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OLHAR DECOLONIAL NO ARQUIVO ESPECULAR DE JONATHAS DE ANDRADE* * Este artigo é uma versão mais extensa do texto “Corpo a Corpo - As Imagens Especulares de Jonathas de Andrade” publicado originalmente no livro Midiateca - Escritos Sobre Fotografia Contemporânea Brasileira Vol.3 - A transgressão na Fotografia, editado por Antonio Pacca Fatorell; Victa de Carvalho Pereira da Silva; Maria Teresa Ferreira Bastos, p.21-31. LP Press, Rio de Janeiro, Brasil, 2022.

JONATHAS DE ANDRADE’S CLOSE-QUARTER COMBAT WITH SPECULAR IMAGES

MIRADA DECOLONIAL EN EL ARCHIVO ESPECULAR DE JONATHAS DE ANDRADE

RESUMO

O trabalho de Jonathas de Andrade explora ecos do passado colonialista, em especial na população e nos imaginários nordestinos, bem como a herança cultural do projeto modernista que marcou a arquitetura e o urbanismo brasileiros na segunda metade do século XX. As suas obras criam um curto-circuito de enunciados e temporalidades, engendram um imbricamento entre o corpo da imagem e a imagem dos corpos, colocando em operação a cartografia das cidades e o mapeamento das subjetividades. Neste artigo apresentamos um breve panorama das obras do artista nos detendo em: Amor e Felicidade no Casamento (2007), Educação para Adultos (2010), 4000 disparos (2010), Tombamento (2013), ABC da cana (2014), O caseiro (2016) e O Peixe (2016). Nos valemos de um aporte teórico de Rancière, Foster, Bosi, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE
contemporânea; Arquivo; Fotografia expandida; Instalação; Videoarte

ABSTRACT

Jonathas de Andrade’s work explores echoes of the colonialist past, especially in Brazil’s Northeastern population and imaginary, as well as the cultural heritage of the modernist project that marked Brazilian architecture and urbanism in the second half of the 20th century. His oeuvres create a short circuit of utterances and temporalities, generating an overlap between the body of the image and the image of the bodies, putting into operation the cartography of cities and the mapping of subjectivities. In this article we provide a brief overview of the artist trajectory, concentrating on the following selected works: Amor e Felicidade no Casamento (2007), Educação para Adultos (2010), 4000 disparos (2010), Tombamento (2013), ABC da cana (2014), O caseiro (2016) and O Peixe (2016). We will use a theoretical contribution from writers such as Rancière, Foster, Bosi, among others.

KEYWORDS
Archival Impulse; Contemporary Art; Expanded Photography; Installation; Video-Art

RESUMEN

El trabajo de Jonathas de Andrade explora los ecos del pasado colonialista, especialmente en la población y los imaginarios del nordeste de Brasil, así como la herencia cultural del proyecto modernista que marcó la arquitectura y el urbanismo brasileños en la segunda mitad del siglo XX. Sus obras crean un cortocircuito de enunciados y de temporalidades, engendran una imbricación entre el cuerpo de la imagen y la imagen de los cuerpos, poniendo en funcionamiento la cartografía de las ciudades y el mapeo de las subjetividades. En este artículo presentamos un breve panorama de las obras del artista, deteniéndose en: Amor e Felicidade no Casamento (2007), Educação para Adultos (2010), 4000 disparos (2010), Tombamento (2013), ABC da cana (2014), O caseiro (2016) y O Peixe (2016). Para eso, se vale del aporte teórico de Rancière, Foster, Bosi, entre otros.

PALABRAS CLAVE
Arte contemporáneo; Archivo; Fotografía expandida; Instalación; Videoarte

INTRODUÇÃO1 1 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto GHOST (2022.08396.PTDC) e ICNOVA (UIDB/05021/2020).

Hal Foster, em seus textos, An Archival Impulse (2004FOSTER, Hal. An Archival Impulse. October. v. 110, Autumn 2004, p.3-22. ) e Arquivos da Arte Moderna (2002FOSTER Hal, Archives of Modern Art. In Design and Crime. Londres, New York: Verso, 2002 [traduzido e publicado na revista Arte e Ensaios, v. 19, n. 19, 2009] .), aponta que desde o final da década de 1960 operou-se uma volta dos artistas em direção à obra de arte enquanto arquivo ou como arquivo. Este novo campo faz surgir a figura o artista-arquivista que seria um desdobramento da ideia do artista-curador, agora movido sob a força de um impulso ou pulsão arquival. Este seria um fenômeno contemporâneo, o que Anna Maria Guasch (2013)GAUSCH, Anna Maria. Os lugares da memória: a arte de arquivar e recordar. Revista-Valise, Porto Alegre, v. 3, n. 5, ano 3, julho de 2013. identifica como mais uma das famosas turns. Tais como surgiram a linguistic turn ou a pictorial turn, agora se operaria um novo archival turn ou em português uma “virada arquivística”.

Os arquivos, inventários, catálogos ou álbuns surgem então como ferramentas especulativas, como forma de explorar uma linguagem poética autoral. Sem necessariamente apelar para o real ou se apoiarem em seu caráter informativo e histórico, muitos artistas se utilizam do arquivo para reescrever ou revisitar o passado, explorando sua potência fabuladora, produzindo novos pontos de vista sobre um evento ou até mesmo criando “novos-falsos” arquivos. São artistas que compartilham um interesse pela reescrita da memória coletiva e individual, pelas fissuras, ruídos e descontinuidades da História. Acreditamos que Jonathas de Andrade pode ser colocado nesta cepa de artistas, em particular ao observarmos a escolha privilegiada que este artista dá ao uso do material de arquivo e da película analógica em seus trabalhos.

Jonathas de Andrade é artista plástico, nascido em 1982, natural de Alagoas. O artista se formou em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco em Recife. Teve suas obras expostas na 32ª e 29ª Bienal de São Paulo, 7ª Bienal do Mercosul, Museu de Arte do Rio, MASP, Guggenheim, MAAT de Lisboa, e, mais recentemente, participou da 59ª Bienal de Veneza de 2022. Andrade é um artista multimídia que trabalha com diferentes meios, oscilando entre a instalação, a fotografia e o vídeo. O artista é representado pelas Galeria Vermelho, Galleria Continua e Alexander and Bonin.

Em seus trabalhos, Jonathas de Andrade explora ecos do passado colonialista na população e imaginários nordestinos, bem como a herança cultural do projeto modernista que marcou a arquitetura e urbanismo brasileiros na segunda metade do século XX. Através de estratégias que amalgamam ficção e realidade, as obras do artista criam um curto-circuito de enunciados e temporalidades, geram um imbricamento entre o corpo da imagem e a imagem dos corpos e colocam em operação a cartografia das cidades e o mapeamento das subjetividades, criando um jogo entre a perspectiva do colonizado e do colonizador, bem como entre a do artista e do espectador. Nelas vislumbramos as dinâmicas da sociedade brasileira sob uma ótica decolonial sutil e repleta de ironia. Neste artigo iremos analisar as seguintes obras do artista: Amor e Felicidade no Casamento (2007), Educação para Adultos (2010), 4000 disparos (2010), Tombamento (2013), ABC da cana (2014), O caseiro (2016) e O Peixe (2016).

COLONIALISMO, COLONIALIDADE E CULTURA

Para entrarmos na discussão sobre os aspectos decoloniais nas obras de Jonathas de Andrade é preciso antes fazer um breve recuo conceitual e histórico acerca do colonialismo. Iremos, no entanto, abordar o complexo tema apenas de maneira introdutória, como ferramenta disparadora e porta de entrada (dentre muitas possíveis) para abordar problemáticas sensíveis ao trabalho do artista.

Primeiramente, é importante distinguir os conceitos de colonialidade e colonialismo. O colonialismo é a experiência histórica localizada e concreta, iniciada e vivida ao longo do século XV nas Américas, na África e na Ásia, durante os períodos das grandes navegações e do mercantilismo e tendo como o seu ápice o imperialismo. Entre 1880 e 1914 estima-se que um quarto do globo era dominado por colônias europeias, principalmente da Grã-Bretanha, da França, da Alemanha, da Itália, da Holanda e da Bélgica. A colônia era uma experiência de dispositivos de controle e uma administração política e cultural, baseada na economia do extrativismo e na divisão de poder entre metrópole e colônia.

Já a colonialidade é uma lógica de poder que extrapola o supracitado período histórico. A colonialidade seria, por sua vez, uma forma pela qual o colonialismo funciona como política e hierarquizações, produtora de relações de poder e de subjetividades. Como experiência, a colonialidade engendra práticas e lógicas internas de funcionamento que perduram para além do período colonial, mesmo após a emancipação e independência das colônias, criando processos de endocolonização.

Nesse sentido o Sul seria uma figura metafórica e não uma localização geográfica, representaria todas as regiões do mundo submetidas ao colonialismo europeu e que ainda não atingiram níveis de desenvolvimento econômico. O Sul e o Norte nunca seriam homogêneos, há grupos de imigrantes, indígenas e outras minorias que transitam, migram e ocupam os territórios hegemônicos, assim como “pequenas Europas”, ilhas de influência nas colônias, representadas pelas elites locais, que até hoje se beneficiam da dominação colonial capitalista do passado.

O capitalismo mercantilista aporta nas colônias, portanto, não apenas como um modelo de domínio político e econômica macroestrutural, mas também se infiltra na ordem microestrutural, colonizando a episteme local, causando diversos processos de “epistemicídio”, ou seja, de aniquilação de um conjunto de imaginários, culturas e saberes. Esta seria uma outra forma de colonização, uma expropriação imaterial ou uma colonização de mentalidades2 2 É o que Aimé Césaire (1978) em “Discurso sobre o Colonialismo” nomeia como asfixia da trama sensível que costura o tecido social local e que produz formas de se dominar corpos e almas. A colonização se dá, portanto, não somente por meio da dominação militar e econômica do território, mas principalmente pelo controle do campo simbólico, pela proibição das danças, dos cantos e da religião de um povo. . Assim, a cultura de um povo se torna um ponto fulcral de tensões que reflete os embates entre oprimidos e opressores.

A relação intricada entre economia e cultura pode ser analisada na origem etimológica da palavra colonialismo. Alfredo Bosi (1996BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, Ed. Schwarcz, 1996. ) relembra em “Dialética da Colonização’ que as palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo. Colo significava aquele que cultivava a terra, de onde derivou-se as palavras “colono” e “inquilino”. Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo na qual se pode trabalhar3 3 Terry Eagleton relembra que a palavra Cultura deriva de colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar. Cultura significaria o cuidado do homem com a Natureza. Donde deriva a palavra agricultura. Um de seus significados originais é “lavoura” ou “cultivo agrícola”, o cultivo do que cresce naturalmente. A palavra inglesa coulter, que um cognato de cultura, tendo origem na palavra latina culcer, que, entre outras coisas, designa a relha de um arado. Colere pode significar desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de “habitar” evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”. (cf. EAGLETON, 2011, p. 9-50) . O colonus seria aquele que cultiva uma propriedade rural em vez do seu dono. Nessa relação com a terra, fundam-se as sociedades humanas, a produção dos meios de vida, as relações de poder, a esfera econômica e a esfera política. Essas relações reproduzem-se e potencializam-se toda vez que “se põe em marcha um ciclo de colonização” (Bosi, 1996BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, Ed. Schwarcz, 1996. , p.11-13).

Finalmente, para Bosi (1996BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, Ed. Schwarcz, 1996. , p.15), a história etimológica da palavra colônia se amalgama com a religião e a arte. O substantivo cultus, quer dizer não só o cuidado com a terra como também o culto dos mortos, forma de cultivar a lembrança, de reviver ou esconjurar o passado. O passado enraíza-se na experiência de um grupo por mediações simbólicas como: o canto, a dança, o rito, a oração. Há dois significados de cultus, portanto: (i) o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado; (ii): o que se trabalha sob a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em honra dos antepassados. Bosi retrata a colonização na costura entre signos telúricos e cria uma imagem metafórica: o ser humano, preso à terra, vai nela abrindo covas que, simultaneamente, o alimentam vivo e o abrigam morto. No mundo arcaico tudo isto fundamenta a religião “vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que sustem a sua identidade” (Bosi, p. 15).

Nesse contexto inserem-se os culto e ritos do casamento e organizações familiares. Como Frederich Engels (1984) explanou em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” a premissa da família nuclear tradicional se funda sob a lógica da herança e da linhagem via o domínio do corpo da mulher. O casamento e o dote serviam de controle sobre a virgindade feminina, que, imaculada, protegia os bens da família de uma transferência indevida. Transforma-se o corpo feminino, portanto, em um dispositivo que regula as trocas econômicas e simbólicas do capitalismo burguês. Essa cultura heteronormativa funda um modelo de família, baseado no casal composto por um homem e uma mulher que geram herdeiros e sucessores, é essencial para a divisão de classes e o status quo social.

Diversas pesquisadoras de gênero e feministas expandiram essa exegese sobre a família burguesa nuclear ocidental sob uma perspectiva do feminismo intersecional, racializado e pós-colonial no contemporâneo. Silvia Federici (2017) irá, por exemplo, demonstrar como o trabalho doméstico não-remunerado feito pelas mulheres foi, com efeito, o que manteve o operário alimentado para ir às fábricas e o que fazia as engrenagens da exploração da mais valia funcionar em pleno vapor. Muitas destas intelectuais demonstram como formas de gênero e sexualidade são também culturas impostas e significadas no “Sul global” como uma construção eurocêntrica e como parte do dispositivo colonial de controle e poder. É o que María Lugones (2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Debate Colonialidade do Gênero e Feminismos Descoloniais. Revista de Estudos Feministas, v. 22, n. 3, dezembro de 2014. ) conceitua como a “lógica categorial dicotômica e hierárquica” que funda o capitalismo ocidental.

Para Lugones, somente civilizados podem ser alçados as categorias ontológicas de “homem” e “mulher”. A descrição dos povos originários no período colonial era feita a partir das categorias binárias do macho e da fêmea e os colocavam como parte do mundo natural. Essa estratégia permitiu que os colonizadores animalizassem os indígenas e povos colonizados e os diferenciarem dos europeus como não-humanos. Isto demonstra como a diferenciação sexual e de gênero se trata, com efeito, não de dados biológicos ou naturais, mas sim de categorias morais que são parte de um projeto biopolítico. A masculinidade e feminilidade são, portanto, ideias morais que nascem de um processo civilizatório. A colonialidade, desse modo, transborda e se desdobra nas ideologias de raça, nas formas contemporâneas de xenofobia, na organização comportamental de gênero e no controle dos corpos e da sexualidade.

Este modelo se vê diante de sua dissolução derradeira no contemporâneo, impulsionada pelos debates da revolução sexual, do feminismo decolonial e interseccional, da luta por direitos civis das ditas “minorias” (que, como sabemos, são a maioria quantitativa da população), impulsionados pelos movimentos de contracultura dos anos 1960 e que no contemporâneo continuam a tensionar as formas de amar e viver-junto. Essa lógica do imaginário colonizado, que Suely Rolnik (2016) denomina “inconsciente colonial capitalístico”, uma perspectiva “antropo-falo-ego-logocêntrica” que fundou formas de poder implícitas interiorizadas no sujeito, se encontra em crise incessante. Como veremos a seguir, esses debates sobre a herança colonial e apreensão dos imaginários podem ser observados na desconstrução de arquivos na obra de Jonathas de Andrade.

CULTOS E RITOS DA IMAGEM - AMOR E FELICIDADE NO CASAMENTO (2007)

Amor e felicidade no casamento (2007)4 4 Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/amor-e-felicidade Acesso em: 2 abr. 2024. (figuras 1 e 2) é o primeiro trabalho de Jonathas de Andrade com o qual tivemos contato. A obra foi exibida na exposição Álbum de Família, com curadoria de Daniella Géo, sediada no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, realizada entre os dias 1º de agosto a 19 de setembro de 2015, no Rio de Janeiro. A proposta da exposição, segundo texto curatorial no catálogo5 5 Disponível no link: https://issuu.com/berrix/docs/album_de_familia?fbclid=IwAR1cxLxpZEzhLsL7rTqe48rA49xEjNwuSV6PSiZKH7eoLhnk6zz4amD-Aq0 . Acesso em: 2 abr. 2024. , era demonstrar como as manifestações de artistas contemporâneos têm refletido as transformações sociais no âmbito da instituição familiar.

Figuras 1 e 2
Jonathas de Andrade, Amor e felicidade no casamento, 2007. Fotoinstalação, 80 fotografias tipo pôster, dimensões variáveis e páginas de 15x20cm.

O trabalho Amor e felicidade no casamento (2007)6 6 O trabalho foi também exibido no Instituto Itaú Cultural (São Paulo), Furnas Cultural (Rio de Janeiro) e na Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco). Uma versão impressa de caderno de artista, feita em parceria com Yana Parente, também pode ser comprada em edição limitada. A edição financiada pelo autor, pela Ed. dos autores, 2008, publicada em Recife no formato: 1 luva com 5 cartazes: il. color. 16 x 12 x 1 cm + 2 fotos 9 x 12,7 cm. era composto por 85 fotografias tipo pôster, fixadas nas paredes do andar térreo do centro cultural. Ao adentrarmos no espaço nos deparávamos com uma série de fotografias desbotadas, com dimensões variáveis de 15x20cm, no clássico formato das fotos de álbum de família, como se retiradas de um álbum tipicamente presente nas casas da classe média brasileira. Das 85 imagens, 49 fotografias eram impressões feitas pelo artista, enquanto as outras 36 tratavam-se de páginas retiradas de um livro homônimo Amor e felicidade no casamento, de Fritz Kahn, datado de 1974.

O livro oferece conselhos matrimoniais a jovens casais, como um manual ou guia de boas práticas para o sucesso na vida a dois. Chama a atenção o teor dos conselhos matrimoniais que reflete premissas patriarcais do que seria um “bom” casamento. As fotografias de um jovem casal recém-casado foram então agrupadas em pequenas ilhas, entremeadas por páginas arrancadas do livro com certos trechos obliterados com rasuras e recortes, como se fossem arquivos confidenciais censurados.

As fotografias alternavam entre dois tipos de registros: um mais “artificial”, com cenas posadas, e outro mais “orgânico”, que simulava uma espontaneidade. No primeiro registro os jovens são retratados de maneira rígida e sem naturalidade; como manequins, sorriem friamente em meio ao esforço apático para manter a pose no estúdio fotográfico. Já no segundo, vemos tomadas amadoras, shots do cotidiano tirados sem preocupação com a composição no “calor do momento”. Dois regimes de imagens do casamento ou da vida cotidiana, corriqueira ou da vida comum, são, por fim, apresentados.

Em uma espécie de linha do tempo não-teleológica o reino das aparências e da normalidade vai aos poucos se desconstruindo na sua própria morfologia das imagens. As fotos na linha do tempo vão de tornando progressivamente mais desalinhadas e decompostas. Os ambientes domésticos - com mobiliário típico dos anos 1960 e 1970 - se desordenam em um caos de objetos e os modelos sorridentes são substituídos por registros mais soturnos e sombrios. A casa apresenta traços de decadência. O mofo se torna cada vez mais presente na materialidade da imagem e, por fim, o orgânico toma conta, literalmente, da superfície da imagem.

Ambos os registros, tanto o posado quanto o espontâneo, no entanto, são igualmente artificiais em sua construção. As imagens supostamente “autênticas” do passado foram, na realidade, digitalmente produzidas com dois atores, Luciana D’Anunciação e Cristiano Lenhart, que simulam o ethos da época. Com efeito, nos damos conta que toda aquela mise-en-scène foi criada por Jonathas de Andrade inspirada pelo livro que deu, por fim, o nome à obra. Nesse sentido, o livro serviu como disparador fabulatório para o trabalho, cujas imagens analógicas foram envelhecidas na pós-produção, a partir da deterioração proposital das fotografias. Nesta série, Andrade joga ludicamente com o espectador, que se vê entre a pausa da pose imobilizada do estúdio e o instantâneo veloz, entre identidade e performatividade, entre o naturalismo e a teatralidade, entre objetivo e subjetivo, enfim, entre os regimes visuais do documental e do ficcional.

Há também uma curiosa operação metalinguística que faz referência a historicidade do próprio campo. A escolha de composição das fotografias posadas produz um comentário acerca das do gênero retrato e autorretrato. A produção de retratos atravessa uma parcela considerável da história da arte e da fotografia. Em meados do século XIX, com invenção do daguerreótipo em 1839, os pintores retratistas irão trocar a tinta à óleo e a gravura pelo dispositivo fotográfico, sem, no entanto, abrir mão das regras de composição que herdaram da pintura, como, por exemplo, o olhar frontal com leve inclinação três quartos e o enquadramento que privilegia o busto do retratado (Bastos, 2014BASTOS, Maria Teresa. O Retrato Fotográfico entre a Pose e a Performance. Anais do XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014.). Até hoje essa iconografia, marcada pelos códigos do regime escópico da perspectiva renascentista (Jay, 2020JAY, Martin. Regimes escópicos da modernidade / Tradução de Lara Casares Rivetti. Revista ARS, São Paulo, v. 18, n. 38, 2020.)7 7 7 Segundo Martin Jay em “Regimes Escópicos da Modernidade” (2020, p. 333-334): “O espaço tridimensional racionalizado da visão perspectiva poderia ser representado em uma superfície bidimensional por meio da adesão às regras de conversão expressas em Da Pintura, de Alberti, e em tratados posteriores de nomes como Viator e Dürer. O recurso fundamental se basearia na projeção mental de pirâmides, ou cones, simétricas, sendo um de seus vértices o ponto de fuga em recessão, ou ponto central, na pintura, e o outro, o olho do pintor ou observador. A tela, janela translúcida na famosa metáfora de Alberti, poderia igualmente ser entendida como um espelho plano que reflete o espaço geometrizado da cena retratada no espaço não menos geometrizado projetado a partir do olho.” , são repetidos ad nauseam como fórmulas de “eficácia” e forma “correta” de realizar o registro fotográfico.

Dessa maneira, os retratos e os enunciados presentes nas imagens de Amor e felicidade no casamento (2007) parecem querer produzir uma reflexão especulativa sobre duas economias: visual e libidinal. Em outras palavras, a obra reflete tanto sobre a quebra das regras composicionais que “estruturam” as condições de produção de imagem há cinco séculos, dentro das premissas da janela e moldura renascentistas, bem como produz um comentário sobre o modelo tradicional de família e a moralidade patriarcal que “enformam” e colonizam o imaginário e o gozo dos sujeitos. Ambos os regimes, tanto visuais quanto libidinais, condicionam e esquematizam os comportamentos individuais, até os dias atuais.

A GRAMATICA DA VIOLÊNCIA - EDUCAÇÃO PARA ADULTOS (2010), ABC DA CANA (2014)

As obras Educação para Adultos (2010) e ABC da Cana (2014) (figura 3) também se originam de arquivos que disparam novos olhares especulativos do artista. Eles giram em torno das experiências de emancipação e de opressão das camadas desfavorecidas da população brasileira. Essas duas séries são notadamente marcadas pela releitura de dois “freirianismos”, dois pensadores centrais para a constituição o campo de estudos das ciências sociais no país: o educador e pedagogo Paulo Freire (1921-1997) e o historiador Gilberto Freyre (1900-1987), considerado pelo crítico literário Antônio Cândido, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Paulo Prado, um dos principais intérpretes do Brasil.

Figura 3
Jonathas de Andrade, ABC da Cana, 2014. 26 fotografias tamanho 30x35cm

Educação para Adultos (2010)8 8 Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/educacao-para-adultos. Acesso em: 2 abr. 2024. se originou de um projeto comissionado pela 29a Bienal de São Paulo (2010), a convite do curador Moacir dos Anjos, e com acompanhamento de Ana Maria Maia. O artista utilizou como ponto de partida uma série de 20 cartazes educacionais impressos na década de 1970 e utilizados por sua mãe quando era professora na rede pública de ensino nos anos 1970 e 1990. Andrade notou que esses cartazes utilizavam procedimentos muito semelhantes ao método de alfabetização de Paulo Freire9 9 O método Paulo Freire de alfabetização unia escolarização com formação de consciência de classe. Uma primeira experiência foi aplicada com cinco trabalhadores analfabetos dos quais três aprenderam a ler e escrever em 30 horas. O Golpe Militar de 1964 interrompeu o projeto e Paulo Freire foi perseguido, preso e exilado. . Ele então utilizou os conceitos presentes nos cartazes como base para uma série de encontros diários com seis mulheres analfabetas, durante um mês. Cada palavra era debatida com as mulheres que auxiliavam o artista no trabalho de “tradução” em uma nova cena, colocando em prática a pedagogia do oprimido freiriana por excelência do Mestre Ignorante10 10 Retiramos essa expressão do pensamento do filósofo francês, Jacques Rancière, presente em seus livros O mestre ignorante e Partilha do Sensível. Neles o teórico conta a história de Joseph Jacotot - professor militante que em 1818 funda uma nova proposta pedagógica que detinha a igualdade como princípio e a emancipação como método - nela os “destituídos” de um saber oficial seriam capazes de ensinar os ilustrados, demonstrando que o conhecimento só se realiza, invariavelmente, em uma via de mão-dupla. , que procurava, nas palavras do artista: “dimensionar politicamente a existência do outro” através de palavras e imagens do seu universo cotidiano.

Nesta série é curioso notarmos a capacidade profícua de múltiplos sentidos que são permitidos pela práxis da transcriação11 11 O conceito foi elaborado por Haroldo de Campos. Mais do que uma tradução literal, busca-se nessa compreensão de tradução uma cocriação sob a influência do poema. Trata- se da busca de uma criação sob e não sobre a poesia. A “transcrição” seria um ato “mais propriamente ‘reimaginado’ do que ‘transcriado”, em última instância, uma espécie de coautoria em colaboração com o autor original. , operação que transmuta os códigos da linguagem escrita em linguagem visual. Como a etimologia da palavra tradução12 12 Há um jogo de palavras em italiano que diz: “Tradutor, traidor.” O termo translatio em latim aparece inicialmente como o sentido de “mudança” e “transporte”. Trans-ducere, significa também conduzir através de, mas sobretudo conduzir na via de sua realização, em outras palavras : “conduzir além”. já conota, no ato de traduzir há coisas que escapam e “traem” a fidelidade do sentido unívoco e há também novos caminhos para o qual ela nos conduz. Na obra as duplas de imagens e palavras surgem ora como interpretação literal, ora como alegorias e mesmo metáforas.

O primeiro pôster “Dinheiro”, por exemplo, apresenta uma foto conotativa, meramente ilustrativa: vemos uma pilha de cédulas e moedas de real sobrepostas. Já o pôster “Riqueza” exibe uma mulher negra maquiada engolindo um diamante. A imagem alia o supérfluo e o essencial, unindo o luxo desnecessário ao gesto mais primordial para a sobrevivência: o ato de comer. Excesso e falta, o medo e o desejo condensados em uma única imagem, parecem sintetizar as contradições da sociedade brasileira e a tragédia da desigualdade social e da fome. O pôster “Faca”, por sua vez, retrata em close uma ação: a mão de um homem negro segura um facão enferrujado no pescoço de um homem branco, que sorri discretamente com um sorriso críptico, que nos leva a produzir um exercício crítico acerca das tensões raciais e a cordialidade que escamoteia a violência das raízes do Brasil.

Na mais enigmáticas das imagens, o pôster “Agora”, vemos um menino negro em um cavalo branco com raios de sol o iluminando à contraluz. Essa imagem, quase etérea e diáfana, encontra ressonâncias na figura folclórica do Negrinho do Pastoreio ou mesmo na personagem de Guirigó, o “rapazola retinto” que habita o “mar de territórios” do Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa. Ambos são fantasmas-mnemônicos da época da escravatura e que habitam um imaginário coletivo e não cansam de assombrar o presente, vivem em um eterno agora. Já o Sertão, esta geografia imprecisa que está em “toda parte”, um sítio toponímico atemporal que habita o interior dos sujeitos, surge como uma paisagem existencial do Brasil que serve como uma possível chave de leitura do país. A progressão semiótica deste alfabeto visual parece nos oferecer não só uma metodologia para a alfabetização dos oprimidos, mas nos ensinar a ler nas entrelinhas destas imagens a história política, social e, quem sabe, imaginária do país.

Igualmente, o trabalho ABC da Cana (2014)13 13 Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/ABC-da-cana. Acesso em: 2 abr. 2024. vem para acrescentar outras camadas de sentidos na investigação de Andrade acerca da aproximação entre pedagogia, literatura, cultura e colonialismo. A obra é composta por 26 fotografias de tamanho 30x35cm e foi exibida na exposição Museu do Homem do Nordeste, no Museu de Arte do Rio, em 2014-2015. Da mesma maneira em que Amor e felicidade no casamento (2007), um arquivo previamente existente funciona como disparador desse trabalho.

Andrade se inspirou nos desenhos e gravuras de Luis Jardim (figura 4), feitos para o projeto gráfico da revista Brasil Açucareiro de 1957, encontrado no acervo CEHIBRA da Fundação Joaquim Nabuco. Nele o abecedário é representado por um design gráfico que retrata cenas cotidianas de homens trabalhando no canavial. O artista convidou os trabalhadores da Refinaria TABU - nome que, curiosamente, nos remete instantaneamente ao filme homônimo de 1931 dirigido por F.W Murnau com coprodução de Robert Flaherty14 14 Tabu é um filme estadunidense silencioso de 1931, dirigido por F. W. Murnau, em coprodução com Robert Flaherty. Misturando ficção e documental, o filme narra a trágica vida de um jovem casal indígena, Matahi e Reri, em uma pequena comunidade em Bora-Bora, localizada na Oceânia. Tabu é o nome que serve como metáfora para o sistema colonialista que solapa a relação dos povos nativos com os seus rituais e tradições locais. No filme o que leva as personagens ao fim trágico é justamente a usura causada pela economia extrativista da pérola. - para performar as letras do abecedário durante o corte da cana, em Condado, em Pernambuco, com seus próprios corpos auxiliados pelos caniços das canas de açúcar.

Figura 4
Detalhe da obra de Jonathas de Andrade ABC da Cana, 2014. Arquivo utilizado na obra: Cana de açúcar. Abecedário. Brasil Açucareiro de Luís Jardim, 1957. Nanquim sobre papel. Estudos de identidade gráfica para a revista Brasil Açucareiro.

A colonização da região Nordeste, em particular de Pernambuco, foi notadamente marcada pela economia extrativista da cana de açúcar. A imagem simbólica do Engenho, sua arquitetura e divisão do espaço da Casa Grande e Senzala, serviu de modelo ou metonímia que sintetizariam a organização socio-econômica no Brasil colonial, cujos resquícios se encontram até hoje na divisão social do país. Transpondo a iconografia do passado para o mundo em carne e osso, Jonathas de Andrade dá um rosto a estes homens que trabalham desde tempos coloniais na economia da cana. Os fantasmas do extrativismo colonialista continuam a assombrar nosso tempo, presentes e vivos, encarnam-se nas imagens desses homens que servem de “manual de leitura” do Brasil contemporâneo.

Retomando o debate sobre o cerne etimológico da palavra colonialismo, Bosi (1996BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, Ed. Schwarcz, 1996. ) afirma que é do cultivo agrícola e do suor dos trabalhadores da terra que nasce a noção de cultura, pois é da acumulação de memória coletiva que surge o senso de comunittas. A etimologia da palavra cultura deriva também o adjetivo: culto. Uma pessoa culta seria aquela que “cultivou” o seu espírito, que deteve o conhecimento acumulado de uma determinada sociedade ao longo do tempo. Como na metáfora da plantação, a colheita “intelectual” é fruto do “cultivo” do seu espírito humano. No entanto, contraditoriamente, é o trabalhador do campo aquele quem muitas vezes é considerado pelo senso comum como o homem “iletrado” e “sem cultura”.

Jonathas de Andrade reverte, portanto, de forma irônica e caricatural, neste gigante alfabeto orgânico, uma série de premissas cristalizadas. Nesse trabalho são colocadas em tensionamento: (i) a suposta “democracia racial” de Gilberto Freyre; (ii) o aprisionamento de um grupo social a uma certa estereotipia da subalternidade e dos oprimidos; (iii) a própria noção de cultural letrada, que, historicamente privilegiou a história escrita em prol da história oral e fabular.

Andrade performa igualmente uma dinâmica que coloca em tensão a aculturação e violência epistemológica colonial que espoliou não apenas riquezas materiais, mas também imateriais, alienando os povos originários de sua cultura. ABC da Cana parece querer materializar nas imagens desses homens uma história contra-hegemônica potencial, devolvendo aos “colonizados” sua capacidade de fabular, mesmo que em silêncio (em um diálogo irresoluto entre fotógrafo e retratados), permitindo que estes retornem ao seu locus originário agora como produtores de saberes.

CASAS REABITADAS - TOMBAMENTO (2013) E O CASEIRO (2016)

Vimos que a identificação dos alicerces e elementos discursivos que estruturam a construção do edifício conceitual que fundam uma “ideia” de Brasil enquanto projeto de país e imaginário coletivo são preocupações nevrálgicas da poética de Jonathas de Andrade. Tombamento (2013)15 15 Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/tombamento. Acesso em: 2 abr. 2024. (figura 5) é mais um exemplo dessa investigação.

Figura 5
Still do filme O caseiro de Jonathas de Andrade, 2016. Vídeo. 8 minutos, em loop, dístico em duas telas.

Este trabalho é composto por 506 impressões fotográficas em acetato, montadas entre dois vidros lapidados de tamanho de 12cm x 9cm cada. As impressões foram dispostas em um site specific da icônica Casa de Vidro, projetada pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi. Em cada pequena moldura vemos a imagem de colunas que sustentam um antigo clube abandonado à beira mar. A sequência de imagens descreve um curso completo da maré enquanto ela flui e reflui, submergindo, revelando e apagando a estrutura subterrânea.

Nenhum elemento dessa instalação é gratuito ou fortuito. A escolha do prédio onde ocorre a instalação é por si só significativa. Ícone do modernismo remete a era de ouro da arquitetura e do auge de um projeto modernista brasileiro. A construção fotografada também retorna a outro elemento característico do modernismo: os pilotis. Ainda a escolha do título comporta uma rica ambiguidade. Enquanto tombamento por um lado remete às políticas de preservação do patrimônio histórico, por outro nos lembra o verbo “tombar”. A disposição das pequenas molduras organizadas como no jogo que alinha peças de dominós reforçam essa interpretação alternativa. Aqui o artista parece fazer um comentário sobre uma iminente queda e a facilidade do esquecimento aos quais certos projetos utópicos de Brasil estão sujeitos, de acordo com as “ondas” da história e os (re)fluxos da memória. Os trabalhos de Andrade, possuem, portanto, uma íntima relação entre os significantes múltiplos da palavra “construção”, tanto em termos concretos quanto figurados.

A relação com os enunciados que alicerçam uma proposta ou preposição sobre o Brasil, que se refletem organização do espaço da casa e da cidade, retornam no curta-metragem: O caseiro (2016)16 16 Um fragmento do filme está disponível em: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/o-caseiro. Acesso em: 2 abr. 2024. . A partir do filme Mestre de Apipucos (1959), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, o artista alagoano realiza uma remontagem do arquivo, em um jogo dialético com os dois artistas de sobrenomes homônimos. Neste novo filme as cenas originais de Gilberto Freyre em sua casa e cotidiano dialogam em díptico com novas cenas filmadas pelo artista no mesmo local, hoje a Fundação Gilberto Freyre.

As duas telas deste filme mostram um diálogo entre dois tempos no mesmo espaço. Na tela da esquerda vemos um dia na vida de Gilberto Freyre em 1959. Já na tela da direita, em 2016, o caseiro vive e trabalha neste espaço que um dia abrigou um antigo engenho colonial. Habitada agora por um novo Arconte, é este homem negro quem cuida desse espaço “arcôntico”17 17 Aqui me aproprio dos termos de Jacques Derrida presentes no livro Mal de Arquivo. Arcôntico se refere à origem, às leis, às instituições e monumentos da história. Se remontarmos a etimologia da palavra “arquivo” chegaremos à palavra grega Arkhê que designa ao mesmo tempo começo e comando. O Arquivo se originará também da palavra latina Archivum ou Archium (no francês Archive - singular do masculino) que, por sua vez, se originam no termo grego Arkheîon. Este era o termo utilizado para se referir a uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores chamados de Arcontes, que guardavam, interpretavam e redigiam as leis. - onde se guarda a memória oficial do patrono de uma política identitária brasileira e que fundaria uma unidade luso-tropicalista no mundo (Piçarra, 2013). Os cortes sincronizados entre os dois filmes, a repetição dos mesmos gestos, dos mesmos enquadramentos e movimentos de câmera estabelece paralelismos que, através da montagem dialética, tecem comentários críticos acerca dos embates e questões de classe e raça no Brasil. O caseiro anda pelos mesmos jardins e caminhos pelos quais Freyre caminhava sessenta anos atrás. Vemos a mesma mesa onde o escritor tomava café da manhã com a esposa e era servido por um empregado negro, uniformizado como um mordomo. Enquanto no filme de Joaquim Pedro de Andrade Freyre interage com os funcionários da casa, no filme de Jonathas de Andrade é o próprio funcionário que se torna “senhor” desta casa.

O filme revela não só a ação do tempo sobre a arquitetura da casa bem como sobre as ideias e a figura histórica de Freyre. Hoje as teorias canônicas acerca do mito da harmoniosa miscigenação das raças vêm sendo criticadas sob um olhar de sociólogos e filósofos negros.18 18 Tais como Silvio de Almeida e Jessé de Souza nos respectivos livros: Racismo Estrutural (2019), A Ralé Brasileira (2009), A Elite do Atraso (2017). No entanto este debate não é de todo novo, pois Abadias Nascimento, desde os anos 1960, já tecia críticas contundentes ao lusotropicalismo de Gilberto Freyre. No filme, esta revisão é operada na própria cena e nos jogos teatrais por meio da subversão irônica e performática dos papéis. O homem negro, que antes aparecia na imagem apenas no papel subalterno, se torna o protagonista da narrativa, e o que era privado se torna público. Em uma imagem simbólica o caseiro senta-se na poltrona do “proprietário” da casa, o que pode ser lido como uma alusão à disputa dos lugares de fala19 19 Para contextualizar o conceito citamos Djamila Ribeiro: “Lugar de Fala é uma compreensão da intelectualidade como uma dialética entre prática e teoria que leva em conta a materialidade empírica daquele que fala. É uma prática de descolonização do conhecimento, que atenta para a identidade social daquele que fala. Seria preciso evidenciar a identidade do orador pois certas identidades são historicamente silenciadas, desautorizadas e desqualificadas epistemologicamente. O lugar de fala pensa a importância epistêmica da identidade pois ela reflete como experiência se dá de formas e em localizações diferentes, e que essas diferenças são determinantes para o conhecimento.” (RIBEIRO, 2017, p.18) (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é: Lugar de Fala. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.) e as políticas públicas de reparação e afirmativas no Brasil contemporâneo.

UM DIA DA CAÇA OUTRO DO CAÇADOR - 4000 DISPAROS (2010) E O PEIXE (2016)

A relação de poder e violência que atravessa o ato fotográfico são ainda explorados em dois outros trabalhos: 4000 disparos (2010) e O Peixe (2016). O primeiro é um curta-metragem em super-8 (digitalizado em HD) de duração de 60 minutos. O rolo de super-8 é composto por um veloz stop-motion, quadro a quadro, de rostos aleatórios de homens anônimos capturados nas ruas de Buenos Aires. A exibição em looping percorre esse arquivo com ciclos de tensão sonora crescente, com sonoplastia que remete aos sons de tiros sendo disparados, como nos antigos westerns norte-americanos.

A associação entre câmera fotográfica, arma de fogo e morte é recorrente na história da fotografia e na historiografia do cinema.2020 20 Podemos de maneira bastante imediata listar filmes que abordam a temática: A Tortura do Medo (1960) de Michael Powell, Blow Up- Depois Daquele Beijo (1966) de Michelangelo Antonioni e Janela Indiscreta (1954) de Alfred Hitchcock. O filósofo Vilém Flusser (2009FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Edições Sinergia - Relume Dumará, 2009.) nos relembra a etimologia da palavra “aparelho”, sua origem deriva da palavraapparatusque por sua vez se advém das palavras em latimpraepare e adparare - a primeira se refere a estar de prontidão, já a segunda a estar à disposição de algo. Há, portanto, uma íntima aproximação entre os gestos da caça, da guerra e do ato fotográfico. Os procedimentos seriam os mesmos: é feita uma varredura do ambiente com o olhar, perscruta-se o alvo, aponta-se para ele e, ao final, ambos culminam no apertar do gatilho e no disparo. Para Flusser o fotógrafo teria se convertido no novo caçador moderno que busca na “selvas urbanas” objetos culturais os quais coleciona como troféus de caça.

O exemplo prático desta subversão também aparece nos ensaios de Susan Sontag (1981SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1981. , p.14) quando a autora relembra que nos Safáris armados na África Oriental os caçadores progressivamente substituíram suas Winchesters por Hasselblads e, ao invés de olhar através do visor telescópico do rifle, passaram a olhar através do visor da câmera. O gesto fotográfico e o ato da caça não cessam de se avizinhar: em inglês, o termo para instantâneo fotográfico é “shot”, o mesmo usado para se referir a um tiro disparado por uma arma de fogo.21 21 “Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É envolver-se numa certa relação com o mundo que se assemelha com o conhecimento - e, por conseguinte, com o poder. (...) Fotografar pessoas é violá-las e vê-las como jamais podem ver-se a si próprias , conhecê-las como nunca poderão conhecer-se; é transformá-las em objetos de cuja posse nos asseguramos simbolicamente. A máquina fotográfica não domina, embora o faça crer, penetre, invada, distorça, explore e usando a metáfora em sua força máxima, assassine (...).” (SONTAG, 1981, p.14)

O filme 4000 disparos (2010) foi realizado no contexto do projeto Documento Latinamerica - Condução à Deriva, quando Jonathas de Andrade viajou por seis países da América do Sul em uma viagem de reconhecimento de território. Segundo o artista, a velocidade e violência com a qual as imagens aparecem e desaparecem refletem o sentimento do homem nascido nas colônias. Sob o signo do desterro e do exílio, esse sujeito, hoje descolonizado, ainda não compreende suas origens, o que faz com que lhe seja negado o direito à própria história. Nas palavras do artista: “partindo de um sentimento de amnésia histórica, que faz desta latinamerica tão una quanto descontínua, um lugar que pertenço sem pertencer.” Em uma tentativa de compreender sua própria condição “colonizada” e “oprimida”, nesse jogo Andrade ao mesmo tempo se coloca no papel de caça e de caçador. No mesmo ato em que apreende sua própria identidade ele a suprime, em um gesto de autoaniquilação que nega qualquer esquema identitário redutor ou dicotômico.

O curta-metragem O peixe (2016), também denuncia em sua fatura conceitual a violência inerente ao ato-fotográfico. A primeira versão do filme foi exibida na 32ª Bienal de São Paulo, possuindo originalmente cerca de 40 minutos de duração. O filme foi realizado em 2015 a partir de um convite feito a um grupo de pescadores da foz do Rio São Francisco, da região de Piaçabuçu e Coruripe, local de encontro com o mar entre Alagoas e Sergipe, para serem os atores do trabalho. Dez aceitaram a proposta e, assim, foram filmados com uma câmera analógica em bitola de 16 mm. O filme foi uma produção comissionada pelo Wexner Center for the Arts, dentro da Universidade do Estado de Ohio, e patrocinado pelo Funcultura do Governo do Estado de Pernambuco.

No média-metragem vemos os pescadores em uma espécie de ritual fúnebre e elegíaco. Após capturarem a sua presa, eles aninham os peixes em um abraço amoroso e mortífero. Filmado de forma metódica, com enquadramentos rigorosos, a câmera vai lentamente se aproximando das personagens. A câmera se interessa pelo olhar desses homens que, como os de um lince, aguardam pacientemente sua caça. Por vezes, temos a sensação de estar em um documentário do National Geographic ou do Discovery Channel, onde o animal em questão agora é a própria espécie humana. O clímax se dá quando presenciamos por um longo plano-sequência o “rito de passagem” dos peixes que sufocam nos braços dos pescadores em tempo real. Esse processo se repete, novamente em série, cada vez com um pescador e peixe diferentes (das espécies Pirarucu, Tambaqui e Tilápia).

Lembremos que no início do século XIX recorria-se aos processos químicos de revelação da “imagem latente” como metáfora para o projeto moderno de desvelamento do mundo, em que a fotografia era tratada como “mediadora do invisível”. A fotografia foi a principal aliada dos globe-trotters e dos cientistas que viajavam o globo em busca de paisagens pitorescas, flora, fauna e figuras humanas “exóticas”. Todos esses processos se aliaram a fotografia como promessas e ferramentas para auxiliar a ciência a desvendar os mistérios da natureza inacessíveis ao olho humano, que se manifestavam somente diante dos aparelhos óticos. Eram também modos de “capturar”, controlar e colonizar territórios inóspitos. As fotografias etnográficas serviram também como ferramenta para o discurso “pseudocientífico” que utilizava a teoria da inferioridade racial (Almeida, 2019, p.30) para justificar a dominação imperialista sob determinados povos, retratando-os como seres “primitivos”.

Jonathas de Andrade, neste filme, joga novamente de forma especular com o papel do fotógrafo moderno, ele mesmo se tornando um pescador, mas ao invés de caçar peixes ele “pesca” imagens. O diretor exibe seus personagens da mesma forma que eles seus peixes: vemos ali corpos de homens expostos, seminus, molhados, respirando e transparecendo sua força viril e vital. Nesta aproximação da câmera aos pescadores presenciamos um movimento erótico, que alia Eros e Tánatos, que “come” e “captura” seus retratados da mesma forma predatória que eles capturam seus peixes: com afeto e violência.

CONCLUSÃO - NOTAS PRELIMINARES DE UM BREVE PANORAMA

No âmbito da crítica e dos circuitos artísticos, diversos atores (sejam eles os críticos, os espectadores ou mesmo os próprios artistas) têm questionado as implicações éticas de trabalhos que retratam corpos ditos “periféricos”22 22 É importante reelaborar as noções de “margem” e “centro” em um esforço de positivar os saberes não-europeus e subverter a lógica do norte como centro de referência e de espelhamento para um sul “subdesenvolvido “, evitando assim a reificação dos lugares de poder hegemônicos. Da mesma maneira que as minorias não são minorias quantitativas, mas representativas, pensa-se o periférico, neste texto, como um corpo que é considerado excluído dos privilégios do poder, mas de maneira alguma como não-central, não-relevante ou destituído de potência em si mesmo. , especialmente quando as imagens revelam um olhar exotizante. Como efeito da virada epistemológica, no qual passou a perguntar-se “se o subalterno pode falar?”23 23 Referência ao texto homônimo Pode o Subalterno Falar (1986) de Gayatri Chakravorty Spivak. , operou-se no campo da crítica um retorno com ênfase ao que Rancière (2009RANCIÉRE, Jacques. A Partilha do Sensível, estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. ) identificaria como o Regime Ético das imagens. O ponto nodal de vários debates tem sido o “lugar de fala” e as “apropriações culturais” que ocorrem não apenas na superfície das imagens, mas na cadeia e nos modos de produção das mesmas. Um debate histórico que remete à discussão no campo do cinema do pós-guerra, expressa na máxima “não se filma nem se vê impunemente” de Jean-Louis Comolli (2008COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder: A Inocência Perdida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.), teórico seminal do cinema documentário.

Neste contexto Comolli afirmaria que colocar algo em cena nunca se trata de “um gesto anódino”, em outras palavras, filmar nunca seria um ato ingênuo ou destituído de relações hierárquicas de poder. A priori a balança entre sujeito-que-filma e sujeito-que-é-filmado seria sempre desigual, pois o “objeto” não teria acesso aos meios e nem ferramentas de manipulação de sua própria imagem. Haveria sempre um contrato tácito e um compromisso ético do diretor com seu objeto. O filme documentário deveria ser tratado como um encontro, e, como toda relação, implicaria em cuidado, escuta, engajamento mútuo, confiança e responsabilidade com o outro. Os trabalhos de Jonathas de Andrade também estão sujeitos a esta “temperança” de nosso tempo que tem retornado a esse campo de disputa de sentidos.

Um exemplo desse fenômeno foi o debate ocorrido no X Janela Internacional de Cinema do Recife festival que ocorreu em 2017. No debate com o público após a exibição do filme Andrade respondeu às perguntas dos espectadores que demandaram o porquê de suas escolhas formais, tanto pelo uso do 16mm, material obsoleto, tanto quanto pela sua mise-en-scène documental. O público expressou também um incômodo generalizado pela maneira com que as personagens estavam sendo enquadradas e retratadas na película. Como resposta, o artista afirmou estar plenamente consciente da operação “perversa” e que sua intenção era justamente flertar com a história do cinema, em particular o gênero do documentário clássico. Seu filme faria direta alusão à Nanook (1922) de Robert Flaherty, considerado o primeiro documentário, um marco na historiografia do cinema mundial, mas que já teria nascido como uma encenação.24 24 Posteriormente, descobriu-se que o documentário foi integralmente encenado com os esquimós, devido a uma perda do material original que o obrigou Flaherty a filmar novamente todas as cenas agora sem a espontaneidade do primeiro encontro.

Andrade também se referiu aos cineastas Jean Rouch e Chris Marker - estes dois últimos documentaristas da Rive Gauche francesa dos anos 1960, especialmente preocupados em como retratar seus personagens de forma não-colonialista de modo a não “falar por” mas “junto com” este “outro”25 25 Como é o caso do filme “Eu, um Negro” (1958) de Jean Rouch, cujo diretor co-assinou a direção com as suas cinco “personagens” - jovens imigrantes da Nigéria, que trabalham na Costa do Marfim, no bairro de Treichville, em Abidjan, a capital do país. Rouch cede a sua câmera para que filmassem sua realidade e cotidiano partir de seu ponto de vista e edita o filme em conjunto com os jovens. . Jonathas ainda afirmou que optou pela escolha do material analógico para registrar as imagens como forma de ressaltar a materialidade da imagem sua “pele” e seu “corpo”. O filme O Peixe, portanto, operaria dentro dos regimes escópicos do documentário, se aproximando e se distanciando de uma discussão tradicional sobre o “real” no cinema, colocando em questão noções como ficção documental, a divisão entre sujeito e objeto, a noção de transparência e opacidade das imagens, bem como o entendimento da imagem não como mera representação aliquid stat pro aliquo mas como matéria per se, como um corpo orgânico e como um gesto performativo de seus autores.

Em O Peixe presenciamos, em última instância, um embate entre diferentes corpos - o corpus fílmico versus os corpos biológicos. O discurso paraergonal26 26 Em outras palavras, a divisão entre retórica e prática se tornam indiscerníveis. O trabalho (ergon) artístico se torna dependente de sua elaboração teórica (parergon) para ser considerado internamente íntegro (NGAI, 2012). do artista abraça e reitera, portanto, a contradição neste corpo a corpo com os limites éticos e impasses históricos sociais e econômicos a que está sujeito, sem, no entanto, “tirar o corpo fora”. Nas palavras do artista:

Para experimentar uma troca de fato, é preciso lançar mão de um despudor nas provocações que vão na conversa ou para o quadro, um risco na escolha das palavras. Esta urgência também vai para a feitura das fotos, mas é uma negociação delicada; envolve convidar as pessoas a serem atores sociais de uma representação desfavorável de si mesmas, que ora se aproxima do estigma de que fogem, ora envolve assumir o papel dos outros que evitam. É um corpo a corpo que me põe em confronto com minha própria imaturidade ética, a falta de clareza sobre até onde levar o exercício do despudor que desmonta o limite de minha zona de conforto sobre aquilo que cresci aprendendo a ler como invisível. (Andrade, 2010)27 27 Trecho retirado do site oficial do artista. Disponível em: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/educacao-para-adultos Acesso em 4 de abr. 2024.

Mais do que retomar e localizar imagens do passado eucronicamente28 28 Eucrônico é termo utilizado por Didi-Huberman (2015, p. 23) em seu livro Diante do Tempo que se opõe ao “anacrônico”. A eucronia diz respeito a atitude canônica e ideal do historiador que busca uma concordância dos tempos e uma consonância com o objeto que está estudando. Didi-Huberman advoga em prol de uma nova visada para os objetos da arte. Para ele todas as formas plásticas estão em perpétua transformação e por isso não é possível chegar a uma noção estática, linear e temporalmente rígida sobre os estilos ou movimentos artísticos, é preciso abraçar o “tempo impuro”, a extraordinária montagem de tempos heterogêneos formaria, nas palavras do filósofo uma “heurística do anacronismo”. , seus trabalhos engendram um gesto fabulador com as imagens, partem de um laboratório de experiências. São trabalhos especulares em todos os sentidos da acepção da palavra. Como no adjetivo, operam como espelhos-invertidos de seu autor, revelando suas obsessões particulares, simetrias e dissimetrias, enfim, reflexos da sua própria história e do próprio meio e ambiente em que habita. Andrade trabalha especularmente como o verbo, e em sua rearticulação teoriza sem necessidade de uma base real documental a priori, cria imagens “pensivas”, que pensam, tramam e calculam os ganhos e perdas da história dos ideais de “Brasil” através da fabulação de seus arquivos, cria novos imaginários, entre fantasmas e fantasias.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto GHOST (2022.08396.PTDC) e ICNOVA (UIDB/05021/2020).
  • 2
    É o que Aimé Césaire (1978)CÉSAIRE, Aimé. Discurso Sobre o Colonialismo. Prefácio de Mário Andrade. Cadernos. Livres n. 15. Livraria Sá da Costa. 1978. em “Discurso sobre o Colonialismo” nomeia como asfixia da trama sensível que costura o tecido social local e que produz formas de se dominar corpos e almas. A colonização se dá, portanto, não somente por meio da dominação militar e econômica do território, mas principalmente pelo controle do campo simbólico, pela proibição das danças, dos cantos e da religião de um povo.
  • 3
    Terry Eagleton relembra que a palavra Cultura deriva de colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar. Cultura significaria o cuidado do homem com a Natureza. Donde deriva a palavra agricultura. Um de seus significados originais é “lavoura” ou “cultivo agrícola”, o cultivo do que cresce naturalmente. A palavra inglesa coulter, que um cognato de cultura, tendo origem na palavra latina culcer, que, entre outras coisas, designa a relha de um arado. Colere pode significar desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de “habitar” evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”. (cf. EAGLETON, 2011EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. / Tradução: Sandra Costello Bronco São Paulo: Editora: Unesp,2011., p. 9-50)
  • 4
    Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/amor-e-felicidade Acesso em: 2 abr. 2024.
  • 5
  • 6
    O trabalho foi também exibido no Instituto Itaú Cultural (São Paulo), Furnas Cultural (Rio de Janeiro) e na Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco). Uma versão impressa de caderno de artista, feita em parceria com Yana Parente, também pode ser comprada em edição limitada. A edição financiada pelo autor, pela Ed. dos autores, 2008, publicada em Recife no formato: 1 luva com 5 cartazes: il. color. 16 x 12 x 1 cm + 2 fotos 9 x 12,7 cm.
  • 7
    7 Segundo Martin Jay em “Regimes Escópicos da Modernidade” (2020JAY, Martin. Regimes escópicos da modernidade / Tradução de Lara Casares Rivetti. Revista ARS, São Paulo, v. 18, n. 38, 2020., p. 333-334): “O espaço tridimensional racionalizado da visão perspectiva poderia ser representado em uma superfície bidimensional por meio da adesão às regras de conversão expressas em Da Pintura, de Alberti, e em tratados posteriores de nomes como Viator e Dürer. O recurso fundamental se basearia na projeção mental de pirâmides, ou cones, simétricas, sendo um de seus vértices o ponto de fuga em recessão, ou ponto central, na pintura, e o outro, o olho do pintor ou observador. A tela, janela translúcida na famosa metáfora de Alberti, poderia igualmente ser entendida como um espelho plano que reflete o espaço geometrizado da cena retratada no espaço não menos geometrizado projetado a partir do olho.”
  • 8
    Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/educacao-para-adultos. Acesso em: 2 abr. 2024.
  • 9
    O método Paulo Freire de alfabetização unia escolarização com formação de consciência de classe. Uma primeira experiência foi aplicada com cinco trabalhadores analfabetos dos quais três aprenderam a ler e escrever em 30 horas. O Golpe Militar de 1964 interrompeu o projeto e Paulo Freire foi perseguido, preso e exilado.
  • 10
    Retiramos essa expressão do pensamento do filósofo francês, Jacques Rancière, presente em seus livros O mestre ignorante e Partilha do Sensível. Neles o teórico conta a história de Joseph Jacotot - professor militante que em 1818 funda uma nova proposta pedagógica que detinha a igualdade como princípio e a emancipação como método - nela os “destituídos” de um saber oficial seriam capazes de ensinar os ilustrados, demonstrando que o conhecimento só se realiza, invariavelmente, em uma via de mão-dupla.
  • 11
    O conceito foi elaborado por Haroldo de Campos. Mais do que uma tradução literal, busca-se nessa compreensão de tradução uma cocriação sob a influência do poema. Trata- se da busca de uma criação sob e não sobre a poesia. A “transcrição” seria um ato “mais propriamente ‘reimaginado’ do que ‘transcriado”, em última instância, uma espécie de coautoria em colaboração com o autor original.
  • 12
    Há um jogo de palavras em italiano que diz: “Tradutor, traidor.” O termo translatio em latim aparece inicialmente como o sentido de “mudança” e “transporte”. Trans-ducere, significa também conduzir através de, mas sobretudo conduzir na via de sua realização, em outras palavras : “conduzir além”.
  • 13
    Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/ABC-da-cana. Acesso em: 2 abr. 2024.
  • 14
    Tabu é um filme estadunidense silencioso de 1931, dirigido por F. W. Murnau, em coprodução com Robert Flaherty. Misturando ficção e documental, o filme narra a trágica vida de um jovem casal indígena, Matahi e Reri, em uma pequena comunidade em Bora-Bora, localizada na Oceânia. Tabu é o nome que serve como metáfora para o sistema colonialista que solapa a relação dos povos nativos com os seus rituais e tradições locais. No filme o que leva as personagens ao fim trágico é justamente a usura causada pela economia extrativista da pérola.
  • 15
    Um registro do trabalho pode ser visto no site oficial do artista, disponibilizado no link: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/tombamento. Acesso em: 2 abr. 2024.
  • 16
    Um fragmento do filme está disponível em: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/o-caseiro. Acesso em: 2 abr. 2024.
  • 17
    Aqui me aproprio dos termos de Jacques Derrida presentes no livro Mal de Arquivo. Arcôntico se refere à origem, às leis, às instituições e monumentos da história. Se remontarmos a etimologia da palavra “arquivo” chegaremos à palavra grega Arkhê que designa ao mesmo tempo começo e comando. O Arquivo se originará também da palavra latina Archivum ou Archium (no francês Archive - singular do masculino) que, por sua vez, se originam no termo grego Arkheîon. Este era o termo utilizado para se referir a uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores chamados de Arcontes, que guardavam, interpretavam e redigiam as leis.
  • 18
    Tais como Silvio de Almeida e Jessé de Souza nos respectivos livros: Racismo Estrutural (2019), A Ralé Brasileira (2009), A Elite do Atraso (2017). No entanto este debate não é de todo novo, pois Abadias Nascimento, desde os anos 1960, já tecia críticas contundentes ao lusotropicalismo de Gilberto Freyre.
  • 19
    Para contextualizar o conceito citamos Djamila Ribeiro: “Lugar de Fala é uma compreensão da intelectualidade como uma dialética entre prática e teoria que leva em conta a materialidade empírica daquele que fala. É uma prática de descolonização do conhecimento, que atenta para a identidade social daquele que fala. Seria preciso evidenciar a identidade do orador pois certas identidades são historicamente silenciadas, desautorizadas e desqualificadas epistemologicamente. O lugar de fala pensa a importância epistêmica da identidade pois ela reflete como experiência se dá de formas e em localizações diferentes, e que essas diferenças são determinantes para o conhecimento.” (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é: Lugar de Fala. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017., p.18)
  • 20
    Podemos de maneira bastante imediata listar filmes que abordam a temática: A Tortura do Medo (1960) de Michael Powell, Blow Up- Depois Daquele Beijo (1966) de Michelangelo Antonioni e Janela Indiscreta (1954) de Alfred Hitchcock.
  • 21
    “Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É envolver-se numa certa relação com o mundo que se assemelha com o conhecimento - e, por conseguinte, com o poder. (...) Fotografar pessoas é violá-las e vê-las como jamais podem ver-se a si próprias , conhecê-las como nunca poderão conhecer-se; é transformá-las em objetos de cuja posse nos asseguramos simbolicamente. A máquina fotográfica não domina, embora o faça crer, penetre, invada, distorça, explore e usando a metáfora em sua força máxima, assassine (...).” (SONTAG, 1981SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1981. , p.14)
  • 22
    É importante reelaborar as noções de “margem” e “centro” em um esforço de positivar os saberes não-europeus e subverter a lógica do norte como centro de referência e de espelhamento para um sul “subdesenvolvido “, evitando assim a reificação dos lugares de poder hegemônicos. Da mesma maneira que as minorias não são minorias quantitativas, mas representativas, pensa-se o periférico, neste texto, como um corpo que é considerado excluído dos privilégios do poder, mas de maneira alguma como não-central, não-relevante ou destituído de potência em si mesmo.
  • 23
    Referência ao texto homônimo Pode o Subalterno Falar (1986) de Gayatri Chakravorty Spivak.
  • 24
    Posteriormente, descobriu-se que o documentário foi integralmente encenado com os esquimós, devido a uma perda do material original que o obrigou Flaherty a filmar novamente todas as cenas agora sem a espontaneidade do primeiro encontro.
  • 25
    Como é o caso do filme “Eu, um Negro” (1958) de Jean Rouch, cujo diretor co-assinou a direção com as suas cinco “personagens” - jovens imigrantes da Nigéria, que trabalham na Costa do Marfim, no bairro de Treichville, em Abidjan, a capital do país. Rouch cede a sua câmera para que filmassem sua realidade e cotidiano partir de seu ponto de vista e edita o filme em conjunto com os jovens.
  • 26
    Em outras palavras, a divisão entre retórica e prática se tornam indiscerníveis. O trabalho (ergon) artístico se torna dependente de sua elaboração teórica (parergon) para ser considerado internamente íntegro (NGAI, 2012NGAI, Sianne. Our Aesthetic Categories. Harvard University Press, Massachusetts, 2012.).
  • 27
    Trecho retirado do site oficial do artista. Disponível em: https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/educacao-para-adultos Acesso em 4 de abr. 2024.
  • 28
    Eucrônico é termo utilizado por Didi-Huberman (2015, p. 23) em seu livro Diante do Tempo que se opõe ao “anacrônico”. A eucronia diz respeito a atitude canônica e ideal do historiador que busca uma concordância dos tempos e uma consonância com o objeto que está estudando. Didi-Huberman advoga em prol de uma nova visada para os objetos da arte. Para ele todas as formas plásticas estão em perpétua transformação e por isso não é possível chegar a uma noção estática, linear e temporalmente rígida sobre os estilos ou movimentos artísticos, é preciso abraçar o “tempo impuro”, a extraordinária montagem de tempos heterogêneos formaria, nas palavras do filósofo uma “heurística do anacronismo”.
  • *
    Este artigo é uma versão mais extensa do texto “Corpo a Corpo - As Imagens Especulares de Jonathas de Andrade” publicado originalmente no livro Midiateca - Escritos Sobre Fotografia Contemporânea Brasileira Vol.3 - A transgressão na Fotografia, editado por Antonio Pacca Fatorell; Victa de Carvalho Pereira da Silva; Maria Teresa Ferreira Bastos, p.21-31. LP Press, Rio de Janeiro, Brasil, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2020
  • Aceito
    17 Out 2023
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