueologia do Saber, ou ser uma das experiências-limite, uma denegação do que se espera de uma função autor. Tal “profanação” exigiria a assunção de uma vida virtuosa, em que ética e conhecimento, separados desde Descartes, pudessem ser relacionados.
Esse dispositivo autoral, pois, é ainda um sistema de coerções, mas surge sempre-já marcado pela instância crítica, pela delicadeza da condição do desassujeitado e de sua precariedade que, não obstante, pode agir e criar sobre a maquinaria: um vivente a resistir. Pensar assim a autoria é dar um passo para adiante dos textos de 1969 e de 1970, tornados “clássicos” para a definição do autor. Ademais, a hipótese de uma garantia de mobilidade e a de transformação livre para os textos que circulam, desde então e até nós, sob a responsabilidade e a coerência do nome de Michel Foucault (e de tantos outros nomes). Ao libertá-los – o nome e o conceito, em sua dispersão de discursos – da instância que exige a mesmidade, a promessa é a de uma disjunção que não cabe nem na escrita nem no regime dos livros, mas sonda-os de longe, sorrindo.
Considerações finais
Neste texto, pretendi rediscutir o tema da autoria, conforme elaborado na arqueogenealogia de Michel Foucault, relacionando-o ao conceito de dispositivo. A hipótese é de que a autoria poderia ser lida como um dispositivo – o dispositivo da autoria – e de que os deslocamentos sofridos por este dispositivo poderiam ser questionados segundo uma perspectiva crítica, a partir dos finais da década de setenta do século XX, permitiram a Foucault retomar os temas da liberdade e do sujeito em relação aos códigos morais e às praticas do poder-saber.
Para isso, o texto se iniciou descrevendo o conceito de dispositivo e a possibilidade de sua profanação. Adiante, relacionou a irrupção da autoria no discurso arqueogenealógico, na Arqueologia do Saber, em O que é um autor e no texto A Ordem do Discurso. O problema do autor e da função autor foram, então, pensados segundo um dispositivo de autoria ou autoral.
A seção final do texto buscou inquirir o dispositivo autoral em sua capacidade de transformação e deslocamento, seguindo, para isso, as discussões da ética, da dessubjetivação e da crítica, da reconhecida “terceira fase” dos estudos foucaultianos. Dessa perspectiva, foram trazidos à tona questões como a epimeleia heautou e as escritas de si, bem como os interessantes apontamentos sobre o relato de si mesmo de Judith Butler.
Por fim, entendeu-se que, junto a Foucault e tendo-o como marca,é mister que se volte para entendimentos de autoria mais livres e críticos, e não apenas para a sua condição de função e de codificação, como pretendiam os textos de 1969 e de 1970. Pensar o dispositivo autoral, no modelo foucaultiano, exige uma aproximação com o problema das formas críticas e com a precariedade da dessubjetivação. Exige, ainda, que a autoria não seja circunscrita à sua função mais preeminente: conter a circulação e a dispersão dos discursos.
Foucaultianamente, caberia imaginar o dispositivo da autoria como um “solo de subjetivação” e de resistência, de criatividade e de “experiência-limite”. Se o francês negava ser capturado ao escrever, é preciso que tal negativa também seja um mote dos estudos da autoria, de forma a resgatar aquilo que o autorar tem de ação política, de liberdade e de capacidade de transformação. Indagar, pois, sobre os limites da subjetividade e da dessubjetivação crítica de toda a escrita, no caso da autoria, é ainda permanecer sob o espectro de Foucault, de uma política e de uma luta agonística cujo sentido é, como gostaria Agamben (2014) o de profanar os dispositivos.
REFERÊNCIAS
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1
Oikonomia diz respeito à administração do oikos, a casa (AGAMBEN, 2014).
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2
Em Foucault, como se verá adiante, as “formas de subjetivação” ganham outros sentidos, positivos e relacionados à ética.
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3
Retomarei a agonística na seção quatro deste artigo. Por enquanto, basta que se diga que é a dimensão do âgon que, segundo Deluze e Guattari (1992), funda a própria filosofia como uma luta entre amigos e cidadão, ao invés de uma obediência ao poder central.
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4
A Conferência foi realizada meses antes da publicação da Arqueologia do Saber, a quem Foucault (2015, p.271) faz referência: “[...] tentei avaliar suas implicações e consequências em um texto que vai ser lançado [...]”.
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5
“Portador” refere-se a uma relação de posse, de verdade, de sentido e de sujeito.
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6
A metáfora derridiana não deve enganar, pois se trata de pensar a organização funcional dos discursos e não de assinalar a deiscência dos textos.
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7
Dado o foco da discussão, não serão esmiuçados todos os procedimentos.
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8
Problema do sentido e da linguagem que, conforme Veyne (2011, p.16), era o cerne das preocupações foucaultianas, “[...] essa concepção de verdade como não correspondência.”. O empreendimento de Foucault, lido por Veyne (2011), relacionava-se diretamente à empreitadas de figuras como Nietzsche, Wittgenstein e Austin. Assim com Chartier (2014), portanto, trata-se muito pouco de uma análise histórico-sociológica do autor e mais sobre a centralidade de perscrutar seu papel positivo nos jogos discursivos – em coro com o francês, nas práticas de discurso que permitem o exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2012).
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9
Paradoxalmente, como muitas vezes fez o próprio Foucault, estou aqui recorrendo a esse nome de autor e indicando a incoerência que funda um outro dispositivo de autoria.
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10
Em entrevista a Dreyfus e Rabinow (1995), Foucault esclarece os três eixos de suas preocupações, a partir do sujeito (que configurariam, supostamente, três fases): o primeiro, do conhecimento e da objetivação, ligados à arqueologia; o segundo, das relações do sujeito com os campos do poder, relacionado à genealogia; o terceiro, que permitiria a constituição de nós mesmos como agente de uma ética, a partir do sujeito e das morais históricas.
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11
Moral aqui deve ser lida no sentido de uma Genealogia nietzscheana de prescrição e normatização do bem e do bom.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016
Histórico
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Recebido
Out 2015 -
Aceito
Fev 2016