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O sagrado, o profano e Frida Kahlo: uma cosmovisão religiosa no corpo grotesco

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar, sob a perspectiva bakhtiniana, a construção grotesca do corpo fridiano por meio de uma cosmovisão religiosa. Para tanto, são analisados dois autorretratos produzidos pela pintora mexicana Frida Kahlo, levando em consideração as relações dialógicas construídas entre as representações grotescas e as simbologias católicas. Nos enunciados analisados, nos quais são depreendidas as especificidades da competência criativa da autora-criadora em sua atividade estética, percebe-se o correlacionamento entre a pintura El venado herido e a narrativa do santo católico São Sebastião e o diálogo entre a tela Las dos fridas e a imagem do Sagrado Coração de Jesus.

PALAVRAS-CHAVE:
Frida Kahlo; Corpo grotesco; Cosmovisão carnavalesca; Cosmovisão religiosa; Autorretrato

ABSTRACT

This article aims to analyze, from a Bakhtinian perspective, the grotesque construction of Mexican artist Frida Kahlo’s body through a religious worldview. Therefore, we analyze two of her self-portraits, taking into account the dialogic relations constructed between the grotesque representations and Catholic symbology. The analyzed utterances, in which the specificities of the creative competence of the author-creator in her aesthetic activity are inferred, showed that a dialogue is established between the painting El venado herido and Catholic Saint Sebastian and between the painting Las dos fridas and the image of the Sacred Heart of Jesus.

KEYWORDS:
Frida Kahlo; Grotesque body; Carnivalesque worldview; Religious worldview; Self-portrait

E o que mais dói é viver num corpo que é o sepulcro que nos aprisiona (segundo Platão), do mesmo modo como a concha aprisiona a ostra.

Frida Kahlo

Introdução1 1 Este texto parte da tese de doutorado de um dos autores, mas reestruturada a partir de um desdobramento inédito da pesquisa, com a participação dos outros autores no formato de artigo.

O corpo de Frida Kahlo foi o tema principal de muitos de seus autorretratos. Durante toda a sua vida, a pintora mexicana travou uma verdadeira batalha contra as limitações, contra as dores e contra as dificuldades que o seu corpo impunha. Tratava-se, assim, de um corpo feminino, massacrado pela poliomielite, destroçado por um acidente de carro e limitado pelo próprio lugar social a que estava preso. Contudo, nenhuma das barreiras limitantes foram fortes o suficiente para impedir que Frida transformasse o seu corpo em tema e as suas dores em arte.

A produção acadêmica sobre o fazer artístico de Kahlo é vasta. Destacamos alguns desses trabalhos, como o artigo “Frida Kahlo entre palavras e imagens: a escrita diarista e o acabamento estético”, de Maria da Penha Casado Alves (2012aCASADO ALVES, Maria da Penha. Ethos e exotopia do olhar: as cartas apaixonadas de Frida Kahlo. In: UYENO, Elzira Yoko; PUZZO, Miriam Bauab; RENDA, Vera Lúcia Batalha de Siqueira (orgs.). Linguística aplicada, linguística e literatura: intersecções profícuas. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012a. v. 1, p. 30-47.); o texto “Ethos e exotopia do olhar: as cartas apaixonadas de Frida Kahlo”, também de autoria de Casado Alves (2012b), publicado no livro Linguística aplicada, linguística e literatura: intersecções profícuas; a dissertação de mestrado Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo, de William Brenno dos Santos Oliveira (2015OLIVEIRA, William Brenno dos Santos. Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo. 2015. 146f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.); e a dissertação de mestrado de Diana de Oliveira Mendonça, com o título Letras e cores de um ser inacabado: um olhar bakhtiniano sobre a escrita diarista de Frida Kahlo (2018). Tais publicações estão situadas na mesma área em que se insere esta pesquisa, debruçando-se sobre a produção escrita e pictórica da pintora mexicana, e ajudaram-nos a subsidiar o encontro com o objeto de análise deste artigo.

Outrossim, em consonância ao pensamento de Casado Alves (2021cCASADO ALVES, Maria da Penha. O corpo grotesco nas telas de Frida Kahlo. In: Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin (org.). Palavras: epistemologias bakhtinianas. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021c. p. 195-200.) acerca do grotesco em Frida Kahlo, não podemos deixar de mencionar que “nenhuma mulher, talvez, tenha se colocado como tema em suas obras de forma tão aberta e tão sem reservas” (Casado Alves, 2021c, p. 200). Com essa percepção, reiteramos o universo de sentidos que emerge dos matizes agenciados nas telas fridianas, as quais nos transportam para planos axiológicos em que o grotesco, no viés bakhtiniano, torna-se um elemento condicionante para a representação “de um corpo aberto para o mundo, a exposição do baixo corporal, o hibridismo dos elementos antagônicos e a não separação entre o humano e o animal” (Casado Alves, 2021c, p. 197).

Assim sendo, a epígrafe que abre a seção introdutória deste trabalho revela, antes de qualquer outra coisa, a insatisfação e o inconformismo de Frida com o seu próprio corpo. Muitas questões rondam essa relação dolorosa. O importante, portanto, para este momento de nosso texto, é esclarecermos que o corpo pintado e retratado pela artista, como a imagem dela mesma axiologicamente marcada, refletida e refratada em um enunciado concreto2 2 Em Os gêneros do discurso, Mikhail Bakhtin (2016) elabora o conceito de enunciado concreto, baseando-se na linguagem como sendo uma atividade social mediada pela interação dos sujeitos em suas práticas discursivas. Para ele, tal enunciado, sendo a unidade real da comunicação humana, é a materialidade constitutiva advinda dos movimentos da língua em uso, inserida e organizada a partir das mais variadas circunstâncias situacionais em que os enunciadores, participantes ativamente responsivos da dinâmica do mundo da vida, estão inseridos. Em outras palavras, por esse viés epistemológico, as pessoas constroem seus dizeres ao responderem, dialogicamente, às especificidades enunciativas e aos outros que as circundam, emergentes das situações comunicativas em que atuam na realidade concreta. , servirá aqui de corpus deste trabalho. Nesse plano de sentidos, enxergamos, plasmados nas teias discursivas e semióticas de sua constituição, a representação de uma imagem grotesca que se utiliza de uma cosmovisão religiosa no processo de construção do corpo fridiano.

Dessa forma, pretendemos, com este artigo, trazer um acabamento possível ao corpo feminino que Frida Kahlo representou em dois de seus autorretratos, ou seja, o seu próprio, enunciados no espaço arquitetônico valorativamente organizado, e assim refratado, em tintas e em telas. Logo, o nosso objetivo é evidenciar, do ponto de vista da teoria bakhtiniana, como essa construção corpórea ocorre, quando a artista se utiliza de elementos estético-discursivos do grotesco, aliados a uma cosmovisão religiosa, para solidificar os acabamentos valorativos dados à obra de arte. Nesse sentido, perseguiremos essa ideia investigativa fulcral, pois percebemos que as minúcias da atividade autoral de Kahlo, no que tange ao fenômeno supramencionado, é o ponto-chave para a existência deste estudo.

A seguir, definiremos o lugar de onde partimos e as vozes que dão sustentação ao nosso dizer neste artigo. Para tanto, precisaremos, na seção que segue, definir alguns conceitos (advindos do Círculo de Bakhtin3 3 Designação atribuída a um conjunto de pensadores, a exemplo de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e Valentin Volóchinov (1895-1936), os quais refletem sobre a linguagem em perspectiva dialógica, como uma prática sócio-histórica oriunda da interação entre sujeitos no processo ininterrupto de comunicação verbo-ideológica. , em sua maioria) e alguns termos que são fulcrais nesta pesquisa, com o fito de que eles possam dar sentido axiológico e acadêmico ao nosso fazer científico e dialógico.

1 Corpo grotesco e cosmovisão carnavalesca

Antes de seguirmos para as reflexões de Mikhail Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.) sobre a obra de Rabelais e sua tese acerca do corpo grotesco, assim como sobre a cosmovisão carnavalesca, gostaríamos de definir e situar o conceito de grotesco de forma breve, devido ao espaço deste artigo. Com efeito, não se trata de fazer apenas um simples registro, mas de marcar a nossa posição de escolha teórico-metodológica também.

Assim, para iniciarmos as nossas reflexões, trazemos a voz da pesquisadora Mary Russo (2000RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Tradução de Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.). Em seu livro O grotesco feminino, a autora faz uma breve síntese do que ela enxerga como grotesco e onde podemos encontrá-lo no mundo e na sociedade:

O corpo grotesco não está separado do resto do mundo: mistura-se com o mundo, com os animais, com os objetos. Principalmente, está identificado com o estrato corporal inferior e suas associações com a degradação, a imundice, a morte e o renascimento. As imagens do corpo grotesco são precisamente aquelas degradadas pelos cânones físicos da estética clássica. O corpo clássico é transcendente e monumental, fechado, estático, contido em si mesmo, simétrico e liso; identifica-se com a cultura superior ou oficial do renascimento e de épocas posteriores, com o racionalismo, o individualismo e as aspirações normalizadoras da burguesia. O corpo grotesco é aberto, protuberante, irregular, secretante, múltiplo e mutável; está identificado com a cultura inferior não-oficial ou com o carnavalesco, e com a transformação social (Russo, 2000RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Tradução de Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 27).

O mais interessante do excerto supracitado são as definições de corpo grotesco (aberto, protuberante, irregular, secretante, múltiplo e mutável etc.), pois constroem um terreno confortável para nossa pesquisa. Essas afirmações corroboram nosso pensamento e nossa filiação teórica. Afinal, corpo grotesco é a categoria teórica mais importante deste artigo e com ela seguiremos por toda a análise.

Além disso, a oposição que a autora faz do corpo grotesco com o clássico torna ainda mais relevante a nossa hipótese de que o corpo de Frida Kahlo é um corpo grotesco, portanto, desviante e catalisador de um discurso centrífugo4 4 Utilizamos o termo “discurso centrífugo” como uma metáfora da descentralização dos discursos oficiais. Vale ressaltar que os conceitos de forças centrípetas e forças centrífugas foram utilizadas por Bakhtin (2015), em “O discurso no romance”, para discutir “as forças ativas que criam a vida da linguagem” (Bakhtin, 2015, p. 39). As forças centrífugas são, portanto, aquelas responsáveis pelos “processos de descentralização e separação” (Bakhtin, 2015, p. 41; grifo no original). Como explica Orison Marden Bandeira de Melo Jr. (2022, p. 102-103), as forças centrífugas “provocam uma separação do sistema linguístico único e uma descentralização verboideológica, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de diferentes linguagens socioideológicas (heterodiscurso) num processo dinâmico e vivo”. , responsável por dissipar e questionar os valores que o oprimiam, enquanto corpo de uma mulher latina, vivendo no século XX e em uma sociedade machista e patriarcal.

Durante todo o seu percurso de pintora, de mulher e de revolucionária, podemos encontrar vestígios de um corpo cujas cobranças sociais dilaceraram muito mais do que as doenças, o acidente e as cirurgias. Esse corpo feminino, mesmo massacrado pelas tragédias, era pressionado, por exemplo, a se travestir de fértil e assumir o papel materno, pelo qual as mulheres, até os dias de hoje, são tão cobradas.

Seguindo com a tarefa de construir o nosso cabedal de vozes colaborativas, temos, também, as contribuições de Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.), no livro O império do grotesco, publicado pela editora Mauad. Nesse compêndio, os autores trazem algumas definições sobre o grotesco, de maneira geral, que nos são muito caras e somam-se às outras que aqui já trouxemos. Para esse momento, recortamos uma de suas afirmações sobre esse “espírito” que ronda pelo imaginário social coletivo:

assim, um objeto pode causar repulsa ou estranhamento do gosto e não ser necessariamente feio. Um bom exemplo está nos perfis desenhados por Leonardo Da Vinci (Esboços Fisiognômicos), em que a presença de distorções expressivas 一 faces humanas com aparência de macaco, leão, águia, etc. 一 é capaz de provocar efeitos de antagonismo no contemplador. Apesar disso, este poderá encontrar beleza na sua força de expressão, na plenitude vital que neles se manifesta. Com efeito, não se trata aí do mero feio, mas do grotesco, um tipo de criação que às vezes se confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e que quase sempre nos faz rir (Sodré; Paiva, 2002SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002., p. 19; grifo no original).

Consideramos esse trecho particularmente potente, porque traz um exemplo clássico e bastante claro. Ainda há uma contribuição muito significativa que diferencia o mero feio do grotesco. Como vimos, para os autores é perfeitamente possível encontrarmos beleza na estética do estranho ou do grotesco, assim como ele pode se confundir com algumas manifestações de fantasia da nossa imaginação. Eles ainda acrescentam que o grotesco pode provocar o riso, outro elemento potencialmente forte e desestabilizador dos discursos oficiais.

A partir dessas considerações, faz-se necessário trazer a própria voz do autor russo, adentrando, mais profundamente, a teoria bakhtiniana. Durante toda sua vida de estudioso, professor e filósofo da linguagem, Bakhtin produziu ideias e escritos sobre o corpo humano, desde seus textos mais filosóficos, os primeiros, diga-se de passagem, até a sua obra-prima sobre Rabelais. Nos primeiros trabalhos, ele sobrepuja a lógica científica e filosófica vigente e propõe uma teoria baseada na alteridade. Isso se dá, obviamente, considerando o eixo principal e norteador de todo seu pensamento: a alteridade.

Em outra instância, porém não menos importante, o mesmo que se diz sobre a construção de um conceito sobre o corpo grotesco também se pode afirmar sobre a cosmovisão bakhtiniana em relação aos fenômenos que envolvem o signo ideológico (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.)5 5 Para Valentin Volóchinov (2017), o signo é um material verbo-ideológico cujo sentido está atrelado à realidade concreta em que os sujeitos sócio-históricos se inserem e constroem seus dizeres. Nessa materialidade sígnica, circulam reflexos (expressão em certo grau de fidedignidade do objeto ou tema circulante no mundo da vida) e refrações (posições axiológicas reelaboradas a partir do ponto de vista dos enunciadores) da dinâmica comunicativa dos seres de linguagem. . Essa cosmovisão é, inicialmente, adjetivada como carnavalesca, ao considerar também a noção do carnaval medieval (espaço-tempo em que narrativa rabelaisiana se desenvolve), mas que pretendemos alargar aqui para o campo da religiosidade.

Desse modo, ao pensarmos dialogicamente sobre as representações do corpo cultural, inserido em uma semiosfera específica da vida de Frida, precisamos da voz de Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.) sobre o corpo grotesco em Rabelais. Em sua obra, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ele nos oferece uma lente teórica confortável e condizente com os nossos objetivos nesta pesquisa.

Comecemos pelas características que, de acordo com Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.), compõem o grotesco e suas representações. A primeira delas é o exagero, que, segundo o autor, foi muito banalizada pelos teóricos e estudiosos de sua época. Vejamos as suas observações sobre o exagero:

No grupo de imagens de banquete que acabamos de estudar, pudemos observar exageros, hipérboles nitidamente fundamentadas. Esses mesmos exageros se encontram nas imagens do corpo e da vida corporal, assim como em outras imagens. Mas é nas do corpo e da alimentação que eles se exprimem mais nitidamente. (...) O exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso são, segundo opinião, os sinais característicos mais marcantes do estilo grotesco (Bakhtin, 2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 265; grifo no original).

Tendo isso em mente, perseguiremos, também, no corpus deste artigo, esse estilo grotesco, por meio da presença desses exageros. Podemos afirmar, com bastante conforto, que essa pista nos dará material (ou dados) para análise. Esse estilo aparece em profusão nas escolhas de nossa pintora, seja no mundo da vida, seja no mundo da arte. E, ideologicamente marcados, esses traços estilísticos carregam, em vários aspectos, os amálgamas que precisamos para confirmar a nossa hipótese, os quais, no caso de Frida Kahlo, condicionam a “forma arquitetônica” (Bakhtin, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-57., p. 25) de suas obras.

Em segundo lugar, temos os corpos considerados estranhos ou que, no mínimo, causavam certo incômodo ao olhar. Para Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.), tais aparições eram silenciadas no mundo da literatura e da arte de sua época. Apenas em Rabelais, ele encontra uma fronteira entre coisas e fenômenos grotescos traçada de maneira muito diferente.

Nesse ínterim, o autor coloca que esses seres grotescos estão apagados no mundo estático da arte e da literatura daquele tempo. Em suma, para ele, os corpos individuais, considerados perfeitos e admiráveis pelos discursos oficiais de seu tempo, perdem a oportunidade de se mostrarem grotescos. Essas representações mostram-se ausentes da imagem grotesca vista no seu limite, principalmente, porque o corpo grotesco bakhtiniano é formado por cavidades e excrescências cujas constituições representam um novo corpo que está começando a vir ao mundo enquanto sujeito. De certa forma, esse elemento grotesco no corpo traz à tona a passagem de dupla saída da vida que se renova eternamente. Sobre esse aspecto, Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 269) aponta que

as imagens grotescas prenhes, bicorporais permaneciam incompreensíveis e (...), no mundo grotesco em devir, as fronteiras entre coisas e fenômenos eram traçadas de maneira completamente diferente do modo como o eram no mundo estático da arte e da literatura da sua época.

Em terceiro lugar, não podemos deixar de dissertar sobre a topografia do corpo grotesco. Esse elemento é extremamente importante, pois aciona a ambivalência, o baixo material e corporal e nos dá a dimensão daquilo que vai do alto até o baixo no corpo e nas relações axiológicas no mundo da vida. O grotesco inverte essa ordem, entre alto e baixo, para destronar o discurso dominante e, ao mesmo tempo, regenerá-lo. Nesse sentido, toda a topografia do corpo pode ser alterada, diante dos elementos e das ferramentas do grotesco que Bakhtin enxergou em Rabelais.

Por isso, o exemplo analisado por Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.), que trazemos abaixo, representa tão bem a sua ideia que transpomos para este nosso artigo. Em uma análise muito detalhada, e dialogando com a voz de um outro crítico de sua época, o teórico russo destaca, topograficamente, como a cena analisada, da commedia dell’arte italiana 一 um gago parindo uma palavra 一 representa a lógica da inversão tão cara ao grotesco carnavalesco ambivalente e ideologicamente marcado.

Vejamos a descrição e a justificativa de Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 270: grifo no original):

Percebemos, e da melhor maneira possível, o aspecto topográfico essencial da hierarquia corporal às avessas, o baixo ocupando o lugar do alto; a palavra localiza-se na boca e no pensamento (a cabeça), enquanto aqui ela é remetida para o ventre, de onde Arlequim a expulsa com uma cabeçada. Esse gesto tradicional, chute no ventre (ou no traseiro), é eminentemente topográfico, encontra-se aí a mesma lógica da inversão, o contato do alto com o baixo. Além disso, aqui há também o exagero: os fenômenos corporais que acompanham as dificuldades de elocução nos gagos (tensão ocular, suor, etc.) são exagerados a ponto de se transformarem em sinais de parto, e em seguida a pronúncia de uma palavra desce do aparelho articulatório ao ventre. Dessa forma, uma análise objetiva permite revelar nessa pequena cena as propriedades essenciais e fundamentais do grotesco, o que a torna extremamente rica e completamente carregada de sentido, até nos menores detalhes.

Em quarto lugar, temos a fronteira onde se separam e, pela lógica grotesca, unem-se os objetos concretos, as imagens e o mundo exterior. É justamente nesse ponto que encontramos a análise cuja relação entre o corpo e o ambiente são elementos centrais no desenvolvimento da argumentação bakhtiniana. Fica muito claro para nós que Bakhtin explorou, muito melhor do que outros teóricos de sua época 一 e, ousamos dizer, da nossa também 一, uma noção muito mais dinâmica e viva das relações dialógicas que há entre os corpos e os ambientes nos quais esses corpos se constituem e são refratados.

Voltemo-nos a outra cena, agora do texto de Rabelais, para continuar discutindo essa quarta característica, que Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.) também analisa. Para ele, esse traço do grotesco sobre as imagens, os corpos e a fusão entre o mundo exterior e os elementos ideológicos povoam o imaginário social, presente em Gargantua e Pantagruel. A cena encontra-se no capítulo XLV do Livro Primeiro de Gargântua e Pantagruel, em que o Frei Jean pergunta a alguns peregrinos:

E os monges como estão se divertindo? Pois eles não descuidam de vossas mulheres, enquanto estais em peregrinação (...) Que eu apanhe varíola, se não as encontrardes prenhes no vosso regresso, pois basta a sombra da torre de um convento para engravidar (Rabelais, 2009RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009., p. 188-189).

A respeito dessa imagem rabelaisiana do campanário da abadia, descrito por Frei Jean, o filósofo russo afirma:

Essa imagem introduz-nos outra vez a lógica grotesca. Não se trata de uma simples exageração grotesca da “depravação” monacal, pois o objeto transpõe os seus limites qualitativos, cessa de ser ele mesmo. As fronteiras entre o corpo e o mundo apagam-se, assiste-se a uma fusão do mundo exterior e das coisas. (...) Todos esses elementos da linguagem criam a atmosfera licenciosa específica, a maioria deles está diretamente ligada ao “baixo” material e corporal, corporificam e rebaixam as coisas, misturam o corpo ao mundo, preparando dessa forma a transformação do campanário em falo (Bakhtin, 2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 271-272; grifo no original).

Em quinto lugar, temos o movimento e o inacabamento do corpo grotesco. Essa marca dialoga com muitas outras categorias da teoria bakhtiniana, como, por exemplo, as concepções de sujeito, de ética e de estética. O inacabamento do ser reverbera no inacabamento do corpo, na eterna transformação do corpo grotesco naquilo que for necessário para evocar o movimento de vida e morte, o de destronamento e elevação. Essa é uma característica a qual Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.) faz questão de destacar, várias vezes, durante a sua análise das imagens grotescas em Rabelais.

Esse é um corpo que se move, que vai ao encontro de e faz contato com outros corpos, que com eles estabelece várias relações dialógicas. Nesse sentido, trazemos, mais uma vez, a voz do próprio Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 277; grifos no original):

como já o sublinhamos várias vezes, o corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele (lembremos a imagem grotesca do corpo no episódio do nascimento de Gargantua e da festa da matança).

Tal afirmação nos dá certa legitimidade para, por meio de um cotejamento dialógico e dialético, lançar um olhar sobre o corpo que Frida mostra e dar acabamento aos seus autorretratos. Nosso olhar e nosso corpo travam um diálogo com esses enunciados e buscam enxergar esse corpo fridiano como grotesco e destronador, construído na e constituído pela ambivalência.

Para finalizar essa discussão sobre as características do corpo grotesco, temos outra marca elencada pelo autor russo: tudo o que é interno e visceral no corpo físico e biológico se mostra para o externo. Segundo Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 279):

(...) o grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado. Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa, mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-se numa única imagem.

A negação do interno, requerida pelo belo e pelo esteticamente admirável e aprovado, se afasta do grotesco e tenta, de certa forma, transformá-lo em caricatura ou em marca de tragédia e de desvio. Quando o corpo grotesco invade o interno e se abre, mostrando vísceras, órgãos, intestinos, excrescências e todo o baixo material e corporal, fundindo externo e interno em uma única imagem, há, na interação com outros corpos e outras ideologias6 6 De acordo com Volóchinov (2019, p. 243), “entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica”. Em suma, a ideologia são os valores sócio-histórico-culturais com os quais os sujeitos formam a sua consciência individual e atuam na sociedade, corroborando, assim, para os multidirecionamentos sígnicos existentes na vida humana. , todo um processo de desestabilização da imagem oficial e opressora.

Assim sendo, acreditamos que os enunciados aqui tratados e analisados trazem muitas dessas manifestações grotescas que Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.) encontrou em Rabelais. Buscaremos esclarecer melhor essa nossa afirmação na análise que faremos de dois enunciados, a fim de comprovar a nossa hipótese, apresentada na introdução deste trabalho. Acreditamos que, contudo, pode haver, sob a égide do amálgama Frida/corpo/imagens, um corpo grotesco e uma cosmovisão carnavalesca e religiosa, realizando sua atividade unificadora e vivificante de destronar a lógica do corpo feminino de uma época na qual as mulheres foram sobrepujadas e relegadas aos porões da história.

Trazendo, agora, mais especificamente, a discussão para falar da cosmovisão bakhtiniana, gostaríamos de focar um pouco mais neste tópico. Dito isso, é importante destacar aqui que o conceito de cosmovisão carnavalesca é central no trabalho que Bakhtin desenvolveu ao analisar Gângantua e Pantagruel. A partir desse conceito, sentimo-nos muito à vontade para alargar as fronteiras daquilo que o filósofo russo fez com o texto rabelaisiano e espraiar-nos para outros lugares sociais em que os signos desempenham um papel central na atividade de comunicação: na arte, no jornalismo, na escola, na política, na religião etc. É por isso que transpor esse conceito para outras esferas de produção é tão caro para o nosso trabalho, além de avaliarmos como necessário para a solidificação da voz de Bakhtin na contemporaneidade.

Nessa esteira, colocamos em destaque a voz do próprio filósofo ao definir a cosmovisão carnavalesca, presente em alguns gêneros e na obra de Rabelais. Segundo o autor,

A cosmovisão carnavalesca é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e de uma vitalidade indestrutível. Por isto, aqueles gêneros que guardam até mesmo a relação mais distante com as tradições do cômico-sério conservam, mesmo em nossos dias, o fermento carnavalesco que os distingue acentuadamente entre outros gêneros. Tais gêneros sempre apresentam uma marca especial pela qual podemos identificá-los. Um ouvido sensível sempre adivinha as repercussões, mesmo as mais distantes, da cosmovisão carnavalesca. (Bakhtin, 2010bBAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio por Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2010b., p. 122)

Dessa maneira, ao observarmos alguns enunciados produzidos pela pintora mexicana, detectamos a presença dessa cosmovisão carnavalesca, mas também de uma cosmovisão religiosa que se une ao corpo grotesco para, juntos, efetivarem os processos de ambivalência, destronamento do padrão e reificação daquilo que é considerado sujo, menor, inválido ou aberração. É por meio dessa fusão, e se valendo da força dos discursos, que Frida pintou, ao travar os embates ideológicos, uma forma de corpo feminino que causa, ao mesmo tempo, estranhamento e admiração e que é dotado de uma beleza aterrorizante.

Enfim, tratemos, agora, exclusivamente do corpo fridiano, tema da próxima seção. Tentaremos desenhá-lo discursivamente e situá-lo soocio-historicamente para fazer jus às nossas escolhas teóricas e ao caminho que trilhamos até aqui.

2 O corpo fridiano

O espaço mais visível no qual Frida elabora e reelabora as fraturas, as vísceras, as dores, os ossos quebrados de seu corpo são, claramente, sua pintura e seu diário. Ambos podem ser descritos como grandes autorretratos, como um autorretrato total, um grande mural de sua própria existência, uma pintura desaforada; ali, nas telas e nas páginas, estão, de maneira destacada: a coluna quebrada, a cama de hospital, a cama adaptada, a pélvis, o gesso e as faixas, as agulhas, o colete de aço, as úlceras tróficas… Mas há também outros espaços nos quais Frida pratica a recomposição e o acabamento de seu corpo enquanto a pintura e a escrita diarista convergem: o espaço da sexualidade inquieta e nada convencional, o espaço epistolar e o espaço da consulta médica. No entanto, dentre essas possibilidades enunciativas, interessa-nos, neste momento, apenas a representação corpórea pincelada pela autora em seus autorretratos.

A princípio, é importante olhar para o corpo fridiano, representado ideologicamente em seus autorretratos, sem querer justificar seus exageros apenas pela filiação surrealista (classificação que a própria Frida renegou). É importante considerar essas hipérboles visuais e metafóricas, também, como um traço do grotesco nas representações do corpo, trazidas pela pintora na tela em análise. No entanto, ao tratar do exagero, Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 268) afirma que “[o] exagero (hiperbolização) é efetivamente um dos sinais característicos do grotesco (...); mas não é o mais importante”. Assim sendo, como marca do grotesco, consideramos a presença de hipérboles, mas não podemos reduzi-las a simples marcas.

O corpo grotesco 一 e defendemos que é ele que aparece na tela de Frida 一 que analisamos neste artigo dialoga com o já dito e o exterior. Ele é uma composição em acabamento, atravessado pelos horrores das dores físicas e afetivas. Nesse sentido, compreendemos o corpo, representado na tela La columna rota, como uma refração axiológica das dores que a pintora carregava em seu seio identitário. Ele 一 o corpo 一 absorve, literalmente e não literalmente, o mundo que constituía Frida Kahlo e era constituído por ela.

Para Bakhtin (2010aBAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010a.), todo discurso comporta duas faces: é determinado tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém, o que o torna, interna e externamente, dialogizado. Nesse processo dialógico, a palavra, como signo ideológico, sob a ótica de Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), reflete (e refrata) o encontro de, pelo menos, duas consciências individuais constituídas socialmente no processo perene de interação eu-outro.

Vozes, para Bakhtin (2015BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In: BAKHTIN, Mikhail. A teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário por Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 19-242.), na esteira do que o filósofo entende como heterodiscurso social, ou seja, a diversidade de linguagens sociais que preenchem um romance heterodiscursivo, que estão, portanto, intrinsecamente relacionadas aos sujeitos do discurso (social, histórica e temporalmente situados) e, mais que isso, às relações que se estabelecem entre esses sujeitos 一 falante e ouvinte, ou entre os discursos desses sujeitos (ditos e ainda não ditos). Pensar na categoria vozes é, assim, pensar em vozes sociais, pois ninguém se constitui, como consciência individual, sozinho, haja vista que o centro organizador e formador da consciência não se situa no interior, na mente do sujeito, mas no exterior, pela relação que estabelece com os outros sujeitos, estes carregados por valores, histórias e modos de compreender e enxergar o mundo. É nesse sentido que Caryl Emerson (1984EMERSON, Caryl. Editor’s Preface. In: BAKHTIN, Mikhail. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Edited and translated by Caryl Emerson. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 1984. p. xxix-xliii., p. xxxvi) explica que “voz” é “um ponto de vista sobre o mundo; é uma pessoa que se orienta entre outras pessoas dentro de um determinado campo”7 7 Tradução nossa. No original, em inglês: “a point of view on the world, it is one personality orienting itself among other personalities within a limited field”. . Pam Morris (1994MORRIS, Pam. A Glossary of Key Terms. In: MORRIS, Pam (ed.). The Bakhtin Reader: Selected Writings of Bakhtin, Medvedev, Voloshinov. London: Arnold Publishers, 1994. p. 245-252., p. 251) adiciona que uma voz sempre terá “uma entonação (...) ou acentuação (...) específica, que reflete os valores por trás da consciência falante”8 8 Tradução nossa. No original, em inglês: “a particular ‘intonation’ (...) or ‘accentuation’ (...), which reflects the values behind the consciousness which speaks”. .

Vale ressaltar que, em todos os domínios da vida e da criação ideológica, nossos discursos estão atravessados por vozes de outros, em todos os graus de precisão, de imparcialidade, de apropriação, de retransmissão. Cabe, portanto, observar como essas vozes, esses discursos sociais dialogam, como se refutam ou se confirmam, não apenas no âmbito interno da obra, mas no diálogo que também se estabelece com os elementos externos, com o mundo, fato que acaba sendo levado para dentro da obra, assumindo a condição (também) de material constituinte.

Feitas essas considerações sobre corpo grotesco e voz, passaremos a analisar o corpus deste trabalho na próxima seção.

3 Cosmovisão religiosa e corpo grotesco, permitindo a simbiose, no mundo da vida, entre o sagrado e o profano

Nesta seção, analisaremos um enunciado formatado discursiva e semioticamente pelos traumas do corpo de Frida: um corpo que se mostra de forma grotesca para regenerar os seus interlocutores e a sua própria dor e que se apega a uma visão religiosa para se configurar na ambivalência. Frida, aqui, escolhe, por intermédio das marcas corpóreas grotescas, estabelecer relações dialógicas entre o sagrado e o profano. Decide sacralizar e enaltecer a sua relação com a cultura de seu povo e com as suas convicções ideológicas. Procura, mediante uma tomada de posição eticamente engajada, mostrar o que as dores da vida fizeram com o corpo de uma mulher e como essa temática ganha forma na sua obra de arte.

Antes de seguirmos com as análises, gostaríamos de pontuar que, embora no México os quadros escolhidos para compor o nosso corpus estejam em domínio público, aqui no Brasil eles só entrarão na seara de obras cujos direitos autorais são de livre acesso no ano de 2025. Por esse motivo, não traremos as imagens para este artigo. Faremos remissões aos autorretratos, deixaremos links de acesso às imagens e descreveremos com detalhes os dois enunciados escolhidos para este trabalho. Dito isso, passemos ao primeiro enunciado, ao que chamaremos de enunciado 1 por orientação teórica e metodológica. Ele é o autorretrato intitulado El venado herido9 9 Este enunciado é o quarto autorretrato, traduzido como O Veado Ferido na página de Roberta Fuks, intitulada 10 principais obras de Frida Kahlo (e seus significados). O endereço da página é https://www.culturagenial.com/obras-frida-kahlo/. .

Antes de qualquer comentário analítico, precisamos fazer uma rápida descrição do enunciado em questão. Trata-se de uma tela de 22,4 cm x 30 cm, óleo sobre masonite, da coleção particular de Frida Kahlo, pintada em 1946. Seu título original, em uma tradução livre, é O veado ferido, porém ela também é conhecida por O veadinho e Eu sou um pobre veadinho.

De forma simples, a pintora se autorretrata como um veado 一 adicionando sua cabeça ao corpo do animal 一, surpreendido na floresta por caçadores invisíveis; além disso, o animal é retratado como estando trespassado por nove flechas. Da flecha cujo local atingido foi o pescoço jorra, abundantemente, sangue do animal (uma sutil diferença das outras oito flechas fincadas pelo resto do corpo e que, também, tiram sangue do cervo-frida, mas não como a que o atingiu na altura no peito, um local que remete ao peito, como se atingisse o coração). Entretanto, nenhuma de suas “inimigas” parece conseguir impedir o pequeno cervo de continuar a sua fuga. Ao fundo, um relâmpago, bem como um galho quebrado, confere certa dramaticidade ao quadro.

Para uma análise dialógica desse enunciado, sentimos a necessidade de nomear mais especificamente a categoria a que chegamos, ao colocarmos em atravessamento teórico-metodológico a cosmovisão religiosa e o corpo grotesco. Dito isso, tratemos da ambivalência 一 destronamento e renovação provocados pela heterodiscursividade com a/da topografia do corpo e dos signos da religião cristã.

Essa é a categoria que se mostra mais latente no enunciado aqui analisado, pois o diálogo estreito entre a cultura, o corpo grotesco de Frida e o discurso religioso, axiológica e semioticamente, é o mais visível aos nossos olhos de pesquisadores. De forma particular, observamos que esse enunciado é carregado de signos e símbolos, mas vamos focar na relação dialógica de ambivalência com o sagrado: as relações axiológicas com o mito de São Sebastião10 10 Endereço eletrônico para acessar a imagem de São Sebastião: https://cruzterrasanta.com.br/_global/_ssf/ssf.aspx?d=/_upload/significados_de_santos/&arquivo=20160112191132-HIS-sao-sebastiao-historia.jpg. . No clássico quadro de São Sebastião, o homem se encontra despido, preso a uma árvore e trespassado por três flechas: a primeira atravessa o lado esquerdo do seu peito (atingindo o coração), a segunda atravessa o seu abdômen e a terceira atinge a sua perna direita. Dos lugares onde as flechas estão fincadas, escorre sangue. Diante disso, podemos afirmar que os principais pontos de encontro que fazem referência ao mito sebastiânico são dois: as flechadas e o sacrifício.

De acordo com as muitas biografias encontradas em alguns sites da igreja católica, tais como o Vatican News, Sebastião nasceu em Narbona, na França, no ano de 256 da era cristã. Quando jovem, alistou-se no exército romano e, logo, conquistou o afeto do imperador Diocleciano, tornando-se o seu soldado predileto. O jovem rapaz também foi alçado à posição de comandante chefe da Guarda Pretoriana, posto que o colocou muito mais perto do imperador.

As histórias ainda contam que, em segredo, Sebastião converteu-se ao cristianismo e visitava, com certa frequência, presos cristãos, os quais aguardavam serem mandados para o Coliseu, onde serviriam de comida para os leões ou mortos nas lutas entre gladiadores. Porém, sua benfeitoria com os cristãos chegou aos ouvidos do imperador (Diocleciano ficou conhecido por persegui-los), o qual, imediatamente, tentou fazê-lo renunciar ao cristianismo.

Todavia, diante do imperador, Sebastião recusou-se a negar a sua fé e, por causa disso, foi condenado à morte. Seu corpo foi amarrado a uma árvore e alvejado por flechas, as quais foram atiradas por seus companheiros da Guarda Pretoriana. Os soldados deixaram-no aparentemente morto, mas Sebastião foi resgatado por algumas mulheres e conseguiu se reestabelecer.

As narrativas ainda indicam que, após o ocorrido, Sebastião continuou a insistir com o imperador para que cessasse a perseguição e as mortes aos cristãos. Tomado pela ira, Diocleciano ordenou que, dessa vez, os soldados açoitassem Sebastião até a morte e, depois, jogassem seu corpo no esgoto público de Roma, para que ele não se tornasse um mártir. Todavia, algumas mulheres sonharam com o jovem soldado e, de acordo com a narrativa católica, Sebastião revelou onde elas poderiam encontrar seu corpo e pediu para ser sepultado próximo das catacumbas dos apóstolos. Depois disso, no século IV, o imperador Constantino converteu-se ao cristianismo e mandou construir uma basílica no lugar do túmulo de Sebastião, começando, nesse período, os cultos em sua homenagem e devoção.

Desse modo, podemos estabelecer relações dialógicas entre o veado-Frida e São Sebastião em seu martírio, principalmente quando este é representado com flechas em todo o seu corpo e é preso a uma árvore. Diferentemente do santo católico, o veado de Frida não aparenta estar preso. Contudo, se observarmos bem, a aparente liberdade de Frida aqui é falseada, pois o veado está em uma espécie de labirinto de árvores, cujo aprisionamento impede a sua fuga, transformando-o em alvo fácil para as flechas de seus perseguidores. A ambivalência ocorre justamente quando Frida, em um processo de refração, assume axiologicamente a posição do santo da igreja católica. Ou seja, uma mulher, pintora, comunista é agora o alvo das flechas da perseguição.

Um outro ponto de intersecção entre as narrativas (a de São Sebastião e a cena do autorretrato) é a quantidade de flechas, pois coincide com a quantidade de árvores do lado esquerdo da pintura e a quantidade de pontas dos chifres do cervo: nove. Na tradição católica, o número nove possui uma representação sagrada, pois significa a perfeição da trindade, que é reverenciada três vezes cada uma (pai, filho e espírito santo) pelos fiéis. É exatamente por esse motivo que um ciclo de missas é denominado de novena: pois ele fecha a quantidade perfeita para o louvor ao deus católico nos cultos monoteístas.

Assim sendo, o discurso religioso é acionado, com bastante veemência, por Frida no jogo de ambivalência, cuja tentativa é, mais uma vez, romper com o divino inalcançável ou intangível. Há, aqui, uma intenção de transformar em martírio, também, a vida da própria pintora e, com isso, humanizar e endeusar, ao mesmo tempo, os sacrifícios das mulheres e dos homens de sua época.

Um outro ponto de união entre as duas imagens (atravessamento que extrapola o temático e compõe o grotesco, neste caso) é a utilização de corpos estranhos na composição da imagem. Referimo-nos aqui ao corpo que Frida pinta, seu próprio corpo. Um animal com a cabeça de uma mulher. A estranheza, causada em seus interlocutores por essa fusão, escolhida e construída pela pintora, traz consigo a marca bakhtiniana do grotesco, ou seja, um corpo totalmente estranho, marcado pela irregularidade ou pela fuga daquilo que é tido como normal ou esteticamente belo.

Nesse sentido, o elemento grotesco aqui é o responsável, assim como por provocar uma quebra, por demarcar a presença de um corpo que visualmente incomoda, um corpo cujas condições de existência são o silenciamento e o aprisionamento, pois a ele foi negado o convívio social. Assim também ocorria com os corpos das pessoas com deficiência no período medieval: seus corpos grotescos ficavam escondidos em casa, não lhes sendo permitida uma vida em sociedade, ou eram expostos em feiras, como atrações exóticas e grotescas, servindo tanto para o riso quanto para a exploração de dividendos. Em certa medida, o veado-Frida é carregado do grotesco bakhtiniano porque essa é a ferramenta ideológica necessária para demarcar a relação com a cosmovisão religiosa.

Ao voltarmos para o quadro de São Sebastião, em contraposição ao de Frida, temos o alto (o sacrossanto) e o baixo (o comum). A artista toma para si, dando seus próprios contornos e acabamentos, uma narrativa sacra, trazendo para o plano do comum, do humano, uma imagem que representa o sacrifício humano de um santo da Igreja Católica. Nesse momento, Frida une o plano sacrossanto - considerado divino e, muitas vezes, intocável pelos fiéis do catolicismo - ao plano do ordinário, “manchando”, assim, ou seja, trazendo para baixo (para o plano do terreno, onde mortais se encontram), um momento intangível na tradição católica. Ao se assemelhar, em corpo e em sacrifício, por meio do grotesco bakhtiniano, ao santo católico, a pintora destrona a impossibilidade de honroso de sua própria narrativa. Ou seja, ela revive a glória de sua jornada demasiadamente humana.

Para além disso, há aqui uma tentativa, bem particular, da própria Frida em se colocar como sendo uma presa fácil dos dilemas da vida ou da sociedade machista e capitalista na qual vivia - o que não deixa de ser uma verdade. Cabe a nós, aqui, destacar a sua intenção de ser uma marca discursiva de refração dessa cosmovisão religiosa para validar um discurso. A cosmovisão a qual Frida acessa é, portanto, a chancela necessária para o seu dizer e é a que proporciona a conexão temática que leva o enunciado a romper com o discurso oficial.

Lancemos um olhar, agora, ao segundo enunciado (enunciado 2) que analisaremos aqui. Trata-se de um autorretrato intitulado Las dos Fridas11 11 Este enunciado é o primeiro autorretrato, traduzido como As Duas Fridas na página de Roberta Fuks intitulada 10 principais obras de Frida Kahlo (e seus significados). O endereço da página é https://www.culturagenial.com/obras-frida-kahlo/. . O autorretrato escolhido para compor a análise neste momento do artigo, datado de 1939, foi produzido por Frida em tela e tinta a óleo, medindo 1,73m de altura por 1,73m de largura. Dentre todos os seus trabalhos, este é considerado um dos mais importantes e mais relevantes. Nele, temos duas Fridas, retratadas uma ao lado da outra, e ambas fitando o olhar, aparentemente triste e melancólico, em seu interlocutor. Mas vejamos uma descrição rápida, porém necessária, de todo o enunciado.

No quadro em questão, podemos perceber que a Frida da direita usa trajes tipicamente mexicanos em tons de azul, amarelo, verde, uma blusa decotada, deixando à mostra colo e pescoço, e uma saia longa com a barra pregueada e branca (feita com um tecido que parece um tule); já a Frida da esquerda usa apenas um tom de branco em todo seu traje (parece-nos um vestido que se divide em duas partes): a parte de cima é uma blusa cheia de laços, variação de tecidos e mangas bufantes, uma gola longa que cobre todo seu pescoço; a parte de baixo é uma saia longa com uma barra pregueada e detalhes, muito pequenos, em tons de vermelho, vinho, preto e amarelo (cores que aparecem nas imagens as quais lembram flores, folhas, pássaros e frutinhas).

Ainda sobre o quadro, é importante destacar que as duas Fridas estão sentadas em um banco verde e artesanal e de mãos dadas. No fundo, temos um céu escuro e com muitas nuvens 一 ao que nos parece o anúncio de uma tempestade. Há, ainda, a presença de um elemento muito importante para a nossa análise: as duas mulheres têm seus corações à mostra e ambas estão ligadas diretamente por uma única artéria que desce pelo braço esquerdo da Frida da direita, passa pelo seu coração e, depois, segue para o coração da Frida da esquerda e desce, enrolada em seu braço direito. A Frida da direita segura uma fotografia pequena (que parece ser o fim ou o início da artéria que as interliga), enquanto a Frida da esquerda, com pingos de sangue que caem sobre a sua saia branca, segura uma pinça cirúrgica, no formato de tesoura, cuja função é manter a sangria, outrora desatada, temporariamente controlada.

As semioses que acionam uma cosmovisão religiosa e, com isso, utilizam os signos deste universo (esfera ou arena de produção) para promover um diálogo, axiologicamente marcado, carnavalesco e grotesco com a cultura mexicana e o mundo da vida onde Frida estava inserida, são muitas e muito bem destacadas e delimitadas no enunciado em questão. Essas pistas nos alertam para a presença dessa marca valorativa e de relações dialógicas (que tratamos aqui como cosmovisão religiosa), a qual é condição sine qua non para a arquitetônica traçada pela autora/pintora, agindo em função de seu horizonte de interesse. Acreditamos que, sem a presença dessa cosmovisão, o caminho percorrido pictoricamente por Frida poderia levá-la a outro ponto de chegada.

Vejamos agora, de fato, as marcas, cotejadas no enunciado 2, que compõem esse diálogo profícuo para o projeto de dizer de Frida Kahlo, com as semioses do mundo religioso católico cujas bases servem à construção de um corpo grotesco que repele as vozes padronizantes, patriarcais e que visavam colonizar o pensamento da sociedade sobre o próprio corpo feminino.

Comecemos pelas cores escolhidas para a composição pictórica do enunciado. A paleta varia entre as cores branco, azul, amarelo, cinza, vermelho e verde. Essa escolha, por si só, já teria muito a nos dizer em suas representações, porém nos ateremos ao que compõe a cosmovisão religiosa. Ora, há um diálogo muito forte com as cores dos santos católicos e suas indumentárias: o azul do manto de Nossa Senhora, o branco que significa purificação e que aparece na maioria das vestes das deidades católicas; o amarelo presente na representação das auréolas das divindades (como Jesus Cristo e São Sebastião), estabelecendo uma relação direta com as riquezas do plano espiritual. O vermelho também é muito recorrente nas narrativas cristãs sobre o filho do criador de tudo (Jesus Cristo). Essa cor tem relação com o sangue que Cristo teria derramado pelos pecados da humanidade e corresponde à própria representação da vida.

A respeito das imagens, o que se pode afirmar é que se estabelece uma relação muito forte entre o enunciado fridiano e a imagem do Sagrado Coração de Jesus, a qual também apresenta esse órgão vital à mostra e desprotegido após os eventos da crucificação e da ressurreição dessa personagem pertencente à mitologia cristã. No enunciado em análise, temos as duas Fridas (a tipicamente mexicana e a com influências europeias e colonizantes, inclusive as trazidas pela religião) com o coração à mostra. Para nós, há aqui, para além de uma referência ao amor romântico, evocado pela representação cultural que o coração possui na cultura de massa, claras relações dialógicas entre o autorretrato e a imagem católica que expõe o sagrado coração de seus santos.

Mais uma vez, como no enunciado anterior, Frida constrói o seu corpo envolto em elementos que o conectam ao grotesco bakhtiniano. Uma das principais características apontadas por Bakhtin (2013BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.), como já mencionado, é a apresentação de órgãos e fluidos que, no padrão belo e perfeito das artes clássicas, pertencem à parte interna do corpo, portanto, não deveriam estar à mostra. Frida, por sua vez, expõe dois corações, artérias e sangue, este que jorra sobre o vestido branco, salientando uma imagem de um corpo construído grotescamente, ao fugir do padrão e refratar uma pessoa machucada, aberta (cortada com uma tesoura, objeto afiado) e expelindo um líquido imprescindível à vida.

O diálogo com a imagem do coração de Jesus12 12 Endereço eletrônico com a imagem do quadro conhecido como Sagrado Coração de Jesus: https://santhatela.com.br/wp-content/uploads/2019/12/pintor-barroco-desconhecido-sagrado-coracao-de-jesus-d.jpg. é, então, inevitável, visto que, conforme o texto bíblico, o deus cristão teve seu coração13 13 O texto bíblico a que nos referimos é João 19:34: “Mas um dos soldados feriu-lhe o lado com a lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Bíblia, 1994, p. 2089). Percebemos que o texto se refere, explicitamente, ao lado (pleurá, em grego) do Cristo, e não ao seu coração. No entanto, alguns estudiosos consideram que esse “lado” seria o lado esquerdo e, consequentemente, o coração. Segundo Festus Akinnifesi (2005, p. 161), o soldado romano queria confirmar que Jesus estava morto e, por isso, usou uma lança que era “tão afiada quanto uma lâmina e cortou o coração (‘o lado’) dele” [Tradução nossa. No original, em inglês: “as sharp as a blade and sliced through his very heart (‘the side’)”. Essa versão (coração e não o lado) torna-se parte da tradição católica, em que a devoção ao sagrado coração de Jesus parte do pressuposto de que foi o coração (e não o lado) de Jesus que foi atravessado pela lança, o que traz lições ao fiel, como afirma Benjamin A. Vima (2012): “Encoraja-nos, como o coração de Jesus foi trespassado para que o Seu amor pudesse fluir sobre todos, devemos deixar os nossos próprios corações abrirem-se ao amor com totalidade e oferecer todo o nosso amor para o bem do Corpo de Cristo, a Igreja” [Tradução nossa. No original, em inglês: “It encourages us, as Jesus’ heart was pierced so that His love might flow on all, we must let our own hearts be open to love with totality and offer all our love for the good of Christ’s Body, the Church”]. perfurado por uma lança de um soldado romano. Do corpo aberto de forma violenta, jorraram sangue e água. Dessa forma, a cosmovisão religiosa está envolta em todo o discurso construído pela pintora no quadro Las Dos Fridas, pois a autora (como fez com a imagem de São Sebastião) assume a posição axiológica de Jesus, o qual deixou-se ser sacrificado para salvar a humanidade. Frida, então, nessa posição de Cristo, refrata a ideia de que seu auto sacrifício pode ser comparado ao de Jesus.

As duas Fridas, aqui, podem representar as identidades conflitantes da pintora (a indígena e a que sofria influência europeia), que brigavam com a sua vontade passional de agradar seu amado Diego Rivera; mas há também uma clara referência às duas mulheres das narrativas bíblica e mítica, as quais trouxeram ao centro do paraíso o pecado original e por suas atitudes consideradas rebeldes sofreram com os castigos divinos: Eva e Lilith.

Eva, de acordo com o texto bíblico, foi a primeira mulher (ou seja, a que está nos discursos oficiais) do paraíso. A sua imagem é construída inteiramente pelo viés da culpa, pois fora a responsável por comer o fruto proibido e dar para Adão (homem feito à imagem e semelhança do deus cristão) comer também. Por ser gerada a partir da costela desse homem, “esperava-se” dela uma conduta de perfeição, associada ao fato de ela também compor esse espectro da criação divina, e de subserviência, relacionada ao ser masculino. Mas, indo contra as advertências divinas, Eva transforma-se na chave que muda toda a narrativa do criacionismo, pois ganha o status de vilã responsável, inclusive, pelo primeiro pecado.

Lilith, por sua vez, veio antes de Eva e fora apagada dos registros católicos por causa da natureza rebelde de suas ações. Em linhas gerais, ela teria ido embora do paraíso porque não aceitou a subserviência imposta pelos preceitos patriarcais cuja tônica a colocava numa posição inferiorizada em relação a Adão. Assim sendo, a primeira mulher, de fato, rebelou-se contra o deus cristão e as normativas de seu paraíso, transformando-se em uma figura demoníaca para a ideologia judaico-cristã. O seu ato revolucionário gerou um apagamento histórico de sua narrativa, tentativa bélica com o objetivo da não-reprodução desse comportamento por outras mulheres.

Por fim, o atravessamento dessa cosmovisão, que bebe na carnavalesca, para contribuir com a construção de um corpo grotesco, corpo este que consegue desconstruir os discursos oficiais, é fundamental no enunciado fridiano em voga, tendo em vista que, sem ela, o destronamento das ideologias religiosas, utilizadas para aprisionar os corpos femininos e legá-los ao abismo do machismo e do patriarcado, não se realizaria de maneira plenivalente. Portanto, a hipótese lançada na introdução deste artigo se confirma, visto que foi possível observar que Frida se apropria de elementos da cosmovisão religiosa - os quais, por si só, carregam traços do grotesco bakhtiniano - para solidificar características grotescas refratadas nos enunciados aqui analisados. Dessa forma, ela rebaixa o sacrossanto, tornando-o humano, e o faz por meio do diálogo que constrói entre os sacrifícios dos santos católicos e o seu próprio sacrifício.

(In)acabamentos possíveis

Chegamos a esse momento de nosso trabalho com alguns apontamentos possíveis. Não podemos perder de vista, principalmente agora, o que há de mais importante nesta pesquisa: o fato de estarmos criando inteligibilidade e produzindo mais conhecimento sobre a produção artística de uma das pintoras mais conhecidas e engajadas com as causas da classe trabalhadora que a história já produziu.

Posto isso, observemos o primeiro ponto: os discursos que atravessam Frida, em toda sua constituição como ser social, são evocados para dar um colorido axiológico aos seus autorretratos, principalmente quando estes dialogam com as dores físicas e a influência religiosa e cultural em suas obras.

O segundo ponto, dessa forma, reside exatamente na marcação e na utilização de uma cosmovisão carnavalesca, por sua vez, encarada aqui como e adaptada para uma cosmovisão religiosa, dando as costuras necessárias e prenhes de significado no todo da arquitetônica fridiana. Essa visão de mundo, que, em sua época, se configurava como um discurso dominante e cheio de relações de poder, é acessada à exaustão pela pintora, pois a sua presença é fundamental para concretizar a ambivalência necessária na construção desse corpo grotesco, representado em tela e em discurso.

Por sua vez, não podemos deixar de destacar a importância dessa cosmovisão para o nosso corpus porque ela é mundialmente conhecida e popular. Ela ainda tem o poder de libertar o ser social, ser de linguagem, do medo e, nesse caso, promoveu o corpo de Frida ao patamar de estandarte de luta e de destronamento de um padrão social e opressor. Desse modo, a cosmovisão carnavalesca tende a negar e a se contrapor a todo e qualquer discurso faccioso, iníquo, acabado ou considerado axiomaticamente fechado. Nesse sentido, podemos afirmar que essa cosmovisão nega os desfechos conclusivos ou absolutistas, uma vez que não há um ponto final para os fenômenos ideológicos da linguagem, pois todo desfecho indica um novo recomeço.

O terceiro ponto, porém não menos importante, é como esse corpo grotesco vai se constituindo e usando essa cosmovisão religiosa como recurso carnavalizador para a formação do que é necessário para o grotesco. Frida abusa das imagens grotescas aqui, propositalmente ou não, porque somente elas são capazes de refletir e refratar o seu próprio corpo, dessacralizando os ditames sociais sobre o corpo das mulheres e desessencializando a dinâmica corpórea daquilo que “pode” ser visto ou mostrado. Sem os recursos do corpo grotesco, costurados pela presença de uma cosmovisão religiosa que precisou ser negada, constantemente, pela pintora, a ruptura estética promovida pela arte de Frida Kahlo possivelmente fracassaria em seus objetivos políticos, discursivos e artísticos.

Por fim, ao representar o seu corpo em telas, Kahlo orienta a sua produção pictórica a um plano de sentidos que refrata elementos do grotesco bakhtiniano, bem como de uma cosmovisão religiosa predominante em seu tempo, para dar acabamento às suas vivências em enunciados concretos os quais ela coloca em circulação no mundo da vida. Dessa maneira, por mais que consideremos o cronotopo em que foram produzidos e exibidos os seus autorretratos, não podemos deixar de destacar, perante a nossa análise, a potência axiológica do seu trabalho artístico.

REFERÊNCIAS

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  • BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas por Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 11-69.
  • BÍBLIA. João. In: Bíblia: tradução ecumênica. Colaboração de L. J. Baraúna et al. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 2037-2093.
  • CARDEAL Tempesta: São Sebastião. Vatican News, 18 de janeiro de 2022. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-01/cardeal-tempesta-sao-sebastiao.html Acesso em: 21 nov. 2023.
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  • CASADO ALVES, Maria da Penha. Ethos e exotopia do olhar: as cartas apaixonadas de Frida Kahlo. In: UYENO, Elzira Yoko; PUZZO, Miriam Bauab; RENDA, Vera Lúcia Batalha de Siqueira (orgs.). Linguística aplicada, linguística e literatura: intersecções profícuas. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012a. v. 1, p. 30-47.
  • CASADO ALVES, Maria da Penha. Frida Kahlo entre palavras e imagens: a escrita diarista e o acabamento estético. Linha d’água, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 169-184, ago./nov. 2012b. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v25i2p169-184
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  • CASADO ALVES, Maria da Penha. O corpo grotesco nas telas de Frida Kahlo. In: Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin (org.). Palavras: epistemologias bakhtinianas. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021c. p. 195-200.
  • EMERSON, Caryl. Editor’s Preface. In: BAKHTIN, Mikhail. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Edited and translated by Caryl Emerson. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 1984. p. xxix-xliii.
  • KAHLO, Frida. Cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Compilação por Martha Zamora e Tradução por Vera Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
  • FUKS, Rebeca. 10 principais obras de Frida Kahlo (e seus significados). Cultura genial, 2023. Disponível em: https://www.culturagenial.com/obras-frida-kahlo/. Acesso em: 29 ago. 2023.
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  • FUKS, Rebeca. Quadro As duas Fridas de Frida Kahlo (e seu significado). Cultura genial, 2023. Disponível em: https://www.culturagenial.com/quadro-as-duas-fridas- frida-kahlo/. Acesso em: 30 ago. 2023.
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  • MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de. Forças centrífugas e centrípetas. In: PEREIRA, Sônia Virgínia Martins; RODRIGUES, Siane Gois Cavalcanti (orgs.). Diálogos em verbetes: noções e conceitos da teoria dialógica da linguagem. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2022. p. 101-104.
  • MENDONÇA, Diana de Oliveira. Letras e cores de um ser inacabado: um olhar bakhtiniano sobre a escrita diarista de Frida Kahlo. 2018. 107f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2018.
  • MORRIS, Pam. A Glossary of Key Terms. In: MORRIS, Pam (ed.). The Bakhtin Reader: Selected Writings of Bakhtin, Medvedev, Voloshinov. London: Arnold Publishers, 1994. p. 245-252.
  • OLIVEIRA, William Brenno dos Santos. Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo. 2015. 146f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.
  • RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009.
  • RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Tradução de Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
  • VIMA, Benjamin A. Catholic Christian Spirituality for New Age Dummies. Bloomington, Indiana: Trafford Publishing, 2013. E-book.
  • VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Estilística do discurso literário I: o que é a linguagem/língua? In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 234-265.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Este texto parte da tese de doutorado de um dos autores, mas reestruturada a partir de um desdobramento inédito da pesquisa, com a participação dos outros autores no formato de artigo.
  • 2
    Em Os gêneros do discurso, Mikhail Bakhtin (2016BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas por Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 11-69.) elabora o conceito de enunciado concreto, baseando-se na linguagem como sendo uma atividade social mediada pela interação dos sujeitos em suas práticas discursivas. Para ele, tal enunciado, sendo a unidade real da comunicação humana, é a materialidade constitutiva advinda dos movimentos da língua em uso, inserida e organizada a partir das mais variadas circunstâncias situacionais em que os enunciadores, participantes ativamente responsivos da dinâmica do mundo da vida, estão inseridos. Em outras palavras, por esse viés epistemológico, as pessoas constroem seus dizeres ao responderem, dialogicamente, às especificidades enunciativas e aos outros que as circundam, emergentes das situações comunicativas em que atuam na realidade concreta.
  • 3
    Designação atribuída a um conjunto de pensadores, a exemplo de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e Valentin Volóchinov (1895-1936), os quais refletem sobre a linguagem em perspectiva dialógica, como uma prática sócio-histórica oriunda da interação entre sujeitos no processo ininterrupto de comunicação verbo-ideológica.
  • 4
    Utilizamos o termo “discurso centrífugo” como uma metáfora da descentralização dos discursos oficiais. Vale ressaltar que os conceitos de forças centrípetas e forças centrífugas foram utilizadas por Bakhtin (2015BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In: BAKHTIN, Mikhail. A teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário por Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 19-242.), em “O discurso no romance”, para discutir “as forças ativas que criam a vida da linguagem” (Bakhtin, 2015, p. 39). As forças centrífugas são, portanto, aquelas responsáveis pelos “processos de descentralização e separação” (Bakhtin, 2015, p. 41; grifo no original). Como explica Orison Marden Bandeira de Melo Jr. (2022MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de. Forças centrífugas e centrípetas. In: PEREIRA, Sônia Virgínia Martins; RODRIGUES, Siane Gois Cavalcanti (orgs.). Diálogos em verbetes: noções e conceitos da teoria dialógica da linguagem. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2022. p. 101-104., p. 102-103), as forças centrífugas “provocam uma separação do sistema linguístico único e uma descentralização verboideológica, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de diferentes linguagens socioideológicas (heterodiscurso) num processo dinâmico e vivo”.
  • 5
    Para Valentin Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), o signo é um material verbo-ideológico cujo sentido está atrelado à realidade concreta em que os sujeitos sócio-históricos se inserem e constroem seus dizeres. Nessa materialidade sígnica, circulam reflexos (expressão em certo grau de fidedignidade do objeto ou tema circulante no mundo da vida) e refrações (posições axiológicas reelaboradas a partir do ponto de vista dos enunciadores) da dinâmica comunicativa dos seres de linguagem.
  • 6
    De acordo com Volóchinov (2019VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Estilística do discurso literário I: o que é a linguagem/língua? In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 234-265., p. 243), “entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica”. Em suma, a ideologia são os valores sócio-histórico-culturais com os quais os sujeitos formam a sua consciência individual e atuam na sociedade, corroborando, assim, para os multidirecionamentos sígnicos existentes na vida humana.
  • 7
    Tradução nossa. No original, em inglês: “a point of view on the world, it is one personality orienting itself among other personalities within a limited field”.
  • 8
    Tradução nossa. No original, em inglês: “a particular ‘intonation’ (...) or ‘accentuation’ (...), which reflects the values behind the consciousness which speaks”.
  • 9
    Este enunciado é o quarto autorretrato, traduzido como O Veado Ferido na página de Roberta Fuks, intitulada 10 principais obras de Frida Kahlo (e seus significados). O endereço da página é https://www.culturagenial.com/obras-frida-kahlo/.
  • 10
  • 11
    Este enunciado é o primeiro autorretrato, traduzido como As Duas Fridas na página de Roberta Fuks intitulada 10 principais obras de Frida Kahlo (e seus significados). O endereço da página é https://www.culturagenial.com/obras-frida-kahlo/.
  • 12
    Endereço eletrônico com a imagem do quadro conhecido como Sagrado Coração de Jesus: https://santhatela.com.br/wp-content/uploads/2019/12/pintor-barroco-desconhecido-sagrado-coracao-de-jesus-d.jpg.
  • 13
    O texto bíblico a que nos referimos é João 19:34: “Mas um dos soldados feriu-lhe o lado com a lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Bíblia, 1994, p. 2089). Percebemos que o texto se refere, explicitamente, ao lado (pleurá, em grego) do Cristo, e não ao seu coração. No entanto, alguns estudiosos consideram que esse “lado” seria o lado esquerdo e, consequentemente, o coração. Segundo Festus Akinnifesi (2005AKINNIFESI, Festus. Divine Healing: A Biblical Solution to Sound Health. Maitland, Florida: Xulon Press, 2005., p. 161), o soldado romano queria confirmar que Jesus estava morto e, por isso, usou uma lança que era “tão afiada quanto uma lâmina e cortou o coração (‘o lado’) dele” [Tradução nossa. No original, em inglês: “as sharp as a blade and sliced through his very heart (‘the side’)”. Essa versão (coração e não o lado) torna-se parte da tradição católica, em que a devoção ao sagrado coração de Jesus parte do pressuposto de que foi o coração (e não o lado) de Jesus que foi atravessado pela lança, o que traz lições ao fiel, como afirma Benjamin A. Vima (2012): “Encoraja-nos, como o coração de Jesus foi trespassado para que o Seu amor pudesse fluir sobre todos, devemos deixar os nossos próprios corações abrirem-se ao amor com totalidade e oferecer todo o nosso amor para o bem do Corpo de Cristo, a Igreja” [Tradução nossa. No original, em inglês: “It encourages us, as Jesus’ heart was pierced so that His love might flow on all, we must let our own hearts be open to love with totality and offer all our love for the good of Christ’s Body, the Church”].

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

Considero o artigo plenamente adequado para publicação na Revista Bakhtiniana, pois a proposta de estudo está fundamentada num referencial teórico sólido, a argumentação está clara e foi construída com coerência do começo ao fim e o objeto analisado se constitui como um tema relevante para a sociedade contemporânea. Dada a especificidade do grotesco em Bakhtin, os (as) autores (as) trabalharam muito bem com um conceito que parece que ainda não foi amplamente discutido no Brasil. Ótimo trabalho. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    10 Nov 2023

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2023
  • Aceito
    15 Fev 2024
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