Open-access REDES ALIMENTARES ALTERNATIVAS E NOVAS RELAÇÕES PRODUÇÃO-CONSUMO NA FRANÇA E NO BRASIL1

Resumo

O presente trabalho analisa redes alternativas de comercialização de produtos ecológicos e novas relações produção-consumo na França e no Brasil. O método de investigação foi baseado na pesquisa descritiva e qualitativa a partir de 20 experiências selecionadas com atores (agricultores, comercializadores, consumidores e especialistas) que comercializam alimentos ecológicos na França e no sul do Brasil. Como resultado apresenta-se uma tipologia, as características e a organização dos circuitos curtos de comercialização. Os sistemas alternativos são muito diversificados e dinâmicos, sendo uma opção social, econômica e ambiental para a agricultura familiar, fortalecendo os mercados locais e religando produtores e consumidores. Em ambos os países as iniciativas bem-sucedidas em sistemas alternativos acontecem em locais onde existem formas de coordenação em rede e parcerias entre o poder público, entidades não-governamentais, empresas, organizações de agricultores e consumidores.

Palavras-chave Mercados Locais; Alimentos Orgânicos; Agroecologia; Comércio Justo

Abstract

This paper presents an analysis about agroecological alternative food networks and new producer-consumer relationships in France and Brazil. The investigation method is based on descriptive and qualitative research about 20 cases (qualitative interviews), selected with stakeholders (farmers, traders, consumers and food experts) in France and Southern Brazil. A typology about the characteristics and organization to short circuits trade is provided. The results show that alternative food networks are very diverse and dynamic, being a social, economic and environmental option to family farming, strengthening local markets and reconnecting producers and consumers. In these countries, the successful initiatives of alternative networks occur in places where there is coordination between food networks stakholders such as the government, NGOs, private enterprises, farmers and consumers' organizations.

Keywords Local Food Systems; Organic Food; Agroecology; Fair Trade

Resumen

Este trabajo analiza las redes alternativas de comercialización de productos ecológicos y nuevas relaciones de producción-consumo. El método de investigación se basó en descriptivo de 20 casos seleccionados y entrevistas cualitativas con los actores (agricultores, comercializadores, consumidores y expertos) del mercado de alimentos ecológicos en Francia y en sur de Brasil. Los resultados ofrecen una tipología, las características y la organización de los circuitos cortos. Los sistemas alternativos son muy diversos y dinámicos, siendo una opción social, económica y ambiental para la agricultura familiar, además de fortalecer los mercados locales y reconectar productores y consumidores. En los dos países las iniciativas de éxito de sistemas alternativos ocurren donde hay formas de coordinación de redes y alianzas entre el gobierno, las organizaciones no gubernamentales, empresas, organizaciones de agricultores y consumidores.

Palavras Clave Mercados Locales; Comida Orgánica; Agroecología; Comercio Justo

Introdução

As redes alimentares alternativas (alternative food networks - AFNs), como são conhecidas na literatura internacional (GOODMAN et. al., 2012), são uma categoria genérica de análise acadêmica para o estudo de alternativas ao modelo agroalimentar industrial. Para esses autores as AFN's têm algumas características centrais que incluem: cooperação social e parcerias entre produtores e consumidores; reconexão entre produção e consumo dentro de padrões sustentáveis; dinamização de mercados locais com identidade territorial e revalorização da circulação de produtos de qualidade diferenciada, como é o caso de produtos de base ecológica1. Para Wilkinson (2008) essas redes e movimentos sociais favoreceram a reinserção econômica de agricultores familiares brasileiros excluídos do processo de modernização agrícola. A institucionalização das redes e movimentos de base ecológica aconteceu na França nos anos de 1980 e no Brasil nos anos de 1990, pautado em princípios de confiança, equidade e novas relações sociais entre produtores e consumidores que contribuem para a emergência de uma democracia alimentar fundada sobre a racionalidade socioambiental (BRANDENBURG, 2002).

As redes alimentares alternativas são muito diversas e privilegiam os circuitos curtosii (CC) de comercialização (feiras do produtor, entrega de cestas, pequenas lojas de produtores, venda na propriedade ligada ao agroturismo, venda institucional para alimentação escolar, entre outras formas de venda direta). Para Marsden et. al. (2000) o mais importante para caracterizar um circuito curto ou cadeia curta é o fato de um produto chegar nas mãos do consumidor com informações que lhe permitam saber onde o produto foi produzido (lugar), por quem (produtor) e de que forma (sistema de produção) em detrimento à alimentação padronizada da agricultura industrial caracterizada por Ploeg (2008) como "impérios alimentares". Entretanto, Goodman (2009) alerta que estas redes e novas formas econômicas se desenvolvem em sociedades capitalistas e não em um "universo paralelo". Por isso, é necessária uma análise crítica que busque avaliar as relações de poder e a distribuição social dos ganhos entre os atores envolvidos.

As vendas em circuitos curtos canalizaram metade do valor total das compras da produção orgânica certificada no mercado interno brasileiro em 2010 (BLANC e KLEDAL, 2012). No Brasil 42% dos consumidores já compram produtos orgânicos em lojas especializadas e 35% em feiras do produtor, apesar de a maioria (72%) ainda comprar em canais longos como é o caso de supermercados (KLUTH; BOCCHI JR.; CENSKOWSKY, 2011). Na França a situação é similar, 79% dos consumidores compram em super e hipermercados o que representou 46% do valor total das compras de produtos orgânicos (bio) em 2013. Cabe destacar que na França a maioria das compras de alimentos em geral é feito em circuitos longos. Entretanto, parte dos consumidores ainda prefere comprar em circuitos curtos (33% compram em feiras do produtor (marché paysan); 29% em lojas especializadas e 19% diretamente nas propriedades, o que representou 48% do valor total das compras) principalmente por motivos de saúde, qualidade, sabor e segurança alimentar (AGENCE BIO, 2014). Em ambos os países, uma das especificidades dessas redes é o fato de questionar alguns princípios básicos do sistema convencional, como a homogeneização, a padronização de produtos e o grande número de intermediários na comercialização em grandes distâncias (DEVERRE; LAMINE, 2010). Nesse sentido, as redes alternativas propõem novos princípios de troca, relocalização dos alimentos, retomam valores, tradições e novos tipos de relações entre produtores e consumidores.

Um dos principais questionamentos levantados pela literatura científica internacional é a capacidade dessas redes alimentares alternativas de gerar mudanças estruturais em uma escala maior (GOODMAN, 2003; DEVERRE; LAMINE, 2010). Para esses autores as redes podem contribuir para uma transformação das relações de poder no âmbito dos sistemas alimentares, incluindo um maior peso e participação de consumidores e produtores na definição dos modos de produção, troca e consumo (a noção de autonomia). Enfatizam ainda a ligação necessária entre experiências concretas e um movimento social e político de oposição ao modelo convencional dominante.

Nesse sentido, os movimentos sociais devem adotar diferentes estratégias para tornar os cidadãos mais ativos, como a construção de formas alternativas de compra e troca; investimento em educação do consumidor; campanhas de conscientização e lobby político (DUBUISSON-QUELLIER et al., 2011). A educação para o consumo consciente é um desafio na perspectiva de requalificar os consumidores em oposição à aceitação e à conformidade aos alimentos ofertados pelo sistema convencional (JAFFE; GERTLER, 2006). O aprendizado proporcionado por essas redes alternativas de comercialização, considerando as práticas agrícolas e seus impactos, as práticas culinárias e as práticas democráticas em si que envolvem pessoas e instituições são fontes de empoderamento (empowerment) dos consumidores contribuindo para torná-los cidadãos conscientes de sua alimentação ou consumidores cidadãos (food citizens) (WILKINS, 2005; LEVKOE, 2006).

Do lado dos produtores, Brandenburg e Ferreira (2012) acrescentam que os agricultores ecológicos inseridos em um movimento social organizado contribuem para a ecologização de um rural que se situa para além das práticas agrícolas. Nesse caso, recuperam-se os interesses individuais dos agricultores transformando-os em projetos coletivos e apontando para uma racionalidade socioambiental.

Alguns trabalhos questionam as possibilidades e limitações das redes alternativas para superar as desigualdades sociais entre produtores e consumidores. Outros discutem as possibilidades das populações vulneráveis terem acesso à alimentação de qualidade via circuitos curtos. Para garantir uma visão de equidade numa perspectiva de segurança alimentar, vários autores têm demonstrado o papel crucial da sociedade civil e as inovações sociais que emergem dessas experiências em termos de tomada de decisão e modelos de gestão participativa. Alguns estudos apontam ainda para a noção de "democracia alimentar" (HASSANEIN, 2008; WILKINS, 2005); "agricultura cidadã" (LYSON, 2004) ou ainda "redes alimentares cidadãs" (RENTING et. al., 2012).

Outros autores questionam o uso do termo Rede Alimentar Alternativa (AFN em inglês) argumentando que, muitas vezes, o mesmo é usado de maneira polarizada como parte de um dualismo entre "convencional - alternativo" (HOLLOWAY et al.,2007). A proposta é que se supere a dicotomia convencional-alternativo, que reduz a questão da produção e consumo alimentar como dividido entre as diversas iniciativas "alternativas" que se posicionam contra um "convencional" sistema alimentar monolítico. Concordamos que é possível encontrar formas híbridas, relacionais e complementares de redes alimentares como mostrou Maye (2013).

De fato, podem existir complementaridades entre redes alternativas e convencionais como destaca Lamine (2012) que podem contribuir com o processo de transição. A autora considera que para garantir uma transição ecológica para sistemas alimentares mais sustentáveis deve-se buscar mais do que a participação de produtores e consumidores, e considerar a rede de atores e instituições em um sentido amplo com envolvimento de outros atores da cadeia alimentar, como a extensão rural, a pesquisa, o ensino, a sociedade civil e o poder público. Quando o foco do estudo recai sobre a agricultura de base ecológica, concordamos com Perez-Cassarino (2013) que a constituição de redes alimentares alternativas potencializa o surgimento de novas sociabilidades, resgate e reconstrução de valores e princípios centrados na confiança, reputação, ética e solidariedade.

O que se pretende discutir nesse trabalho por meio de experiências francesas e brasileiras é que as essas redes alimentares alternativas trazem inovações sociais, diversidade e valores associados que podem contribuir na reconexão entre produção e consumo, valorizar os mercados locais por meio de circuitos curtos de comercialização e facilitar a transição para sistemas de produção e consumo mais sustentáveis.

Vamos mostrar que o desenvolvimento da agricultura familiar de base ecológica é potencializado quando associado a circuitos curtos e redes alimentares alternativas, complementado por parcerias e políticas públicas voltadas ao fortalecimento dessas iniciativas.

Algumas questões de pesquisa guiam essa investigação: Quais são os tipos de circuitos curtos de alimentos ecológicos? Quais as características das propriedades que participam dessas redes e como se organizam? Em que condições os circuitos curtos de comercialização são viáveis? Quais os aprendizados, as dificuldades e as oportunidades para produtores e consumidores em participar de redes alternativas de comercialização?

Enfim, o objetivo geral do trabalho é analisar as particularidades das redes alternativas de comercialização de produtos ecológicos e as relações produção-consumo na França e no Brasil. Para isso apresenta-se uma tipologia desses circuitos curtos (CC), como funcionam, as características principais, as oportunidades e as dificuldades para produtores e consumidores.

O método de pesquisa e as experiências estudadas

A metodologia de trabalho envolveu a pesquisa descritiva e qualitativa a partir de experiências selecionadas na França e no sul do Brasil. Em um primeiro momento foi realizada uma revisão da literatura internacional, seguida de um estudo prévio em conjunto com uma equipe de especialistas franceses e brasileiros, selecionando experiências de redes alternativas de comercialização com produtos e serviços da agricultura de base ecológica. Os critérios para seleção das experiências foram: representatividade regional, tempo da experiência, reconhecimento local, trabalho com produtos ecológicos, mecanismos de certificação, prioridade para circuitos curtos e redes alternativas.

Foram realizadas no total 40 visitas técnicas, sendo: 6 feiras em Paris, Marseille e Região Provence-Alpes-Côte d'Azur (PACA); 2 Pontos de Venda Coletiva (PVC); 2 Associações de Consumidores (AMAP - Associação para Manutenção de uma Agricultura Camponesa); 5 lojas especializadas em produtos orgânicos (conhecidos como ''bio''); 1 loja de cooperativa de agricultores; 2 experiências de venda na propriedade (Bienvenue à la Ferme); 1 experiência de acolhida na propriedade (Accueil paysan); e entrevistas qualitativas com diferentes atores da rede de comercialização, sendo 7 agricultores orgânicos em sistema de olericultura, fruticultura, ovinocultura e bovinocultura; 7 especialistas de diferentes instituições que trabalham com agricultura orgânica; além de informações coletadas em 7 seminários de pesquisa sobre o tema. O estudo foi realizado entre novembro de 2011 e março de 2012, sendo selecionadas 20 entrevistas mais consistentes para responder aos objetivos da pesquisa. O estudo foi realizado na França nas regiões PACA, Rhône-Alpes e Île de France e no sul do Brasil.

Para comparar qualitativamente as experiências francesas com as experiências do Brasil, utilizamos os relatos de experiências de trabalhos com as redes alternativas de comercialização de alimentos ecológicos no sul do Brasil (destaque para a rede Ecovidaiii), descritos por Darolt (2012). A etapa de campo permitiu a construção de um diagnóstico, com base em informações coletadas em visitas, entrevistas, participação em eventos e fontes secundárias descrevendo as características principais (definição; funcionamento; estrutura; métodos de distribuição e marketing dos produtos; vantagens para consumidores e produtores), além de destacar dificuldades e oportunidades. A partir de informações coletadas foi criado uma tipologia das diferentes experiências e realizada uma análise qualitativa e comparativa dos resultados com base no nível de desenvolvimento de cada experiência estudada.

As experiências francesas e brasileiras logicamente se desenvolvem em contextos econômicos, socioculturais, ambientais e políticos que necessitam ser levados em consideração. Percebemos na discussão teórica precedente que as redes alimentares apresentam características e tendências semelhantes nos debates internacionais, porém têm diferentes raízes históricas. No Brasil, muitos dos pioneiros da agricultura de base ecológica surgiram no final da década de 1970 como parte de um movimento para resistir ao processo de modernização agrícola (com os seus efeitos conhecidos de concentração de terra, exclusão da agricultura familiar e intensificação da migração rural-urbana) e foram apoiados por organizações religiosas e da sociedade civil. Movimentos mais recentes surgiram no Brasil com a institucionalização da agricultura orgânica e agroecologia e são formados por iniciativas de grupos de agricultores familiares e consumidores organizados com o apoio de organizações não governamentais (ONGs) e instituições públicas (Ministério do Desenvolvimento Agrário, instituições de pesquisa, extensão rural, entre outras). Na França a institucionalização da agricultura de base ecológica (bio) aconteceu mais cedo - nos anos de 1980 - o que se refletiu num maior desenvolvimento do setor (3,93% da área plantada com orgânicos; 5,4% do número de produtores e 2% do mercado - AGENCE BIO, 2014), enquanto no Brasil aconteceu um pouco mais tarde nos anos de 1990, com crescimento menor (cerca de 1% de área plantada e 1,5% do mercado - MAPA, 2012).

Enquanto o perfil sociológico dos consumidores nos casos franceses e brasileiros pode ser comparado (consumidores de classe média, com exceção dos programas governamentais para famílias de baixa renda no Brasil), no caso dos agricultores existem algumas diferenças marcantes. Na França, os participantes das redes alternativas são frequentemente agricultores neorurais (com origens e influências urbanas), com um nível de educação e renda mais elevado, e maior ligação com o meio urbano o que facilita a interação com os consumidores. No Brasil, a maioria dos agricultores ecológicos tem origem no meio rural, com baixo nível de escolaridade e poucos recursos financeiros, característico da agricultura familiar brasileira. Entretanto, segundo Darolt (2012) existe também uma participação de agricultores neorurais na agricultura orgânica, sobretudo, próximo aos grandes centros urbanos.

Nesse trabalho vamos mostrar que apesar de particularidades, as diferentes experiências estudadas de circuitos curtos apresentam características comuns que permitem aos agricultores um melhor padrão de vida, o fortalecimento de laços sociais com consumidores e a contribuição na requalificação de produtores e consumidores, em contraste com a "desqualificação" induzida por redes alimentares industriais.

Definindo Circuitos Curtos de Comercialização

O debate científico têm trazido elementos importantes para melhor definir os circuitos curtos (CC) em termos de redes alimentares, assim como para avançar em tipologias e classificação das experiências. A partir de uma visão com viés na dimensão econômica, a distinção entre canais curtos e longos de distribuição de alimentos é, para alguns especialistas, uma questão do número de intermediários que operam entre a produção e o consumo. Assim, quanto maior o número de atravessadores, mais longo é o canal e vice-versa. Entretanto, o número de intermediários não deve ser uma questão única e prioritária. Outras características que aportam dimensões socioculturais podem ser destacadas para definir um circuito curto de comercialização, como: 1) a capacidade de socializar e localizar o produto alimentar gerando vínculo com o local e com a propriedade; 2) a redefinição da relação produtor-consumidor dando sinais da origem do alimento; 3) o desenvolvimento de novas relações considerando um preço justo e a qualidade (ecológica); 4) a conexão entre o consumidor e o produto alimentar (MARSDEN et al., 2000). Seguindo essas características os mesmos autores identificaram alguns tipos de CC resumidos da seguinte forma: 1. venda direta "cara a cara", onde a confiança está na relação interpessoal; 2. "proximidade espacial", incluindo o que é produzido e distribuído numa região reconhecida pelos consumidores; e, 3. "espacialmente estendido", nesse caso a confiança é transmitida por um processo de garantia da qualidade (certificação). Assim, considera-se não só a distância, mas também os parâmetros organizativos (produtores e consumidores), fatores culturais transmitidos pela confiança, pela valorização do mercado local e pelo produto agroecológico.

Os autores espanhóis Guzmán et al. (2012) acrescentam ainda que num circuito curto de comercialização as relações de poder dentro da rede alimentar devem estar a favor dos produtores e consumidores, e não dos intermediários e grandes distribuidores.

No Brasil, o debate teórico sobre redes alimentares alternativas (PLOEG, 2008; WILKINSON, 2008) e circuitos curtos de alimentos ecológicos (FERRARI, 2011; DAROLT, 2012) ainda é emergente, porém existem muitas experiências diversificadas e inovadoras que surgem a cada ano, mostrando que nos canais de distribuição de alimentos ecológicos há características similares a outros países com destaque para mais informações sobre a qualidade do produto, busca de relacionamento direto e interdependência entre agricultores e consumidores.

Os representantes do setor agroalimentar na França têm utilizado uma definição mais pragmática de circuito curto (CC) caracterizando os circuitos de distribuição que mobilizam até - no máximo - um intermediário entre produtor e consumidor (CHAFOTTE e CHIFFOLEAU, 2007; MESSMER, 2013). Dois casos podem ser distinguidos: a venda direta (quando o produtor entrega em mãos próprias a mercadoria ao consumidor) e a venda indireta via um único intermediário (que pode ser um outro produtor, uma cooperativa, uma associação, uma loja especializada, um restaurante ou até um pequeno mercado).

Na França e na Europa outras denominações como circuitos de proximidade (AUBRY; CHIFFOLEAU, 2009) ou circuitos locais (MARECHAL, 2008) têm sido utilizadas para reforçar a proximidade geográfica e o aspecto social/relacional como a ligação entre consumidor e produtor, e o desenvolvimento de mercados locais. Deverre e Lamine (2010) preferem utilizar ainda o termo sistemas alternativos na perspectiva de questionar o modelo convencional, propor novos princípios de troca e relações mais justas entre produtores e consumidores. Nesse trabalho, consideramos que as diferentes dimensões (econômica, social, ecológica e política) são importantes para classificar e analisar os circuitos curtos.

Tipologia e Características dos Circuitos Curtos de Alimentos Ecológicos

A classificação dos tipos de circuitos curtos de comercialização propostos nesse trabalho (Figura 1) seguem as indicações teóricas de Marsden et al. (2000), Renting et al. (2003) e Mundler (2008), considerando que temos circuitos relacionados com a ''venda direta'' (em que o produtor tem relação direta com o consumidor) e ''venda indireta'' onde existe apenas um intermediário engajado, denotando uma interdependência entre os atores. Essa tipologia considera diferentes dimensões econômicas e sociais (pela melhoria direta de renda dos agricultores e trocas entre produtores e consumidores), mas traz embutida a dimensão ecológica e política por se tratar de alimentos de base ecológica e com a participação do poder público (no caso de programas de governo para alimentação escolar que atingem um número significativo de pessoas).

Figura 1
Tipologia de circuitos curtos de comercialização de produtos ecológicos

Pode parecer surpreendente encontrar tipos similares de iniciativas em contextos históricos e geográficos diferentes. Todavia, os movimentos sociais em prol das agriculturas de base ecológica no mundo têm compartilhado ideais muito semelhantes com um significado político forte que permite, em certa medida, readequar a produção para sistemas mais sustentáveis e repensar dietas e hábitos alimentares, reforçando laços entre áreas rurais e urbanas.

Nas experiências brasileiras estudadas (Tabela 1) observamos que a maioria dos produtores utiliza simultaneamente mais de um canal, destacadamente: 1) Feiras do produtor; 2) Cestas em domicílio e, mais recentemente; 3) Os programas de governo (Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar). Percebemos ainda inovações como as vendas nas propriedades associadas em circuitos de turismo rural e restaurantes no meio rural, lojas especializadas e pontos de venda de agricultores, cooperativas de consumidores, vendas em rede via circuitos de circulação (caso da Rede Ecovida de certificação participativa), além de vendas em lojas virtuais pela internet.

Tabela 1
Análise comparativa do nível de desenvolvimento de circuitos curtos de comercialização de alimentos ecológicos na França e Brasil

A Tabela 1 traz uma síntese das experiências com uma análise qualitativa do nível de desenvolvimento dos circuitos curtos em redes alternativas na França e no Brasil de forma comparativa. De modo geral, o maior nível de escolaridade e de renda dos agricultores familiares, associado ao maior nível de conscientização dos consumidores na França, permitem uma vantagem comparativa em relação ao desenvolvimento dessas redes. Em ambos os países, a cooperação entre os atores e o engajamento político de produtores e consumidores permite atingir um maior nível de desenvolvimento.

As feiras do produtor são os mecanismos de comercialização mais difundidos no Brasil e a principal porta de entrada de agricultores ecológicos para o mercado local. As feiras são espaços educativos e de lazer que permitem grande interação entre produtores e consumidores, permitindo maior autonomia aos agricultores. Pesquisa do IDEC (2012) identificou 140 feiras orgânicas em 22 das 27 capitais brasileiras. O estudo aponta que nas regiões onde a agricultura familiar é forte (Sul e Nordeste), as vendas em feiras é mais pronunciada. No caso da França observamos que as feiras (marchés paysans) são mais sazonais (com maior expressão no verão), sendo menos preferidas pelos produtores do que as lojas especializadas independentes e lojas coletivas de produtores (PVC) que funcionam o ano todo, sobretudo em função das dificuldades climáticas, deslocamentos frequentes, horários pré-definidos e do tempo que a feira leva para se consolidar. As feiras tradicionais (marchés forains ''classiques'') são muito populares entre os consumidores e misturam produtos convencionais (coloniais, artesanais não certificados) e orgânicos certificados (bio). Nessas feiras tradicionais os produtores, bio ou não, são minoria. Nos dois países as feiras totalmente orgânicas têm tido maior expressão nas médias e grandes cidades. De acordo com Chiffoleau (2008) a consolidação das feiras de produtores se dá basicamente em 4 etapas, a saber: 1) Criação: no início, muitos consumidores aparecem para conhecer a novidade e impulsionam o mercado; 2) Queda (depois de 2 a 3 anos): após a novidade, alguns clientes deixam de frequentar a feira, acompanhado por agricultores; 3) Recuperação (pelo 3o e 4o anos): os clientes mais fiéis acabam por fazer uma divulgação boca a boca e ocorre uma retomada do crescimento; e, 4) Estabilização (após 5 anos): após esse período ocorre uma estabilização do número de produtores e do número de clientes fiéis. O mesmo fenômeno tem sido verificado no Brasil (DAROLT, 2012).

Na França, sobretudo na região Rhône Alpes, está bem difundida a venda em Pontos de Venda Coletiva (PVC - Points de Vente Collectifs) surgido no final dos anos de 1970 e que conta com 56 lojas, tendo no início uma forte participação de agricultores neorurais (LAMINE, 2012). Os PVC são pequenas lojas mantidas e administradas pelos próprios agricultores que vendem produtos de uma determinada região (até 100 km em média) com características e tradições comuns (produtos do terroir). O objetivo dessas lojas coletivas é melhorar as condições de trabalho do agricultor, diminuir o tempo gasto na comercialização e oferecer aos consumidores diversidade, regularidade e qualidade de produtos típicos da região. Os PVC demandam dos agricultores aquisição de novas competências (transformação de produtos, adoção de princípios de agroecologia) e readequação do trabalho na propriedade para atender as demandas das lojas (novos produtos, relação social com os clientes). Sempre é possível encontrar agricultores na loja (cada produtor deve ficar na loja um meio dia por semana, o que permite que o consumidor encontre sempre um produtor na loja) e todo marketing é direcionado no sentido de valorizar os produtores e a região.

Outra modalidade bem estabelecida na França, e em fase de crescimento no Brasil (por meio de cooperativas de consumidores e grupos de compras coletivas), são as cestas diversificadas para grupos organizados de consumidores. Na França, as chamadas AMAPs - Associations pour le Maintien d'une Agriculture Paysanne (Associação para Manutenção de uma Agricultura Camponesa) surgiram a partir dos anos 2000, inspiradas nas Community Supported Agriculture (Agricultura Apoiada pela Comunidade) e representam um contrato de parceria entre consumidores e produtores (LAMINE, 2008). Na França, há um maior engajamento social dos consumidores e participação em grupos de inserção social quando comparado as experiências brasileiras que ainda são incipientes. Por outro lado, no Brasil, as cestas individuais vêm ganhando simpatia do consumidor pela praticidade e preços menores quando comparado aos supermercados, mas ainda há pouca organização e engajamento social do consumidor brasileiro no processo.

As lojas especializadas de produtos ecológicos existem há vários anos na França em cidades grandes, médias e pequenas, contando com redes bem estabelecidas espalhadas por todo o país, com um discurso de solidariedade e parceria com os produtores, como é o caso de Biocoopiv. Segundo a Agence Bio (2014) esses dispositivos representaram 35% do valor total das vendas com productos bio em 2013. No Brasil parte dos consumidores orgânicos (41%) complementam suas compras em lojas de produtos especializados, sobretudo nas capitais (KLUTH; BOCCHI JR.; CENSKOWSKY, 2011). Em cidades de menor porte, as lojas podem estar associadas a organizações de produtores familiares e consumidores ecológicos (Ecotorres e Cooperativa de Consumidores Ecológicos de Três Cachoeiras no Rio Grande do Sul) ou funcionar com o apoio do poder público municipal. A maioria das lojas trabalha com entregas em domicílio via internet ou telefone, permitindo ao consumidor escolher os produtos de uma lista de opções, com maior comodidade e com preços inferiores aos praticados pelos supermercados.

As vendas nas propriedades estão bem difundidas na França, sobretudo no tocante a vinhos, queijos e produtos do terroir. No Brasil, as vendas nas propriedades estão em fase de expansão e têm sido associadas a propriedades que fazem parte de circuitos de turismo rural e agroecológico (Accueil paysan na França e Acolhida na colônia no Brasil) e são mais comuns em áreas periurbanas próximas as regiões metropolitanas.

As lojas virtuais de produtos ecológicos ganham espaço tanto na França quanto no Brasil e com tendência de crescimento para os próximos anos, sobretudo nas regiões metropolitanas, todavia nem sempre representam um circuito curto, conforme discutido nesse trabalho. Entretanto, são procuradas pela facilidade de compra, comodidade nas entregas ao consumidor e preços inferiores aos supermercados, atendendo as exigências da vida moderna.

Programas de Governo: oportunidades para a agroecologia no Brasil

A comercialização de produtos agroalimentares por meio de programas do governo ou mercado institucional surgiu no Brasil em 2003 com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e vem ganhando espaço, conforme Schmitt e Grisa (2013). O mercado institucional atende o consumidor coletivo (instituições de assistência social, hospitais, creches, escolas) dentro de um circuito curto de comercialização, considerado como venda direta pelo governo brasileiro. Assim, por meio de programas de governo os alimentos da agricultura familiar são comprados diretamente dos agricultores ou das associações e cooperativas de produtores e chegam até a população via entidades de assistência social do governo e escolas públicas. São programas que se inserem nas políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional. Nos últimos anos, no Brasil, dois programas se destacaram na compra de produtos de base ecológica: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Os produtos da agricultura familiar que apresentam certificação orgânica, comercializados pelo PAA e PNAE, recebem um prêmio de 30% em relação ao similar da agricultura convencional, valorizando a qualidade nutricional e os demais aspectos socioambientais envolvidos. A garantia de compra dos produtos pelo governo estimula a transição agroecológica. Ademais, esses programas tem uma dimensão social importante, pois atingem um grande público (escolas) e trabalham com uma diversidade de produtos seguindo a sazonalidade e as realidades locais.

Para Schmitt e Grisa (2013) existem algumas limitações operacionais que precisam ser superadas na construção do mercado institucional no Brasil, como: atraso na liberação dos recursos; problemas de acesso dos agricultores à documentação exigida (necessidade de desburocratização); falta de interação entre diferentes instrumentos de política pública que poderiam dar suporte às ações dos programas; falta de planejamento e problemas de gestão das organizações locais no acompanhamento das entregas e na formação e qualificação dos beneficiários (nutricionistas, merendeiras, professoras, alunos). Triches e Schneider (2010) acrescentam ainda que um dos desafios na aquisição de alimentos da agricultura familiar para programas institucionais é a legalização das agroindústrias familiares com a regulação da qualidade dos alimentos (sobretudo para leite, carnes e derivados).

Na França, o recente Plano Nacional para a Agricultura Orgânica (Plan Ambition Bio 2017) fixou objetivos ambiciosos para colocar 20% de produtos orgânicos na merenda escolar e em restaurantes coletivos até 2017. Esses objetivos variam de uma região para outra, privilegiando produtos não somente orgânicos (bio), mas também locais (normalmente o produto local tem maior peso), pois favorece o desenvolvimento regional. Em todo caso, esse desenvolvimento segue associado a novas formas de organização: plataformas logísticas, redes de trabalho, negociação e planejamento das necessidades de produtos entre escolas e produtores.

Experiências em outros países europeus com alimentação escolar mostram que o poder público tem papel decisivo em relação aos mecanismos de aquisição de alimentos, ao incentivo de determinados modelos de produção sustentáveis e de saúde pública. O poder público pode utilizar o seu poder de regulação, de decisão sobre alocação de recursos e de ator-chave no abastecimento alimentar para promover mudanças no comportamento da sociedade (MORGAN; SONNINO, 2008).

O mercado institucional reforça outras iniciativas de comercialização em circuitos curtos, fortalece as redes de organizações sociais e potencializa o diálogo entre os atores envolvidos com a agroecologia. Tal situação traz perspectivas otimistas para estimular a produção de alimentos ecológicos e saudáveis, contribuir no sentido de potencializar processos de transição agroecológica e promoção da agroecologia, bem como respeitar os modos de vida das populações tradicionais, fortalecer a cultura alimentar regional e promover a valorização da sociobiodiversidade.

Circuitos de Circulação e Comercialização em Rede

Uma experiência pioneira vem sendo desenvolvida pelo circuito de circulação e comercialização da Rede Ecovida de Agroecologia no sul do Brasil. Os princípios seguidos pela rede são: os produtos comercializados pelo circuito têm que ser agroecológicos com selo de certificação participativa da Rede Ecovida; a organização ou grupo de agricultores para participar do circuito deve fazer parte da rede; quem vende deve também comprar produtos dos demais produtores (intercâmbio e circulação de produtos) (MAGNANTI, 2008).

Esse sistema tem permitido a troca e circulação de produtos entre as regiões, além de atender a diversidade, manter uma regularidade e a qualidade biológica dos produtos, visto que se trabalha exclusivamente com produtos certificados de forma participativa. A discussão de circuitos curtos nesse sentido se dá não pela distância física e número de intermediários, mas pela dimensão social e política estabelecida pelo sistema participativo de garantia e pela organização do movimento social.

Em torno de 50 itens são ofertados pelo circuito, divididos entre hortaliças (em 100% dos grupos); frutas (80%); grãos (80%); farinhas (70%); açúcar (50%) e processados (20%)(REDE ECOVIDA, 2014). Os produtos têm circulado principalmente em feiras agroecológicas, em Programas de Governo como o PAA e PNAE, pequenos comércios e distribuidores, e grupos de trocas de alimentos (autoconsumo), garantindo também a autonomia alimentar dos agricultores da rede.

Os desafios para esse tipo de comercialização, segundo Perez-Cassarino (2013) são: a padronização de documentos para comercialização entre os estados; a padronização de embalagens, prioritariamente ecológicas; a padronização de produtos entre os núcleos; investimento em recursos humanos para operacionalização do processo de comercialização; melhoria e investimentos em logística; e, um planejamento de produção para atender uma demanda em expansão, destacadamente para alimentação escolar.

Características e Organização das Propriedades em Circuitos Curtos

Tanto no Brasil como na França, as experiências estudadas que comercializam em circuitos curtos são majoritariamente provenientes da agricultura familiar, com destaque para a categoria de agricultores neorurais, que se desenvolvem em áreas pequenas (em média, menor que 20 hectares no total) quando comparadas àquelas em circuitos longos. Um dos pilares de sustentação é a mão de obra familiar, que tem uma carga de trabalho intensa e deve aliar diferentes competências (produção, transformação e comercialização) no intuito de diminuir custos e agregar valor ao produto.

Na França, a maior parte das propriedades estudadas que vendem em circuitos curtos é especializada em um determinado sistema de produção (fruticultura, olericultura, leite, ovos, queijo), estando de acordo com Mundler (2008). No Brasil, as propriedades orgânicas estudadas mostraram-se mais diversificadas contando com sistemas vegetais e animais mais complexos. Se por um lado isso é desejado porque atende aos princípios agroecológicos, por outro torna o planejamento produtivo mais complexo. Nos dois países, a gama de produtos é, em geral, mais diversificada quando comparada à agricultura convencional, mesmo quando as propriedades são especializadas em determinados sistemas. Observou-se ainda uma tendência à diversificação em serviços com a pluriatividade da propriedade (agroturismo, gastronomia, lazer e descoberta; alojamentos e propriedades pedagógicas) conforme já apontaram (SCHNEIDER, 2005; MUNDLER; GUERMONPREZ; PLUVINAGE, 2007).

Outra característica que pode ser destacada em circuitos curtos é a maior autonomia do agricultor em relação aos circuitos longos. No Brasil, os agricultores que trabalham integrados com empresas, para vendas em supermercados, têm menor autonomia na gestão, sendo o planejamento de produção e a comercialização realizados pelas empresas. Segundo Darolt (2012), o sistema de produção é simplificado e especializado em um ou dois produtos. É comum nesses casos, uma repetição da lógica comercial e industrial utilizada em sistemas convencionais para a produção em escala.

A Figura 2 resume as diferentes características observadas nas propriedades que comercializam em circuitos curtos. Segundo Mundler (2008), a combinação entre agricultura ecológica e circuitos curtos têm impactos positivos em diferentes dimensões como na economia local, trazendo oportunidades de trabalho e de renda; na dimensão social, com a aproximação de produtores e consumidores; na dimensão ambiental, com a valorização dos recursos naturais e da paisagem; e na dimensão política como uma nova opção de consumo.

Figura 2
Características comuns observadas em circuitos curtos de comercialização de alimentos ecológicos (Brasil e França)

A organização do trabalho observado nas experiências se mostrou mais ou menos complexa em função dos recursos humanos e econômicos disponíveis na propriedade. Em propriedades familiares de pequeno porte, concordando com Dedieu et al. (1999), é fundamental agregar valor ao produto (com a transformação), vender sempre que possível de forma direta e potencializar os serviços na propriedade (turismo e acolhida do consumidor na propriedade, por exemplo).

A forma de comercialização mais adequada a cada tipo de produtor pode variar em função da mão de obra, da organização do sistema de produção e da infraestrutura disponível. Observamos que na maioria dos canais estudados as práticas agrícolas utilizadas, os volumes de produção, os tipos de produtos e a organização do trabalho se adaptam para responder às demandas dos consumidores. Assim, concordando com Mundler et al. (2007) notamos que a lógica de desenvolvimento em circuitos curtos vai repercutir sobre a organização da propriedade. Em outras palavras, existe um ajuste entre demanda e oferta que pode ser mais facilmente gerenciado pelos agricultores em circuitos curtos, quando comparado com um circuito longo.

Oportunidades e dificuldades na relação produção-consumo

Idealmente os circuitos curtos requerem proximidade geográfica, participação ativa do consumidor e ligação entre produtor e consumidor. A pesquisa verificou que isso varia de acordo com os contextos estudados. Todavia algumas características são semelhantes, como: remuneração mais correta ao produtor, preços mais justos ao consumidor, incentivo à produção local e a transição para sistemas mais sustentáveis. Ainda destacamos que comprar nessas redes alternativas diminui o impacto ambiental pela redução de embalagens (plásticas) e pelo menor gasto energético com transporte.

Do lado do produtor existem mais vantagens do que desvantagens na comercialização via circuitos curtos, como mostrado na Tabela 2. Os resultados apontam que os circuitos curtos permitem maior autonomia do agricultor, contato direto com o consumidor, transações financeiras sem intermediários, remunerações mais justas e menor risco de perdas na comercialização. Como vimos na seção anterior o investimento em capacitação dos produtores, a gestão da propriedade e o planejamento de produção são chaves para minimizar as dificuldades de falta de mão de obra, ajustes entre oferta e demanda, investimento em infraestrutura e logística. Nesse aspecto os agricultores brasileiros têm muito mais dificuldades quando comparados aos franceses, considerando o contexto histórico, social e econômico. As experiências estudadas confirmam que a agricultura familiar de base ecológica associada a circuitos curtos possuem uma sinergia e simbiose favorável ao desenvolvimento sustentável.

Tabela 2
Oportunidades e dificuldades para produtores e consumidores em circuitos curtos de comercialização

Do ponto de vista do consumo, essas redes alternativas trazem oportunidades para estimular mudanças de hábitos alimentares, incentivo à educação para o gosto, organização e mobilização de consumidores em campanhas por uma alimentação saudável (contra agrotóxicos e transgênicos, por exemplo). Nesse sentido, essas redes alternativas se constituem como experiências que podem ajudar a criar políticas públicas rumo a padrões mais sustentáveis de consumo. Entretanto, é preciso considerar que esse é um processo lento de empoderamento e tomada de consciência dos consumidores sobre aspectos como a sazonalidade da produção ecológica, conhecimento das dificuldades dos produtores, mudança de valores em relação a quesitos de regularidade, quantidade e diversidade facilmente atendidos pela agricultura industrial e deficiente na produção ecológica.

Considerações Finais: novas relações produção-consumo

Neste trabalho estudamos experiências de redes alternativas de alimentos ecológicos na França e no Brasil que permitiram construir uma tipologia dos principais circuitos curtos (CC) de comercialização, analisar suas características e observar dificuldades e oportunidades nas relações entre produção e consumo.

De fato, a compra em circuitos curtos é uma forma de fugir da padronização imposta pelo sistema agroalimentar industrial que uniformiza modos de vida e direciona o consumo. Mais do que enquadrar as experiências estudadas em uma definição e tipologia estáticas, a diversidade de tipos encontrados na França e no Brasil confirma o potencial inovador das redes alimentares alternativas em mobilizar atores e buscar soluções adaptadas à agricultura familiar de base ecológica, considerando os diferentes contextos. Essas iniciativas abrem espaço para a discussão de novas proposições de desenvolvimento local e políticas públicas que incorporem não apenas variáveis técnico-produtivas, econômicas e ambientais, mas também valores sociais, éticos e culturais. Princípios como autonomia, solidariedade, segurança alimentar, justiça social, respeito à cultura e tradição locais podem ser incorporados nas relações entre produção e consumo.

O estudo confirma a hipótese de que os circuitos curtos são viáveis e fortalecem as redes alimentares alternativas quando associados com as características da produção ecológica (pequenas áreas, mão de obra familiar, produção diversificada, autonomia dos agricultores, ligação com o consumidor, preservação da biodiversidade, valorização da paisagem, qualidade alimentar e produto saudável).

Nas experiências onde se verifica a formação de redes com apoio de políticas públicas e interação entre atores (poder público, entidades não-governamentais, organizações de agricultores e consumidores) observam-se avanços no processo de distribuição de alimentos, na tomada de decisão e novos modelos de gestão participativa, como é o caso do circuito de comercialização da rede Ecovida no sul do Brasil, os programas de alimentação escolar (Brasil e França) e o caso das associações de consumidores (AMAPs), na França.

O trabalho aponta oportunidades, mas destaca dificuldades que precisam ser superadas no campo da produção, distribuição e consumo. Nesse sentido, as políticas públicas e os trabalhos futuros devem ser direcionados para superar problemas como o reduzido volume de produção agroecológica; pouca diversidade e regularidade na oferta de produtos ecológicos; desarticulação entre oferta e demanda; problemas de infraestrutura e logística. Ademais, investimento em educação para o consumo consciente com informação qualificada aos consumidores. A evolução de mercados baseados em circuitos curtos pode contribuir para a mudança de hábitos de consumo em relação à alimentação saudável ao mesmo tempo em que cria novos mercados para a produção de base ecológica. Os desafios passam pela criação de estruturas de apoio à produção, distribuição e comercialização, com suporte institucional, financeiro e políticas públicas, especialmente nos casos que envolvem grupos organizados de produtores familiares na fase inicial do processo de transição agroecológica.

Nas novas relações produção-consumo o consumidor busca produtos com a "cara do produtor", que sejam ressaltadas as características locais das comunidades, como as tradições, o modo de vida, a valorização do saber-fazer, o cuidado com a paisagem, além de produtos ecológicos, de época e com preços justos. Esse conjunto de características singulares, presentes nos circuitos curtos, é por si só a marca que os consumidores procuram, num avanço em termos de qualidade. Isso cria novas relações sociais, novos valores e resgate da autonomia dos agricultores.

Finalmente, o ato de participar em circuitos curtos e redes alimentares alternativas envolve valores sociais, econômicos, ambientais e políticos que contribuem para o consumo consciente. Esse trabalho evidenciou a necessidade de reinventar os mercados locais, reconectar produtores e consumidores e de criar novas relações entre produção-distribuição-consumo.

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  • i
    Nesse trabalho o conceito de sistema de produção de base ecológica abrange os denominados: orgânico, ecológico, agroecológico, biodinâmico, natural, regenerativo, biológico, permacultura e outros que atendam os princípios estabelecidos pela Lei 10.831/2003 que dispõe sobre o sistema orgânico de produção agropecuária no Brasil. Na França o sistema é conhecido como agricultura biológica (bio) a partir da legislação de 1980, mas existem produtos de outras formas de agricultura alternativa (agriculture paysanne, agroécologie) que se dizem mais ecológicas e são encontrados em circuitos curtos.
  • ii
    Circuitos Curtos (CC) ou cadeias curtas de comercialização são definidos como "um sistema de inter-relações entre atores que estão diretamente engajados na produção, transformação, distribuição e consumo de alimentos" (RENTING et al., 2012). Essa definição traz dois pontos importantes (inter-relações e interdependência) e deixa aberta uma ampla gama de formas de articulação entre produção e consumo.
  • iii
    O circuito de circulação e comercialização da Rede Ecovida é formado por 27 núcleos regionais, abrangendo 200 municípios, 400 grupos e associações (cerca de 3800 famílias) envolvendo em torno de 200 feiras agroecológicas nos três estados do Sul do Brasil (www.ecovida.org.br) (REDE ECOVIDA, 2014).
  • iv
    Biocoop é uma rede francesa com 330 lojas e atores independentes, militantes e engajados no desenvolvimento da agricultura orgânica (conhecida como bio) (www.biocoop.org)
  • 1
    . Esse trabalho integra o projeto "Agroecologia na França e no Brasil: entre redes científicas, movimentos sociais e políticas públicas", apoiado pelo acordo CAPES/COFECUB 716/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2013
  • Aceito
    20 Mar 2015
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