Resumos
Neste artigo objetivamos discutir a proteção dos conhecimentos das populações tradicionais em sua estreita relação com a preservação dos recursos naturais e a proteção da propriedade intelectual. Para tal, são analisadas a compreensão que as organizações internacionais responsáveis pelo patrimônio (UNESCO), pelo meio ambiente (PNUMA) e pela propriedade intelectual (OMPI) têm de proteção. Além disso, também é comentada a visão da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse conjunto de órgãos multilaterais que tratam do tema indica a complexidade que envolve a definição de normas legais para a proteção nesse campo.
Conhecimento tradicional; Organizações multilaterais; Propriedade intelectual
In this article we aim to discuss the protection of traditional populations' knowledge in its close relation to natural resources preservation and the protection of the copyright. For that, we analyzed the understanding of protection that international organizations responsible for the heritage (UNESCO), for the environment (UNEP) and for the copyright (WIPO) have. The vision of the World Trade Organization (WTO) is also remarked. This set of multilateral agencies that deal with the subject indicates the complexity that involves the definition of legal rules for protection in this field.
Traditional knowledge; Multilateral organizations; Copyright
ARTIGO
Conhecimento tradicional e propriedade intelectual nas organizações multilaterais
Traditional knowledge and intellectual property in the multilateral organizations
Silvia Helena ZaniratoI; Wagner Costa RibeiroII
IDoutora em História Social, Professora da Universidade Estadual de Maringá, Pós-doutoranda em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Bolsista do CNPq
IIDoutor em Geografia Humana, Livre docente do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, Presidente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP
Autor para correspondência Autor para correspondência: Silvia Helena Zanirato Programa de Pesquisas Sociais, Geografia Política e Meio ambiente, Programa de Estudos e Pesquisas do Espaço Urbano, Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá, PR Avenida Colombo, 5790, Zona 7 CEP 87020-900, Maringá, Paraná, Brasil Fone: (44) 3261 4328. E-mail: sizani@uol.com.br
RESUMO
Neste artigo objetivamos discutir a proteção dos conhecimentos das populações tradicionais em sua estreita relação com a preservação dos recursos naturais e a proteção da propriedade intelectual. Para tal, são analisadas a compreensão que as organizações internacionais responsáveis pelo patrimônio (UNESCO), pelo meio ambiente (PNUMA) e pela propriedade intelectual (OMPI) têm de proteção. Além disso, também é comentada a visão da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse conjunto de órgãos multilaterais que tratam do tema indica a complexidade que envolve a definição de normas legais para a proteção nesse campo.
Palavras-chave: Conhecimento tradicional. Organizações multilaterais. Propriedade intelectual.
ABSTRACT
In this article we aim to discuss the protection of traditional populations' knowledge in its close relation to natural resources preservation and the protection of the copyright. For that, we analyzed the understanding of protection that international organizations responsible for the heritage (UNESCO), for the environment (UNEP) and for the copyright (WIPO) have. The vision of the World Trade Organization (WTO) is also remarked. This set of multilateral agencies that deal with the subject indicates the complexity that involves the definition of legal rules for protection in this field.
Keywords: Traditional knowledge. Multilateral organizations. Copyright.
1 Introdução
Proteção de conhecimento tradicional é tema relevante e contemporâneo e desperta muitos interesses. Por isso, este assunto é tratado na esfera internacional e reflete em organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESCO, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PNUMA, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual OMPI e a Organização Mundial do Comércio OMC.
Estas instituições expressam visões distintas de proteção do conhecimento de povos tradicionais e indicam que estamos distantes de chegar a uma normativa internacional que atenda a interesses díspares. Apresentar estas posições pode municiar pesquisadores e a sociedade civil para o debate político acerca do papel das comunidades tradicionais na conservação ambiental. A atuação de vários órgãos multilaterais para tratar o tema indica sua complexidade e dificuldade em definir normas que o regulamentem.
Para realizar esse artigo foram consideradas decisões de fóruns dos órgãos citados, acessadas, em geral, pela rede mundial de computadores. De posse desse material, partiu-se para um diálogo com outros investigadores.
O texto está organizado em seis partes. Nas três primeiras temos a proteção da natureza e do patrimônio cultural, do conhecimento tradicional e da propriedade intelectual. Depois, procurou-se demonstrar as atuais posições da Convenção sobre Diversidade Biológica CDB2 2 Existem diversos programas no âmbito do PNUMA referentes à conservação ambiental. Porém, no que diz respeito à proteção do conhecimento tradicional, ele está alocado na CDB; , da UNESCO e da OMPI frente à proteção do conhecimento tradicional. Nas considerações finais tem-se uma síntese das manifestações institucionais sobre o tema, além de expressar as dificuldades para consolidar a proteção do conhecimento tradicional.
2 A proteção da natureza e do patrimônio cultural
A UNESCO, desde sua criação em 1945, tratou da proteção da natureza. A primeira ação nesse aspecto ocorreu em 1949, por ocasião da realização da Conferência das Nações Unidas para a Conservação e Utilização dos Recursos. O resultado desse encontro foi um diagnóstico da situação ambiental mundial (RIBEIRO, 2001).
Outra ação de destaque foi a Conferência realizada em Paris, em 1962, que aprovou a Recomendação relativa à salvaguarda da beleza e do caráter das paisagens e sítios. Neste documento estavam indicadas medidas para a proteção das paisagens naturais e das transformadas pela ação humana, sua inclusão no planejamento urbano e regional e a criação de parques e reservas naturais (RECOMENDACIÓN, 1962).
A UNESCO organizou em Paris, em 1968, a Conferência Intergovernamental de Especialistas sobre Bases Científicas para o Uso e Conservação Racionais dos Recursos da Biosfera, quando se discutiram os impactos ambientais causados pela ação humana. (RIBEIRO, 2003).
Em 1972, em Estocolmo, ocorreu a primeira grande conferência convocada pela ONU para tratar de princípios básicos para a proteção ambiental: a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano. Nessa ocasião foi emitida uma declaração de princípios e deliberado que os Estados têm o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com sua política ambiental, bem como a responsabilidade de garantir que sua ação não venha a prejudicar áreas além dos limites de sua jurisdição (NAZO; MUKAY, 2003).
Nos termos do Princípio 2 da Declaração, "os recursos naturais, incluindo-se o ar, a água, a terra, a flora, a fauna e, especialmente, amostras representativas dos ecossistemas naturais, devem ser salvaguardados em benefício das gerações atuais e das futuras, por meio do cuidadoso planejamento ou administração, conforme o caso". Já o Princípio 4 dispôs à espécie humana a responsabilidade de salvaguardar e administrar a fauna e a flora primitivas e que a conservação da natureza deveria estar nos planos de desenvolvimento econômico.
Seria preciso introduzir "um processo integrado e coordenado para o planejamento do desenvolvimento, de modo a torná-lo compatível com a necessidade (do) meio ambiente em benefício da população" (DECLARAÇÃO, 1972). Proteger significava conservar mediante um planejamento cuidadoso.
Outras decisões da Conferência de Estocolmo foram a criação do PNUMA, que passou a centralizar as ações ambientais no interior da ONU, e do Fundo Mundial para o Meio Ambiente.
Enquanto o PNUMA ganhava corpo institucional, a UNESCO continuava a coordenar encontros internacionais para a preservação do patrimônio cultural. Assim, em 1972, organizou-se, em Paris, a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.
Nesta ocasião a UNESCO expressou que a proteção de uma área não poderia se efetuar unicamente em escala nacional, com o argumento de que muitos países não tinham os meios necessários para tal. Com essa avaliação, chegou-se ao patrimônio mundial, "constituído por obras e expressões de processos naturais de interesse excepcional, por vezes testemunhos únicos que deveriam ser considerados pertencentes não apenas aos Estados em que se encontravam, mas à toda humanidade" (CONVENCIÓN, 1972). Esta deveria se envolver em sua defesa e salvaguarda, de modo a assegurar a sua transmissão às gerações futuras3 3 Zanirato e Ribeiro discutem como as definições de patrimônio cultural e de patrimônio natural foram internacionalizadas no âmbito da UNESCO. Para eles, a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural expressou que o conceito de patrimônio "foi considerado no duplo aspecto cultural e natural, o que remetia à compreensão de que o homem interage com a natureza e se fazia necessário preservar o equilíbrio entre eles" (ZANIRATO; RIBEIRO, 2006, p. 258); .
Foi deliberado no artigo 1º da Convenção que o patrimônio cultural englobava os monumentos, o grupo de edifícios e os lugares dotados de "um valor universal excepcional", do ponto de vista da história, da arte, da ciência, ou do ponto de vista estético, etnológico ou antropológico. Os elementos culturais que se encontrassem dentro desses critérios seriam inscritos na Lista Mundial do Patrimônio da Humanidade.
A UNESCO também definiu no artigo 2º que o patrimônio natural seria composto por bens igualmente dotados de um valor excepcional do ponto de vista estético e/ou científico. A proteção deveria ser uma responsabilidade de cada um dos membros, que teriam a obrigação de "proteger, conservar, valorizar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural mencionado nos artigos 1º e 2º" (CONVENCIÓN, 1972).
Já a proteção internacional, conforme o disposto no artigo 7º, consistiria na adoção de "um sistema de cooperação e assistência internacional destinado a secundar os Estados-partes, nos esforços que desenvolvam para preservar e identificar esse patrimônio" (Convención, 1972). Para isso foi instituído o Comitê do Patrimônio Mundial.
Até então, proteção significava a salvaguarda e a conservação dos bens avaliados como patrimônio, mediante um planejamento adequado.
3 A proteção dos conhecimentos das populações tradicionais
Na década de 1980, associações ambientalistas e movimentos sociais de diversas partes do mundo passaram a discutir alternativas de desenvolvimento e a acompanhar as reuniões da ONU. Eles exerceram um papel indutivo, em diversas iniciativas, de formulação e elaboração de políticas ambientais (RIBEIRO, 2003). Não resta dúvida de que o papel desempenhado por estes segmentos sociais, aliados à organização dos povos indígenas, propiciou discutir a proteção dos conhecimentos da população tradicional, inclusive na Conferência do Rio, de 1992.
A Conferência das Nações Unidas para o Meio-Ambiente e Desenvolvimento, ou Conferência do Rio, teve como objetivo regular a ação humana em relação à emissão de gases que afetam o efeito estufa e o acesso à informação genética. Deste encontro resultaram as Convenções sobre Mudanças Climáticas e sobre Diversidade Biológica - CDB.
A CDB foi o primeiro acordo multilateral a regular a conservação e o acesso aos recursos genéticos e a reconhecer o papel das comunidades tradicionais nas áreas protegidas. Este documento ressalta
a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais, e que é desejável repartir eqüitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes (CONVENCIÓN, 1992).
Desde então já havia o reconhecimento de que "o conhecimento tradicional propicia a criação de modalidades ambientalmente sustentáveis de viver e usar o bosque e seus recursos, assim como cultivar a terra com variedade de plantas escolhidas e melhoradas"; o que se traduz na conservação da biodiversidade (KHOR, 2003, p. 16).
A CDB determinou, na alínea j do artigo 8º, que cada parte contratante deveria,
em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas (CONVENCIÓN, 1992).
O texto reconhece que as comunidades tradicionais devem ter direitos e acesso ao ambiente em que vivem e trabalham, bem como o direito ao uso de seu conhecimento e dos produtos que ele gera. Mas os conhecimentos tradicionais não deixam de ser vistos como fonte de informação pelos laboratórios. Os avanços nas pesquisas podem ser mais rápidos quando as comunidades sugerem espécies para investigar. Disso resultaram várias dificuldades. O que fazer com o conhecimento tradicional? Patenteá-lo ou deixá-lo como livre acesso?
A CDB definiu que os recursos genéticos estão sob a soberania dos países em que ocorrem e não são patrimônio da humanidade. A contrapartida pelo acesso aos recursos se daria pela transferência de biotecnologia (CUNHA, 1999).
A relação da CDB com outros acordos internacionais foi enunciada no artigo 22º, que expressou que suas disposições:
1. não devem afetar os direitos e obrigações de qualquer Parte Contratante decorrentes de qualquer acordo internacional existente, salvo se o exercício desses direitos e o cumprimento dessas obrigações causem grave dano ou ameaça à diversidade biológica (CONVENCIÓN, 1992).
A CDB foi firmada por 152 países4 4 De acordo com informações coletadas em www.biodiv.org, acessado em setembro de 2006; e não foi ratificada pelos Estados Unidos sob a alegação de que ela "concentrava sua atenção nos direitos de propriedade intelectual como uma limitação à transferência de tecnologia" (CANO, 1992, p. 381). Segundo argumentação do presidente dos Estados Unidos à época, George Bush, ela "não debatia sobre o tratado da biodiversidade, mas sobre o tratamento aos direitos de propriedade intelectual" (Idem).
Em que medida essa questão é procedente?
Para responder esse ponto, é importante compreender como foram definidos os direitos de propriedade intelectual pela OMPI.
4 A proteção da propriedade intelectual
Os primeiros tratados sobre propriedade intelectual remontam ao final do século XIX, quando foi celebrada a Convenção da União de Paris, em 1883. Os dispositivos desse acordo internacional foram revisados em diversas ocasiões visando precisar o que se entendia por propriedade intelectual.
A UNESCO considerou necessário rever os parâmetros para a proteção aos direitos autorais e convocou a Convenção Internacional sobre Direitos do Autor, realizada em Genebra, em 1952. O objetivo era discutir a proteção do direito de autor sobre obras literárias, científicas e artísticas.
Os direitos autorais foram definidos como "direitos fundamentais que asseguram a proteção dos interesses patrimoniais do autor" (CONVENCIÓN, 1952).
A proteção compreendia a defesa dos interesses do autor em face da reprodução de sua criação.
Em 1967, em Estocolmo, foram retomados os princípios celebrados na Convenção de 1952 e se procurou definir as relações entre o folclore e o copyright para criar meios internacionais de proteção às "obras não publicadas onde a identidade do autor é desconhecida" (LANARI, 2003, p. 80).
O folclore aparecia como uma preocupação para os convencionais que buscavam regulamentar o direito autoral sobre obras cuja autoria não estava claramente definida. As obras consideradas pertinentes à tradição popular se encontravam nessa classificação.
A OMPI, criada em 1967 e instituída em 1970, no âmbito da ONU, tornou-se a responsável pela proteção da atividade intelectual criativa, além de repreender a competição desleal. A propriedade intelectual das manifestações populares passou a ser objeto de negociação no âmbito da OMPI. Porém, entendeu-se que não havia como incluir este tipo de criação entre as que estavam protegidas pelo direito de propriedade intelectual. Também foi definido que cada país signatário fosse o responsável por representar o autor, protegê-lo e fazer cumprir seus direitos.
No decorrer dos anos 1970, a UNESCO procurou órgãos da OMPI - o Comitê Intergovernamental do Direito do Autor5 5 Comitê criado em Paris, em julho de 1971, na revisão da Convenção Universal sobre o Direito do Autor. Para consultar suas atribuições acessar: http://www.mj.gov.br/combatepirataria/servicos/legislacao/convencao_universal_direito_de_autor.pdf; e o Comitê Executivo da Convenção de Berna6 6 Comitê instituído pela OMPI para assessorar a Assembléia dos países que integram a União para a proteção dos direitos dos autores sobre as suas obras literárias e artísticas. Consultar http://www.wipo.int/treaties/es/ip/berne/trtdocs_wo001.html#P91_12057; - para tentar equacionar a proteção internacional aos conhecimentos populares no âmbito dos direitos autorais (LANARI, 2003).
As alegações contrárias à aplicação dos direitos autorais para o conhecimento tradicional se apoiavam no princípio de que os direitos de propriedade não se aplicavam às obras sem autoria definida, sobretudo no que tange à exploração econômica e à cobrança de direitos, uma vez que não há como definir a titularidade. Alegavam que não havia como proteger o direito de propriedade quando ele é coletivo, ou seja, pertence a uma comunidade.
Desde 1973 a Bolívia vinha atuando junto à UNESCO para que esta elaborasse um documento de protegeção às artes populares e ao patrimônio cultural de todos os povos e que fosse acrescido à Convenção Universal sobre Direitos do Autor. A UNESCO passou a estudar essa solicitação e elaborou o texto "Possibilidades de criar um instrumento internacional para a proteção do folclore". Ele foi recusado sob o argumento da "falta de devidas fontes para a identificação das expressões do folclore que se queria proteger, falta de mecanismos eficazes para a proteção das expressões que se encontram em vários países e que têm várias origens" (AIKAWA, 2003, p. 141-151). Foi então solicitado à UNESCO, na 21ª Conferência Geral (1980), que apresentasse estudos para criar uma norma internacional para a proteção do "folclore". Junto com a OMPI, ela elaborou, em 1982, o documento "Provisões Modelo de Leis Nacionais sobre a Proteção das Expressões do Folclore ante Ações Ilícitas e Prejudiciais", que também não foi acatado.
Não satisfeita, a UNESCO convocou em 1982 uma reunião para definir o que se entendia por "folclore". Paralelo a isso criou, no mesmo ano, o "Comitê de Especialista sobre a Salvaguarda do Folclore" e uma "Seção para o Patrimônio não material". As discussões culminaram no documento Recomendações da UNESCO para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular.
As dificuldades em tratar com o tema acabam por explicar porque a UNESCO optou por não abordar o assunto por meio de uma Convenção, mas sim por meio de uma recomendação. Desta forma, aprovou, em 1989, na 31ª Conferência Geral, as Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore.
Nestas recomendações ficaram definidos critérios para a definição, identificação, conservação, preservação, disseminação e proteção do patrimônio imaterial. Nelas se destacaram "a natureza específica e a importância da cultura tradicional e popular como parte integrante do patrimônio cultural da cultura vivente" e reconheceram a "extrema fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e, particularmente, aos aspectos correspondentes às tradições orais e o perigo de que esses aspectos se percam". Também enfatizaram que se trata de uma cultura dinâmica "dado ao seu caráter evolutivo, o que nem sempre permite uma proteção direta", mas que deve ser protegida com eficácia (RECOMENDACIÓN, 1989).
Foi recomendado que Estados-membros mantivessem os testemunhos vivos ou passados destas culturas. Sobre proteção, a Recomendação indica que a cultura tradicional e popular:
se traduz em manifestações da criatividade intelectual individual ou coletiva, merece uma proteção análoga à que se outorga às produções intelectuais. Uma proteção dessa índole é indispensável para desenvolver, perpetuar e difundir em maior medida este patrimônio, tanto no país como no estrangeiro, sem atentar contra os interesses legítimos (RECOMENDACIÓN, 1989).
A proteção da cultura popular e tradicional deveria ser equivalente à que protegia as criações definidas como propriedade intelectual. Os signatários deste documento recomendaram aos Estados membros atenção, pois
além dos aspectos de "propriedade intelectual" da "proteção das expressões do folclore", há várias categorias de direitos que já estão protegidos, e que deveriam seguir estando no futuro nos centros de documentação e nos serviços de arquivo dedicados à cultura tradicional e popular (RECOMENDACIÓN, 1989).
Para isso conviria que os Estados,
chamassem a atenção das autoridades competentes aos importantes trabalhos da UNESCO e da OMPI sobre a propriedade intelectual, reconhecendo [...] que esses trabalhos se referem unicamente a um aspecto da proteção da cultura tradicional e popular e que é urgente adotar medidas específicas para salvaguardá-la (RECOMENDACIÓN, 1989).
De acordo com a Recomendação, não eram apenas os produtos culturais que mereciam a proteção, mas também os produtores e portadores da tradição. Proteger os portadores requeria enfrentar problemas como os de definição da titularidade, da exploração comercial da capacidade criativa, da reparação no caso de apropriação indevida, etc. Por isso não foi feita uma recomendação explícita sobre a proteção aos portadores do conhecimento, e sim às obras.
Em 1992 surgiu outro documento internacional relacionado à proteção do conhecimento tradicional: a CDB. Em seu artigo 8 (j), defendeu o respeito e a preservação dos conhecimentos e práticas das comunidades tradicionais e locais, uma vez que se constituíam em elementos relevantes para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e à repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento. A CDB defendia a participação dos detentores dos conhecimentos tradicionais nos benefícios oriundos do uso de seu saber.
Ficou estabelecido no Artigo 2º da CDB que uma área protegida é aquela "definida geograficamente, que é destinada, ou regulamentada e administrada para alcançar objetivos específicos de conservação" (CONVENCIÓN, 1992). Nesse aspecto, o significado atribuído à proteção era bastante próximo ao que a UNESCO advogava para o patrimônio. Mas, no caso específico dos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e das populações indígenas tradicionais, a proteção se referia ao respeito pela manutenção desses conhecimentos que estava diretamente ligado à conservação da diversidade biológica.
Proteger esse conhecimento implica, entre outras questões, controlar a exploração que, sobretudo, a indústria farmacêutica faz dele. Sabe-se que mais da metade dos medicamentos prescritos no Hemisfério Norte é produzida a partir de substâncias extraídas das florestas tropicais. A indústria farmacêutica recolhe os conhecimentos da capacidade medicamentosa das espécies nativas das comunidades desses locais, fabrica medicamentos a partir desse dado e dificilmente essas populações podem aceder a esses medicamentos se deles precisarem (SHIVA, 2001; SANTOS, MENEZES; NUNES, 2005).
A quem pertence o conhecimento tradicional: às comunidades que indicaram as propriedades ou à empresa que desenvolveu o produto a partir de princípios ativos das espécies apontadas pelas comunidades? Existe um vínculo claro entre a preservação da biodiversidade e o conhecimento e as práticas das populações locais. Não é possível proteger a primeira sem defender os últimos (SANTOS, 2005).
A maior parte da população mundial depende do conhecimento e das práticas tradicionais para obter medicamento e alimentos e a "esmagadora maioria das patentes são detidas pelos países desenvolvidos" (CUNHA, 1999, p. 153). Por isso, esses países passaram a ver com bastante cautela as disposições da CDB e a pressionar a OMC para que ela instituísse uma norma sobre a proteção das propriedades intelectuais. A pressão resultou na definição, em 1995, dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS), ou seja, na internacionalização dos direitos de propriedade intelectual, qualquer que tenha sido seu lugar de origem. Com esse acordo, uma patente, que é uma forma de propriedade intelectual, teria que ser respeitada por todo país membro da OMC (CUNHA, 1999).
Os direitos de propriedade intelectual definidos nos TRIPS se tornaram um entrave aos direitos coletivos das populações tradicionais. Primeiro porque nele os direitos de propriedade eram reconhecidos apenas como direitos privados, isto é, direito de propriedade de um indivíduo ou de uma empresa, não de uma comunidade ou de um grupo de indivíduos. Segundo porque só se reconhece tal direito quando o conhecimento e a inovação geram lucros e não quando satisfazem necessidades sociais (SHIVA, 2001).
O conflito entre as disposições do Acordo TRIPS e a CDB vão além, uma vez que o primeiro "foi elaborado com o apoio ativo de grandes empresas para promover seu domínio tecnológico e obter maiores margens de lucros mediante a obtenção do monopólio" (KOHR, 2003, p. 55). Trata-se de "um tratado comercial, com objetivos comerciais, que redunda em fortes benefícios para as empresas privadas".
Nos termos da CDB, as Partes têm "o direito soberano sobre seus recursos genéticos e a possibilidade de proibir o uso do direito de propriedade intelectual sobre organismos vivos" (ALMEIDA, 2002, p. 119). Mas, se uma das Partes vier a introduzir uma legislação que enfatize os direitos das comunidades tradicionais, "terá sérios problemas no caso de que outros países adotem regimes de propriedade intelectual que facilitem a apropriação indevida dos direitos sobre o conhecimento dessas comunidades" (KHOR, 2003, p. 56).
A incompatibilidade prossegue, pois a CDB procura garantir às comunidades tradicionais e locais o direito ao controle sobre e participação nos lucros obtidos a partir de seus conhecimentos tradicionais. O TRIPS exige dos países membros que sejam reconhecidos os direitos de propriedade intelectual sobre todas as tecnologias, inclusive sobre as resultantes de inovações formais.
Enquanto a OMC e a CDB mostravam o grau dos conflitos, a UNESCO e a OMPI tentaram, ao final da década de 1990, dirimir ao menos parte desses, e se propuseram a elaborar, conjuntamente, um instrumento normativo internacional relativo à proteção dos conhecimentos tradicionais. Para isso organizaram em 1997 o "Fórum Mundial sobre a Proteção do Folclore". A manutenção do vocábulo folclore, em que pese o entendimento da UNESCO a esse respeito, não deixa de ser um indicativo de como a OMPI interpretava a questão, tanto é que nesse fórum ficou decidido que o regime de copyright não era adequado à proteção dos conhecimentos tradicionais, considerados como folclore, e que era necessário um novo acordo internacional para proteger esse aspecto.
A UNESCO retomou o assunto em 1999, na Conferência Internacional de Washington, quando destacou os portadores da tradição e a necessidade de reconhecer que o patrimônio abarca não só produtos artísticos como contos e canções, mas também os conhecimentos e valores que tornaram possível sua produção; ou seja, os processos criativos que geraram os produtos e os modos de interação através dos quais estes se valoram.
Nessa ocasião foi admitido que as Recomendações de 1989 davam importância significativa à documentação e ao arquivo e pouco se voltavam para os produtores da cultura tradicional. A participação dos atores sociais na produção, preservação e transmissão das expressões culturais foi considerada essencial para assegurar a salvaguarda do patrimônio imaterial e, para isso, as medidas de proteção deveriam se voltar mais às comunidades tradicionais (AIKAWA, 2003).
A OMPI, por seu lado, criou em 2000, em sua Assembléia Geral, o Comitê Inter-governamental Sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore, sem a participação da UNESCO. A primeira reunião desse Comitê aconteceu em abril de 2001 e as discussões se voltaram para os direitos de propriedade intelectual e direitos sui generis. Enquanto os primeiros dividem-se em direitos autorais e direitos de propriedade industrial, os últimos são híbridos, pois compreendem tanto direitos de propriedade industrial como direitos autorais. No entanto, ainda assim não foram reconhecidos "os direitos emanados dos conhecimentos tradicionais".
5 A visão da CDB: a proteção do conhecimento tradicional
As claras diferenças entre a CDB e a OMPI se acentuaram com a aprovação do TRIPS. Como responder a questões como: o saber das populações a respeito da manipulação de plantas, deveria ou não ser patenteado? A quem pertence esse saber? Como protegê-lo? Como remunerar o uso desse conhecimento?
A polêmica gerada por essas interrogações não é pequena, tanto é que, de 1994 a 2006, ocorreram oito Conferências dos Estados-Partes da CDB (COP) para a sua implementação7 7 As COPs ocorreram respectivamente em Nassau, 1994; Jacarta, 1995; Buenos Aires, 1996; Bratislava, 1998; Nairobi, 2000; Haia, 2002, Kuala Lumpur, 2004 e Curitiba, 2006; e . As disposições relacionadas à proteção dos conhecimentos tradicionais foram objeto de discussão nas COP-3, COP-4 e COP-6, nas quais se debateram os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre os recursos genéticos.
Diante das dificuldades em se chegar a um acordo, foi criado, em 2000, o Grupo de Trabalho Aberto Ad Hoc de Especialistas - GTA. A função primordial do GTA era fornecer elementos às Partes para a implementação da CDB.
O GTA, reunido em Granada em janeiro de 2006, sugeriu criar "sistemas sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais e um código de condutas éticas para assegurar o respeito ao patrimônio cultural e intelectual". As orientações foram encaminhadas para apreciação na 8ª Conferência das Partes, reunida em Curitiba, em março de 2006 (GROSS et al., 2006, p. 60).
Neste item, a COP-8 decidiu por "instar às Partes e Governos a elaborar, adotar e/ou reconhecer modelos sui generis nacionais e locais para a proteção dos conhecimentos, inovações e práticas tradicionais, com a participação plena e efetiva das comunidades indígenas e locais". Também ficou decidido que haveria uma quinta reunião do GTA para subsidiar a próxima Conferência das Partes, e assim "assegurar um maior avanço na aplicação do programa de trabalho sobre o Artigo 8 (j) e disposições conexas" (DECISIONES, 2006). Foram ainda estabelecidas metas para a redução das perdas de biodiversidade até 2010. Entre elas estava a proteção dos conhecimentos, inovações e práticas tradicionais, incluindo seus direitos à repartição de benefícios oriundos de tais conhecimentos.
As discussões mostraram o esforço da 8ª COP em
Reconhecer o trabalho realizado pelo Comitê Inter-governamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em relação com os aspectos da propriedade intelectual dos sistemas sui generis para a proteção dos conhecimentos tradicionais frente à apropriação e uso inadequados;
Reconhecer os debates em curso no fórum da Organização Mundial do Comércio, para examinar, entre outras coisas, a relação entre o Acordo sobre os aspectos dos direitos da propriedade intelectual relacionados com o comércio e o Convênio sobre a Diversidade Biológica e a proteção dos conhecimentos tradicionais (DECISIONES, 2006).
Como se pode depreender dessa discussão, a proteção do conhecimento das populações indígenas e locais é controversa e tem sofrido uma série de entraves para o seu reconhecimento. Para entender este quadro, convém entender como essa questão se relaciona com a proteção do patrimônio concernente aos conhecimentos das populações tradicionais.
6 A visão contemporânea da UNESCO: os conhecimentos tradicionais como patrimônio imaterial
Para a UNESCO, a importância atribuída aos aspectos culturais se expressa na dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução das culturas nas línguas, nos instrumentos de comunicação, nos ritos, nas cerimônias, nos sistemas de valores e crenças. Esse conjunto de manifestações é considerado referência cultural dos grupos humanos e necessita de proteção, posto que expressa capacidades criativas de um povo.
Por isso, a interpretação de que o patrimônio comporta tanto aspectos materiais, tangíveis, quanto imateriais, intangíveis, foi gradativa. Deste entendimento resultou a necessidade de elaborar uma normativa para proteger bens intangíveis, uma vez que sua natureza imaterial torna-os extremamente vulneráveis às transformações que a humanidade sofre.
Em 2001, a UNESCO produziu a Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural, na qual se afirmou que a cultura deve ser considerada como
o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (DECLARACIÓN, 2001).
No artigo 1º dessa Declaração ficou disposto o entendimento sobre diversidade cultural, que
se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o gênero humano como a diversidade biológica para os organismos vivos [...], constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras (DECLARACIÓN, 2001).
A diversidade cultural é vista pela UNESCO como um "patrimônio comum da humanidade", cuja salvaguarda é necessária para a criatividade humana, como expressa o artigo 7º:
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, mas se desenvolve plenamente em contacto com outras culturas. Esta é a razão pela qual o patrimônio, em todas as suas formas, deve ser preservado, realçado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e inspirar um verdadeiro diálogo entre as culturas (DECLARACIÓN, 2001).
A relação entre a diversidade cultural e os conhecimentos tradicionais foi explicitada no anexo II das Orientações Principais de um Plano de Ação para a Aplicação da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural. O artigo 14º desse texto afirmou a importância de respeitar e proteger os sistemas de conhecimento tradicionais, "especialmente os dos povos indígenas" e de se reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais, "em particular no que diz respeito à proteção do meio ambiente e à gestão dos recursos naturais", e assim favorecer as sinergias entre a ciência moderna e os conhecimentos locais (DECLARACIÓN, 2001).
Neste documento a UNESCO aproximava sua compreensão sobre a proteção aos conhecimentos tradicionais ao que dispõe a CDB. A defesa da proteção se faz presente na estreita relação com a proteção ao meio ambiente, em particular no que tange ao trato com os recursos naturais.
Tal compreensão foi reafirmada em 2002, na Declaração de Istambul pela Terceira Mesa Redonda de Ministros de Cultura. Segundo o documento, o patrimônio cultural intangível "constitui um conjunto de práticas vivas e constantemente recriadas, conhecimentos e representações, que capacita os indivíduos e comunidades de todos os níveis a expressar sua concepção de mundo através de sistemas de valores e padrões de ética" (ISTAMBUL DECLARATION, 2002).
As disposições da Declaração da UNESCO de 2001 e da Declaração de Istambul levaram a uma precisão do sentido atribuído à proteção dos bens culturais imateriais e resultaram na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela UNESCO em sua 32ª reunião, realizada em Paris, em 2003.
Neste documento, o patrimônio imaterial é definido como
os usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são inerentes - que as comunidades, os grupos e em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural (CONVENCIÓN, 2003).
Segundo a Convenção, trata-se de um patrimônio que se transmite de geração a geração, e que é
recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu entorno, sua interação com a natureza e sua história, infundindo-lhes um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito da diversidade cultural e a criatividade humana (CONVENCIÓN, 2003).
Tal tipo patrimonial se manifesta
a) nas tradições e expressões orais, incluído o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;
b) nas artes de espetáculo;
c) nos usos sociais, rituais e atos festivos;
d) nos conhecimentos e usos relacionados com a natureza e no universo; e
e) nas técnicas artesanais tradicionais (CONVENCIÓN, 2003).
Ficou claro que o patrimônio imaterial se exprime, entre outras formas, nos conhecimentos e usos relacionados com a natureza. Expressa a relação, cabia formular meios de salvaguardá-lo, ciente dos impasses já existentes entre a CDB e a OMPI. Por isso a Convenção dispôs, no artigo 11, as partes a adotarem medidas para garantir, em seu território, a salvaguarda desse tipo de patrimônio. Por salvaguarda, o parágrafo 3 do artigo 2º definiu
medidas destinadas a garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, compreendidas a identificação, documentação, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, transmissão (...) e revitalização deste patrimônio em seus distintos aspectos (CONVENCIÓN, 2003).
Ainda que a forma como a UNESCO interpretou os conhecimentos tradicionais tenha sido uma investida mais ousada que as definições anteriores, permaneciam limites para a proteção dos produtores desse tipo de conhecimento. Eles foram explicitados no artigo 3º, que estabeleceu a relação da Convenção com outros instrumentos internacionais:
Nenhuma disposição da presente Convenção poderá ser interpretada de tal maneira que afete os direitos e obrigações que tenham os Estados-Partes em virtude de outros instrumentos internacionais relativos aos direitos de propriedade intelectual ou à utilização dos recursos biológicos e ecológicos dos que sejam partes (CONVENCIÓN, 2003).
A normativa relativa à propriedade intelectual aparece como um dos entraves para a proteção aos conhecimentos tradicionais, reconhecidos como patrimônio imaterial.
Uma tentativa de ultrapassar este limite foi exposta na Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, celebrada pela UNESCO em 2005, em Paris. Nesta ocasião, os países afirmaram que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, constituindo, em si, um patrimônio que deve ser valorado e preservado. Também foi apregoada a incorporação da cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional e internacional e a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial, que são úteis à sustentabilidade (CONVENCIÓN, 2005).
No preâmbulo deste documento foi manifesto o reconhecimento da importância dos direitos de propriedade intelectual para sustentar os que participam da criatividade cultural. Também ficou expresso que a criatividade cultural não deve ser tratada apenas em seu valor comercial. Para os convencionais, a diversidade cultural se revela
não só nas diversas formas nas quais se expressa, enriquece e transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade de expressões culturais, mas também através de distintos modos de criação artística, produção, difusão, distribuição e desfrute das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias utilizados (CONVENCIÓN, 2005).
No artigo 4º, ficou definido que a proteção significa "a adoção de medidas encaminhadas à preservação e salvaguarda e enriquecimento da diversidade das expressões culturais". "Proteger", deixou clara a Convenção, significa adotar "medidas regulamentares encaminhadas à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais" (CONVENCIÓN, 2005).
Além de adotar as medidas acima, cada Parte deve determinar as situações especiais em que as expressões culturais correm risco de extinção, se estão ameaçadas ou se requerem algum tipo de medida urgente para sua salvaguarda.
Disposta a mostrar a força da Convenção, ficou deliberada no artigo 20º a sua relação com outros instrumentos internacionais. Uma relação "de reforço mútuo, complementar e de não subordinação". Para isso, estabeleceu que as Partes não devem subordinar a Convenção aos demais tratados e que:
a) fomentarão a potenciação mútua entre a presente Convenção e os demais tratados dos quais são parte; e
b) quando interpretem e apliquem os demais tratados de que são Parte ou contraiam outras obrigações internacionais, terão em conta as disposições pertinentes da presente Convenção (CONVENCIÓN, 2005).
Diferente dos dispositivos da Convenção para a Salvaguarda da Cultura Imaterial, os preceitos deste artigo expressam o ânimo de não sujeitar a Convenção a outros tratados. Não obstante, persiste o item segundo:
Nenhuma disposição da presente Convenção poderá interpretar-se como uma modificação dos direitos e obrigações das Partes que emanem de outros tratados internacionais dos que sejam parte (CONVENCIÓN, 2005).
Esta Convenção precisa ser ratificada por 30 Estados membros para entrar em vigor, o que ainda não ocorreu até a presente data.
7 A visão da OMPI: o conhecimento tradicional como propriedade intelectual
No que toca à OMPI, atualmente o Comitê Inter-governamental Sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore é composto por 250 representantes de Estados, comunidades indígenas e locais e diversas organizações não governamentais e intergovernamentais, entre elas a UNESCO8 8 Segundo informações coletadas em http://www.wipo.int/portal/index.html.en, acessado em setembro de 2006. . As comunidades indígenas reivindicam o direito a controlar o acesso, a divulgação e o uso de seus conhecimentos e expressões culturais tradicionais. A proteção que reivindicam diz respeito tanto à obtenção de direitos de propriedade intelectual sobre as expressões culturais tradicionais para comercializá-las e/ou impedir que outros a façam, quanto à proteção defensiva para impedir a obtenção de direitos de propriedade intelectual sobre as expressões culturais tradicionais e suas derivações (WENDLAND, 2003).
O Comitê parece disposto a fazer adaptações sui generis aos direitos de propriedade intelectual existentes, assim como propor leis "inteiramente novas, concebidas em função das particularidades dos conhecimentos tradicionais e das expressões culturais tradicionais e das necessidades de seus titulares e guardiões" (idem: 100). Este assunto tem caminhado lentamente e com limites expressivos para uma negociação mais democrática.
Isto pode ser constatado nas decisões tomadas pelo Comitê em sua 9ª reunião, ocorrida em Genebra em abril de 2006, quanto à participação das comunidades indígenas e locais em suas reuniões. Lá foi acatada a participação de oito membros na Junta Assessora, mas como observadores. Do mesmo modo, a apreciação de questões polêmicas como a das expressões culturais e tradicionais/folclore, dos conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos foi postergada, pois o Comitê decidiu considerar os documentos encaminhados por várias delegações e marcou uma nova sessão para deliberar quanto aos conteúdos apresentados (Decisión OMPI, 2006).
A participação das comunidades na negociação do acordo não deixa de ser um avanço, pois elas podem colaborar para a definição de um sistema sui generis apropriado, capaz de afirmar o papel e o valor dos conhecimentos tradicionais, e dos direitos das comunidades tradicionais assim como dos consumidores. Também colaborará no sentido de avaliar se é desejável e prático incorporar direitos sobre o conhecimento tradicional ao sistema de proteção dos direitos de propriedade intelectual e quais seriam as conseqüências de tal incorporação. Para isso é importante que sua participação seja efetiva e que se cogite a possibilidade de "buscar normas multilaterais para assinar tais direitos... sem etiquetá-los como direitos de propriedade intelectual" (KHOR, 2003, p. 43).
8 Considerações finais
Ainda que se tenha avançado em reuniões conjuntas, a possibilidade de se chegar a um acordo para eliminar as divergências em torno do reconhecimento dos direitos das comunidades locais em curto prazo parece bastante remota.
O dilema sobre a proteção aos conhecimentos das populações tradicionais continua presente, uma vez que persiste a dificuldade em qualificar esse conhecimento. Caso ele seja afirmado como propriedade, não se pode esquecer que se trata de um conhecimento coletivo, cujo "inventor" não pode ser auferido já que resulta de anos de convívio social transmitido como herança cultural. Além disso, ao apontar-se um "descobridor" de tal conhecimento em uma comunidade tradicional pode-se despertar lutas e divisões internas.
O entendimento da UNESCO a respeito da proteção ao patrimônio cultural permanece distinto daquele que advoga a OMPI e a OMC. Se para a UNESCO a proteção corresponde à identificação, documentação, transmissão, conservação, revitalização e promoção do patrimônio com vistas a garantir sua manutenção às gerações atuais e futuras, para a OMPI, proteção é salvagauardar interesses do autor. Para tal, é preciso definir a autoria, a quem se destina os recursos da exploração comercial da criatividade cultural e estabelecer as condições de reparo no caso de uso inadequado da criatividade cultural. Já a OMC define a proteção relacionada à exploração da propriedade individual.
A interpretação que a CDB dá à proteção dos conhecimentos tradicionais é diversa da que advoga a OMPI, o que deixa claro que se tratam de leituras distintas quanto à proteção, o que resulta em choque de interesses. A CDB afirma o respeito às comunidades tradicionais e o direito à repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização das práticas culturais tradicionais e procura assegurar esses direitos de modo que não sejam obstaculizados pelos direitos de propriedade intelectual. Não é essa a preocupação da OMPI, tampouco da OMC.
Apesar do tímido avanço nas negociações, a ausência da ratificação da Convenção da Diversidade Cultural, firmada no âmbito da UNESCO em 2005, e as dificuldades de regulamentação do artigo 8 j da CDB demonstram que há muito a se debater para se resolver os interesses envolvidos nessa questão. Essa série de órgãos multilaterais não está desprovida de representação de poder e de interesses no sistema das Nações Unidas. Muitas vezes, as divergências também podem expressar a luta interna para influenciar países dentro da ONU. Além disso, a OMC, mesmo sem fazer parte do sistema, privilegia interesses privados na discussão. É por meio dela que países como os Estados Unidos, por exemplo, preferem discutir o tema, negligenciando as discussões no âmbito da ONU.
Acrescido a isso, não se pode esquecer que estamos falando da proteção da identidade de um povo, de práticas e valores que enlaçam o passado com o presente e o futuro. Então, estamos falando de algo "vivo", constantemente recriado na medida em que incorpora novas experiências em seu campo.
Proteger essas tradições implica em apoiar seus portadores e o contexto social e cultural nos quais estes se encontram, pois disso depende a transmissão desse saber. Por isso mesmo, a proteção deve levar em consideração as dinâmicas da criação, da renovação e da transmissão cultural. Muitas vezes, isso inclui a posse da terra para que tais expressões culturais se realizem, o que relaciona a proteção da tradição à problemática dos direitos humanos.
Pelo que se pode concluir, os desafios não são poucos, nem são pequenos.
Notas
Wagner Costa Ribeiro
Grupo de Pesquisa Geografia Política e Meio ambiente, Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana e Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo
Av. Lineu Prestes, 388, Cidade Universitária
CEP 05508-900, São Paulo, SP, Brasil
Fone: (11) 3032 2217
E-mail: wribeiro@usp.br
Recebido: 09/11/06
Aceito: 21/3/07
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Autor para correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Set 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2007
Histórico
-
Recebido
09 Nov 2006 -
Aceito
21 Mar 2007