Open-access Ética Socioambiental como abordagem do Desenvolvimento Regional

Resumo

As concepções de desenvolvimento predominantes não conseguem correlacionar de modo consistente a questão social e a temática ecológica com um projeto de país de longo prazo. A reflexão ético-política em torno dos padrões de desenvolvimento é, portanto, uma reflexão crucial. Objetiva-se dialogar a respeito do desenvolvimento regional confrontando-o a partir da explicitação de categorias da ética socioambiental. Trata-se de uma pesquisa exploratória que se apoia empiricamente na análise de documentos de dois casos do processo de regionalização no estado de Santa Catarina (Brasil). Conclui-se que reconhecer limites morais legítimos ao uso das paisagens e dos seres vivos seria um momento importante do planejamento do desenvolvimento, o que requer uma leitura territorial. Isto, é ignorado pelos discursos exclusivamente técnicos e senso comum ecológico.

Palavras-chave:  Desenvolvimento Regional; Ética socioambiental; Seres vivos humanos e não humanos; Santa Catarina; Território

Abstract

The development concepts fail to correlate the social issues and overall, the ecological issues with a long-term country project. The ethical political reflection around development patterns is therefore a decisive reflection. The aim is to dialogue about regional development from the standpoint of categories of socio-environmental ethics. It is exploratory research which is supported empirically in documental analysis of two cases of the regionalization process of the state of Santa Catarina (Brazil). It concludes that recognizing legitimate moral limits to the use of landscapes and living beings would be an important step in development planning, which requires a territorial reading. This is ignored by exclusively technical discourses and ecological common sense.

Keywords:  Regional development; Socio environmental ethics; Human and non-human living beings; Santa Catarina; Territory

Resumen

Las concepciones de desarrollo más comunes no logran correlacionar consistentemente las cuestiones sociales y la cuestión ecológica con un proyecto de país a largo plazo. La reflexión ético-política en torno a los patrones de desarrollo es, por tanto, una reflexión crucial. El objetivo es reflexionar sobre desarrollo regional, a partir de categorías de ética socioambiental. Se trata de una investigación exploratoria que se basa empíricamente en el análisis documental de dos casos de regionalización del estado de Santa Catarina (Brasil). Se concluye que reconocer límites morales legítimos al uso de paisajes y seres vivos es un momento importante en la planificación del desarrollo, lo que requiere una lectura territorial. Esto es ignorado por los discursos exclusivamente técnicos y las concepciones ecológicas más comunes.

Palabras-clave:  Desarrollo regional; Ética socioambiental; Seres vivos humanos y no humanos; Santa Catarina; Territorio

1. Introdução

Pensar o desenvolvimento é se confrontar com concepções de sociedade que presumem ter formas de atender necessidades coletivas e conquistar um futuro supostamente desejável. Por isso, boa parte das disputas e controvérsias em torno do desenvolvimento são disputas em torno das ideias de como a sociedade deveria ser.

Não obstante, a maior parte das vezes, este confronto normativo permanece implícito, seja porque as perspectivas teóricas utilizadas não explicitam suas referências, seja porque o senso comum adere passivamente às imposições normativas naturalizadas ou hegemônicas. Por outro lado, as disputas entre ideias e concepções não se resolvem apenas no campo dos argumentos, mas em uma dialética de posições argumentativas e posições de poder.

Por isso, em um país como o Brasil, tão desigual em termos econômicos, simbólicos e territoriais, e mega diverso no tocante a biodiversidade e a sociodiversidade, a explicitação da variável normativa é fundamental. Atualmente, a pauta econômica desproporcionalmente apoiada em recursos primários e o imenso peso político do senso comum reproduzido nos grandes conglomerados urbanos, ensejam concepções de desenvolvimento que não conseguem correlacionar de maneira consistente a questão ecológica com um projeto de país de longo prazo.

Esta dificuldade é histórica no Brasil, mas foi acentuada nas últimas décadas. Embora com nuances diferentes, ela esteve presente nos períodos de políticas desenvolvimentistas e se observa agora, em que as pautas mais puramente neoliberais vêm se impondo como se a elas não houvesse alternativas. A reflexão normativa em torno dos padrões de desenvolvimento é, portanto, uma reflexão crucial.

Entre os aspectos normativos do desenvolvimento, há duas premissas que a reflexão ético política afeta às questões ambientais e que estabelece como inequivocamente relevantes: (i) a eliminação das iniquidades ambientais entre os grupos humanos e (ii) o reconhecimento efetivo de que os seres vivos não humanos possuem valor intrínseco, portanto, não devem ser coisificados. Com efeito, mesmo que a efetivação destas premissas seja complexa e objeto de muitas controvérsias, é improvável encontrar entre pensadores respeitáveis que tratam das questões ambientais alguém que negue que a desproporção com que são distribuídos os ônus e os bônus ambientais entre grupos poderosos e vulneráveis é uma afronta a critérios fundamentais de justiça socioambiental. Do mesmo modo, mesmo se tratando de um problema dos mais espinhosos da atualidade, dada a complexa intersecção que tem com diversos aspectos da vida social, é difícil encontrar entre esses pensadores alguém que não admita que há um problema evidente na instrumentalização radical que se faz dos seres vivos não humanos e também de outros entes naturais, como rios, montanhas e paisagens.

Diante desta problemática, objetiva-se dialogar a respeito do desenvolvimento regional a partir de categorias da ética socioambiental normativa. O propósito que nos colocamos é o de aplicar essas categorias a dois processos de regionalização em SC, onde o olhar da ética socioambiental revela iniquidades naturalizadas atingindo humanos, animais e paisagens. Um dos casos diz respeito ao padrão de desenvolvimento regional atrelado à pecuária industrial, que combina uma coisificação radical de seres não humanos com a vulnerabilização dos humanos que nele trabalham, além das consequências ambientais propriamente ditas, como o estresse hídrico que o modelo gera. O outro caso trata da imposição sociocultural da interpretação colonial da paisagem no Vale do Itajaí (o “Vale Europeu”) que funciona como fundamento legitimador da segregação de outras valorações da paisagem não assimiladas ao projeto urbano-industrial-capitalista. Este olhar evidencia a significância de um dos principais conflitos ambientais territoriais de SC, que é o da Barragem Norte que atinge ao povo Laklano-Xokleng há quase cinquenta anos.

Metodologicamente trata-se de uma pesquisa exploratória que utiliza de documentos oficiais do Estado de Santa Catarina (Brasil), como também de trabalhos acadêmicos que versam sobre os dois casos ilustrados.

2. O Desenvolvimento Regional sob a perspectiva da Ética Socioambiental

Como foi dito, disputas em torno do desenvolvimento regional, além de envolver conflitos de interesse, expressam também disputas em torno da visão sobre o dever ser dos processos de desenvolvimento. Tais disputas implicam pressupostos de valor que definem as finalidades substantivas do desenvolvimento, incluindo também questionamentos sobre o tipo de relação aceitável entre os seres humanos e a natureza, as paisagens e os seres vivos não humanos.

A perspectiva “territorial” é uma forma de abordar estas controvérsias. Território é um espaço que ainda que tenha sua base física, identifica-se pela teia social que o caracteriza, tanto pelas dimensões socioeconômica, sociopolítica e socioecológica, como pelos valores ambientais que nele são mobilizados.

Na literatura sobre o tema, o conceito de território possui duas acepções principais (ANTONSICH, 2011). A primeira, da geografia anglo-saxônica, privilegia o entendimento de território enquanto fenômeno político e institucional, na qual a figura do Estado soberano possui protagonismo (MÜLLER, 2011; SILVA; FERREIRA-LOPES, 2014; BREKKE, 2015). A segunda, proveniente da geografia francófona estabelece a compreensão do território enquanto fenômeno social, tendo um enraizamento cultural, no sentido em que os territórios são produzidos pelas pessoas que o constroem (FRIEDMAN; DESIVILYA, 2010; GENNAIOLI et al., 2013; DANA et al., 2014).

Ambas as perspectivas reconhecem que a territorialidade humana se manifesta em operações de poder que definem o que pode ou não pode ser realizado no território ou o que é aceitável ou inadmissível de um lado ou outro de uma fronteira (SACK, 2011). Isso acontece por meio de instrumentos de controle ou por meio de julgamentos de valor, ambos indissociáveis das posições de poder dos atores envolvidos.

Os processos de territorialização são um aspecto fundamental da consolidação de ordens econômicas e políticas duradouras, que, geralmente, são consagradas e reproduzidas a partir do Estado ou com a articulação entre este e os grupos de poder estabelecidos no território. Desta articulação resulta a regionalização dos padrões de desenvolvimento, constituídos por arranjos econômicos e institucionais (THEIS, 2008).

Do ponto de vista ambiental, estes processos de territorialização implicam na transformação da paisagem e na apropriação de recursos, ambos sustentados em visões de natureza socialmente definidas (FLORIT, 2004). O resultado é que os padrões econômicos e político-culturais estão associados a uma “região” que indica o espaço geográfico concreto onde eles operam e do qual obtém os meios de reprodução (THEIS, 2008).

Por outro lado, graças à herança da antropologia cultural sabe-se que, ao rediscutir a relação com a natureza e os seres vivos não humanos, fatalmente imputa-se valores e julgamentos morais. Isto adquire uma nova configuração no contexto contemporâneo, seja essa caracterizada como sociedade de risco, de incerteza fabricada, de mudanças climáticas ou antropoceno (BECK, 1992; GIDDENS, 1993; DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014; DOUGLAS, 1966) sem que se tenha a devida reflexão em escala pública dos dilemas morais que eles suscitam. De fato, o que se tem atualmente é que a discussão propriamente ética com relação à natureza vem sendo ignorada e escamoteada por trás da métrica monetária de atribuir valor às coisas, privilegiando o que é precificável como critério para definir o que deve ser considerado relevante com relação à natureza.

Esta discussão acanhada relacionada à valoração contém elementos fortemente ligados ao território. Embora se esteja falando de uma questão que tem um caráter civilizacional, ela aparece com características definidas e identificáveis geograficamente. Por exemplo, ao mesmo tempo em que no mundo se discute o reconhecimento da senciência1 dos animais, em Santa Catarina planeja-se o aumento e a concentração da produção de aves e porcos como se esta questão não existisse. Ou, então, ao mesmo tempo em que se fala sobre sustentabilidade, trata-se com descaso modos de vida que usam a natureza de forma comedida e com inteligência ecológica, como os povos originários e outras comunidades tradicionais.

É aqui que se estabelece a interface entre ética e o desenvolvimento regional. A ética é a reflexão sistemática que filósofos ou sujeitos reflexivos fazem sobre os fundamentos e princípios da moral ou das moralidades (PEDRO, 2014). É uma investigação teórica e especulativa, embora não necessariamente acadêmica, capaz de auxiliar na análise crítica dos condicionantes morais mobilizados nos diversos contextos socioambientais. Embora entrelaçada com a reflexão sociológica e territorial, distingue-se desta na medida em que sua análise se volta aos conteúdos normativos propriamente ditos, enquanto na dimensão sociológica a análise se volta à reprodução ou mudança das moralidades dos diversos grupos sociais.

Ao se tratar de ética ou filosofia da moral no sentido de uma reflexão sistemática sobre a validade dos juízos morais, refere-se a um fenômeno que é diferente da existência de moralidades no sentido sociológico do termo (RACHEL; RACHELS, 2013). Enquanto a primeira é fundamentalmente apoiada em argumentos, as últimas consistem na aplicação de valorações e julgamentos morais resultantes de cognições naturalizadas constituídas em contextos de reprodução social, muitas vezes atreladas às relações de poder. Em ambos os casos ocorrem valorações e julgamentos morais. A diferença básica consiste no fato de que na primeira o que predomina são os argumentos racionais e na segunda o que predomina são as cognições naturalizadas e as relações de poder.

Isto decorre na existência de dois domínios e fenômenos distintos, porém inter-relacionados. Um de caráter reflexivo e especulativo e outro resultante de relações sociais. As moralidades socialmente dominantes, a despeito das suas inconsistências e aspectos não sustentáveis com base em argumentação racional, têm uma tendência a continuar e se reproduzir. Essa tendência não decorre necessariamente da validade ética de seus fundamentos, mas das relações sociais de poder nas quais foram geradas e às quais continuam atreladas (BERGER, 2000).

Por outro lado, constata-se que essas relações de poder poucas vezes são alteradas com base apenas em argumentos. Com efeito, ainda que os argumentos possam constituir um elemento importante das disputas, elas certamente não se limitam a eles. Nelas, relações econômicas, políticas e territoriais ocupam um papel fundamental.

Essa distinção entre ética e moralidades é importante porque nos permite entender como, embora muitas vezes o raciocínio ético seja convergente com a moralidade dominante, há ocasiões em que ocorre justamente o contrário, ou seja, o raciocínio ético leva ao questionamento de moralidades socialmente estabelecidas. É justamente isto que ocorre no contexto da ética ambiental em relação ao antropocentrismo, que é naturalizado na moralidade dominante. Esse antropocentrismo, definido e protegido pelas tradições filosófico morais clássicas ocidentais, dá fundamento às concepções políticas, econômicas e desenvolvimentistas que justificaram o impulso em transformar a natureza para o uso e domínio humano, e é base da própria noção de desenvolvimento e dos padrões dela decorrentes.

Arraigado na visão antropocentrista, emerge a lógica do individualismo, que deforma a individualidade. Por sua vez, a individualidade dá sustância e unicidade ao indivíduo, que constitui elemento que cria significado de identidade junto à comunidade., Pois, caso contrário, na ausência da individualidade, todas as comunidades correriam o risco de serem iguais (BAUMAN, 2003). O antropocentrismo continua a ser exacerbado na moralidade dominante do capitalismo globalizado, na medida em que tende a reconhecer na natureza apenas um valor instrumental, tendo a monetarização como métrica dominante de valor.

Se, por um lado há a necessidade da reflexão ética propriamente dita, por outro há também que se atentar dos aspectos que relacionam a ética com o poder e o território. Por isso, é importante distinguir dois conjuntos de fenômenos que, embora interdependentes, são distintos: (i) o da reflexão ética em torno dos valores ambientais e; (ii) o da reprodução social dos valores morais em sociedades ou territórios concretos. Embora sejam aspectos que na vida social se inter-relacionem (PEDRO, 2014), para compreender o desafio que implica a explicitação dos pressupostos normativos ambientais ao tratar do desenvolvimento, é importante perceber que rementem originalmente a domínios diferentes.

A ética ambiental é o campo da reflexão crítica sobre os valores por meio dos quais se estabelecem as relações com a natureza e os seres vivos não humanos (ELLIOT, 2004). Esta definição incluem as paisagens silvestres e os elementos que as compõem, mas também inclui os seres que são resultado de manipulação antrópica. A ética animal deve ser vista como um ramo da ética ambiental, incluindo aqui a questão do tratamento de animais silvestres e domesticados (KUHNEN, 2016). A ética socioambiental seria o campo de reflexão que faz interface entre a ética ambiental e os estudos sociais das iniquidades ambientais (MARZOCHI; FLORIT, 2018; FLORIT, 2017). No plano analítico, a ética socioambiental implica em estudar as relações sociais que resultam na desconsideração moral da natureza e dos seres vivos não humanos, o que, no contexto contemporâneo, é denominado de coisifcação ou objetifcação. No plano normativo, implica em conciliar a consideração moral desses seres vivos com a afirmação da justiça ambiental entre seres humanos, em territórios concretos, em relações intrarregionais e interregionais que muitas vezes observam liames interescalares que são determinantes (SANTOS; PIROLI, 2020).

Quando se trata de justiça ambiental, refere-se à perspectiva que vem enfatizando a análise das iniquidades que perpassam os conflitos ambientais. Estas decorrem, fundamentalmente, de iniquidades estruturais de uma sociedade desigual e levam a uma distribuição desproporcional dos ônus ambientais para os grupos sociais mais vulneráveis, assim como implica no favorecimento do acesso aos bens e serviços ambientais aos grupos mais poderosos (ACSELRAD, 2008).

Neste sentido, é fundamental observar que as iniquidades ambientais frequentemente envolvem de maneira mais profunda povos e comunidades tradicionais, cujo modo de vida está intimamente relacionado com valorações da natureza muito diferentes dos padrões hegemônicos no contexto do capitalismo global. Assim, na construção de uma ética socioambiental precisa-se prestar especial atenção aos conflitos que afetam populações que mantem concepções da natureza peculiares, como indígenas, quilombolas, agricultores parcialmente integrados ao mercado ou voltados à agroecologia e diversas categorias de comunidades tradicionais, para quem o uso da natureza não se resume à uma objetificação e uma valoração monetarizada (FLORIT, 2016; 2017).2

Do cruzamento destas abordagens resulta a perspectiva da ética socioambiental que se constitui conforme ilustra o Quadro 1.

Quadro 1:
Perspectivas ambientais com relação à equidade social e o Antropocentrismo

Nesta matriz, que cruza duas grandes variáveis, resulta uma tipologia de quatro perspectivas que permitem distinguir genericamente as características da ética socioambiental.

Nas colunas, a variável da equidade ambiental distingue o senso comum ecológico da justiça ambiental. Empresta-se a expressão senso comum, no sentido que Acselrad (2008) utiliza, para distinguir a perspectiva hegemônica da perspectiva da justiça ambiental, que ele desenvolve. No primeiro considera-se as perspectivas mais hegemônicas como a modernização ecológica e a economia verde, que tendem a tratar os problemas ambientais apenas nos seus aspectos técnicos e a valorar na natureza apenas aquilo que o mercado reconhece em termos monetários. A segunda, abrange as perspectivas que dão centralidade à distribuição desproporcional dos ônus e bônus ambientais, decorrentes das desigualdades inerentes aos processos de apropriação da natureza, construção do território e segregação socioespacial. Esta perspectiva permite visualizar que há grupos sociais cuja relação com a natureza e territorialidade é marcada por lógicas econômicas e socioculturais distintas das tipicamente urbano-industrial-capitalistas.

Nas linhas, a variável do antropocentrismo põe em evidência as perspectivas que assumem as implicações da reflexão crítica em torno da redução instrumental da natureza e dos seres não humanos. Neste aspecto, o senso comum ecológico encontra-se na linha do antropocentrismo enquanto a ética ambiental (que inclui também a ética animal) evidencia as perspectivas que estabelecem críticas ao tratamento, meramente instrumental, próprio das perspectivas hegemônicas3.

Observa-se, contudo, que se, por um lado, as perspectivas hegemônicas do senso comum ecológico estão imbuídas das duas falhas (falta de equidade e antropocentrismo naturalizados), as críticas da justiça ambiental e da ética ambiental são, embora muito relevantes, também parciais ou incompletas. De maneira geral, aceitando o risco de alguma generalização injusta, é possível dizer que as análises da justiça ambiental tendem a recair em bases epistemológicas antropocêntricas, próprias das matrizes teóricas da modernidade. Existem, é preciso dizer, análises que assumem perspectivas que tomam distância da matriz moderna de pensamento, como as decoloniais. Contudo, mesmo nessas perspectivas, nem sempre se reconhece centralidade ao dualismo homem/natureza no qual se apoia o dualismo valor moral/valor instrumental permanecendo em posições antropocêntricas acríticas4.

Por sua vez, ainda que com a mesma cautela, pode se dizer que a ética ambiental tende a se manter em análises normativas em relação aos seres não humanos sem necessariamente considerar a análise das relações sociais que implicam em iniquidades. Por isso, este aspecto da reflexão requer lançar mão não apenas das teorias éticas ambientais formuladas por filósofos, mas também de outras contribuições como a da antropologia da natureza (que presta atenção à construção ontológica de classificações como “humanidade”, “animalidade”, “rio”, etc.) e da sociologia do pós-desenvolvimento que percebe nesses campos as lutas entre mundos ontologicamente diferentes (ESCOBAR, 2006; DE LA CADENA, 2010; INGOLD, 2012; VIVEIROS DE CASTRO, 2013).

É deste modo que surge o campo da ética socioambiental, como o espaço teórico-epistemológico que tensiona a conjunção das duas variáveis críticas, buscando a construção de abordagens que incorporem sinergicamente a crítica à coisificação da natureza e a crítica à geração de iniquidades socioambientais.

3. Um olhar sobre as “vocações regionais” em Santa Catarina

As operações de regionalização são um momento fundamental dos processos de desenvolvimento. Embora este seja um tópico clássico do pensamento geográfico, para tratá-lo neste contexto de discussão é importante ressaltar seu aspecto de configuração cognitiva, ou seja, o aspecto que leva a que um determinado território passe a ser enxergado por agentes sociais e estatais como detentor de certas características definidas. Isto significa tratá-las como uma forma específica do exercício do poder simbólico que são os atos de nomeação (BOURDIEU, 1989), realizados por agentes de planejamento estatais e por grupos sociais hegemônicos.

Estes procedimentos se apoiam em referências geográficas selecionadas, dando destaque a certos elementos em detrimento de outros. A depender dos propósitos, explícitos ou implícitos, não é raro que nelas se passe por alto tensões e conflitos que definem a configuração da paisagem, e que estão, por assim dizer, inscritos no território, mesmo quando ele é visto como uma paisagem “natural” (SOPER, 1966). Estas operações de reificação de regiões é complementada pela imputação de funções e características específicas, as quais, por sua vez, são apropriadas e/ou incorporadas pelos agentes com poder de fazer o território por meio das suas práticas.

Estas regionalizações, realizadas pelo Estado (ou por agentes privados cuja visão é incorporada pelo Estado), constituem um modo peculiar de exercício de poder simbólico apontando fronteiras que separam espaços geográficos a partir de pontos de vista que são funcionais a agentes com posicionamentos específicos no espaço social. Elas são tanto mais eficazes, quanto mais convincente for a seleção de referências geográficas materiais e culturais que lhe dão sustentação empírica, e maior for o recrutamento de interesses e identidades que se veem contemplados nessa definição.

Uma das consequências mais marcantes destes processos de regionalização ocorre quando os agentes sociais incorporam no seu agir e nas suas estratégias uma concepção do território associado a certas vocações. As chamadas “vocações regionais” são uma estratégia discursiva apoiada na existência de supostas tendências intrínsecas em certas regiões, como um potencial inquestionável para uma ou outra atividade, determinadas por características geomorfológicas e/ou culturais de um território. Trata-se de reificações em que uma representação da região é aceita e incorporada por agentes sociais co-construtores da paisagem e por agentes econômicos, políticos e outros com o poder simbólico de difundir a sua representação da realidade. Assim, essa representação passa a ser vista como uma realidade dada, concreta, natural e a-histórica, ou seja, como possuindo uma identidade em si mesma5.

Em suma, a ideia de vocação como propensão natural, ou como desígnio divino, para uma atividade esconde o fato de que se trata, na verdade, de uma construção social e política que tem consequências sociais, econômicas, ambientais e éticas que afetam humanos e não humanos em um dado território. Assim, nessas regiões, as concepções de natureza construídas historicamente (FLORIT, 2004; GUDYNAS, 2003) são naturalizadas e reificadas como “vocações regionais” (FLORIT et al., 2014; GRAVA, 2019).

A figura 1, é a representação mais conhecida das supostas vocações regionais de Santa Catarina. Definida pela territorialidade de certas indústrias ou “polos de desenvolvimento”, esta representação determina de modo implícito ou explícito a maior parte do planejamento econômico do estado, uma vez que é expressão da concepção territorial dos principais agentes econômicos e do setor público.

Nela, observa-se como a Região Oeste é associada à criação de porcos e aves. Com base nessa suposta vocação, são estabelecidas relações específicas inter-regionais, tanto na escala nacional quanto na internacional, provendo outros locais de produtos de origem animal. Este padrão de desenvolvimento se apoia na premissa, ideologicamente reproduzida, da equiparação de seres sencientes a meras coisas, pois a especialização produtiva requer que os animais sejam considerados matérias-primas de um processo industrial.

Essa conjunção transforma-se em um sistema econômico e político robusto na medida em que se apoia nas “vocações regionais”, supostamente naturais e auto evidentes, que tendem a desconsiderar outras possibilidades produtivas. Essas supostas vocações encontram esteio em relações sociais e políticas, vinculadas a atores específicos, beneficiários da concepção de natureza que elas exprimem. Entre esses atores, encontram-se grupos econômicos (os grandes frigoríficos) e grupos políticos, que participam das administrações estaduais e municipais e que efetivam as articulações políticas com as esferas federal e global.

A conformação dessa região evidencia o enorme papel dos frigoríficos e da cadeia agroindustrial da carne na produção do território. Na medida em que esta construção está apoiada na premissa da instrumentalização radical de seres sencientes não humanos, mediada por relações desiguais entre humanos, é possível dizer que se trata de uma regionalização especista. Na medida em que está marcada por um processo de racionalização integrada a mercados extrarregionais a partir de uma lógica de sempre aumentar a escala produtiva, é possível dizer que se trata de um especismo intensivo.

Figura 1:
Vocações Regionais de SC

Regiões de especismo intensivo (REIs) é o conceito utilizado em outros trabalhos para rotular e dar centralidade analítica à questão do especismo como uma dimensão da dinâmica social em jogo nesse tipo de região (FLORIT; GRAVA, 2016; FLORIT; SBARDELATI, 2016; FLORIT et al., 2019).

O índice de abate per capita aponta a densidade de seres não humanos sencientes mortos em um território específico com relação ao tamanho da população humana desse mesmo território. Esse índice se diferencia dos cálculos que expressam o peso total das carcaças ou seu valor monetário, que não revelam a quantidade de seres abatidos. Veja-se na tabela 1, por exemplo, este índice na microrregião de Concordia.

Tabela 1:
Abates per capita de aves, bovinos e suínos, Brasil, Santa Catarina, e microrregião de Concórdia-SC, em 2016

As implicações socioambientais deste padrão de desenvolvimento não se reduzem aos aspectos mencionados. É conhecido que a pecuária bovina tem papel relevante nas mudanças climáticas e na perda de biodiversidade, que a suinocultura tem responsabilidade na poluição hídrica, e que ambas influenciam fortemente na elevada “pegada hídrica”. Também existe uma reflexão ético-política focada nos padrões alimentares que relaciona o elevado consumo de carne com problemas de saúde dos consumidores, sendo que neste aspecto a avicultura também ocupa papel importante.

Mas não se pode deixar de mencionar a relação que existe no tratamento dado a animais em sistemas regidos pela “ideologia zootécnica” (PORCHER, 2012) e a emergencia de patógenos virais entre humanos. Com efeito, como afirmam Sordi e Florit (2020), o modo contemporâneo de exploração da natureza tem aumentado significativamente a chance de transbordamentos zoonóticos entre animais silvestres, domesticados e humanos. Isto faz com que, em olhar sistêmico, as condições para eventos pandêmicos no mundo globalizado sejam propiciadas pela degradação acentuada do ambiente natural, com pressão sobre o habitat das espécies silvestres; e pela intensificação da criação animal, com grandes concentrações em espaços cada vez menores, e patógenos cada vez mais resistentes devido à exposição continuada a antibióticos (SORDI; FLORIT, 2020). Por isso, quando os sistemas sociotécnicos são blindados das objeções morais à coisificação produtiva radical, como ocorre nas Regiões de Especismo Intensivo, favorecem-se ainda mais as condições propícias para o aparecimento de novos patógenos.

A Figura 2 mostra outra representação de regiões muito influente na definição de identidades, de discursos performáticos de muito impacto e também de atividades econômicas. Trata-se da regionalização turística do estado de SC que, dentre outras, define o “Vale Europeu”.

Figura 2:
Regionalização Turística de Santa Catarina

A região “Vale Europeu” foi definida pelo Conselho Estadual de Turismo, seguindo diretrizes do Plano Nacional do setor, aprovado em 2004. Este plano tem a região turística como eixo estruturante da política nacional por meio do Programa de Regionalização do Turismo - Roteiros do Brasil (BRASIL, 2004).

Trata-se de um modelo de gestão que associa a noção de território à de arranjos produtivos locais como modo de ordenar, promover, qualificar e diversificar a oferta turística (BORTOLOSSI, 2008). Segundo Beni (2006, p. 30), esta operação consiste na “organização de um espaço geográfico em regiões para fins de planejamento, gestão, promoção e comercialização integrada e compartilhada da atividade turística”.

A promoção da atividade turística no Vale Europeu exalta as marcas e os costumes da colonização europeia, enfatizando a alemã e a italiana, assim como as belezas naturais propícias para ecoturismo, turismo de aventura, etc. Assim o expressa o site do Governo do Estado:

A herança cultural dos colonizadores alemães, italianos, austríacos, poloneses e portugueses é a grande marca dessa região catarinense, localizada no Vale do Itajaí. Famosa por sediar a maior festa alemã das Américas, a Oktoberfest de Blumenau, o Vale Europeu possui muitas outras atrações: da arquitetura típica à culinária, celebrada em grande estilo durante as Festas de Outubro; ...do ecoturismo ao turismo rural. Escolha o seu roteiro e boa viagem (SANTA CATARINA, 2014).

Mais especificamente, outro site expressa a narrativa histórica oficial sobre as origens de tais atrativos:

O Vale do Rio Itajaí [no qual se insere o Vale Europeu] foi colonizado por imigrantes europeus, principalmente alemães, que fundaram Blumenau em 1850. No último quarto do século XIX, os italianos instalaram-se nos arredores das povoações germânicas já existentes. Os descendentes desses povos preservam os costumes dos antepassados na culinária, na arquitetura, no folclore, nas danças e nas festas. A natureza privilegiada da região propicia inúmeras alternativas de ecoturismo e turismo de aventura (SANTUR, 2014)

A omissão de qualquer referência aos povos indígenas que habitavam este vale, que contam com suas concepções de natureza, valores, e modos atender as suas necessidades, não é casual. Ela apenas reafirma a concepção que a regionalização turística do Vale Europeu vem a consagrar.

Por isso Vale Europeu constitui uma denominação regional cujas implicações vão muito além do planejamento de atividades turísticas. Ela consuma e consagra a reificação da região, com características que embora sejam imputadas e produto de relações históricas e conflitivas, são tratadas como auto evidentes, naturalmente dadas e, portanto, incorporadas subjetivamente como “vocações”. Essa reificação acontece à medida em que uma determinada representação da região é aceita e incorporada por agentes sociais co-construtores da paisagem e agentes econômicos, políticos e outros com o poder simbólico de difundir a sua representação da realidade, consagrada como uma realidade dada, natural e a-histórica, ou seja, como uma realidade em si mesma.

De fato, a ocupação do “Valeu Europeu” significou a modelação da paisagem a partir dos conceitos, valores e necessidades das populações da colonização. Isto ocorreu por meio da delimitação dos lotes, de acordo com sistemas trazidos da Europa, do desmatamento, e da “limpeza” e ajardinamento das áreas próximas às moradias. Mattedi (2001) ao se referir às visões de natureza que foram dominantes em diferentes momentos do processo do desenvolvimento do Vale do Itajaí, enfatiza que, para o colono, a natureza local representava claramente uma ameaça, um inimigo a ser subjugado por meio do desmatamento e a supressão de certas espécies, além da eliminação dos “bugres”, rótulo assumido do francês empregado, depreciativamente, para denominar os heréticos e os sodomitas, que fora aplicado aos índios da América, na acepção de “selvagem, grosseiro” (CUNHA, 2009).

Não obstante isto, as paisagens assim construídas são atualmente consideradas evidência da “vocação turística” da região, cuja configuração territorial permitiria uma forma equilibrada de conciliação de atividades econômicas rurais não agrícolas com a indústria e serviços, atraindo populações urbanas por causa das suas “amenidades naturais” (VEIGA, 2000).

Assim, as fronteiras que delimitam o “Vale Europeu” resultam da naturalização das paisagens e de configurações territoriais construídas por meio de relações sociais e políticas, vinculadas a atores específicos, que são justamente os beneficiários da visão que esta consagração exprime, isto é, as populações “de origem” definidas em oposição aos “brasileiros”. A expressão “de origem” se refere ao modo amplamente utilizado em Santa Catarina para se referir e classificar as pessoas em função da sua ascendência europeia. Por exemplo, “essa pessoa é de origem alemã”, “aquela pessoa é de origem italiana”, mesmo sendo cidadãos brasileiros natos. A expressão “brasileiros” é utilizada ainda, em algumas regiões, para se referir genericamente aqueles que não teriam uma ascendência europeia para invocar. Trata-se de uma expressão que referenda a narrativa histórica que se tornou hegemônica e que afirma o sentimento de pioneirismo na conquista da região, fortalecendo a autoestima e o espírito de unidade entre os “de origem”.

Em outras palavras, esta regionalização consagra a transformação da paisagem decorrente de processos históricos violentos e traumáticos e ancorada em relações de poder fundadas em premissas que atualmente são vistas como bastantes questionáveis.

A exaltação do “Vale Europeu” para fins turísticos é também um fenômeno político contemporâneo na medida em que envolve uma retórica que obscurece o fato de que boa parte da paisagem que é fator de atratividade turística tem essa forma em virtude de séculos de atividade humana recheada de violência e arbitrariedade.

Do ponto de vista da ética socioambiental, a consagração acrítica do “Vale Europeu” implica na perpetuação de uma forma de enxergar a paisagem e o rio Itajaí, típico da colonização, com suas consequências urbanas hodiernas em termos de desastres, e na negação dos olhares e valorações dos povos tradicionais. Estes, ainda têm seu território afetado pela decisão de ter sido escolhido durante a ditadura militar como “zona de sacrifício” para a construção da barragem de contenção conhecida como Barragem Norte, inviabilizando a continuidade do seu modo de vida, tradicionalmente sabedor de como conviver com essa entidade que na geografia oficial chamamos de “Rio Itajaí Açu”.

Com efeito, a bacia do Rio Itajaí recebe atualmente três barragens de contenção de cheias voltadas especialmente a beneficiar a sua parte mais urbanizada, no município de Blumenau. As três barragens implicaram em impactos socioambientais significativos, mas o impacto mais dramático, também o mais negado, foi o decorrente da construção da Barragem Norte. Ela é a maior barragem de contenção de cheias do Brasil, e alterou de forma drástica e irreversível o cotidiano do Povo Xokleng Laklãnõ (GOULART; FRAGA, 2000), alagando 95% das suas terras férteis (PEREIRA et al., 1998). Para a sua construção não houve estudos de impacto ambiental e social, nem houve qualquer diálogo com o povo indígena em nenhum momento do processo de decisão, concepção e construção. A indenização das terras ocupadas pelas águas da barragem também não fora paga integralmente, mesmo tendo ocupado a sua melhor área agriculturável e a área plana onde havia construções de ranchos, tifas, casas etc.

A saga do Povo Xokleng-Laklãnõ era dramática pelo processo de colonização. Mas tinha observado alguma reconstituição na TI Ibirama onde reestruturou seu modo de vida em torno do rio, pautado em uma relação de proximidade, promovendo relações e interações por gerações. O Povo Xokleng-Laklãnõ - uma cultura ancestral e milenar, em número reduzido de sobreviventes em decorrência das doenças e chacinas praticadas - foi assentado em 1914 na Terra Indígena Ibirama criada oficialmente em 1926. Enquanto o processo de colonização em si representou a primeira perda histórica de seu território, a construção da Barragem Norte representou a sua segunda perda histórica.

Considerações finais

Apresentaram-se as premissas principais da ética socioambiental e um campo empírico de aplicação dentro dos domínios do desenvolvimento regional a partir do estado de Santa Catarina. É necessário se discutir os pressupostos normativos que subjazem nas perspectivas do desenvolvimento. Os casos exprimem realidades regionais no estado de Santa Catarina que, embora abriguem opções de valor questionáveis considerando as ferramentas de discussão ética de que se dispõe hodiernamente, estão bastante naturalizadas e assim são reproduzidas. Os casos remetem a: i) a consagração de um padrão de desenvolvimento apoiado na coisificação de seres sencientes, o que tem sido caracterizado como Regiões de Especismo Intensivo (REIs) e; ii) uma regionalização turística que oblitera e atualiza um processo histórico de injustiça ambiental com povos indígenas que enfrentam o maior conflito ambiental do estado. Cada um destes casos, por sua vez, exemplifica uma das dimensões tratadas acima no processo de construção da ética socioambiental. Por um lado, a perspectiva que se debruça sobre a inconsistência ética de fornecer aos animais um tratamento meramente instrumental. Por outro lado, a perspectiva que revela a distribuição desproporcional dos ônus e bônus ambientais decorrentes das desigualdades inerentes aos processos de apropriação da natureza, construção do território e segregação socioespacial.

Esta discussão é relevante porque a territorialidade e a cultura urbano-industrial-capitalista tendem a enxergar a natureza e o não humano a partir uma perspectiva meramente instrumental. E quando os moraliza, tende a fazê-lo incorporando-os ao universo moral antropocêntrico, branco e colonizador, condenando todo o resto à coisificação ou invisibilização estrutural.

Isto acontece não apenas nos sistemas produtivos de monoculturas ou de extrativismo predatórios, mas também com os animais. Com efeito, quando coloca de um lado, os pets e do outro os porcos e galinhas das granjas industriais, está aplicando aos seres uma distinção arbitrária em dois universos tão contrapostos quanto os dos humanos e das coisas. Por outra parte, a territorialidade urbano-industrial produz a invisibilização estrutural de povos e populações que não se ajustam à normatividade implícita do desenvolvimento, como se apontou por meio do caso do “Vale Europeu”.

A ética socioambiental implica lidar com os argumentos normativos subjacentes às discussões em torno do desenvolvimento, mas também com as relações de poder que aparecem encarnadas nos diversos projetos desenvolvimentistas. Por um lado, é preciso refinar o entendimento para descobrir as melhores razões que indicam como se deveria agir com relação à natureza e aos seres vivos nos diferentes contextos em que se encontram. Por outro lado, é fundamental examinar as conexões entre esses argumentos defensáveis e as relações de poder. Em outras palavras, trata-se de construir uma interface entre filosofa e a ciência social, e colocá-la a funcionar para examinar as disputas no campo dos valores ambientais. Essas disputas acontecem no terreno dos argumentos e no terreno do território; são disputas de palavras e também de força física, econômica e política.

A prevalência da lógica hegemônica não decorre da força argumentativa do antropocentrismo exacerbado, mas das relações de poder que o mobilizam. Por isso, a necessária reflexão ética normativa requer também um olhar preparado para articular os argumentos filosóficos com a análise das relações sociais.

Como premissa para o planejamento, é importante buscar uma configuração territorial em que os modos de vida/territórios que se sustentam em usos da natureza comedidos e ecologicamente inteligentes, e que se apoiam em concepções de natureza peculiares, se afirmem e se conectem, ganhando envergadura, econômica, política e territorial. Para isto, são fundamentais os laços de conectividade entre eles e com grupos urbanos que compartilham tal sensibilidade, valores e necessidades. Esses laços, além de darem envergadura econômica podem gerar legitimidade política e solidariedade interescalar, para além do local.

Estes laços com as cidades são cruciais para impedir as decisões que ignoram os direitos desses povos sob lógicas que somente se justificam em outras escalas territoriais.

A degradação ecológica está sempre associada à redução instrumental da natureza e dos seres. É por isso que superar a redução instrumental é um caminho, se não suficiente, sim necessário para responder à degradação ecológica na situação em que nos encontramos. Permitir que essas outras valorações estabeleçam seus limites morais ao uso das paisagens e dos seres vivos é a forma mais imediata de levar a sério critérios de ética socioambiental no planejamento do desenvolvimento. É por tudo isso que a “consciência ecológica” precisa de uma leitura territorial, que é justamente o que é ignorado pelos discursos exclusivamente técnicos e pelo senso comum ecológico.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE).

  • 1
    - A senciência é a capacidade dos seres vivos não humanos de apresentar desde sensações a sentimentos (FELIPE, 2006) criando condições para o que se denomina de consciência (SCHUMACHER, 1987).
  • 2
    - Florit (2019) denomina de valorações sintéticas aquelas em geral realizadas por povos tradicionais em que os valores de uso (instrumentais) não são incompatíveis com a consideração moral dos entes que são objetos de uso, o que circunscreve o uso dentro de limites morais bem definidos.
  • 3
    - Note-se que há matizes entre diversos tipos de antropocentrismo, conforme Braga Lourenço (2019). Ele pode dizer com relação à variável da equidade. Neste sentido, esta matriz deve ser tomada como uma tipologia de tipos ideais no modo weberiano.
  • 4
    - Há casos, inclusive, em que o antropocentrismo é visto como uma virtude e não como uma limitação. Ver, por exemplo, PARDO BUENDÍA, M. El desarrollo. 1997.In: BALLESTEROS LLOMPART, J. (Coord.). Sociedad y medio ambiente. Madrid: Trotta, 1997, p. 187-206.
  • 5
    - Para Weber, o conceito de “vocação”, ou beruf, do alemão, bem como o calling (“chamado”) do inglês, tem uma conotação religiosa, “[...] a de uma missão dada por Deus” (WEBER, 2004, p. 71).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    21 Jul 2021
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