Open-access Sombra como um índice de corporeidade: revisitando sombras na história da pintura ocidental desde seus mitos de origem até o Renascimento

Shadow as an Index of Corporeality: Revisiting Shadows in the History of Western Painting From its Origin Myths to the Renaissance

La sombra como índice de corporeidad: revisitando las sombras en la historia de la pintura occidental desde sus mitos de origen hasta el Renacimiento

RESUMO

Partindo de um amplo entendimento da sombra como conceito espacial, o presente ensaio propõe uma revisão bibliográfica sobre as representações de sombra na história da pintura ocidental tradicional, tanto em suas dimensões técnicas quanto simbólicas. Por meio de imagens pontuais, o texto comenta este tema, limitando-se a um recorte temporal, desde os mitos fundadores da pintura na Idade Antiga até o século XVI. O embate teórico confronta uma ideia preestabelecida de que as representações de sombra anteriores ao Cinquecento ocorreram apenas de maneira intuitiva. Com isso, busca-se demonstrar que, apesar das limitações técnicas da pintura medieval, as sombras já eram utilizadas como elementos articuladores de significado ao oferecer testemunho e representação de alguma corporeidade.

PALAVRAS-CHAVE História da arte; Pintura; Sombra; Representação; Corporeidade

ABSTRACT

Starting from a broad understanding of the shadow as a spatial concept, this essay proposes a bibliographic review on the representations of shadow in the history of traditional Western painting, both in its technical and symbolic dimensions. Through specific images, the text comments on this theme, limiting itself to a time frame, since the founding myths of painting in the Ancient Age until the 16th century. The theoretical clash confronts a pre-established idea that the shadow representations prior to the Cinquecento happened only in an intuitive way. Thereby, it seeks to demonstrate, despite the technical limitations of medieval painting, that shadows were already used as articulating elements of meaning when offering testimony and representation of some corporeality.

KEYWORDS Art History; Painting; Shadow; Representation; Corporeality

RESUMEN

A partir de una comprensión amplia de la sombra como concepto espacial, este ensayo propone una revisión bibliográfica sobre las representaciones de la sombra en la historia de la pintura tradicional occidental, tanto en su dimensión técnica como simbólica. A través de imágenes específicas, el texto comenta la temática, limitándose a un marco temporal, desde los mitos fundacionales de la pintura en la Edad Antigua hasta el siglo XVI. El choque teórico confronta una idea preestablecida de que las representaciones de sombras anteriores al Cinquecento ocurrían sólo de manera intuitiva. Con ello buscamos demostrar que, a pesar de las limitaciones técnicas de la pintura medieval, las sombras ya eran utilizadas como elementos articuladores de significado al ofrecer testimonio y representación de alguna corporalidad.

PALABRAS CLAVE Historia del arte; Cuadro; Sombra; Representación; Corporeidad

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Sombra é um conceito. Chamamos de sombra o resultado de uma relativa carência de luz em um determinado local. Os comportamentos da luz visível em relação à variedade de superfícies nas quais elas incidem, bem como sua percepção a partir de células especializadas da retina, são fenômenos complexos. Basicamente, em meios transparentes, a luz propaga-se em linha reta; mas, ao se deparar com superfícies translúcidas ou opacas, o fluxo luminoso contínuo é interrompido parcial ou totalmente. Estas interrupções de luz criam sombras.

Justamente por ser uma interrupção local da luz, Roberto Casati ( 2001 ) define a sombra como um conceito espacial, de caráter figural e causal. Figural porque, para o filósofo, muito frequentemente reconhecemos a sombra a partir de um limite mais ou menos definido em relação à luz, o que nos dá uma característica essencialmente visual.

A sombra deve ter uma figura que possamos ver ou, pelo menos imaginar. A figura da sombra é particular, porque normalmente as coisas que têm uma figura são materiais. Uma exceção são os buracos, que, contudo, são também objetos táteis, enquanto as sombras são apenas visuais. As sombras são figuras puras.

(CASATI, 2001 , p. 284)

Causal porque, pensando em sombras como algo que é projetado (sobre uma superfície), sabemos que ela pode ser produzida e, então, podemos, de certo modo, manipulá-las.

A causalidade no conceito de sombra está ligada a uma imagem de nós mesmos como agentes capazes de mudar o mundo a nossa volta. Podemos controlar as sombras com nosso movimento, assim como controlamos a raquete. Entretanto [...] só podemos controlá-las até certo ponto: por exemplo, não conseguimos fazê-las rodar em torno de nós. Isso poderia explicar porque as sombras se tornam facilmente veículos que transportam magníficas imagens psicológicas. São nossas escravas, mas não nos obedecem em tudo [...].

(CASATI, 2001 , p. 285)

As sombras, enquanto fenômeno visual, com frequência alimentam a curiosidade individual ou coletiva (para não dizer que exercem algum fascínio) em diferentes culturas e períodos históricos, gerando crenças, superstições e poéticas variadas. Casati ( 2001 ) nos mostra uma série de relatos linguísticos, literários e etnográficos e, então, reflete sobre o complexo imaginário das sombras:

A sombra parece habitar um compartimento da mente que se comunica com o departamento dos objetos – as sombras são coisas físicas – e que, ao mesmo tempo, se abre para o departamento da psique – as sombras são imagens da alma. Quando refletimos sobre o estranho comportamento das sombras, os dois departamentos põem-se a trabalhar. Nessa duplicidade se aninha, provavelmente, a explicação cognitiva da riqueza das metáforas e das histórias da sombra.

(CASATI, 2001 , p. 46)

Além de nos dar estímulos para reflexão conceitual, a sombra, sendo elemento complementar à luz, nos auxilia tanto na percepção do ambiente circundante quanto na leitura das representações visuais de modo geral: 1. ao situar as formas no espaço, oferecendo assim, um referencial de distância dos objetos em relação ao contexto e ao observador; 1 2. ao conferir substancial volume às formas observadas, proporcionando o (re)conhecimento da realidade do mundo tridimensional. Essa complementaridade indissociável entre luz e sombra, entre claro e escuro é de fundamental importância para o historiador da arte Victor Stoichita ( 2016 ), por ser, em suas palavras, “[...] uma das vias de acesso à história da representação no Ocidente” (STOICHITA, 2016 , p. 9). Ou seja, as relações de luz e sombra podem ser uma importante evidência visual para o estudo da história da arte.

Observaremos tais relações de luz e sombra em um recorte historiográfico iniciado na Idade Antiga com os mitos fundadores da pintura e escultura, a partir do contorno de uma sombra projetada, como é contado por Plínio, o Velho. Ainda na Antiguidade, propomos uma discussão sobre a aplicação de sombras como recurso ilusionista nos afrescos arquitetônicos romanos. Posteriormente, faremos uma análise de imagens do Quattrocento , enquanto transição do Gótico para o Renascimento, em uma leitura comparativa do modo como tais estilos se relacionavam com a problemática da representação das sombras. Neste ponto, destacamos as poéticas de Fillipo Lippi; Giovanni di Paolo; Luca Signorelli, em intertexto com Dante Alighieri; e Masaccio.

Dada a especificidade desta delimitação temática, ressaltamos os desafios encontrados durante a pesquisa, seja pela escassez de fontes bibliográficas especializadas, seja pelos poucos trabalhos apresentados em congressos (parte considerável das investigações sobre sombras na arte se debruça em obras a partir do séc. XVI). Também por este motivo, afirmamos a relevância desta matéria, uma vez que ela se mostra como terreno fértil para abordagens históricas e também poéticas, uma vez que novos conceitos operacionais podem ser explorados a partir de estudos teóricos.

Se, por um lado, percebemos que as sombras são consideradas em suas possibilidades conceituais mais efetivamente nas poéticas modernas e contemporâneas — dado que ela se liberta da necessidade de aplicações naturalistas. Por outro lado, buscamos refletir sobre a representação histórica de sombras em termos de crescente significado e interpretá-las menos como práticas intuitivas do que simbólicas. Entendemos que, mesmo diante das limitações técnicas e culturais, as sombras já eram utilizadas como elemento simbólico antes mesmo das primeiras teorias de sombra, no Renascimento: mais especificamente, como índices de corporeidade. 2

O percurso teórico basal na elaboração dessa narrativa de pesquisa apoia-se fundamentalmente nos escritos do psicólogo alemão Rudolf Arnheim; e dos historiadores da arte Michael Baxandall, Roberto Casati e Victor Stoichita. A partir da teoria da Gestalt , Arnheim ( 2015 ) entende a visão como uma percepção de padrões estruturais significativos e, então, considera o potencial simbólico da sombra como um elemento artisticamente ativo em nossa percepção. Tendo princípios semelhantes, Baxandall ( 1997 ) busca compreender o papel das sombras em nossa experiência visual, porém, em debate com três vertentes teóricas do século XVIII: física, empirista e cognitiva. Por sua vez, Casati ( 2001 ) revela um interesse particular neste fenômeno visual e conduz suas investigações em duas perspectivas: uma enfatizando a complexidade dos aspectos perceptivos e culturais da sombra; outra, no seu valor para o conhecimento objetivo do mundo. Já Stoichita ( 2016 ), observando a necessidade de estudos históricos aprofundados sobre o tema, estabelece uma dialética hegeliana na relação luz/sombra, localizando-a na interseção entre a história da representação e a filosofia da representação.

Segundo Baxandall ( 1997 ), devemos considerar dois momentos para a percepção da luz e das sombras: um primeiro momento quando a luz incide sobre determinada superfície e um segundo momento quando a luz é refletida dessa superfície para o olho. A partir dessas considerações, delimitamos, juntamente com o autor, as nomenclaturas de sombras utilizadas no decorrer do texto a fim de tornarem mais claras suas distinções. Baxandall ( 1997 ) classifica as diferentes sombras de acordo com o ângulo e a intensidade em que a fonte de luz incide no objeto e o tipo de superfície na qual elas se anteparam, da seguinte maneira:

  1. a)

    aquelas sombras consequentes da iluminação de um objeto e que são observadas em uma superfície distinta deste, serão denominadas sombras lançadas. Como quando, por exemplo, um objeto “lança” sua própria sombra sobre a mesa que o apoia;

  2. b)

    semelhante à primeira, quando a iluminação de um objeto opaco e de relevo irregular (com alguma proeminência por exemplo), cria uma sombra na superfície indistinta do mesmo corpo, chamamo-la de sombra projetada. Tomemos como exemplo um rosto que, quando iluminado lateralmente, o nariz projetará uma sombra no perfil oposto;

  3. c)

    diferente das sombras anteriores, quando a superfície do corpo não recebe iluminação pelo ângulo posterior que se encontra em relação à fonte, torna-se ela própria uma sombra, ou melhor, uma autossombra. É o caso das que são familiares à produção de silhuetas;

  4. d)

    nas situações em que o objeto recebe parcialmente a iluminação de uma fonte em ângulo agudo, forma-se um sombreado – que varia sua intensidade de acordo com a progressão da convexidade em que a superfície se aproxima ou se afasta da luz, até tornar-se totalmente iluminada ou uma autossombra respectivamente. 3

  5. e)

    há ainda os casos de microssombras, que, como o nome indica, são pequenas sombras criadas pela textura de superfícies iluminadas, como o granulado de uma folha de papel, por exemplo.

ORIGENS DA REPRESENTAÇÃO VISUAL A PARTIR DA SOMBRA

Seja como elemento puramente visual e estético, ou conceitual e simbólico, as sombras sempre estiveram presentes na história das artes visuais. Como dito anteriormente, destacamos como referência deste estudo, os trabalhos de Arnheim ( 2015 ), Baxandall ( 1997 ), Stoichita ( 2016 ) e Casati ( 2001 ). Todos eles concordam que devemos à sombra uma das hipóteses sobre o nascimento da pintura e da escultura a partir do desenho de uma silhueta. O último narra em detalhes o mito contado inicialmente por Plínio, o Velho (séc. I a.C.), cujo excerto anunciamos a seguir:

Participam três autores: Butade, o oleiro de Cición que trabalha em Corinto, sua filha e o namorado dela. Antes da partida do namorado, para o estrangeiro, a moça traça o perfil da sombra dele na parede. No dia seguinte, o pai faz um baixo-relevo a partir do perfil. A pintura e a escultura nascem quando a sombra é fixada num muro pela mão que desenha. (CASATI, 2001 , p. 215-216).

O mito procura explicar a suposta origem das pinturas murais e, sobretudo, das cerâmicas gregas no período arcaico ( fig. 1 ), cujas silhuetas negras e redução de detalhes internos às figuras remetem-nos às propriedades bidimensionais das sombras. Suposta origem porque a primeira narrativa sobre as origens da pintura é dada por Plínio e, de acordo com historiador da arte Victor Stoichita ( 2016 ), a fonte carece de referências temporais. Vejamos:

A questão das origens da Pintura é obscura. […] Os egípcios afirmam que esta arte foi inventada por eles, seis mil anos antes de surgir na Grécia; é, manifestamente, uma vã pretensão. Entre os gregos, alguns dizem que foi descoberta em Sicião, outros em Corinto, mas todos afirmam que começou com um delinear do contorno da sombra humana. Foi o primeiro método; ao segundo, empregando cores isoladas, chamou-se monocromo; este foi de seguida aperfeiçoado, persistindo até os dias de hoje.

(PLÍNIO apud STOICHITA, 2016 , p. 11).

Figura 1.
Exéquias. Ânfora com Aquiles e Ajax jogando (detalhe), 575-525 a.C. Cerâmica, 61 cm. Museu Gregoriano Etrusco, Vaticano.

Segundo Stoichita ( 2016 ), o próprio reconhecimento das origens da pintura descrita por Plínio como “obscura” revela o caráter mítico de sua passagem, ao mesmo tempo em que revela também uma tentativa de enfraquecer ou até mesmo anular a origem hipotética da pintura pelos egípcios. Jacqueline Lichtenstein ( 2004) também sinaliza esta questão quando comenta sobre as ressalvas de Plínio em relação à pintura egípcia.

Para além destas controvérsias, o fato que destacamos destas passagens de Plínio é a primitividade da origem da representação visual, dada, não pela observação direta da figura humana, mas sim pelo contorno fixado da projeção de sua sombra. A pintura, segundo o mito narrado, nasceria então de um simulacro primário, uma figura presente que registra e substitui um corpo ausente; nas palavras de Stoichita ( 2016 , p. 15), uma “metafísica da imagem”. Em suma, a origem da pintura remonta a um momento de representação de uma representação (pintura da sombra de um corpo) e, consequentemente, relaciona-se com a origem do próprio conceito de representação pictórica. É justamente essa operação bidimensional sintética original que reduz a figura à sua silhueta essencial, que relacionamos, por analogia, às pinturas cerâmicas do período arcaico – de figuras negras sobre fundo vermelho.

O fim daquele trecho de Plínio, como citado por Stoichita ( 2016 ), aponta para um desenvolvimento técnico a partir da silhueta original: os monocromos vinham preencher os contornos com áreas isoladas de cor; ou seja, uma aplicação de cor para fazer distinção entre os planos de uma imagem. Prosseguindo com o mito, Plínio conclui:

Por fim a arte saiu de sua monotonia; descobriu a luz e as sombras, e, através dessa diferença, as cores sobressaíram por mútuo contraste. A elas se veio juntar mais tarde o brilho, outro valor além da luz. Àquilo que fica entre o brilho e a sombra, chamamos de claro-escuro, e ao lugar onde duas cores se encontram e passam de uma cor a outra chamamos de meia-tinta.

(PLÍNIO apud STOICHITA, 2016 , p. 14)

Para Stoichita ( 2016 ), a história da sombra contornada explica os primórdios da arte, interpretando uma realidade histórica – a pintura antiga – por meio de um mito de origem. E, a partir desta origem, uma vez superada a projeção plana da pintura monocromática pela modelagem tonal, a sombra perde sua função de matriz de imagem para se tornar elemento expressivo potencial em si.

SOMBREANDO INTUIÇÕES E EXPERIMENTAÇÕES CONCEITUAIS DE SOMBRAS

Segundo Casati ( 2001 ), a representação visual das sombras sempre ocorreu por tentativa e erro, o que, às vezes, consequentemente, gerava incongruências ou ruídos na relação com outros elementos de composição, prejudicando em maior ou menor grau a apreensão do conjunto total da obra. A dificuldade de uma reprodução pictórica convincente das sombras, do ponto de vista perceptivo, suscitou, com o tempo, uma resistência geral por parte dos artistas a trabalharem com sombras projetadas, o que culminou em um “tabu cultural” assentado, segundo o autor, em três motivos principais.

O primeiro deles é de ordem simbólica, sendo justificado por propriedades metafísicas das sombras: “As sombras são imagens inquietantes, perigosos esconderijos para bandidos de tocaia, são duplicações aborrecidas das figuras. No fim das contas só enchem o quadro e desviam a atenção” (CASATI, 2001 , p. 217).

O segundo motivo articula que os artistas são geralmente desatentos em relação às sombras, e que as obras seriam, então, o reflexo desse comportamento. Sobre este ponto, é interessante destacar as passagens de Cennino Cenini sobre o sombreado das figuras em seu Libro dell’Arte , como citado por Stoichita ( 2016 ). No tratado em questão, o pintor toscano detalha uma série de procedimentos pictóricos para a execução dos sombreados; mas, por outro lado, ignora a representação de sombras lançadas e de sombras projetadas. Ou seja, a preocupação de Cennino concentrava-se em questões de consistência e volumetria ilusória das figuras, em prejuízo à contextualização espacial delas, uma vez que as sombras lançadas cumprem, dentre outras funções, a de posicionamento das figuras no espaço.

Por fim, a terceira razão defendida por Casati ( 2001 ) é uma dificuldade de ordem técnica: diante da complexidade física e perceptiva que é o fenômeno da luz, os pintores precisam dispor de uma série de escolhas e soluções criativas para representá-las. Em suas palavras:

Uma sombra no ambiente altera significativamente a quantidade de luz refletida por certa área. O pintor deve resolver a equação da sombra, calcular quanto deve escurecer certa zona do quadro para que as relações entre as luminosidades sejam suficientes para sugerir o claro-escuro natural.

(CASATI, 2001 , p. 218)

E prosseguindo seu pensamento, o filósofo adverte:

É facílimo errar por excesso. Os novatos em pintura escurecem demais as zonas que representam as sombras; o resultado são manchas negras sem nenhuma relação com a luz. A representação da sombra deve falar da luz que cria a sombra; o mínimo erro congela a sombra e a faz falar sozinha de si mesma.

(CASATI, 2001 , p. 218)

Devemos nos atentar para o fato de que, nesta passagem, Casati está considerando apenas as propostas e as operações naturalistas para a representação das sombras, excluindo as experimentações formais e os níveis de abstração delas consequentes. Em pinturas cuja composição é relativamente complexa – em termos de quantidade de formas e suas múltiplas relações –, a busca de um equilíbrio visual torna-se imperativa: não somente por criar ritmos de leitura visual, mas, antes, para criar harmonia na totalidade da imagem, de modo que nenhuma das formas torne-se demasiadamente destacada, concorrendo com as demais pela atenção do espectador (salvo os casos em que esse equilíbrio é intencionalmente perturbado, visando a um objetivo visual específico).

Nas relações pictóricas mencionadas, de fato o exagero no escurecimento de uma sombra criaria uma série de complicações visuais, não somente por diminuir a luminosidade da obra – limitando a saturação das cores na reflexão da luz – mas também por romper com o equilíbrio das formas, criando “buracos” na imagem, uma vez que essas sombras excessivamente escuras não encontrariam resistência visual em outras formas que as contrabalanceassem. 4

A estas questões de iluminação, Casati ainda acrescenta a dificuldade da representação das sombras lançadas, que possuem caráter geométrico perspéctico.

A sombra nos fala de luz indicando o lugar de onde ela provém. Na imagem, as linhas físicas da luz devem ser projetadas de modo a reproduzir a relação espacial entre a fonte de luz, o objeto que faz a sombra e a figura da sombra num anteparo ou no chão. Essas projeções se baseiam na mesma matemática subjacente à perspectiva. Resolver adequadamente o problema da projeção da sombra significa resolver o problema da perspectiva.

(CASATI, 2001 , p. 218)

Para melhor visualização destas questões, façamos uso de exemplificações semelhantes às fornecidas pelo autor. A primeira delas é um dos afrescos de estilo arquitetural 5 pintado na Sala das Máscaras, na casa de Augusto, em Roma ( fig. 2 ).

Figura 2.
Sala das Máscaras , séc. I d.C. Afresco. Parede sul da Casa de Augusto, Monte Palatino, Roma.

Pela perspectiva e pelo tratamento de cores e de sombras, que criam uma ilusão de profundidade nesta pintura mural, podemos dizer que se trata de um Tromp l’oeil . A perspectiva linear, que aponta para um ambiente externo a partir de um portal ou janela, é reforçada pela perspectiva atmosférica, que atenua a intensidade das cores exteriores.

Segundo Casati ( 2001 ), os pintores romanos teriam conhecimento do uso das sombras para criar uma ilusão espacial, mesmo antes de uma sistematização ou teoria sobre elas, e usaram seus conhecimentos para causar o efeito tridimensional no afresco. Por isso, a aplicação das sombras nesta pintura ainda nos parece um tanto intuitiva se observarmos a sequência de colunas e as sombras projetadas nos mezaninos onde se situam as máscaras teatrais.

Para o autor, não podemos afirmar com certeza a origem destas sombras, pois:

  1. a)

    A silhueta delas não corresponde a nenhum outro formato arquitetônico presente, já que as colunas projetadas fundem-se à outra sombra diagonal, que nos dá a leitura de um parapeito, existente somente no mezanino onde as sombras se projetam;

  2. b)

    Não oferecem testemunho fiel de uma fonte de luz em qualquer ponto dentro ou fora da imagem, porquanto, em qualquer ângulo hipotético, a fonte de luz não poderia lançar as sombras onde as vemos. Se imaginarmos, por exemplo, a fonte de luz do lado esquerdo da imagem, a sombra no mezanino esquerdo também deveria ser projetada do lado oposto, e supondo que a luz parte da abertura da janela, ela não poderia projetar as sombras das colunas longitudinalmente nos mezaninos – o resultado seria uma projeção diagonal, expandindo-se pelo chão. Além disso, as sombras não seriam como as vemos, pois, nesse caso, deveriam ser mais distorcidas perspectivamente na medida em que se afastam da fonte de luz, como do lado oposto a elas.

No caso desta pintura parietal, as sombras lançadas seriam feitas, concluindo Casati ( 2001 ), a partir da observação prévia de outro modelo e, depois, transportadas para esta composição, não havendo um estudo sistemático ou uma adaptação para a situação específica deste ambiente, o que explicaria tais dissonâncias visuais.

Divergimos nossa leitura à de Casati com relação à primeira causa da ambiguidade visual nas sombras lançadas. Ao rever a imagem, podemos observar que o formato das sombras assemelha-se não ao parapeito do mezanino, mas ao parapeito posicionado longitudinalmente, e que, em cada um dos lados do espaço representado, separa o nicho da porta do nicho da janela correspondente.

Neste sentido, a sombra do espaço direito seria verossímil se imaginarmos uma fonte luminosa próxima à porta direita. Mas a sombra projetada no mezanino do lado esquerdo ainda seria impossível, mesmo com uma segunda fonte de luz: caso esta luz se posicionasse próximo à porta da esquerda para projetar a sombra no mezanino esquerdo, esta sombra deveria estar colada no parapeito, não separada dele como ocorre na imagem. Com isso, chegamos à conclusão de que a sombra do lado esquerdo apenas replica a sombra do lado oposto, sem as devidas adaptações de posição no espaço: a sombra esquerda deveria ser invertida horizontalmente, de forma espelhada e não idêntica à sombra direita.

Outra imagem onde podemos observar o uso de sombras para ampliar a ilusão de profundidade espacial, assim como alguns conflitos de perspectiva gerados dessa relação, é a Natividade , de Filipo Lippi ( fig. 3 ), pintada no domo da Catedral de Santa Maria Assunta, na comuna italiana de Espoleto. Na imagem observamos, em primeiro plano, o grupo da Sagrada Família centralizada na parte inferior do afresco; e, na parte superior, um grupo de três anjos voando sobre uma nuvem, levemente deslocados para a esquerda, como se, nesta narrativa visual, entrassem na cena no momento em que ela foi representada.

Figura 3.
Filippo Lippi. Natividade , 1466-1469. Afresco. Domo da Catedral de Santa Maria Assunta, Espoleto.

Sob os anjos, um caibro diagonal avança da parede mais ao fundo. Este elemento repete-se três vezes, horizontalmente, na parede perpendicular à direita, em direção ao lado esquerdo. A sombra do caibro da esquerda é lançada na parede de onde ele sai, seguindo uma diagonal descendente para a direita, levando-nos a supor uma fonte de luz na diagonal oposta, situada fora da cena representada. Os caibros da parte direita, por sua vez, lançam sombras paralelas à anterior. O problema surgido aqui, contudo, é que a primeira sombra lança-se em uma parede perpendicular à fonte de luz, enquanto as demais lançam-se em uma parede paralela àquela fonte; ou seja, seria fisicamente impossível estas sombras descreverem a mesma direção e terem o mesmo formato da primeira.

Isto posto, o termo “coerência das sombras” é, então, definido por Casati como a capacidade visual de apreender a totalidade de uma imagem, mesmo diante de pequenos desvios, como estes apontados.

A mente do espectador diante de um quadro se contenta com poucos indícios para reconstruir a cena representada e a reconstrução não é (muito) atrapalhada por uma eventual contradição entre as sombras. Para encontrar a incoerência, é preciso levantar uma hipótese: ‘ Se a sombra à direita tem essa direção, então a sombra da esquerda não pode ter essa outra direção...’.

(CASATI, 2001 , p. 222)

E conclui: “Nesses raciocínios, as sombras se revelam objetos que fazem pensar, que se dirigem não apenas ao olhar, mas também à mente” (CASATI, 2001 , p. 222). Adiante, o filósofo afirma que, para encontrarmos tais detalhes, é preciso uma investigação mais atenta, com formulação de hipóteses, tal qual fizemos na leitura acima. Em outras palavras, na apreciação de uma obra de arte, faz-se necessário que determinado fenômeno seja buscado por uma percepção intencional, voltada para um fato específico, para que ele adquira significado.

A atenção é um conceito chave para Baxandall ( 1997 ) ao estudar a percepção visual a partir das sombras: “Atenção é um conceito muito instável – um ato ou estado, de percepção focalizada, e/ou percepção dirigida, percepção seletiva, percepção ativa, percepção consciente, percepção reflexiva” (BAXANDALL, 1997 , p. 154). O autor distingue dois estados, ou processos da percepção: o processo paralelo anterior , que corresponde a uma interação imediata do indivíduo com o fenômeno visual, sendo marcada por contínuas reações dos receptores ( inputs ) aos estímulos externos ( outputs ); e o processo serial posterior , dado em um segundo nível pela produção de informações a partir do processo anterior. Para Baxandall, o processo criativo do artista situa-se na interpenetração entre ambos estados perceptivos, justamente por ser um processo de abstração ativa dos estímulos externos recebidos, que são transformados, ressignificados e combinados em outros meios que, por sua vez, exigem alguma análise reflexiva para serem (re)interpretados. Segundo o teórico, as sombras são um desses estímulos atuantes na passagem de uma consciência desatenta para uma consciência atenta.

Podemos pensar, com isso, que, à primeira vista, as sombras são elementos complementares à percepção visual do espectador, passando despercebidas por ela em nível pré-consciente. Para que a presença das sombras seja de fato notada e percebida em suas relações formais, é preciso um exame mais cuidadoso da obra de arte, levando a percepção para nível consciente. Sendo então a sombra um possível indício de tomada de consciência da percepção visual, podemos partir dela como tema de estudo, tanto em pesquisa teórica quanto em ambientes de ensino e aprendizagem da arte, com práticas de leitura, estimulando o espectador/aluno a se atentar para as sombras como elemento visual e simbólico e, a partir disso, desenvolver suas capacidades interpretativas e comunicativas. Com as reflexões de Baxandall, fica evidente a possibilidade de consciência perceptiva a partir do elemento sombra no processo criativo; mas acreditamos que, enquanto fenômeno visual potente, as sombras podem cumprir esse papel para além de questões próprias da poética.

Retomando nossa narrativa visual, devemos nos alertar, porém, que aqueles desvios – ou mesmo as ausências – de sombra, em relação à realidade observável, como representados pelos pintores antes da sistematização da perspectiva no Renascimento, não devem ser tomados como um fato geral dos artistas do Quattrocento . Se tomarmos, por exemplo, o painel de A Fuga para o Egito ( fig. 4 ), pintado por Giovanni di Paolo, vemos uma relação consciente da representação das sombras projetadas com relação à fonte de luz. Ao observarmos os planos mais afastados, mesmo com a perda de pigmentação em algumas áreas, vemos que os elementos da paisagem (montanhas, árvores, arquiteturas, até animais e camponeses) projetam sombras em perspectiva, todas na mesma direção, opostas à fonte de luz – que o artista faz questão de evidenciar no canto superior esquerdo, como testemunho inegável da origem das sombras, em vez de omiti-las, como seria mais comum.

Figura 4.
Giovanni di Paolo. A Fuga para o Egito , 1436. Têmpera sobre madeira. Pinacoteca Nacional, Siena.

Ao avançarmos a leitura até o primeiro plano, vemos dois grupos de pessoas em direção à direita da composição: um deles, a Sagrada Família em sua retirada. É interessante notar, nesta representação, o contraste no tratamento das figuras principais com as figuras afastadas, como se os protagonistas da cena fossem acrescentados posteriormente, deixando-os deslocados de seu contexto especial: tal efeito é dado pela omissão das sombras projetadas por essas personagens. Segundo Stoichita ( 2016 ), a diferença dá-se menos por uma imperícia técnica ou perceptiva do que por uma escolha poética. Para o historiador, Giovanni di Paolo emprega nesta pintura dois processos pictóricos distintos: no primeiro plano, as figuras pertenceriam a uma tradição bidimensional medieva; enquanto a paisagem seria fruto de uma observação da natureza. E,

se a óptica [ sic ] medieval estuda com grande interesse o problema da projeção das sombras, a arte da mesma época ignora-o quase por completo. O facto [ sic ] pode ser atribuído ao estatuto (onto)lógico da imagem medieval, já que esta é, em princípio, uma entidade que se deseja isenta de corporeidade.

(STOICHITA, 2016 , p. 47)

Assim, podemos concluir com Stoichita que as (ausências de) projeções de sombras naquelas pinturas davam-se, por vezes, por uma escolha consciente dos artistas dentro do contexto da arte cristã de sua época. No caso da Idade Média, a subtração de sombras indicava uma relação de distanciamento para com o corpo físico naturalista – haja vista a representação esquematizada das figuras – em função de uma espiritualidade ideal representada – evidenciada pela presença das auréolas nas figuras sacras. 6

Para o uso da sombra como elemento simbólico, a Divina Comédia , de Dante Alighieri, nos dá algumas pistas conceituais. Primeiramente, a obra do poeta nos leva a reflexões sobre a ausência de corporeidade das sombras e, em um segundo momento, sobre a sombra como testemunho da presença de um corpo opaco – pela obstrução da luz.

De acordo com Stoichita, no primeiro caso, Dante frequentemente se refere às almas como almas visíveis – mesmo que destituídas de um corpo – como espectro ou sombras. Por exemplo, nos seguintes versos extraídos do “Conto II do Purgatório”: “Sombras vãs, verdadeiras só no aspeito! / Três vezes quis nos braços estreitá-la, / Só as três vezes estreitei ao peito.” (ALIGHIERI, 2003 , p. 278).

No segundo caso, temos uma passagem do “Conto III do Purgatório” quando Dante demonstra uma inquietação ao perceber a ausência de sombra em Virgílio – poeta romano e guia de Dante durante sua jornada pelo Inferno e Purgatório – enquanto caminham de costas para a luz, observando o chão – onde, supostamente, a sombra de ambos deveria estar projetada. Seguindo no “Conto V”, as almas purgadas espantam-se com o fato de não identificarem Dante como sendo uma delas, justamente pelo fato de seu corpo projetar uma sombra.

– ‘Vede! A luz’ – exclamou – ’não é brilhante

À sestra do que mais vai demorado;

Pelo meneio a um vivo é semelhante.’

Olhos volvi daquela voz ao brado,

E as vi notar, de maravilhas cheias,

Como eu, andando, a sombra tinha ao lado.

(ALIGHIERI, 2003 , p. 298)

Como observa Casati a partir deste trecho, “As almas dos mortos (por serem sombras) não fazem sombra. Dante é um estranho entre as almas e sua sombra o desmascara” (CASATI, 2001 , p. 223).

Com relação à configuração das sombras, Luca Signorelli, pintor do século XVI, nos dá um testemunho de soluções visuais essencialmente práticas para a sombra quando representa, na Capela de São Brizio, justamente a passagem anteriormente citada. No detalhe do afresco ( fig. 5 ), notamos, em primeiro plano e no canto esquerdo, um grupo de almas espantadas com a figura central: a alma de trás aponta para Dante, enquanto a alma mais próxima do espectador vira-se para as outras, ao mesmo tempo em que, com o braço direito estendido, tenta tocar o estranho protagonista. Dante parece caminhar em direção ao lado direito da imagem (para onde aponta o guia Virgílio); porém, com sua mão esquerda, levanta suas pesadas vestes e se volta para o lado oposto, observando diretamente sua sombra lançada no chão. Todos na cena, com exceção dos grupos em segundo e terceiro planos, parecem se dirigir para o inusitado acontecimento – o grupo da direita também observa o chão onde se forma a sombra das personagens centrais.

Figura 5.
Luca Signorelli. A sombra de Dante (detalhe de O poeta Virgílio), 1499-1502. Afresco. Capela da Madona de São Brizio, Orvieto.

Observamos, por conseguinte, duas diferenças entre texto e imagem. A primeira é a divergência entre a representação de Virgílio, por Signorelli e por Alighieri: o poeta romano, na referência literária é “descoberto” como uma alma sem sombra no mesmo “Conto V”; ao passo que na imagem, Virgílio possui uma sombra semelhante em forma, tamanho e cor à sombra de Dante, o que nos leva a interpretá-la como uma presença viva, assim como Dante. Concluímos, desse trecho, em consonância com Stoichita ( 2016 ), que a sombra em Alighieri, é simbólica:

Nessa passagem crucial, o autor sublinha, com a clareza e o vigor poético que lhe são próprios, que a projeção de sombras é um facto [ sic ] da vida: na Divina Comédia , só Dante tem uma sombra, ao passo que as outras personagens são sombras. […] a sombra é atributo essencial do corpo.

(STOICHITA, 2016 , p. 49, grifos do autor)

A segunda, em relação à descrição das demais almas: diferente do poema, no afresco, as demais almas também têm sombras – uma sombra esguia e achatada, diferente da sombra projetada por Dante e Virgílio. Com este novo detalhe, as almas parecem, agora, estranharem-se, não com o fato de os protagonistas terem uma sombra, mas sim com a diferente silhueta que ela adquire ao observá-la quando em comparação ao corpo de seus criadores. Ora, se a sombra é uma projeção de formato semelhante, um duplo sintético do corpo referente, tal sombra não poderia, a princípio, pertencer aos poetas pela não correspondência entre suas formas.

Em sua análise, Casati ( 2001 ) chega à conclusão de que as sombras lançadas pelas almas, como representadas no afresco, são somente uma solução visual à representação pictórica, a que ele chama de “sombras de ancoragem”; isto é, uma porção de sombra que se lança em uma pequena área, no ponto em que a base de um corpo toca o chão, e que, por sua simplicidade e por sua dimensão reduzida, não causa muita interferência visual em uma composição. Esta sombra teria a finalidade de inserir e situar; “ancorar” as figuras em seu espaço de modo claro para a percepção visual, sem que elas pareçam à deriva na imagem.

As sombras de Dante e Virgílio, em contrapartida, não se resumem à indicação espacial das figuras, elas se expandem em formato ovoide, de maneira que em nada correspondem à silhueta de seus criadores. Ainda segundo o filósofo, o pintor Signorelli, não dispondo de uma teoria das sombras que o auxiliasse na composição, adota a forma abstrata oval como signo genérico do elemento sombra para solucionar formalmente sua representação e concluir a obra. Não obstante, outra possibilidade seria isolar a figura central e, com algumas fontes de luz incidindo sobre o modelo, observar a sombra real produzida e esboçá-la em estudos preparatórios para, então, transcrevê-la para a pintura final – podemos afirmar que a sombra observada nestas análises não sofreria alterações em sua forma original, ou seja, ela corresponderia à silhueta da personagem, visto que o relevo onde a mesma está pontualmente localizada é plano.

Outra solução para os problemas causados pelas projeções de sombras nos é dada por um afresco da Capela Brancacci, concluído em 1425 por Masaccio, São Pedro cura com sua sombra ( fig. 6 ).

Figura 6.
Masaccio. São Pedro cura com sua sombra , 1425. Afresco, 232 x 162 cm. Capela Brancacci, Santa Maria del Carmine, Florença.

Nesta representação, vemos São Pedro em primeiro plano à direita, passando por outras personagens, deixando-os em planos subsequentes à medida que caminha por eles, até o momento em que se coloca ao lado de um jovem bem debilitado; este, deitado, com pernas atrofiadas e usando de apoios de braços para se inclinar ligeiramente em direção a Pedro. Ao chegar nesse ponto, nossa visão pode ser conduzida novamente para o fundo da imagem – quando passamos a olhar as personagens secundárias, uma a uma. Nesse movimento, observamos, em curva ascendente, os enfermos curando-se gradativamente enquanto Pedro passa por eles, até chegarmos às duas últimas figuras, totalmente de pé, curadas: a penúltima agradecendo o momento da cura e a de trás já se retirando. 7 Temos, com isso, um indicativo de tempo na narrativa visual, dado pelo apóstolo.

O elemento de ligação entre Pedro e os enfermos é a sua sombra, que toca o grupo da esquerda, realizando o milagre. As figuras à esquerda estão do lado oposto à fonte de luz e são interceptadas por Pedro e João; o que acontece, porém, é que as sombras lançadas por estes não cobrem as personagens enfermas, como deveria acontecer naturalmente: elas simplesmente os tocam, ou passam por baixo dos indivíduos, como sugere Casati ( 2001 ), sem escurecê-los. Para o teórico, diferente dos casos anteriormente citados, este detalhe refere-se menos a uma questão puramente pictórica do que poética em relação ao elemento sombra – fato que está implícito no título dado à pintura.

Stoichita ( 2016 ) corrobora com esta interpretação, observando que o campanário de um templo situado nos planos mais afastados da composição nos dá outro índice conceitual com relação à posição das personagens:

A solenidade dos apóstolos, bem como seu poder milagroso, resulta do facto [ sic ] de terem acabado de sair daquele espaço sagrado. Por conseguinte, o poder de que é dotada a sombra de Pedro não passa da exteriorização de um virtus adquirido nas misteriosas profundezas do templo.

(STOICHITA, 2016 , p. 61)

Para o autor, mesmo com as pesquisas visuais sobre perspectiva e projeções de sombra protagonizadas por Leonardo Da Vinci e Albrecht Dürer, os artistas do séc. XVI mostraram-se cautelosos e pouco exploraram o uso de sombras projetadas em suas composições. Então havia, por um lado, um crescente desenvolvimento da pesquisa teórica sobre as sombras e, por outro lado, um rigoroso controle sobre a representação visual delas, na busca de uma clareza técnica da sintaxe pictórica, bem como um ideal de equilíbrio, aos moldes clássicos. De qualquer modo, o que era uma aparente desatenção, como mencionado por Casati ( 2001 ), torna-se uma espécie de desinteresse seletivo pelas projeções de sombra durante o Cinquecento . 8

As raras exceções ocorrem apenas em obras que trazem esse elemento como um dado crucial no desenvolvimento de uma temática geral ou em casos em que é ela o próprio tema abordado, como na imagem de Masaccio, há pouco descrita. Neste caso, como conclui o teórico, o uso de sombras criadas na superfície da pintura era duplamente necessário, pois: 1. funcionava na ambientação da cena, em contexto específico com a arquitetura do local onde a obra foi instalada: ao integrar a fonte de luz externa – de uma janela real – com a iluminação das figuras representadas, para potencializar a persuasão iconográfica de sua obra; e 2. funcionava como elemento simbólico, participante da narrativa visual. Neste afresco de Masaccio, portanto, o uso conceitual da sombra (aqui tratada como “exteriorização da alma” de Pedro) já nos parece mais intencional e menos intuitivo que nas pinturas anteriores.

Conceitual ou prático, a sombra é um elemento que dá ao espectador o testemunho do corpo-objeto ao qual se refere. Para corroborar com esta questão, trazemos uma pintura de Bellotto (fig. ¿fig:7? ). A produção do artista veneziano extrapola o recorte temporal proposto inicialmente neste artigo, mas vale mencioná-la.

175 8-
Bernardo Bellotto. A Residência Imperial de Verão de Schönbrunn vista do pátio , 1761. Óleo sobre tela, 135 × 235 cm. Museu de História da Arte, Viena.

A paisagem urbana retrata uma cena de cotidiano no Palácio de Schönbrunn (ou Palácio de Versalhes). Nesta imagem, cada elemento tem sua sombra correspondente, inclusive algumas figuras isoladas – e demasiadamente iluminadas – sob a sombra do muro à esquerda, que também lançam uma sombra no chão. Estas sombras seriam fisicamente impossíveis por dois detalhes: primeiro pelo fato de as figuras lançarem uma sombra daquela densidade sobre outra sombra preexistente no espaço; segundo, por estas figuras lançarem suas sombras também para a esquerda, do mesmo lado onde se situaria a fonte de luz – que projeta a sombra de todos os demais elementos para o lado direito da composição. Lembramo-nos dos três princípios fundamentais de uma teorização das sombras propostos por Casati ( 2001 , p 71): “um, toda sombra é sombra de algum corpo; dois, um corpo não projeta sua sombra através de outro [corpo]; três, para fazer sombra, um corpo tem de receber luz”.

Entretanto, o que nos chama a atenção de imediato é outra ocorrência, produzida também no muro, à esquerda, e por sua sombra: vemos, na parte mais alta da arquitetura, um vaso decorativo, que pressupomos, pela simetria, existir um par que está fora dos limites de enquadramento da composição. Observando o chão onde a sombra desta construção é projetada, não vemos a sombra que corresponderia a este segundo vaso e, logo, questionamo-nos se de fato este elemento decorativo existiria.

Casati, por sua vez, nos dá uma hipótese:

Isso nos faz pensar que as sombras foram traçadas em separado e que Bellotto, ou um ajudante, tenha se achado na embaraçosa situação de ter de decidir se punha uma sombra a mais (caso o vaso não existisse) ou uma sombra a menos (caso o vaso fizesse parte da arquitetura).

(CASATI, 2001 , p. 267)

O fato de a sombra deste grande elemento arquitetônico nos parecer acrescentada durante o processo de criação da obra, ou mesmo após sua finalização, pode ser plausível por meio de algumas poucas figuras à esquerda, primeiro, porque recebem intensa iluminação mesmo à sombra do muro; segundo, porque lançam sua própria sombra no chão, dentro da sombra do muro.

Voltando-nos para as conclusões de Casati:

A opção conservadora eliminou a sombra. Mas, assim fazendo, eliminou também o testemunho do objeto que a produz. Mais do que pelo acontecimento histórico que representa, o quadro se faz lembrar por seu conteúdo singular: ele nos diz que certo objeto situado fora da cena representada não existe.

(CASATI, 2001 , p. 267)

Esta obra confirma o primeiro daqueles princípios definidos por Casati ( 2001 ), em que ele afirma a condição necessária da existência de um corpo que intercepta a luz para que a sombra exista; ou seja, sem o objeto referente, a sombra não pode existir. Na pintura de Bellotto, é mais naturalmente aceito por nós o fato de que o vaso não existia no momento de execução da pintura do que a suposição de que ele existia; e o artista, por algum motivo, não pintou sua sombra.

Por meio de escolhas poéticas, como as exemplificadas aqui, o uso das sombras parece se tornar progressivamente intencional por muitos artistas e, a partir de então, surgem estudos visuais mais sistematizados sobre as sombras, com pesquisas empíricas ou mesmo de extração fenomenológica; que excedem os propósitos deste ensaio, mas que poderão ser abordados em outro momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o regaste histórico e conceitual aqui apresentado, em suma, entendemos sombra como um conceito espacial, uma vez que distingue um espaço onde há pouca incidência de luz. Sombras são fenômenos físicos, objetivos, que cumprem importante papel na percepção visual ao modelar e contextualizar as formas no ambiente. São também fenômenos psicológicos, subjetivos, que criam imaginários coletivos em diversas culturas e que, por esse motivo, nos oferecem elementos simbólicos para atuação no campo representativo da arte.

Vimos, igualmente, como tal dualidade das sombras gerou, historicamente, diversos conflitos de ordem prática que culminaram em uma espécie de “tabu cultural”, nos termos de Casati ( 2001 ), sobretudo se relacionado com representações naturalistas. A arte da Idade Média distancia-se desse tipo de representação e é, no senso comum, considerada tecnicamente inferior quando comparada a artes de extração clássica. A partir de uma observação atenta das sombras representadas em algumas poucas obras medievais, podemos nos questionar se há de fato uma regressão técnica, ou se a estilização da pintura medieva poderia ser considerada uma solução poética intencional.

Por um lado, alguns artistas destacados parecem nos mostrar um uso espontâneo das sombras em suas pinturas, revelando, a partir de um exame minucioso, certas inconsistências de perspectiva e formatos de sombra. Por outro lado, porém, certos artistas parecem justamente se valer das limitações técnicas da época para, conscientemente, explorar aplicações metafóricas das sombras em suas pinturas, como no caso de Di Paolo, Signorelli e Masaccio por exemplo.

Percebemos, portanto, a importância do uso das sombras para ampliar não somente as técnicas, mas também a significação do trabalho em arte. E não apenas em termos de poética, de processo criativo, mas também para a apreciação e leitura simbólica de obras artísticas. Baxandall ( 1997 ) defende ainda que as sombras são fundamentais para os conhecimentos empírico e científico de mundo.

Dessa maneira, e a partir deste breve recorte da História da Arte, buscamos expor como as sombras podem ser um elemento condutor de conhecimento específico das Artes Visuais, podendo se tornar, também, um recurso didático quando direcionado para a observação atenta dos pormenores de composições artísticas, colaborando para a leitura e para a interpretação das imagens pelo interlocutor; além de oferecer um ponto de partida para formulação de hipóteses formais e simbólicas que podem, por ventura, auxiliar na construção de narrativas históricas alternativas àquelas estabelecidas no senso comum.

Não podemos dizer, com certeza, que os artistas da Idade Média já possuíam conhecimento das complexas relações que as sombras estabelecem enquanto fenômeno visual; tampouco seria razoável generalizar que esses artistas não possuíam tal conhecimento. Porém pudemos refletir sobre o notável conhecimento que tinham da sombra como um índice de corporeidade, pela própria antítese da pintura medieval, que se pretendia incorpórea para que, assim sendo, pudesse representar idealizadamente as figuras sacras da mitologia cristã e/ou a espiritualidade de sua época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALIGHIERI, Dante. Purgatório. In: _____. A divina comédia. São Paulo: Atena, 2003. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf >. Acesso em: 06 abr. 2021.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf
  • ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Cengage Learning, 2015.
  • BAXANDALL, Michael. Luz e sombra. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997.
  • CASATI, Roberto. A descoberta da sombra: de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • LICHTENSTEIN, Jacqueline. O mito da pintura. In: _____ (org.). A pintura: textos essenciais. São Paulo: 34, 2007. v. 1, p. 17-24.
  • PEIRCE, Charles. Ícone, índice e símbolo. In: _____. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 2017. p. 63-76.
  • ROMAN Painting. In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: Museu Metropolitano de Arte, 2004. Disponível em: < http://www.metmuseum.org/toah/hd/ropt/hd_ropt.htm >. Acesso em: 06 abr. 2021.
    » http://www.metmuseum.org/toah/hd/ropt/hd_ropt.htm
  • STOICHITA, Victor. Breve história da sombra. Lisboa: KKYM, 2016.

Notas

  • 1
    De acordo com Michael Baxandall, em nossa percepção, a ambientação dos objetos é imediata e ocorre antes mesmo do conhecimento dos objetos em si. A partir daí, “(...) graças a uma espécie de equação diferencial com os valores de luz e da atmosfera, fortalecemos as percepções de distância que derivamos da perspectiva ou da interposição (...)” (BAXANDALL, 1997 , p. 146).
  • 2
    Em linhas gerais, tomamos o conceito de índice a partir da semiótica de Peirce ( 2017 ). O teórico define índice como um signo que se relaciona ao seu objeto referente, não necessariamente em virtude de uma semelhança com ele, mas pelo fato de ser afetado por este mesmo objeto. Sendo esta qualidade do índice, afetada pelo objeto, que se dirige aos sentidos ou memória do sujeito interpretante. Assim, entendemos sombra como um índice de corporeidade, visto que não é fisicamente semelhante ao corpo de seu objeto referente (apesar de ser uma espécie de síntese visual do mesmo), mas é um fenômeno que indica sua presença física diante de uma fonte luminosa.
  • 3
    Baxandall ( 1997 ) alerta-nos sobre a iminência de ambiguidades no uso desse termo, sobretudo por também denominar uma técnica de desenho. Portanto, ele propõe uma diferenciação entre duas subcategorias mais específicas: 1. sombreado oblíquo, quando a luz incide em eixo vertical com o objeto e 2. sombreado inclinado, quando em eixo horizontal;
  • 4
    Segundo Arnheim, o equilíbrio formal (simétrico ou assimétrico) de uma imagem é indispensável para sua conclusão, uma vez que apresenta o êxito das relações formais (enquanto forças perceptivas) entre si, e das formas com o espaço. Em suas palavras: “Numa composição equilibrada, todos os fatores, como configuração, direção e localização determinam-se mutuamente de tal modo que nenhuma alteração parece possível, e o todo assume o caráter de ‘necessidade’ de todas as partes. Uma composição desequilibrada parece acidental, transitória, e, portanto, inválida” (ARNHEIM, 2015 , p. 13). É nesse sentido que, ao falarmos de equilíbrio, usamos o termo resistência visual para dizermos de sombras como formas psicologicamente densas, cuja configuração cria zonas de alto interesse visual em espaços pictóricos específicos, que acabam por prejudicar a visualização total da imagem como uma unidade integrada de formas.
  • 5
    Que corresponde ao chamado Segundo Estilo Romano, caracterizado pela presença de elementos arquitetônicos, como colunas e arcos, que se abrem em janelas para ambientes externos, emoldurando paisagens naturais ou edifícios romanos (Cf. ROMAN Painting. 2004 ).
  • 6
    No Alto Renascimento, as mesmas personagens da mitologia cristã podem ser vistas sem tais auréolas, indicando uma progressiva humanização destas figuras, como uma evidência visual do alinhamento de artistas, a partir do Cinquecento , com os ideais filosóficos do antropocentrismo e humanismo.
  • 7
    Segundo o texto bíblico: “E muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos. Estavam todos unanimemente no alpendre de Salomão. E a multidão dos que criam no Senhor, tanto homens como mulheres, crescia cada vez mais, de sorte que transportavam os enfermos para as ruas e os punham em leitos e em camilhas, para que ao menos a sombra de Pedro, quando este passasse, cobrisse alguns deles. E até das cidades circunvizinhas concorria muita gente a Jerusalém, conduzindo enfermos e atormentados de espíritos imundos, os quais eram todos curados” (A BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p.947).
  • 8
    Neste ponto Stoichita discorda de Casati; pois, para o primeiro, a escassez de sombras projetadas na Idade Média dava-se não por desatenção, mas por solução criativa, já que a imagem medieval tinha como propósito representar-se “isenta de corporeidade”, o que, de certa forma, estava em consonância com o ideal de espiritualidade da época. Podemos dizer ainda que a visualidade sintética e estilizada da pintura medieval também se deu por um distanciamento da arte clássica ou até mesmo por conta da iconoclastia cristã. Em qualquer um destes casos, fica evidente a falta de compromisso com representações naturalistas das figuras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2021
  • Aceito
    15 Mar 2024
location_on
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro