Acessibilidade / Reportar erro

Prazeres falsos, boas amizades

False Pleasures, Good Friendships

Resumo:

Neste artigo, pretendemos explorar a análise de Aristóteles sobre a amizade, examinando os três objetos de amizade - a virtude, a utilidade e o prazer. Explicaremos também por que razão estes três objetos da amizade colocam um desafio à definição da amizade como uma entidade comum e singular, a saber, como uma benevolência recíproca e consciente dotada de efeitos práticos. Mostra-se que os objetos da amizade são parte integrante do tipo de relação pessoal que a amizade constitui, tornando impossível uma definição comum.

Palavras-chave:
Amizade; Virtude; Utilidade; Prazer; Ética

Abstract:

In this paper, we aim to explore Aristotle’s analysis of friendship by examining its three objects of friendship - virtue, utility, and pleasure. We will also explain why these three objects of friendship pose a challenge to defining friendship as a common and singular entity, namely, as a reciprocal and conscious benevolence that has practical effects. It is shown that the objects of friendship are part and parcel of the kind of personal relationship friendship is, making it impossible to provide a common definition.

Keywords:
Friendship; Virtue; Utility; Pleasure; Ethics

Introdução

Pretendo abordar, neste texto, um enigma da filosofia aristotélica que, nascido no campo ético, tem ramificações decisivas para a história da metafísica.1 1 Este texto originou-se de uma conferência proferida como Aula Magna para o curso de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília em 05 de Março de 2023, de modo presencial, após o arrefecimento da pandemia de Covid 19. Agradeço a Gabriele Cornelli e Eduardo Wolf pelo convite, bem como à audiência, que proporcionou um animado debate. Posteriormente, em Junho do mesmo ano, desenvolvi o mesmo tema na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, aproveitando-me das discussões ocorridas em Brasília. O tom propositalmente misterioso do título visa a dar pistas sobre como penso que tal enigma deva ser solucionado. O enigma é o tratamento que Aristóteles dá à noção de amizade. O Estagirita consistentemente sustenta, nas suas obras éticas, que há três tipos de amizade, os quais são todos legitimamente ditos amizade sem se reduzirem a um dentre eles nem funcionarem como três espécies de um gênero comum.2 2 A tese dos três tipos distintos de amizade, todos legitimamente assim chamados, é comum aos três textos de ética que nos foram transmitidos: Magna Moralia, Ética Eudêmia e Ética Nicomaqueia. Os três tradados diferem, porém, no modo como propõem unificar estes tipos em uma unidade conceitual que foge ao controle do gênero e, consequentemente, não pode ser expressa por meio de universais. Aqui, vou deixar de lado a análise da MM, concentrando-me na EE e na EN. Um dos mecanismos que Aristóteles concebeu para viabilizar a unidade da amizade, em que cada tipo é um gênero próprio, foi, na Ética Eudêmia, a noção de πρὸς ἓν λέγεσθαι, “ser dito em relação a um item único”. Tal noção não vai prosperar na amizade aristotélica das amizades, porém, e um claro sinal de seu fracasso no campo ético é o abandono que sofre no tratamento nicomaqueio dos diferentes tipos de amizade. No entanto, a noção de πρὸς ἓν λέγεσθαι vai ser aplicada com extrema fecundidade no domínio metafísico, pois é graças a ela que Aristóteles pode constituir uma ciência de tudo que é fora do diapasão platônico dos graus de ser. No presente ensaio, tratarei exclusivamente do problema da amizade, deixando de lado a questão, fascinante, da gênese da metafísica aristotélica por meio de uma noção que se revela, ao final, inadequada ao domínio moral em que foi gerada.

- I -

Nos dois principais tratados éticos de Aristóteles sobre o tema (EE VIII; EN VIII-IX), a amizade é tratada do seguinte modo, desconsiderando diferenças menores de análise3 3 Para uma análise que leva em conta estas diferenças, tomo a liberdade de remeter ao meu texto Zingano (2015). : toda amizade é uma relação de benevolência prática consciente e recíproca. Estes são os traços comuns que toda relação de amizade deve satisfazer. Reciprocidade na amizade (ἀντιφίλησις) é um de seus traços definicionais. Igualmente, ser consciente de estar em uma relação de amizade é outro traço definicional da amizade. A EE é bem clara a este respeito:

Então, há amigo quando, estando em relação de amizade, é tratado reciprocamente, e eles são consciente de algum modo disto. (EE VII 2 1236a14-15: φίλος δὴ γίνεται ὅταν φιλούμενος ἀντιφιλῇ, καὶ τοῦτο μὴ λανθάνῃ πως αὐτούς.)

A EN vai na mesma direção:

Em cada caso de amizade há afeição recíproca e consciente. (EN VIII 3 1156a8-9: καθ’ ἕκαστον γάρ ἐστιν ἀντιφίλησις οὐ λανθάνουσα.)

O terceiro traço que mencionei é o da benevolência, εὔνοια. Em ambas as Éticas, é assinalado que não basta que o amigo seja benevolente, mas é preciso que a benevolência seja prática, isto é, ela deve realizar-se em atos e ser efetiva no mundo da amizade. A respeito da benevolência, porém, há uma certa discrepância entre a EE e a EN, pois a primeira parece reservar este traço unicamente à amizade baseada na virtude, ao passo que a segunda o generaliza para os três tipos de amizade. Esta discrepância se explica em função de outras diferenças entre as duas éticas, a principal das quais sendo a seguinte: na EE a amizade pela virtude é imediatamente alçada a primeira amizade, e este privilégio parece lhe advir pelo fato mesmo de ser ela a amizade que distribui benevolência em contraste com os outros dois tipos. Não vou me interessar por este detalhe, sobretudo porque, no argumento eudêmio, a benevolência se espraia aos outros dois tipos na medida em que a amizade por virtude é hierarquicamente fundante e primeira. Na EN, a benevolência não é mais uma característica peculiar a um tipo, mas desde o início pertence a todos eles. Mais ainda, a EN ressalta que a benevolência prática se realiza com vistas ao amigo. A insistência é clara: é-se benevolente ao modo prático com vistas ao amigo (φίλου ἕνεκα: EN IX 8 1168a34), com vistas a ele (ἐκείνου ἕνεκα: EN VIII 2 1155b31; 9 1159a10; IX 4 1166a4; 8 1168b3), com vistas a eles (ἐκείνων ἕνεκα: EN VIII 4 1156b10; 7 1157b32), com vistas aos amigos (τῶν φίλων ἕνεκα: EN IX 8 1169a18-19). Logo no início do tratado nicomaqueio, é dito que desejar bens com vistas ao amigo é uma opinião comum (EN VIII 2 1155b31), e esta opinião é ratificada mais adiante a título de uma importante tese filosófica com a qual todos concordam (EN VIII 9 1159a9-10). Para arrematar: “sobretudo, é amigo quem deseja os bens que deseja a alguém com vistas a esta pessoa” (EN IX 8 1168b2-3: φίλος δὲ μάλιστα ὁ βουλόμενος ᾧ βούλεται τἀγαθὰ ἐκείνου ἕνεκα).

Com base nesta fórmula - amizade é a relação consciente e recíproca de benevolência prática feita com vistas ao amigo -, podemos já distinguir a amizade de outras relações que lhe são aparentadas, mas não são casos de amizade. O amor, por exemplo, não requer reciprocidade - é melhor se recíproco, mas quantos pais não amaram seus filhos sem a devida reciprocidade? O amor também pode não ser consciente, como quando nutrimos por alguém um sentimento que, por alguma razão, permanece obscuro a nós mesmos (no teatro clássico, Antígone de Sófocles é provavelmente concebida como não estando inteiramente consciente do amor que devota a Polinice e no qual repete o destino incestuoso dos Labdácidas). Pode-se também ter benevolência em relação a alguém sem jamais passar a atos que efetivem tal sentimento, muito humano, por sinal, mas que não é propriamente amizade, pois carece da efetividade requerida pela última. O ponto que quero examinar é o seguinte. Por que Aristóteles não considera esta fórmula (para repetir: amizade é a relação consciente e recíproca de benevolência prática feita com vistas ao amigo) uma definição adequada da amizade, que depois seria distinguida em três espécies em função dos objetos gerais de amizade (os propalados φιλητά, a saber: a virtude, o prazer e a utilidade)? Ao invés disso, Aristóteles sempre considera, em todos os seus tratados de filosofia moral, que não há um gênero único de amizade do qual estes três tipos seriam as espécies, nem há um só que é verdadeiramente amizade em relação ao qual os outros seriam meras reivindicações falsas de amizade, mas sim que os tipos em pauta constituem três gêneros genuínos de amizade, irredutíveis uns aos outros ou a algo exterior a eles, todos, porém, sendo legitimamente chamados de amizade.

Os três tipos a que estou sempre fazendo referência são a amizade com base na virtude, a amizade pelo prazer e a amizade fundada na utilidade. Virtude, prazer e utilidade são os objetos de amizade (τὰ φιλητά) em que se fundam os três tipos de amizade. E três são também as observações preliminares que se impõem para que possamos resolver este problema, que é mais afeito à lógica das definições do que a questões propriamente morais sobre a amizade enquanto cimento de nossas relações privadas de intimidade. A primeira observação é a seguinte. É costumeiro encontrar entre os comentadores de Aristóteles afirmações segundo as quais há uma e somente uma amizade verdadeira (a amizade que repousa na virtude), as outras duas (a amizade com base no prazer e a fundada na utilidade) sendo aproximações a ela ou, melhor, versões falhas dela. A título de ilustração, cito dois comentadores. O primeiro é Harold Joachim, que deu cursos sobre a ética aristotélica em Oxford de 1902 a 1917, compilados posteriormente por David Rees:

Of these types, one alone, ‘friendship for the sake of virtue’ (ἡ διὰ τὴν ἀρετὴν φιλία), fully realizes the conception of human friendship. The other two exhibit different degrees of approximation to the ideal (1156a10-1158b11) (Joachim, 1951JOACHIM, H. (1951). Aristotle - The Nicomachean Ethics. Oxford, Oxford University Press ., p. 243).

O segundo é Howard Curzer, que radicaliza a posição contra a qual justamente quero argumentar:

On my interpretation, pleasure and utility friendships do not meet Aristotle’s definition of friendship, so they are not friendships. They resemble friendships in certain ways, but Aristotle is speaking loosely when he calls them friendships (Curzer, 2012CURZER, H. (2012). Aristotle and the Virtues. Oxford, Oxford University Press., p. 265).

Há uma questão de interpretação do aristotelismo em geral que explica em parte a posição de Joachim. É somente no início dos anos 60 que uma compreensão mais acurada dos modos de unidade não-genérica, a começar pela unidade focal, vai permitir uma melhor leitura desta e de outras passagens em que unidades conceituais bem formadas são aceitas a despeito de não possuírem a universalidade do gênero. A outra parte que explica a posição de Joachim é um problema textual. Na EN, ao examinar as amizades por prazer e utilidade, Aristóteles observa que são relações de intimidade estabelecidas em função destes aspectos e não pelos amigos em si. Daqui ele conclui:

Assim, estas amizades são κατὰ συμβεβηκός. Elas não ocorrem em função de buscarem a amizade em função de o sujeito amigo ser quem ele é, mas em função de prodigalizarem uns um dado bem; outros, o prazer. (EE VIII 3 1156a16-19: κατὰ συμβεβηκός τε δὴ αἱ φιλίαι αὗταί εἰσιν· οὐ γὰρ ᾗ ἐστὶν ὅσπερ ἐστὶν ὁ φιλούμενος, ταύτῃ φιλεῖται, ἀλλ’ ᾗ πορίζουσιν οἳ μὲν ἀγαθόν τι οἳ δ’ ἡδονήν).

O dado bem que uns prodigalizam são as coisas úteis em torno das quais se sedimenta a amizade pela utilidade. Deixei propositalmente sem tradução a expressão em disputa: κατὰ συμβεβηκός. Se for traduzida como o é tradicionalmente em outros contextos, “por acidente”, muita água corre para o moinho de Joachim. Mas o que se opõe aqui a κατὰ συμβεβηκός não é o tradicional καθ’ αὑτό, “em si”, mas algo diferente: o amigo naquilo que ele é, ter um amigo pelo tipo de pessoa que ele é, ἐστὶν ὅσπερ ἐστὶν ὁ φιλούμενος. Isto pode ser considerado um indício pequeno, mas já é sinal de que devemos resistir à tentação de traduzir κατὰ συμβεβηκός automaticamente por “por acidente”.

A segunda passagem parece levar ainda mais água para o moinho de Joachim. Ao comentar, novamente na EN, que as pessoas de comportamento moral reprovável só conseguem ter amigos com base no prazer ou na utilidade, ao passo que os agentes virtuosos podem estabelecer, além destas, as amizades fundadas na virtude, Aristóteles conclui o ponto escrevendo o seguinte:

Resumindo, estes [scl. os agentes virtuosos] são amigos sem carecer de caracterização; aqueles [scl. os do prazer e utilidade] são amigos κατὰ συμβεβηκός e são amigos por se assemelharem aos primeiros (EN VIII 6 1157b4-5: οὗτοι μὲν οὖν ἁπλῶς φίλοι, ἐκεῖνοι δὲ κατὰ συμβεβηκός καὶ τῷ ὡμοιῶσθαι τούτοις).

Não está escrito, mas parece subentendido: os últimos meramente se assemelham aos primeiros, não são realmente amigos. Se se tomar o καί como expletivo, pode-se mesmo ler: são amigos κατὰ συμβεβηκός porque se assemelham somente a eles. Donde: não são verdadeiramente amigos, qed. Porém, tudo depende do valor que devemos atribuir a κατὰ συμβεβηκός. Em um artigo divisor de águas, John Cooper (1977, p. 619-648) argumentou, a meu ver de modo definitivo, que a oposição aqui se faz em torno de ser amigo pela integralidade da pessoa, em função do seu caráter moral virtuoso (no caso da amizade por virtude) e ser amigo de alguém em função de um aspecto da personalidade do amigo - pelo prazer ou pela utilidade gerada na relação. Ser amigo κατὰ συμβεβηκός quer dizer estabelecer uma relação de amizade em torno de um aspecto ou faceta das pessoas envolvidas (a saber, o prazer ou a utilidade que geram). Do outro lado está a amizade fundada na virtude, em que os amigos não convivem em função de um aspecto ou faceta de suas personalidades, mas em função da integralidade de seus caracteres. É-se amigo de tal pessoa, nada mais necessitando ser acrescentado; ou se é amigo de tal pessoa na perspectiva do prazer ou da utilidade que se gera em tal relação.

O que me leva à segunda observação preliminar. Há casos ilegítimos que unicamente querem se passar por amizade, mas de fato não o são. Trata-se de todas as relações em que alguém não busca produzir o objeto da amizade φίλου ἕνεκα, “com vistas ao amigo”, mas para seu benefício próprio. São os casos de bajulação, por exemplo. Assim que uma relação de amizade de fato é buscada para benefício próprio, ela deixa de ser amizade e passa a fazer parte deste mundo de tantos outros embustes que permeiam as relações humanas. Tal situação ocorre com mais frequência nas amizades fundadas no prazer e na utilidade, que podem sempre deslizar em direção a figuras menos exultantes da natureza humana. A amizade virtuosa está mais resguardada, mas não inteiramente imune a este fracasso. Também ela pode deslizar para as entranhas do egoísmo. Deve-se assinalar, em contraponto, que as amizades fundadas na utilidade ou no prazer, enquanto amizades, são relações organizadas em beneficiar o amigo, elas se estabelecem φίλου ἕνεκα. Neste sentido, toda amizade tem o traço do altruísmo, pois ela se faz sempre com vistas a outrem.4 4 O tema do altruísmo em relação à amizade foi particularmente desenvolvido por Terence Irwin; ver, em especial, Irwin (1985, 115-143) e Irwin (2007, 114-232). Ocorre, porém, que este outro é, na amizade aristotélica, um outro eu, de modo que a abertura à alteridade a título de outro eu restringe o altruísmo que aí se desenvolve a uma forma de ipseidade renovada no espelho do outro. A despeito desta limitação, a amizade é um evento de altruísmo, por limitado que seja, pois é sempre φίλου ἕνεκα, com vistas ao amigo, e por este traço se distingue de uma enormidade de embustes presentes nas relações humanas.5 5 Curzer (2012, 262-267) assimila a oposição entre amizade segundo a integralidade da pessoa e amizade com base em um aspecto do amigo a esta oposição entre amizade necessariamente altruísta e outras relações fundadas no benefício próprio, o que explica sua interpretação segundo a qual somente a amizade virtuosa é verdadeiramente amizade, pois os outros dois tipos de amizade, segundo ele, seriam em benefício próprio, o que então os desqualificaria como casos genuínos de amizade. Não há base textual, porém, para tal assimilação.

Minha terceira e última observação diz respeito ao número de tipos de amizade. Aristóteles consistentemente mantém que há três tipos: a amizade virtuosa, a baseada no prazer e a fundada na utilidade. Poderia haver mais, ou menos? Aristóteles considera que não, mas este é um argumento de natureza empírica: observamos que as relações de amizade se estabelecem em torno destes três e somente três objetos, aos quais se reduzem os mais variados modos de amizade (as pessoas que se frequentam para apreciar o pôr-do-sol, beber tequila ou jogar tênis, por exemplo, caem sob a rubrica de amizade pelo prazer), mas eles próprios são irredutíveis uns aos outros. Esta é a tese importante a reter: os objetos finais de amizade são irredutíveis uns aos outros, qualquer que seja o seu número. Virtude, prazer e utilidade permanecem distintos enquanto objetos em torno dos quais se organizam todas as nossas relações de amizade.

- II -

Feitas estas três observações, voltemos ao problema: por que são três tipos ou gêneros de amizade e não espécies de um mesmo gênero? Afinal, poderíamos sustentar que o traço comum é serem relações de benevolência prática consciente e recíproca feita com vistas ao amigo, a diferença específica sendo dada pelos três objetos de amizade: virtude, prazer e utilidade. É importante notar que Aristóteles está perfeitamente consciente de que este problema é mais afeito à lógica das definições do que a uma análise moral de nossas relações de intimidade. O ponto está ressaltado no início do tratado eudêmio da amizade:

A propósito da amizade, o que é e qual é sua natureza, isto é, quem é o amigo, bem como se a amizade é dita de um único modo ou de muitos modos, e, se for dita de muitos modos, quantos são; ademais, como se deve tratar um amigo e o que é o justo na amizade devem ser investigados não menos do que as coisas belas e dignas de busca relativas aos caracteres. (EE VII 1 1234b18-22: περὶ φιλίας, τί ἐστι καὶ ποῖόν τι, καὶ τίς ὁ φίλος, καὶ πότερον ἡ φιλία μοναχῶς λέγεται ἢ πλεοναχῶς, καὶ εἰ πλεοναχῶς, πόσα ἐστίν, ἔτι δὲ πῶς χρηστέον τῷ φίλῳ καὶ τί τὸ δίκαιον τὸ φιλικόν, ἐπισκεπτέον οὐθενὸς ἧττον τῶν περὶ τὰ ἤθη καλῶν καὶ αἱρετῶν).

É dito aqui que cabe à filosofia moral investigar a natureza da amizade, assim como estuda os caracteres morais (o que foi feito, na EE, do livro I ao VI). O ponto importante a ressaltar é que, na EE, se trata de investigar a natureza da amizade como fenômeno moral bem como o modo como é dita: de um ou de muitos modos; se de muitos, como de fato o é, em quantos modos. Este segundo problema é o que nos interessa em particular e está claramente assinalado como um problema distinto, relativo ao modo de significação da noção de amizade. Na introdução ao tratado nicomaqueio da amizade (EN VIII 1 1155a3-31), são unicamente listados como objeto de investigação os problemas da amizade enquanto fenômeno moral, nenhuma menção sendo feita ao problema lógico relativo aos seus modos de significação. Porém, o problema está claramente singularizado no tratado eudêmio.6 6 Quais conclusões tirar desta diferença entre os dois tratados é um assunto sobre o qual não discorrerei aqui. Poder-se-ia pensar que é sinal de a EE ser um tratado dirigido a filósofos, ao passo que a EN estaria destinada a um público mais vasto. Porém, pode-se igualmente ver aqui que a tentativa de aplicar o padrão da significação focal, ao ser abandonado na EN, torna menos premente a elucidação deste problema lógico, cuja solução (por meio da noção de semelhança, na EN) é dada ao longo do tratado, sem destacar este tipo de análise, dando possivelmente como conhecido o que tinha sido exposto na EE. Nesta segunda interpretação, a EN seria uma versão posterior, redigida com a ambição de corrigir certos pontos defendidos na EE. É este problema que queremos examinar sob o viés da questão relativa às razões da insuficiência, aos olhos de Aristóteles, da caracterização comum aos três tipos de amizade como uma definição adequada e única da amizade.

O quão confusa pode ser a análise do fenômeno moral da amizade é testemunhado de modo exemplar pelo Lísis, um diálogo platônico que causa em todo leitor minimamente atento uma “honesta perplexidade” (Roth, 1995ROTH, M. (1995). Did Plato nod? Some conjectures on Egoism and Friendship in the Lysis. Archiv für Geschichte der Philosophie 77, n. 1, p. 1-20., p. 2).7 7 Sobre este diálogo, ver agora a nova tradução comentada por Rowe & Penner (2005). A resposta que procuro, porém, está em outro diálogo, o Filebo. Este último é um diálogo da fase tardia particularmente complexo que visa a mostrar que a vida mista, em que há prazer e conhecimento, é superior à vida em que há somente um ou outro destes dois ingredientes. O Filebo é o palco do embate memorável entre Sócrates, que incialmente defendera a tese do conhecimento como a vida melhor contra Filebo, defensor intransigente do hedonismo, mas que é substituído no início do diálogo por Protarco, que se mostra menos radical na defesa do hedonismo e mais aberto às teses socráticas. Há vários pontos discutidos no Filebo. Há, por exemplo, a discussão a propósito da divisão entre prazer puro e impuro e o quanto isto afeta uma definição única do prazer. Ou, ainda, é desenvolvida no Filebo a prova de que todo prazer é anímico, isto é, são sempre eventos mentais e não corpóreos, embora possam ter origem ou termo em alterações corpóreas. Sua natureza anímica faz com que tenha uma relação intrínseca com a memória, o que é explorado do modo como unicamente Platão é capaz de fazer. Muitos pontos do Filebo são controversos, inclusive a própria estrutura do diálogo, havendo pouco consenso a seu respeito entre os comentadores modernos.

O que me interessa neste diálogo é ver como Platão faz Sócrates sustentar que há prazeres falsos. Esta tese, desdobrada em quinze páginas Didot (de 36c3 a 50d6), é particularmente controversa, não somente entre os comentadores modernos, mas no próprio diálogo. Protarco dissente, pois não aceita que haja prazeres falsos, mas somente que as crenças conectadas aos prazeres podem mostrar-se falsas, nunca os próprios prazeres. A despeito de Protarco recusar e nunca assentir a esta tese, Sócrates compromete-se com ela, pois é peça fundamental em sua argumentação. Vejamos como procede. O primeiro exemplo de prazer falso está ligado ao comprazimento que temos da antecipação de um prazer que, ao final, não se realiza. É o caso corriqueiro de quem passa a semana inteira se comprazendo com a expectativa de ganho em uma loteria somente para descobrir, no sábado, que errou todos os números. O sujeito teve prazer ao longo da semana, o qual desaparece no sábado, mas seu prazer antecipado foi real - aos olhos de Protarco - unicamente sendo falsa a crença que tinha de que desta vez acertaria os números.8 8 Dorothea Frede (1985, 151-180) explora muito bem este caso de expectativa com um prazer antecipado seguido da frustração ao se constatar que o que era esperado não se realiza. Para o Sócrates de Platão, a falsidade que decorre da sua não-ocorrência torna o inteiro prazer falso. A tese parece abstrusa, e Protarco realça isso ao insistir que, apesar da não-ocorrência do evento, o sujeito teve um prazer real - no exemplo que forneci, teve prazer, e muito, ao longo da semana em função da expectativa de ganho. O segundo caso, porém, mostrará que não é bem assim. Suponha agora que o sujeito ganhe na loteria e saia de afogadilho a comprar cinco carros esportivos. Aqui está a falsidade: ao dar vazão consentida à realização de seus apetites, o sujeito concebe erradamente o que deve perseguir e o que deve evitar em sua vida. O ponto fica mais claro quando Sócrates examina outros prazeres, igualmente conectados com os apetites, em que o objeto ocorre no mesmo tempo que o comprazimento. Um deles é a malícia ou inveja, φθόνος (48b8), em que nos afligimos em relação a nós mesmos e, ao mesmo tempo, nos regozijamos do sofrimento das outras pessoas, não porque o mereceram, tampouco porque não o mereceram, mas simplesmente porque sofrem. Outra emoção deste tipo é o risível, τὸ γελοῖον, que Sócrates explora a partir de 48c4 sob a forma do que é contrário ao “conhece-te a ti mesmo” (48c10). Em um ataque sem concessão à comédia, Sócrates mostra que rimos do que sucede de mal aos que são fracos e incapazes de se defenderem, ao passo que tememos os que são fortes e podem revidar (49b6-c5). Triste figura, a do cômico.

O ridículo expõe o erro apetitivo de forma inapelável. Com efeito, o que este segundo caso evidencia, e que não tinha ficado explícito no primeiro caso, é que ceder aos apetites enquanto apetites é um prazer intrinsecamente falso porque coloca a alma em uma desarmonia psíquica na qual a parte racional se rebaixa e se avilta.9 9 Platão introduz a divisão da alma na República IV. A alma humana não é monolítica, mas tem três partes: a parte apetitiva, a parte irascível e a parte que possui razão. Aqui, importam sobretudo a parte apetitiva e a parte racional da alma, que estão em conflito, a parte irascível podendo ser deixada de lado para efeitos de nossa análise. Quando se está com fome é preciso alimentar-se e, assim, dar vazão a um apetite. Quando fazemos isto corretamente, nos alimentamos bem para ter saúde e deste modo prosperar como agentes morais. No entanto, quando buscamos o alimento pelo prazer de sua ingestão, aviltamos nossa alma e a colocamos em desarmonia. Os apetites perseguidos neste segundo modo são intrinsecamente falsos, pois satisfazem uma crença errada quanto ao que deve figurar como fim de nossas ações. Esta é uma tese metafísica de Platão a respeito de nossa natureza como agentes. Ela depende da tripartição platônica da alma e da posição natural superior da parte racional. E também é uma tese metafísica platônica que falsidade e maldade andam juntas, pois são facetas de uma mesma realidade. A razão vem em bloco para Platão: ter razão teórica implica conhecer o bem das coisas e ter razão prática implica conhecer a natureza das coisas. Os predicados falso e mau são assim intercambiáveis: os referidos prazeres são falsos e, por isso mesmo, maus, ou, inversamente, os referidos prazeres são maus e, por isso mesmo, falsos. Assim, ceder aos apetites enquanto apetites não é somente falso quando, uma vez antecipado o prazer em sua obtenção, ocorre que ele não se realiza. Isso é falso em um sentido superficial; em um sentido mais profundo, esta é a falsidade: mesmo quando ocorre o evento ele é falso, e sua falsidade acarreta sua maldade moral, pois a alma está inevitavelmente em desarmonia, e é porque está em desarmonia que o agente passa a agir mal e causar danos a outras pessoas.

São, pois, duas teses platônicas a respeito da natureza do prazer que estão em pauta aqui: (i) a intrínseca relação entre apetite e falsidade no interior da tripartição platônica da alma, assim como (ii) a mútua implicação entre falsidade e maldade na versão platônica da natureza monolítica da razão. Aristóteles, porém, não aceita nem uma nem outra destas duas teses; por que então fazer todo este desvio pelo Filebo? A resposta é que, como pano de fundo destas duas teses, Platão solicita uma compreensão do prazer segundo uma nova sintaxe, e Aristóteles aceita esta nova sintaxe proposta por Platão. Aquilo com que Platão argumenta é que o objeto de prazer (no caso, os bens materiais que figuram de modo proeminente nos apetites) contamina o próprio ato de ter prazer. Não é possível compreender o que é ter prazer sem levar em conta aquilo a respeito do qual temos prazer. A sintaxe do prazer é, pois: X tem prazer em Y, em que X é o sujeito do comprazimento e Y é o objeto que dá realidade (real ou virtual) a este comprazimento.10 10 Parte importante do comentário moderno, em particular em língua inglesa, girou em torno de saber se Platão admitia prazeres proposicionais, a saber, alguém tem prazer em p, em que p é uma proposição, por exemplo “tenho prazer em beber bebidas fortes”. O ponto, porém, se estou correto, não é esse, mas este: a sintaxe do prazer faz com que o objeto de comprazimento seja ele próprio constitutivo do ato de se comprazer. Se em X tem prazer em Y o que é indicado por Y é uma proposição ou não (por exemplo, tenho prazer em beber bebidas fortes ou tenho prazer com bebidas fortes) é secundário do ponto de vista da gramática filosófica (ainda que possa ser interessante e instrutivo do ponto de vista da gramática usual). O que é filosoficamente crucial é mostrar que o objeto de prazer contamina o próprio comprazimento, este último não podendo ser aquilatado independentemente do objeto em que se realiza, esteja o objeto presente ou seja meramente antecipado. Sobre prazeres proposicionais, ver Muniz (2014, 49-75) e a bibliografia ali referida. Contrariamente ao que advogava Protarco, não se tem prazer e depois, de modo independente, se considera se o objeto está realizado ou não. Ter prazer é comprazer-se em tal ou qual objeto. É isto que Aristóteles vê como altamente pertinente na análise platônica do prazer: ter prazer é constituído pelo próprio objeto em que se tem prazer, esteja ele presente ou seja ele antecipado. Prazer requer uma sintaxe com dois lugares: X tem prazer em Y.

Voltemos a Aristóteles e seus três objetos de amizade. A herança platônica se faz notar pelo fato de Aristóteles também exigir uma sintaxe alargada para a amizade. Não basta dizer que X é amigo de Y, é preciso ir mais longe e descrever assim a relação de amizade: X é amigo de Y em função de (A, B, C), em que A, B e C são os três objetos de amizade, τὰ φιλητά: virtude, prazer, utilidade. O objeto de amizade contamina a própria relação de amizade por ser constitutiva dela. Consequentemente, os objetos de amizade devem figurar na definição mesma de amizade. É amizade a relação de benevolência prática consciente e recíproca em relação a (A, B, C). Ora, como vimos, os φιλητά - virtude, prazer, utilidade - são irredutíveis uns aos outros, de modo que os três tipos de amizade constituem gêneros distintos, todos sendo, porém, tipos genuínos de amizade. A passagem pelo Filebo é necessária porque é precisamente neste diálogo que Platão demonstra que, em relação a certas atitudes que temos ou fenômenos com os quais nos envolvemos, os objetos a que se referem são eles próprios constitutivos destas atitudes ou fenômenos. Para Platão, ter prazer não pode ser pensado independentemente do objeto em que se tem prazer. Graças ao exame dos prazeres antecipados, podemos ver que pode haver certos objetos de prazer falsos, no sentido de não se realizarem, a despeito de nossas expectativas em contrário. Com base no exame dos apetites quando buscados por eles próprios, vemos que eles são intrinsecamente falsos porque provocam uma desarmonia na relação entre as partes da alma, já que a parte racional, que deveria governar, se vê subjugada à parte apetitiva. Se são intrinsecamente falsos, então são intrinsecamente maus, são doenças da alma que devemos controlar e curar. Aristóteles não adota a metafísica platônica dos prazeres, tampouco partilha de sua visão pessimista sobre a natureza doentia e perversa dos apetites. No entanto, ele retém a estrutura complexa dos prazeres - X tem prazer em Y - e a transpõe para sua análise da amizade: a descrição segundo a qual X é amigo de Y é uma versão elíptica de X é amigo de Y em função de (A, B, C).

Há diversas consequências da adoção de uma sintaxe complexa para a amizade, uma das quais é inusitada. A primeira e mais evidente consequência é que, haja vista a natureza irredutível dos objetos de amizade, Aristóteles precisa fornecer uma regra de unificação com base na qual todos os três tipos são ditos legitimamente casos de amizade, pois, se não o fizer, a amizade passa a ser uma homonímia por acaso, mero fato da língua, sem reflexo na natureza das coisas. Como vimos, Aristóteles demonstrou grande atenção a este problema no tratado eudêmio da amizade. Sua solução foi propor uma relação de natureza focal, à qual cunhou a expressão πρὸς ἓν λέγεσθαι: a amizade virtuosa é primeira amizade, em relação à qual os outros dois são ditos tipos secundários de amizade. Há uma vantagem evidente neste modo de unificar os três tipos de amizade. O padrão πρὸς ἓν λέγεσθαι introduz por si próprio uma hierarquia. A amizade segundo a virtude é primeira, isto é, está realçada hierarquicamente em relação aos outros dois tipos. Em relação aos elementos de definição, não é claro se haveria uma amizade segunda e uma amizade terceira. Tampouco isso é necessário, pois o padrão de unidade focal impõe somente um ponto central em torno do qual giram os outros casos, sem que haja necessidade, com base neste mesmo padrão, de estabelecer uma hierarquia entre os membros secundários. Aristóteles quer estabelecer uma hierarquia entre os tipos distintos de amizade tal que a amizade virtuosa compareça na posição superior e as outras duas, na inferior ou secundária. Contudo, o padrão focal requer que, na definição dos outros dois tipos, haja uma necessária referência ao caso primeiro. Ora, como já foi observado, não parece claro em que sentido a amizade por prazer e a amizade segundo a utilidade fariam necessariamente referência à amizade virtuosa em suas definições.11 11 Este ponto foi salientado por Fortenbaugh (1975, 51-62). Esta dificuldade parece ser o escolho no qual afunda esta proposta de Aristóteles. Em seu lugar, vemos, na EN, vigorar uma relação de semelhança, καθ’ ὁμοιότητα (EN VIII 4 1156b20, 5 1157a32, 8 1158b5-6) entre os três tipos irredutíveis de amizade. A relação de semelhança, porém, é simétrica, de modo que, se A é semelhante a B, então B é semelhante a A, sem que se possa estabelecer uma hierarquia entre eles. Para introduzir uma hierarquia entre elas, Aristóteles precisa, então, recorrer a um argumento independente, com base no qual possa colocar novamente em posição hierarquicamente superior a amizade virtuosa.

É precisamente isto o que faz na EN. Em função do tipo de relação que é estabelecido na amizade virtuosa, ela é tal que, por serem virtuosos os amigos, eles são também úteis uns aos outros (EN VIII 4 1156b14: ἀλλήλοις ὠφέλιμοι). Igualmente, eles são agradáveis uns aos outros (b16: ἡδεῖς καὶ ἀλλήλοις). A ideia é que as pessoas virtuosas, ao estabelecerem relações de amizade em função da integralidade do caráter dos amigos, são simultaneamente úteis e agradáveis, e isso não de modo acidental, mas necessário. Deste modo, este tipo de amizade é completo, pois possui necessariamente os três tipos de objeto em torno dos quais giram as relações de amizade: virtude, prazer, utilidade (EN VIII 4 1156b18-19). Por outro lado, um amigo útil pode também ser agradável, assim como um amigo agradável pode ser também útil. No entanto, eles o serão não necessariamente, mas por acidente:

Porém, estes dois tipos de amizade pouco frequentemente vêm juntos, nem são os mesmos os amigos por utilidade e por prazer, pois pouco frequentemente vêm juntas as coisas que ocorrem por acidente. (EN VIII 5 1157a33-36: οὐ πάνυ δ’ αὗται συνάπτουσιν, οὐδὲ γίνονται οἱ αὐτοὶ φίλοι διὰ τὸ χρήσιμον καὶ διὰ τὸ ἡδύ·οὐ γὰρ πάνυ συνδυάζεται τὰ κατὰ συμβεβηκός).

No esquema baseado na semelhança, convém observar que a amizade virtuosa é perfeita porque completa (EN VIII 4 1156b7: τελεία).12 12 Há casos, porém, em que algo é completo porque perfeito, como ocorre com a noção aristotélica de felicidade (εὐδαιμονία). Sua perfeição decorre de sua completude, e sua completude decorre do tipo de amizade em que consiste, não da relação de semelhança com base na qual é afirmada uma unidade conceitual entre os três tipos. Também convém observar que os dois outros tipos de amizade como que se alinham em uma certa ordem: a amizade pelo prazer é segunda e a amizade por utilidade é terceira. A razão deste alinhamento se dá em função do tipo de amizade em que consistem. A amizade pelo prazer é mais frequente entre os jovens e tende a perdurar mais, ao passo que a amizade por utilidade é mais comum entre pessoas idosas, bem como é a que vige entre as pessoas que têm relações comerciais, o que faz com que tenda a durar menos:

Destas duas, a amizade por prazer se conforma mais a amizade quando de ambos os amigos provêm as mesmas coisas e se comprazem mais um com o outro do que consigo mesmos; tais são as amizades entre os jovens, pois a generosidade se dá mais em tais casos, ao passo que a amizade por utilidade é a dos comerciantes. (EN VIII 7 1158a18-21: τούτων δὲ μᾶλλον ἡ διὰ τὸ ἡδύ, ὅταν ταὐτὰ ἀπ’ ἀμφοῖν γίνηται καὶ χαίρωσιν ἀλλήλοις ἢ τοῖς αὐτοῖς, οἷαι τῶν νέων εἰσὶν αἱ φιλίαι· μᾶλλον γὰρ ἐν ταύταις τὸ ἐλευθέριον. ἡ δὲ διὰ τὸ χρήσιμον ἀγοραίων).

Porém, é importante frisar que este alinhamento provém do tipo em que consiste cada amizade, não do fato de serem todas semelhantes umas às outras (o que lhes garante a unidade não-genérica de significação). Por fim, há uma consequência inusitada dos estudos aristotélicos sobre o fenômeno moral da amizade. Aristóteles abandona o padrão πρὸς ἓν λέγεσθαι como estratégia para fundar a unidade não-genérica para os tipos de amizade no intuito de assim garantir que possam ser legitimamente chamados de amizade. Em seu lugar, propõe um novo padrão na EN: a relação de semelhança (καθ’ ὁμοιότητα). Semelhança é uma relação simétrica; por este motivo Aristóteles precisa agora conceber um modo de hierarquizá-las, visto que a simetria da relação de semelhança não permite nenhuma hierarquia por si mesma - o que de fato faz, como vimos. No entanto, o padrão de unidade focal não ficará sem aplicação, pois Aristóteles o usará, com o sucesso que é conhecido, para unificar os diferentes gêneros supremos nos quais o ser se divide originariamente. Esta é a consequência inusitada, possivelmente para o próprio Aristóteles: descoberta na filosofia moral quando é examinado o fenômeno de nossas relações de intimidade, a noção de πρὸς ἓν λέγεσθαι só encontrará sucesso no momento em que for aplicada à questão metafísica que, no passado e no presente, sempre é investigada e sempre provoca dificuldades, a questão do ser, agora modificada na questão pela substância graças à posição central que esta possui em relação a todas as outras categorias por meio da unidade focal, como é enfatizado, não sem uma tonalidade retórica, em Met. Z 1 1028b2-4.

Bibliografia

  • CURZER, H. (2012). Aristotle and the Virtues Oxford, Oxford University Press.
  • FORTENBAUGH, W. (1975). Aristotle’s Analysis of Friendship: Function and Analogy, Resemblance, and Focal Meaning. Phronesis 20, n. 1, p. 51-62.
  • FREDE, D. (1985). Rumpelstilskin’s Pleasures: True and False Pleasure in Plato’s Philebus. Phronesis 30, n. 2, p. 151-180.
  • IRWIN, T. (1985). Aristotle’s Conception of Morality. Proceedings of the Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy 1, p. 115-143.
  • IRWIN, T. (2007). The Development of Ethics - vol. I: From Socrates to the Reformation Oxford, Oxford University Press .
  • JOACHIM, H. (1951). Aristotle - The Nicomachean Ethics Oxford, Oxford University Press .
  • MUNIZ, F. (2014). Propositional Pleasures in Plato’s Philebus. Journal of Ancient Philosophy 8, n. 1, p. 49-75.
  • PENNER, T.; ROWE, C. (2005). Plato’s Lysis Cambridge, Cambridge University Press.
  • ROTH, M. (1995). Did Plato nod? Some conjectures on Egoism and Friendship in the Lysis. Archiv für Geschichte der Philosophie 77, n. 1, p. 1-20.
  • ZINGANO, M. (2015). Friendship and the Conceptual Unity in the Eudemian Ethics and the Nicomachean Ethics. Apeiron 48, n.2, p. 195-219.
  • 1
    Este texto originou-se de uma conferência proferida como Aula Magna para o curso de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília em 05 de Março de 2023, de modo presencial, após o arrefecimento da pandemia de Covid 19. Agradeço a Gabriele Cornelli e Eduardo Wolf pelo convite, bem como à audiência, que proporcionou um animado debate. Posteriormente, em Junho do mesmo ano, desenvolvi o mesmo tema na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, aproveitando-me das discussões ocorridas em Brasília.
  • 2
    A tese dos três tipos distintos de amizade, todos legitimamente assim chamados, é comum aos três textos de ética que nos foram transmitidos: Magna Moralia, Ética Eudêmia e Ética Nicomaqueia. Os três tradados diferem, porém, no modo como propõem unificar estes tipos em uma unidade conceitual que foge ao controle do gênero e, consequentemente, não pode ser expressa por meio de universais. Aqui, vou deixar de lado a análise da MM, concentrando-me na EE e na EN.
  • 3
    Para uma análise que leva em conta estas diferenças, tomo a liberdade de remeter ao meu texto Zingano (2015ZINGANO, M. (2015). Friendship and the Conceptual Unity in the Eudemian Ethics and the Nicomachean Ethics. Apeiron 48, n.2, p. 195-219.).
  • 4
    O tema do altruísmo em relação à amizade foi particularmente desenvolvido por Terence Irwin; ver, em especial, Irwin (1985IRWIN, T. (1985). Aristotle’s Conception of Morality. Proceedings of the Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy 1, p. 115-143., 115-143) e Irwin (2007IRWIN, T. (2007). The Development of Ethics - vol. I: From Socrates to the Reformation. Oxford, Oxford University Press ., 114-232).
  • 5
    Curzer (2012CURZER, H. (2012). Aristotle and the Virtues. Oxford, Oxford University Press., 262-267) assimila a oposição entre amizade segundo a integralidade da pessoa e amizade com base em um aspecto do amigo a esta oposição entre amizade necessariamente altruísta e outras relações fundadas no benefício próprio, o que explica sua interpretação segundo a qual somente a amizade virtuosa é verdadeiramente amizade, pois os outros dois tipos de amizade, segundo ele, seriam em benefício próprio, o que então os desqualificaria como casos genuínos de amizade. Não há base textual, porém, para tal assimilação.
  • 6
    Quais conclusões tirar desta diferença entre os dois tratados é um assunto sobre o qual não discorrerei aqui. Poder-se-ia pensar que é sinal de a EE ser um tratado dirigido a filósofos, ao passo que a EN estaria destinada a um público mais vasto. Porém, pode-se igualmente ver aqui que a tentativa de aplicar o padrão da significação focal, ao ser abandonado na EN, torna menos premente a elucidação deste problema lógico, cuja solução (por meio da noção de semelhança, na EN) é dada ao longo do tratado, sem destacar este tipo de análise, dando possivelmente como conhecido o que tinha sido exposto na EE. Nesta segunda interpretação, a EN seria uma versão posterior, redigida com a ambição de corrigir certos pontos defendidos na EE.
  • 7
    Sobre este diálogo, ver agora a nova tradução comentada por Rowe & Penner (2005PENNER, T.; ROWE, C. (2005). Plato’s Lysis. Cambridge, Cambridge University Press.).
  • 8
    Dorothea Frede (1985FREDE, D. (1985). Rumpelstilskin’s Pleasures: True and False Pleasure in Plato’s Philebus. Phronesis 30, n. 2, p. 151-180., 151-180) explora muito bem este caso de expectativa com um prazer antecipado seguido da frustração ao se constatar que o que era esperado não se realiza.
  • 9
    Platão introduz a divisão da alma na República IV. A alma humana não é monolítica, mas tem três partes: a parte apetitiva, a parte irascível e a parte que possui razão. Aqui, importam sobretudo a parte apetitiva e a parte racional da alma, que estão em conflito, a parte irascível podendo ser deixada de lado para efeitos de nossa análise.
  • 10
    Parte importante do comentário moderno, em particular em língua inglesa, girou em torno de saber se Platão admitia prazeres proposicionais, a saber, alguém tem prazer em p, em que p é uma proposição, por exemplo “tenho prazer em beber bebidas fortes”. O ponto, porém, se estou correto, não é esse, mas este: a sintaxe do prazer faz com que o objeto de comprazimento seja ele próprio constitutivo do ato de se comprazer. Se em X tem prazer em Y o que é indicado por Y é uma proposição ou não (por exemplo, tenho prazer em beber bebidas fortes ou tenho prazer com bebidas fortes) é secundário do ponto de vista da gramática filosófica (ainda que possa ser interessante e instrutivo do ponto de vista da gramática usual). O que é filosoficamente crucial é mostrar que o objeto de prazer contamina o próprio comprazimento, este último não podendo ser aquilatado independentemente do objeto em que se realiza, esteja o objeto presente ou seja meramente antecipado. Sobre prazeres proposicionais, ver Muniz (2014MUNIZ, F. (2014). Propositional Pleasures in Plato’s Philebus. Journal of Ancient Philosophy 8, n. 1, p. 49-75., 49-75) e a bibliografia ali referida.
  • 11
    Este ponto foi salientado por Fortenbaugh (1975FORTENBAUGH, W. (1975). Aristotle’s Analysis of Friendship: Function and Analogy, Resemblance, and Focal Meaning. Phronesis 20, n. 1, p. 51-62., 51-62).
  • 12
    Há casos, porém, em que algo é completo porque perfeito, como ocorre com a noção aristotélica de felicidade (εὐδαιμονία).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    00 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2023
  • Aceito
    15 Mar 2024
Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra, Campus Darcy Ribeiro, Cátedra UNESCO Archai, CEP: 70910-900, Brasília, DF - Brasil, Tel.: 55-61-3107-7040 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: archai@unb.br