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Ponderações de familiares sobre a decisão de recusar a doação de órgãos

Resumos

OBJETIVOS: Compreender as representações sociais que nortearam a decisão familiar de recusar a doação de órgãos para transplante e identificar as ações do entorno social que influenciaram esta recusa. MÉTODOS: Estudo de natureza qualitativa, utilizando um desenho descritivo exploratório. Foram entrevistados nove familiares, entre fevereiro e agosto de 2009, cuja morte do parente havia sido notificada regularmente pela Central de Transplantes de Pernambuco. Os depoimentos obtidos sofreram análise de conteúdo na modalidade temática. RESULTADOS: Emergiram três temas que fundamentaram este estudo: o modelo de atenção e gestão dos serviços de saúde é decisivo na recusa da doação; o corpo é inviolável e crença na possibilidade de retorno à vida - coração como sede da vida e fé reforçando a esperança. CONCLUSÃO: A recusa dos participantes para doação de órgãos esteve amparada no contexto do atendimento e do acolhimento hospitalar recebido, bem como em valores culturais e religiosos.

Obtenção de tecidos e órgãos; Morte encefálica; Atitude; Família


OBJECTIVE: To understand the social representations that guided family decision to refuse organ donation for transplant and to identify the actions of the social environment that influenced this refusal. METHODS: Qualitative study using a descriptive exploratory design. Nine family members were interviewed between February and August 2009, whose family member death had been reported regularly by the Transplantation Center of Pernambuco. The statements underwent content analysis in semantic categories. RESULTS: Three semantic categories emerged which supported this study: The care and management model of health services is critical in refusing the donation; the body is inviolable; and belief in the possibility of returning to life-heart as the source of life and faith strengthening hope. CONCLUSION: The participants' refusal to organ donation has been supported in the context of service provided and hospital care received, as well as cultural and religious values.

Tissue and organ procurement; Brain death; Attitude; Family


OBJETIVOS: Comprender las representaciones sociales que orientaron la decisión familiar de rechazar la donación de órganos para transplante e identificar las acciones del entorno social que influenciaron para esta recusación. MÉTODOS: Estudio de naturaleza cualitativa, en el que se utilizó un dibujo descriptivo exploratorio. Fueron entrevistados nueve familiares, entre febrero y agosto del 2009, cuya muerte del pariente había sido notificada regularmente por la Central de Transplantes de Pernambuco. Las declaraciones obtenidas fueron sometidas a análisis de contenido en la modalidad temática. RESULTADOS: Emergieron tres temas que fundamentaron este estudio: el modelo de atención y gestión de los servicios de salud es decisivo en la recusación de la donación; el cuerpo es inviolable y la creencia en la posibilidad de retorno a la vida - corazón como sede de la vida y fe que reforzó la esperanza. CONCLUSIÓN: El rechazo de los participantes a la donación de órganos estuvo amparada en el contexto de la atención y acogida hospitalaria recibido, así como en valores culturales y religiosos.

Obtención de tejidos y órganos; Muerte encefálica; Actitud; Família


ARTIGOS ORIGINAIS

Ponderações de familiares sobre a decisão de recusar a doação de órgãos

IEnfermeira. Mestre pelo do Programa de Pós Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – Recife (PE), Brasil

IIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – Recife (PE), Brasil

IIIProfessora Titular da Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil

IVProfessora Titular do Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – Recife (PE), Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

OBJETIVOS:Compreender as representações sociais que nortearam a decisão familiar de recusar a doação de órgãos para transplante e identificar as ações do entorno social que influenciaram esta recusa.

MÉTODOS: Estudo de natureza qualitativa, utilizando um desenho descritivo exploratório. Foram entrevistados nove familiares, entre fevereiro e agosto de 2009, cuja morte do parente havia sido notificada regularmente pela Central de Transplantes de Pernambuco. Os depoimentos obtidos sofreram análise de conteúdo na modalidade temática.

RESULTADOS: Emergiram três temas que fundamentaram este estudo: o modelo de atenção e gestão dos serviços de saúde é decisivo na recusa da doação; o corpo é inviolável e crença na possibilidade de retorno à vida – coração como sede da vida e fé reforçando a esperança.

CONCLUSÃO: A recusa dos participantes para doação de órgãos esteve amparada no contexto do atendimento e do acolhimento hospitalar recebido, bem como em valores culturais e religiosos.

Descritores: Obtenção de tecidos e órgãos; Morte encefálica; Atitude; Família

INTRODUÇÃO

A recusa familiar para doação de órgãos é um fator limitante para realização de transplantes. Entre outros problemas, estão a subnotificação de pacientes com diagnóstico de morte encefálica aos centros reguladores, apesar de sua obrigatoriedade prevista na lei brasileira; a falta de política de educação continuada aos profissionais de saúde quanto ao processo de doação-transplante e elevado índice de contraindicação clínica à doação (1,2).

Conforme os dados do Registro Brasileiro de Transplantes, em 2010, a ausência de autorização familiar correspondeu a 25,8% das não doações e a contraindicação médica a 14,2% (3). A recusa familiar, mesmo não sendo o único entrave para o aumento da disponibilidade de órgãos e tecidos para transplantes, é passível de modificação com medidas educativas e informativas em um cenário onde a doação é socialmente reconhecida, como gesto de altruísmo e solidariedade (4).

Muitos são os motivos alegados pelas famílias para recusa da doação de órgãos: o desconhecimento do diagnóstico de Morte Encefálica; desconhecimento do desejo do falecido; entrevista familiar inadequada; manutenção da integridade corporal e questões religiosas, entre outras (5).

A teoria das representações sociais é uma ferramenta conceitual que permite o entendimento de como se dá a construção social da realidade. Esta teoria assume que os indivíduos e os grupos constroem ativamente as representações sobre objetos sociais relevantes, baseados em várias crenças que circulam constantemente pela sociedade (4,6).

As atitudes tomadas pelas pessoas, portanto, estão atreladas às suas crenças. Elas recorrerão a um conjunto de crenças para tomar decisões e produzirão afirmações às quais podem ser ligadas à concordância ou à discordância, à verdade ou à falsidade. Este processo permite ao sujeito ou ao grupo dar um sentido às suas condutas e compreender a realidade por meio de seu próprio sistema de referência (6). Assim, a doação de órgãos é mais que uma atitude e decisão individual, envolve a compreensão dinâmica compartilhada na interação do sujeito com a sociedade.

Neste contexto, para compreender a decisão de recusa de familiares quanto à doação de órgãos como também contribuir para direcionar ações para aumentar a oferta de órgãos e tecidos para transplantes, este estudo foi conduzido pela seguinte questão: quais as representações sociais que estão direcionando a recusa da doação de órgãos?

OBJETIVO

Compreender as representações sociais que nortearam os familiares na decisão de recusar a doação de órgãos para transplante e, identificar as ações do entorno social que influenciaram esta recusa.

MÉTODOS

Com base no problema de estudo, a recusa familiar para doação de órgãos optamos por utilizar o método qualitativo por meio de um desenho descritivo e exploratório. A fundamentação teórica foi baseada na teoria das representações sociais (7).

Este estudo foi realizado com nove familiares de potenciais doadores de órgãos que não consentiram a doação, notificados regularmente pela Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) do Estado de Pernambuco.

O tempo mínimo determinado entre a ocorrência da morte e a entrevista à família para coleta dos dados foi de três meses, considerado mínimo para a vivência do luto. O critério de determinação deste intervalo foi baseado em estudos com semelhante temática (8,9). Não foi estabelecido tempo máximo para contato pela falta de respaldo na literatura.

Para inclusão no estudo, a definição do familiar entrevistado seguiu o preconizado na Lei Federal Brasileira nº 10.211/2001, que determina o parente até o segundo grau como o responsável legal pela autorização da doação de órgãos e tecidos (10).

O convite para participar da pesquisa, inicialmente, foi feito por meio de contato telefônico e cartas-convite, porém, pelas Unidades de Saúde da Família e dos Agentes Comunitários de Saúde, foi possível o acesso e a confiabilidade para participação no estudo. Inicialmente, foram selecionadas 14 famílias, apenas da região metropolitana do Recife, porém, sete recusaram participar ou não responderam às cartas convite.

Os dados foram coletados nas residências das famílias, no período entre fevereiro e agosto de 2009, após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, sob o Protocolo no 292/2008, após obtenção da assinatura dos sujeitos do estudo no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A amostra foi do tipo intencional e o critério adotado para seu encerramento foi a saturação do material obtido (11). Os indivíduos foram incluídos, conforme aceite para a participação de forma aleatória, desde que atendessem ao critério de inclusão adotado.

A técnica utilizada para obter os dados foi a entrevista semiestruturada, realizada com base em duas questões norteadoras: Como foi o momento da decisão a respeito da doação de órgãos de seu parente falecido? E o que contribuiu para sua decisão?

Os depoimentos foram registrados por meio de um gravador de áudio e transcritos integralmente, logo após a realização das entrevistas, ambos os procedimentos foram executados por uma das pesquisadoras.

Para identificar as falas e preservar o anonimato dos indivíduos, as entrevistas foram relacionadas em ordem cronológica de sua realização, sendo denominadas como E1, E2, E3 e, assim, sucessivamente. As reticências foram utilizadas para recortes das falas e os parênteses para informações complementares.

O tratamento dos dados teve por base a análise de conteúdo na modalidade temática proposta por Bardin que consiste em um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza a divisão do texto em unidades, conforme reagrupamentos analógicos, categorizados pela semântica, de forma que os temas com o mesmo significado são agrupados em uma categoria comum (12) .

Diante dos dados coletados, foi realizada uma primeira leitura do material produzido pelos participantes, chamada de leitura flutuante, e, posteriormente, uma leitura exaustiva do material, a fim de extrair critérios de classificação dos resultados obtidos e de formar categorias de significação (12).

O conjunto das entrevistas foi recortado por meio de uma "grelha" de categorias projetadas, possibilitando a observação da frequência dos temas extraídos e, a partir de então, os resultados foram discutidos à luz da teoria das representações sociais, bem como da revisão da literatura.

RESULTADOS

Os nove familiares que participaram da pesquisa tinham entre 18 e 70 anos, eram de religião cristã, provenientes de classe média baixa, residentes no subúrbio da região metropolitana do Recife e vivenciaram o processo de morte encefálica de seus parentes em hospitais públicos e privados.

Os temas de análise que convergiram das falas foram: O modelo de atenção e gestão dos serviços de saúde é decisivo na recusa da doação; o corpo é inviolável; e crença na possibilidade de retorno à vida- coração, como sede da vida e fé reforçando a esperança.

O modelo de atenção e de gestão dos serviços de saúde é decisivo na recusa da doação

Neste tema, resgatamos as falas dos participantes com relação à associação entre o atendimento médico prestado ao familiar e sua influência para o não consentimento da doação de órgãos.

Observamos a correlação entre o atendimento recebido pelo parente e a recusa para doação. Mesmo aqueles que não condicionaram uma questão a outra lembraram-se da inexistência de infraestrutura adequada, da falta de prioridade no atendimento, de não terem recebido os devidos esclarecimentos e do distanciamento na relação profissional de saúde– paciente – família, inclusive, em um internamento em hospital privado. Estas constatações são evidenciadas nos seguintes trechos das entrevistas:

...não estavam (equipe de saúde) preocupados com o bem-estar do paciente nem da família ... só em tentar ... conservar os órgãos ... ficou sobre aparelhos, mas não estava em UTI, não estava tendo assistência médica ... E3

...a gente decidiu não doar os órgãos... por falta de atendimento,... falta de socorro... E9

Estes relatos evidenciam, claramente, as lacunas presentes na execução do modelo de atenção e gestão dos serviços. O usuário não tem acesso a um atendimento acolhedor, o que se traduz em descontentamento com a assistência recebida.

Pela escassez de informações sobre as condutas e prognóstico do doente, ficou claro para a família a mecanicidade das ações dos profissionais de saúde, aparentando, apenas, o interesse destes na doação de órgãos.

...não teve aquela assistência (ênfase) ... faltou ... empenho pra tentar salvá-lo ... aí depois que disseram que era morte encefálica, num instante souberam ... chamar a família, ... para fazer doação... E8

A forma como o processo de doação de órgãos para transplantes foi conduzido levantou dúvidas sobre a veracidade e credibilidade do Sistema de Transplantes para estas famílias. Elas temiam que o interesse médico fosse escuso, não voltado ao bem-estar do paciente. O imaginário cultural do tráfico de órgãos veio à tona, ocorrendo perda de confiança no processo, como destacado a seguir:

...e outra coisa a desconfiança que existia ... dessas vendas de órgãos... As pessoas... não têm a certeza se aqueles órgãos vão exatamente pra aquela pessoa ... E2

...só chegavam pra perguntar se queria doar, direto... aí o outro médico disse... eles vendem o órgão ... endoidei... E4

O corpo é inviolável

Este tema foi desvelado nas falas dos participantes como uma ponderação expressiva para as famílias que não consentiram a doação. Para três famílias foi evidente como principal motivo e, em outras duas famílias, mesmo não sendo o fator fundamental, foi considerado antes da tomada de decisão. A negativa esteve associada à importância da manutenção da integridade do corpo, reforçando o culto ao corpo presente na sociedade, como expresso nos trechos das falas abaixo:

...pensaram que talvez ele fosse ficar deformado .... E2

... ele disse que não queria que doasse, então, não vai doar, ... ele dizia que se ele veio todinho, ele tinha que ir todinho, não era pra doar nada, não. E6

Colaborando com o aspecto da manutenção da integridade do corpo para o não consentimento da doação de órgãos, está a associação entre o despreparo das pessoas para o enfrentamento das situações de perda, a religiosidade e a cultura individual, bem como o imaginário da mutilação do corpo. Podemos observar nas falas descritas a seguir:

... acho que eles não têm assim a cultura, ...meu sogro e minha sogra eles são semianalfabetos ... pra ele iria abrir ela todinha, já começar a tirar tudo, ia tirar olho .... E7

A gente estava decidindo (pela doação), mas uma tia da gente não quis ... Porque ela é crente (religião protestante), ... disse do jeito que ela veio, ela vai... E5

Crença na possibilidade de retorno à vida – coração como sede da vida e fé reforçando a esperança

Este tema emergiu de relatos dos participantes por não compreenderem adequadamente a morte encefálica, não a considerando como morte de fato. Esta compreensão gerou esperança de vida e impedia, consequentemente, a doação de órgãos, como observamos nas seguintes falas:

...os familiares ...e outras pessoas, por achar que o coração dele ainda estava funcionando,... a gente não queria aceitar ... por isso que a gente não abriu mão de doação de órgãos.E3

...particularmente ... minha sogra ...ela não tinha entendido "... está tão boazinha ... respirando, ... com o coração batendo ... minha filha está normal"... pra ela... se fosse tirar os órgãos era como se a gente... fosse matar...E7

...tinha esperança dele viver ... quando o coração tá batendo, a gente sabe que tem vida ali, né? ... E8

Para estes familiares, entender e representar a morte, diante de um corpo quente, com coração batendo, que se movimenta, aparentando respirar conectado a um aparelho, distoa do conceito de morte que lhes é familiar. Concordar com a doação neste contexto significaria, portanto, disponibilizar os órgãos do parente ainda vivo.

As falas demonstraram, ainda, insegurança em todo o processo de condução da doação de órgãos, uma vez que os profissionais de saúde que deveriam estar aptos a dirimir as dúvidas e demonstrar segurança quanto à situação suscitaram esperança pelas suas colocações dúbias, evocando Deus como esperança:

...o médico disse, ele foi muito sincero, que só Deus ... que a possibilidade que ele tinha de viver era pouca. E3

...quando a gente foi saber o resultado, ele (médico) já disse só Deus ... E8

Mais uma vez, a religiosidade esteve associada ao processo decisório da família, voltado, neste caso, à crença da reversibilidade da situação de morte, amparada pela fé, como se observa nos relatos abaixo:

A doutora chegou pra mim e disse, mãe ... você não quer doar os órgãos do seu filho, não? (voz embargada pelo choro) Jamais, ... porque eu creio que Deus ainda pode fazer um milagre na vida do meu filho. E1

...reuniu, chamou os pastores...orou... o corpo... começou a esquentar... Eu acreditei que ela tinha esperança de voltar ainda, ... decidi não doar nada...E4

DISCUSSÃO

O núcleo central das representações sociais da doação de órgãos para os sujeitos pesquisados esteve fundamentado, portanto, em três pontos: contexto do atendimento e do acolhimento hospitalar recebido; na cultura da integridade do corpo; e nas crenças em relação à vida e a morte, questões essas ligadas ao conhecimento do grupo.

Os elementos periféricos que sustentaram as representações sociais foram: desconhecimento do sistema de transplantes e desenrolar do processo de doação; conflito de interesses e falha na comunicação entre profissionais de saúde e família; mito do tráfico de órgãos; a religiosidade; a cultura; e o respeito à vontade do parente falecido.

Os nossos achados confirmaram o que tem sido descrito em outros trabalhos com famílias que não consentiram a doação dos órgãos de seus familiares (1,8). Apresentaram, no entanto, em uma perspectiva qualitativa as realidades vivenciadas por essas famílias.

Nos temas que nortearam este estudo, observamos que o tipo de assistência prestada pelos serviços de saúde aos pacientes e a seus familiares foi fundamental para a recusa da doação. A constituição brasileira garante a todos os cidadãos o direito à saúde prestada pelo Estado, de forma gratuita, sem discriminação de qualquer tipo.

No entanto, as vivências relatadas pelos familiares não corresponderam à necessidade do usuário de uma assistência de qualidade, entendida esta como acolhedora e eficaz na comunicação de más noticias por parte dos profissionais de saúde.

Neste contexto, ainda existe forte influência do modelo biomédico, com superlotação dos hospitais, prestação dos serviços de forma insatisfatória, consequente desgaste dos trabalhadores de saúde e desconforto para a população. Situação que favorece o enfraquecimento da relação médico-paciente e diminui a confiança na prática médica (13,14).

Os relatos dos entrevistados mostraram que a relação profissional de saúde, paciente e família interferiu no processo de doação de órgãos. As famílias, percebendo a mecanicidade, o distanciamento da equipe, a sensação de falta de empenho, falta de acolhimento e de esclarecimento, prontamente responderam com a negativa à doação de órgãos por não conseguirem dissociar sua decisão do atendimento recebido.

A forma como o conhecimento sobre a doação de órgãos foi construído pela sociedade, também é fundamental para determinar como a mesma a representa. As primeiras experiências com transplantes ocorreram no final da década de 1960, no campo de conhecimento médico e foram amplamente divulgadas pela mídia. Todo conhecimento foi fundamentado na mecanicidade da substituição das partes do corpo. Somente a partir da década de 1980, passou-se a valorizar o doador e a sua família como fundamentais no processo (4).

Os meios de comunicação de massa têm um grande poder disseminador do conhecimento científico para o público, funcionando como um mediador entre o conhecimento científico e a sociedade. Frequentemente, a mídia é responsável por comunicar novas informações aos indivíduos, definindo assim os focos dos processos discursivos na sociedade (15).

Diante deste aspecto de difusão pelos meios de comunicação social, é fácil compreender a representação da inviolabilidade do corpo expressa pelos participantes, especialmente, ancorado em uma sociedade que cultua o corpo. O corpo é o meio concreto de comunicação social: representa a individualidade, a expressão inerente de estar no mundo; é como um registro da história de cada um (16).

Com o advento dos transplantes, a forma como a vida e o corpo são concebidos foi modificada. A morte passou a representar a possibilidade por meio da doação, de salvar a vida ou melhorar a sobrevida de doentes com falências crônicas, representando assim um novo paradigma sobre o valor do corpo após a morte (17).

Um estudo (18) realizado no Reino Unido com 26 famílias que recusaram a doação de órgãos de seus parentes verificou que 15 delas alegaram como fator principal, a proteção do corpo morto, para o não consentimento, o que corrobora os resultados deste estudo. As preocupações eram referentes à violação e à profanação do corpo, ao medo da destruição da imagem estética, de ficar com a lembrança da imagem do parente cortado, ao medo da remoção ser desnecessária e, por fim, à sensação de maior sofrimento do parente (18).

As crenças religiosas também podem desempenhar papel importante para a sociedade na sua decisão sobre a doação de órgãos. Historicamente, muitas religiões foram resistentes à ideia da doação de órgãos. Os judeus, por exemplo, acreditavam que a utilização do corpo do falecido era semelhante a adulterar a imagem de Deus. Já os católicos tinham a visão da mutilação do corpo, e os protestantes acreditavam na necessidade do corpo estar intacto para o sucesso da ressurreição (19).

Hoje, estas visões, não são as mesmas amparadas pelos valores de altruísmo que todas as religiões possuem, e pela reconstrução da representação, uma vez que as representações sociais são históricas em sua essência e influenciam o desenvolvimento do pensamento do indivíduo ao longo dos conceitos e imagens conhecidos (7).

Fator adicional é que a decisão sobre a doação de órgãos acontece no momento de morte, no auge do luto.

Historicamente, o conceito de morte passou por várias transformações, sendo inicialmente considerada como último sopro de vida e, no século XVIII, sua ocorrência confirmava-se com o estado de putrefação dos corpos. Com o conhecimento da circulação sanguínea, a morte passou a ser definida pela ausência dos batimentos cardíacos, cessação da circulação e da respiração (20,21).

Especialmente para o senso comum, o entendimento da morte configurava-se como a interrupção dos batimentos cardíacos. Com a perspectiva dos transplantes de órgãos e tecidos, portanto, com a retirada do coração ainda em contração, rompeu-se uma barreira conceitual de entendimento do fim da vida e surgiu uma nova abordagem para a morte: a morte encefálica como critério de fim de vida e possibilidade de disponibilização de órgãos e tecidos para transplantes (21).

A particularidade do diagnóstico da morte encefálica que determina o óbito ainda com o coração batendo, sem as evidências clássicas e mais conhecidas da morte – um corpo frio e pálido – remete a novas incertezas e desconfianças na prática médica, na ciência e nos detentores destas atividades. Para a família, é difícil racionalmente considerar morto o corpo mantido artificialmente em unidade de terapia intensiva (UTI) (22).

Um dificultador desta questão é o próprio conhecimento dos profissionais de saúde a respeito do diagnóstico de morte encefálica. Em estudo realizado no Rio Grande do Sul (23) com 246 médicos intensivistas, foi observado que 17% desconheciam o conceito de morte encefálica, fato que pode levar à ocupação desnecessária dos insuficientes leitos de UTI do País, escassez essa mencionada pelas famílias entrevistadas em nosso estudo.

A decisão da família diante da morte encefálica de um parente é complexa, uma vez que ela deve pronunciar-se sobre um assunto o qual o parente falecido talvez nunca tenha mencionado ou que talvez nunca tenha sido abordado no círculo das relações familiares e sobre o qual seus membros podem ter opiniões diversas; e, finalmente, em um momento em que o luto está no início (24).

Os profissionais de saúde devem ajudar as famílias a aceitarem e compreenderem a morte como um processo único, seja ela encefálica, seja ela por assistolia. Neste momento, o que a família precisa é de acolhimento, escuta e atenção dos profissionais (25).

Observamos também que entre os participantes do estudo apenas um tomou a decisão sozinho, pois o potencial doador já havia expressado seu desejo em vida, os demais participantes levaram a questão para ser discutida com o grupo familiar, e a decisão final não necessariamente correspondia à vontade do responsável legal. Nossa inferência neste aspecto é que, pela complexidade da decisão, o familiar não consegue ou não quer assumir sozinho a responsabilidade pela discordância e suas possíveis repercussões na futura relação familiar e social.

Ressalte-se, como possível limitação metodológica, a possibilidade de ter ocorrido lapsos de memória por influência do momento do luto, ocasionando esquecimento de algum fato relevante para tomada da decisão a respeito da doação de órgãos do parente.

Temos clareza da necessidade de investigações sobre este tema, principalmente, em outros contextos culturais, sociais e econômicos, que possibilitarão o surgimento de outros aspectos de análise. As representações sociais são dinâmicas, portanto, outros achados eventualmente surgirão a partir da reconstrução social sobre o tema morte e doação de órgãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações sociais que nortearam a decisão familiar de recusar a doação de órgãos estiveram amparadas na representação da assistência prestada ao seu familiar, na cultura da manutenção da integridade do corpo após a morte, além da não compreensão da morte encefálica como morte de fato.

As ações do entorno social que influenciaram a recusa estiveram atreladas às opiniões contrárias de familiares, a religiosidade e ao despreparo dos profissionais de saúde no processo de doação.

Sugerimos que mais campanhas educativas sejam veiculadas pelos órgãos de controle, no entanto, que seu teor seja voltado a dirimir as dúvidas da sociedade concernentes à definição e à confiabilidade do diagnóstico de morte encefálica e do funcionamento do sistema de alocação de órgãos. Além de criação, em todos os serviços que recebem pacientes graves, com perspectiva de evolução para morte encefálica, de um trabalho de educação permanente com os profissionais de saúde voltado à adequada entrevista familiar, ao acolhimento e ao esclarecimento do processo de doação e transplantes.

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  • *
    Gerlene Grudka LiraI; Cleide Maria PontesII; Janine SchirmerIII; Luciane Soares de LimaIV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2012
    • Aceito
      03 Set 2012
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