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Exu-feminina: sentido e erotismo em Maria Padilha de Bixarte

RESUMO

Nesta pesquisa, de abordagem qualitativa e descritiva, objetiva-se investigar os possíveis efeitos de sentidos vinculados à imagem de Exu-Feminina a partir do dispositivo teórico da Análise do Discurso Materialista. As mitologias em torno desta entidade estão vinculadas a seu poder sobre as encruzilhadas e seu potencial em abrir caminhos e formas de compreender a vida para seus fiéis. Ademais, a imagem da entidade atualiza significações do erotismo. Considerando a hegemonia das ideologias cristãs, a imagem de Exu-Feminina remete a interpretações divergentes daquelas que vinculam o erótico ao pecado. Por isso, ao contrário da ideologia cristã, como a imagem de diabo e/ou satanás, além de aspectos eróticos negativos/pejorativos vinculados à entidade por sujeitos não candomblecistas e umbandistas, a proposta da pesquisa é também investigar possíveis sentidos eróticos na música Maria Padilha de Bixarte.

PALAVRAS-CHAVE:
Exu-Feminina; Erotismo; Religiões afro-brasileira

ABSTRACT

In this research, adopting a qualitative and descriptive approach, the aim is to investigate the possible meaning’s effect associated with the image of Female-Exu using the theoretical framework of Materialist Discourse Analysis. The mythologies surrounding this entity are linked to her power at crossroads and her potential to open paths, providing her followers new ways of understanding life. Additionally, the image of this entity updates meanings related to eroticism. Considering the hegemony of Christian ideologies, the representation of the Female-Exu leads to interpretations other than those which associate the erotic with sin. Therefore, unlike the Christian ideology, such as the image of the devil and/or satan, in addition to negative/pejorative erotic aspects associated with the entity by non-Candomblé and Umbanda practitioners, the research proposal is also to investigate possible erotic meanings in the lyrics “Maria Padilha” by Bixarte.

KEYWORDS:
Female-Exu; Eroticism; Afro-Brazilian Religions

1 Condições de produção - Exu: divindade afro-brasileira

Exu é uma divindade mensageira, sendo patenteado como o dono dos caminhos, encruzilhadas. Segundo Rufino (2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.), a encruzilhada emerge como disponibilidade para novos rumos, campo de possibilidades e afirmação da vida. As mitologias em torno deste ancestral são vinculadas ao seu poder sobre as encruzilhadas e seu privilégio em comer primeiro, ou seja, receber oferenda antes de todos os ancestrais. Exu é um orixá do candomblé de origem nagô, sendo das nações de Ketu, Jejê e Efon, mas ele só recebe o nome de Pambu Njila na nação Angola.

Para os discursos do candomblé e umbanda, os ancestrais são responsáveis pelos direcionamentos de boas decisões em quaisquer esferas, seja em uma decisão de emprego, vida amorosa, escolhas de amizades etc. Portanto, o destino está para além de uma escolha pessoal, é uma decisão direcionada pelo ancestral. A partir disso, propor uma pesquisa sistematizada com considerações teóricas possibilita a propagação de concepções de/e sobre Exu. Em consonância a isso, esta pesquisa está centralizada na análise das Exus-Femininas, comumente conhecidas como Pombagiras e cultuadas na Umbanda. O termo Npambu Njila, do Kikongo para a língua portuguesa pode se traduzir como “entre caminhos”, “encruzilhada”. Na religião do Candomblé da nação Angola, Pambu Njila é um ancestral que cuida dos caminhos, ou seja, resguarda seus fiéis, evitando que o mal atrapalhe seu caminhar. O caminho, nesse sentido, pode significar metaforicamente atitudes sobre as tomadas de decisões que geram consequências nos destinos dos sujeitos candomblecistas e umbandistas. O aportuguesamento dos termos vindo do continente africano é comum dentro da religião, por isso, a expressão Npambu Njila é conhecida como “Pomba gira”, “Pombo gira” ou “Pombo gila”.

De acordo com Silva (2019SILVA, Vagner Gonçalves. O guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019., p. 80), “as pombagiras representam principalmente mulheres de comportamento moral e sexual tido como reprovável. Quando incorporadas, manifestam gestos expansivos e eróticos”. Com base nessa afirmação, pode-se considerar que há um imaginário operado pelas ideologias machistas e cristãs, que ditam quais são as condições moralmente aceitas sobre o sexo e sobre o erotismo para o corpo feminino.

A imagem da mulher reprovável para determinadas posições religiosas ou morais com efeitos sensuais é associada, em grande parte, às mulheres negras e pobres, as quais se sustentariam no efeito de evidência pelo corpo predicado como bonito, seios pequenos, quadris largos etc. Sobre a imagem da mulher, como afirma Freyre (1984FREYRE, Gilberto. Uma paixão nacional. Revista Playboy, n. 113, dez./1984. Disponível em http://www.releituras.com/gilbertofreyre_bunda.asp Acesso em: 21 jun. 2023.
http://www.releituras.com/gilbertofreyre...
, s.p.), “ao tamanho das nádegas, desenvolveu-se, é de supor, a tendência, quase folclórica, entre brasileiros, de associarem-se os chamados cus de pimenta ou rabos ardorosos, já presentes em referências em registros das investigações do Santo Ofício”.

O documento de registros, também conhecido como Santo Ofício da Inquisição, era uma instituição jurídica da Igreja Católica Romana com o objetivo de combater os atos considerados desviantes de acordo com as condutas morais estabelecidas. Dentro desse contexto histórico, os fenótipos negroides eram frequentemente associados a estímulos sensuais, capazes de provocar atos lascivos.

Em contraste, buscando extrapolar os sentidos correntes, esta pesquisa é centrada na análise dos efeitos de sentido de erotismo potencialmente presentes na entidade Exu-Femininas e é justificado pelas possíveis significações em torno dessas ancestrais, sobretudo porque a significação circulante é baseada em saberes de sujeitos não candomblecistas. Considerando esses saberes, esta proposta é uma análise da música Maria Padilha da Bixarte, a partir da teoria Materialista do Discurso (AD). A artista é nordestina, negra e trans, conhecida pelo potente trabalho na área artística, sendo atriz da emissora TV Globo e poeta. O álbum Traviarcado foi o primeiro da artista, sendo patrocinado pelo projeto Natura Musical, com nove faixas, disponíveis em plataformas digitais como Deezer, YouTube e Spotify.

A encruzilhada, sendo um locus de invocação da ancestralidade, emerge como elemento fundamental nas práticas de Candomblé. Ao invocar, ou seja, ao realizar o ato de chamar uma entidade para entrar no corpo do praticante, o sujeito se conecta com a entidade invocada, de modo a incorporar suas sabedorias. De acordo com Rufino (2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.), a noção de encruzilhada é um saber prático que se lança como disponibilidade para novos horizontes, reivindicando a sofisticação de um mundo plural, e que se expressa a partir do fenômeno do cruzo. Nesse sentido, também é possível evocar essas entidades, chamando esse espírito para estar presente, mas fora do praticante, convocando a energia para um espaço ao redor. E, em relação a Exu, seja invocado ou evocado, essa entidade é dona das esquinas, das ruas, das vielas, e está presente em qualquer encruzilhada.

É possível tecer uma relação produtiva entre os conceitos de invocação e interpelação, pois mobiliza um diálogo entre a Análise do Discurso e as religiões de matriz afro-brasileira. Sendo a invocação um vocativo que indica o chamado da entidade para dentro do corpo do sujeito, pode-se considerar um movimento de interpelação do indivíduo e da entidade. Isso ocorre porque os processos de constituição do sujeito se dão por meio de interpelações ideológicas estabelecidas pelos lugares de enunciação (Zoppi-Fontana, 1999). A partir desse funcionamento, o indivíduo se subjetiva e esses lugares enunciativos são determinados por dadas formações ideológicas (Althusser, 2008ALTHUSSER, Louis. Ideologias e aparelhos ideológicos de Estado. In: ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 21-227.). Sendo a religião também uma prática e um rito interpelativo, ao invocar a entidade, o sujeito do discurso é constituído ao encarnar um Exu. Dessa forma, é possível dizer que o indivíduo, ao incorporar a entidade, pela invocação, constitui-se em sujeito de um dado discurso candomblecista.

O verbo “cruzar” pode ser entendido como interligação, ou seja, união entre elementos. É comum também associar este vocábulo ao ato sexual entre animais. Estabelecendo uma possível relação de polissemia, não se pode garantir uma relação semântica entre os usos dos vocábulos, mas sim relacionar esse cruzo animalesco ao discurso de sujeitos não candomblecistas, que se opera sobre uma entidade feminina, de que esta possui um caráter sexual, animalizando-a e a colocando como objeto sexual. Portanto, é um discurso constituído a partir das óticas de determinadas religiões, que categorizam o sexo enquanto pecado.

Maria Padilha é uma divindade cultuada na umbanda e em algumas casas de candomblé. Essa entidade possui um caráter desafiador, pois não aceita subordinação, seu espaço não é nos papéis domésticos, que historicamente foram vinculados à mulher na ideologia dominante, como ser esposa e dona de casa. Padilha é dona da rua, das esquinas, desse cruzo entre as becos e vielas. Ela assume esse estereótipo da mulher dona de si. Silva (2019SILVA, Vagner Gonçalves. O guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019., p. 78) diz que

seu poder decorre do domínio que manifesta sobre seu corpo e sua vontade, ainda que isso lhe custe uma reputação social estigmatizada. Ela se utiliza da diferença anatômica (pênis e vagina), associada ao sexo biológico (macho e fêmea) e aos papéis de gênero (masculino e feminino), para questionar por meio da jocosidade e da licenciosidade e poder social que instaura relações de dominação a partir destes marcadores sociais da diferença.

Embora essa marca da dualidade exista, não há um sentido de oposição, mas parece sugerir uma dialética entre as entidades de Exu-feminina e masculino. Isso pode ser visualizado no Itan (históricas contadas) escrito por Maupoil (1988MAUPOIL, Bernard. La géomancie à l’ancienne Cotê des Esclaves. Paris: Institut d’Ethnologie, 1988.), o qual fala que Exu, ao realizar sacrifícios na criação da mulher, escolheu onde colocar sua vagina, testou colocá-la nas axilas, mas a exibição era tremenda, então colocou entre as pernas. Por isso, Exu recebeu o direito de andar com o falo exposto, para que lembrem que ele auxiliou a encontrar o lugar “correto” para a vagina das Exus-Femininas.

Para Matos (s.d.), o significante “falo” refere-se ao órgão genital masculino, sendo que o símbolo fálico é substantivo masculino e, por efeito de homofonia, como a flexão do verbo “falar” na primeira pessoa do singular no presente do indicativo: eu falo. Essas três possibilidades de significação resultam de condições históricas que se assemelham: o órgão masculino como demonstração de virilidade e poder, a classificação da palavra enquanto masculina e a flexão do verbo “falar”, por efeito de homofonia, enquanto aquele que detém o dizer. Essas significações sobre o falo nas discursividades do Candomblé e da Umbanda estão associadas à imagem de Exu masculino.

Maria Padilha pode ser significada como uma (des)ordem da imagem do que uma mulher é e deve ser. Em termos de paráfrases, semanticamente não se poderia comparar Padilha com Maria de Nazaré, mãe de Jesus. “Padilha” e “virgem” são substantivos que não se complementam. Os ortodoxos significam Maria como símbolo de santidade e virgindade, enquanto os praticantes de religiões de matriz africana dizem sobre Maria como dona do cabaré e das ruas. As Marias da Umbanda, sendo as mais conhecidas Mulambo e Padilha, podem significar imagens de poder e sedução. Maria Padilha, como uma mulher revolucionária, se assemelharia mais a Maria Madalena, pois, no período medieval, esta foi considerada por muitos como prostituta. No capítulo 8, versículo 2 do Evangelho de Lucas, é dito que “Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios”. Madalena e Padilha, enquanto mulheres, são predicadas pelo discurso cristão como promíscuas.

2 Possíveis relações de erotismo nas Pombagiras na música “Maria Padilha”.

Maria Padilha
Maria Padilha
Padilha
Essa menina é bonita
Quando a sua saia gira
Ninguém vai se controlar
Eh ah

Padilha
Essa menina é bonita
Quando a sua saia gira
Ninguém vai se controlar
Eh ah

E desce cachaça, desce Pitú
Desce ardendo, 51
Cachaça fuerte
Quero jambu
Tremendo meu corpo e teu corpo nu

E desce cachaça, desce pitu
Desce ardendo, 51
Cachaça forte
Quero jambu
Tremendo meu corpo e teu corpo nu

Estoy muy loca por ti
Tu estas muy loco por mi
Estoy muy loca por ti
Tu estas muy loco por mi

Beso tu boca, saco tu ropa
Quero te enlouquecer
Com minha voz rouca e minha mão boba posso te encher de prazer

Y beso tu boca, saco tu ropa
Quero te enlouquecer
Com minha voz rouca e minha mão boba posso te encher de prazer

Padilha
Essa menina é bonita
Quando a sua saia gira
Ninguém vai se controlar, êh ah

Padilha
Essa menina é bonita
Quando a sua saia gira

Eu sei que você me conhece
Você sabe onde pode me encontrar
Em qualquer esquina, em qualquer bar
Basta meu nome você chamar
Hahahahaha

Maria Padilha
Padilha
Essa menina é bonita
Quando a sua saia gira
Ninguém vai se controlar
Eh ah
Eh ah
Eh ah
(Bixarte, 2023).

A investigação de possíveis aspectos eróticos na música Maria Padilha, de Bixarte, será considerada a partir de dado conceito de erotismo. De acordo com Bataille (1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987., p. 21), “O erotismo, eu o disse, é aos meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se põe conscientemente em questão. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o objeto que se perde”. Nesse sentindo, visa-se investigar o funcionamento do discurso em seus efeitos de sentidos eróticos e/ou efeitos de sentido que provocam efeitos psíquicos ou físicos de um desequilíbrio de si.

Na música, nos primeiros versos, a compositora adjetiva Maria Padilha. O adjetivo “bonita” parece complementar esse cenário de sedução, atração. E não abre brecha para adjetivações opostas. Isso reafirma esse imaginário atribuído a mulheres negras, que são expostas aos olhares desejantes, que ditam qual corpo é belo. O trecho “quando sua saia gira” pode sugerir esse movimento circular, que permite entrever o que há por debaixo dos panos. Como se houvesse um movimento de dança, imaginariamente provocador aos olhos daqueles que o desejam. E que, ao mesmo tempo que os tecidos escondem o corpo, o movimento de balançar a saia expõe.

É preciso compreender o discurso dessa canção, o discurso de religiões afro-brasileiras, em contato, em antagonismo com o discurso religioso dominante, o cristão, com base nas condições de produção da sociedade brasileira. Isto pode ser baseado em Bataille (1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987., p. 47) que diz sobre o “interdito criador do desejo: o interdito não cria o sabor da carne, mas é a razão por que o ‘piedoso’ canibal a consome”. Nesse viés, não se sabe sobre os prazeres que a Padilha, a bonita, pode propor, mas se deseja a partir desse lugar fantasioso.

O sintagma “ninguém vai se controlar” abre um leque de opções de olhares: Padilha é plural, não há somente um público a desejá-la, sua beleza ultrapassa os padrões. Em consonância a isso, relacionando o verbo “olhar”, esse provoca efeitos de sentidos que despertam em - aquele que olha, um provável espaço de desejo, segundo Mota (2012MOTA, Ilka de Oliveira. Fronteiras tênues entre o pornográfico e o erótico: uma análise da explicitação do corpo e a constituição de efeitos leitores. Diálogos & Confrontos Revista em Humanidades, São Paulo, vol. 1, p. 14-33, 2012.). Logo, ser bonita e despertar o desejo incontrolável são predicações complementares nesse viés. Sendo o erotismo uma possível perda de instabilidade, se presume essa ausência de controle como um dado funcionamento dessa fabulação erótica que o sujeito faz.

Refletindo sobre o substantivo “Maria”, em dado trecho da canção ele aparece de modo latente e, em outro, de forma patente. O nome próprio nos discursos atravessados por ideologias cristãs remete a entidade aos significados que não são dados como possíveis a Padilha, isso se comparada a Maria de Nazaré. A mãe de Jesus é adjetivada enquanto “virgem” e “santa”, e esses adjetivos não funcionam para Maria Padilha.

Então, de modo patente, a música pode ter funcionado como jogo semântico com o substantivo, de modo a identificar esse sujeito determinado. Como um tipo de qualificação: não se está desejando qualquer Maria, e sim a (Maria) Padilha. Mas, numa comparação com Madalena, é possível encontrar adjetivos que signifiquem para ambas. Maria Padilha e Madalena são vinculadas a partir de discursos cristãos como mulheres promíscuas, não monogâmicas, supostamente sem valores morais. Talvez, em tempos atuais, elas estariam numa mesa de bar, sem filhos em seus colos, com cachaça na mão e girando suas saias.

Desse modo, a imagem que se faz de Padilha é atravessada também pela oposição que se faz a outras Marias que não são entidades de religiões de tradição africana. A imagem de Maria, mãe de Jesus, é atravessada pela ideologia religiosa cristã, que visa o controle dos atos ligados ao sexo, sendo essa mulher virgem intocada. E essas adjetivações são postas em primeiro plano e perduram nas interpretações da Bíblia, ao tempo que Maria de Narazé tem outros filhos de “outras relações sexuais”, sendo irmãos e irmãs de Jesus, os quais estão mencionados na Bíblia.

O filtro que dita a santificação dessas entidades está relacionado com presença ou ausência de relações sexuais, e isso funciona como um monitoramento desses significados, que se faz de determinados significantes nas tradições cristãs. A profana é quem faz sexo, a sagrada é a virgem. E mesmo a Madalena, íntima de Jesus, era considerada uma mulher profana. Por isso, essa ideologia religiosa condena outras possibilidades de santificação feminina, predicando-a como “diaba”, o que significa que Padilha, uma mulher não virgem, é considerada profana dentro dessa perspectiva. Ainda porque a não monogamia é um pecado na religião cristã e Padilha se assume como uma mulher que não se relaciona somente com um sujeito.

O sintagma verbal “vai se controlar” está na forma reflexiva, também há a presença de uma locução verbal. A partícula “se” complementa-se com pronome indefinido “ninguém”, podendo significar a ideia da ausência de autocontrole. Logo, “ninguém” não vai funcionar como um pronome que se refere a nenhuma pessoa, e sim a toda e qualquer pessoa que olhar/desejar a Padilha. Em paráfrase, pode-se dizer “todo mundo vai se descontrolar” ou “alguém não vai se controlar”, “quando sua saia gira, todos não se controlarão”. É um efeito antagônico que há na expressão.

A passagem “quando sua saia gira, ninguém vai se controlar” demonstra um provável efeito imagético de um corpo que está distante fisicamente, mas perto no olhar. Mota (2012MOTA, Ilka de Oliveira. Fronteiras tênues entre o pornográfico e o erótico: uma análise da explicitação do corpo e a constituição de efeitos leitores. Diálogos & Confrontos Revista em Humanidades, São Paulo, vol. 1, p. 14-33, 2012.) diz que o olhar provoca efeitos de sentidos que despertam em aquele que olha um provável espaço de desejo. Nesse viés, nesse girar da saia, um balanço descortina esses panos que estariam tapando o corpo, provocando também um efeito de sinestesia, o sujeito toca outrem com o olhar e a coloca num espaço íntimo. E ao se falar em Maria Padilha e nos possíveis efeitos eróticos, dadas composições imagéticas e verbais podem provocar no sujeito um convite, uma forma de participação, de comprometimento íntimo, ainda que imaginária com a entidade. Isto na composição do que se diz sobre a pombagira ou do que ela diz.

No primeiro trecho, há ditos que são referentes à prática de incorporação, como o consumo de bebida alcoólica pelas pombagiras. O Pitú é uma marca popular de cachaça fabricada no estado de Pernambuco, que se iniciou no ano de 1938. Essa bebida possui uma média de quarenta por cento de graduação alcoólica e, além disso, é uma combinação de açúcar, limão e aguardente de cana. Por isso, possui um gosto mais adocicado. Além dessa, há outra marca de cachaça brasileira, 51, produzida no estado de São Paulo desde 1951. A composição dessa bebida destilada é caldo de cana-de-açúcar e água. O teor alcoólico é também numa média de quarenta por cento.

Ambas as cachaças são comuns de se ofertar para Exus (femininas e masculinos) como oferenda. São oferecidas a essas entidades como forma de agradecimento ou compensação. Essas entidades, quando manifestas, consomem esses tipos de bebida. Como afirma Silva (2019SILVA, Vagner Gonçalves. O guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019., p. 80), as pombagiras “quando incorporadas (…) utilizam ‘palavrões’ ou expressões jocosas e de duplo sentido, consomem bebida alcoólica e fumam”. São partes das ritualísticas em torno dessas entidades o consumo de cachaças.

Essas bebidas alcoólicas são brasileiras e, na sua forma mais simples de fabricação, atendem às classes trabalhadoras informais e precarizadas, sendo mais popularizadas. A cachaça, no imaginário social, é dita como um desqualificador do sujeito que a consome. Na expressão “o cachaceiro”, os sentidos vinculados são de alguém que consome a bebida enquanto vício, sujeito sem prestígio social. Estabelecendo essas relações semânticas, essas cachaças são atributos de oferendas porque são, de algum modo, um ingrediente que potencializa uma certa intimidade com a entidade. Se a entidade bebe na incorporação, seus fiéis bebem para acompanhá-la.

O consumo de bebida, o ato de engolir o álcool, pode ser significado no verbo “descer”, como também pode sugerir um fluxo em quantidade, desce - traz mais. A expressão “desce mais uma” é comumente usada quando se trata de beber álcool. De modo que o verbo “descer” pode também produzir efeitos de sentindo associados ao derramar cachaça sobre esse corpo nu, como uma suposta cena com performances eróticas. Em outras palavras, é plausível que esses artifícios performáticos componham a imagem que se faz da letra da música ao ser prestigiado pelo ouvinte, de modo erótico e sexual. Como uma criação de cena na imaginação do telespectador.

E essas sensações físicas de descer ardendo, como uma sensação de queimar o corpo por dentro, deglutir o líquido faz o corpo tremer, causando um efeito sinestésico. As sensações de ingestão da cachaça provocam a potência de intimidade, que aguça o descontrole, a fabulação. O verso “quero Jambu” traz à cena algo que potencializaria essa sensação sinestésica, uma vez que essa fruta causa anestesia na boca, sendo a boca o começo de toda zona de prazer do corpo. Essa parte do corpo anestesiada engrandece a chama, o queimar do corpo. Se, ao consumir o álcool que queima, a anestesia bucal abranda a ardência, o queimar, então, o sujeito parece querer prolongar esse prazer, a fantasia erótica que começa pela boca e se desdobra por todo esse corpo descontrolado pela imaginação.

O verbo “tremendo” pode sugerir a sensação que o álcool causa, o descontrole do corpo. Mas, ao ser acompanhado do sintagma “nu” representa um descontrole ao ver esse corpo nu, exposto. De acordo com Mota (2012MOTA, Ilka de Oliveira. Fronteiras tênues entre o pornográfico e o erótico: uma análise da explicitação do corpo e a constituição de efeitos leitores. Diálogos & Confrontos Revista em Humanidades, São Paulo, vol. 1, p. 14-33, 2012.), há um lugar comum que insiste em etiquetar como pornográfico todo objeto simbólico que expõe o corpo enquanto aquele que sugere, de erótico. Com base nisso, esse corpo nu, ao provocar esse descontrole sobre o outro, sugere um dado momento fantasioso, erótico, como uma cena, uma imaginação.

A oração trazida na música, que diz “tremendo meu corpo e teu corpo nu”, sugere que o corpo nu é o causador desse tremor, como se o corpo que deseja esse outrem nu não conseguisse controlar suas inquietações e ânsias sexuais. Bataille (1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987., p. 14) afirma que “a nudez se opõe ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo”. A nudez funciona como a ruína do pudor, a vestimenta é uma forma de esconder a obscenidade. Portanto, o sujeito, ao ocupar esse modo de continuidade, presume uma relação de intimidade e erotização na letra que constitui a relação entre esses sujeitos.

De acordo com Bataille (1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987., p. 21),

[o] erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco.

O sintagma nu evoca uma relação com o trecho ninguém vai se controlar, porque a nudez pode provocar no expectador uma sensação de intimidade. O despir, nesse sentindo, de modo latente, criaria um vínculo de acolhimento, tornando peculiar a relação de Padilha com quem a escuta. Porque “a mulher nua está próxima do momento da fusão” (Bataille, 1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987., p. 86), uma vez que esse corpo nu atua no plano do prazer.

Uma vez que ver esse corpo nu é indicativo de exposição do eu, relacionando com o itan de Maupoil (1988MAUPOIL, Bernard. La géomancie à l’ancienne Cotê des Esclaves. Paris: Institut d’Ethnologie, 1988.), onde Exu ganhou o direito de andar com o falo exposto e que também faz uma relação de homofonia com o verbo “falo” (Matos, s.d), que pode ser significado enquanto aquele que está com a palavra, nesse dado momento, presente, Matos (s.d., p. 63) diz que “possuindo o ‘falo’ o homem detém autoridade e poder simbólico”. Com isso, Exu, que não é um homem mortal, mas um Deus, pode ser significado enquanto esse grande Sujeito, Sujeito universal, como afirma a citação de Pêcheux (2014PÊCHEUX, Michel. Ousar pensar e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes [1984]. Tradução Guilherme Adorno e Gracinda Ferreira. Décalages, v. 1, n. 4, 2014., p. 8):

O sujeito ideológico se desdobra em um sujeito singular, tomado na evidência empírica de sua identidade (“este sou eu!”) e de seu lugar (“é verdade, eu estou aqui, trabalhador, patrão, soldado!”) e num Sujeito universal, Grande Sujeito que, sob a forma de Deus, ou da Justiça, ou da Moral, ou do Saber etc., veicula a evidência de que “é assim”, sempre e em toda parte, e que é mesmo assim.

Com base nisso, um Deus que anda nu é tão somente estranho aos sujeitos de ideologias religiosas e morais que julgam como pecaminoso o corpo nu. Acolher a nudez é não sucumbir frente ao expectador outro, que nada sabe sobre o poder de acolhimento de uma entidade que expõe seu falo como uma possibilidade de intimidade, pertencimento. Dado nessas circunstâncias de Sujeito universal, ou seja, desse Deus que se expõe, e como diz Rufino (2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019., p. 31) sobre Exu: “esse espírito é o senhor das possibilidades, ele baixa em qualquer corpo, fala em qualquer língua e diz o não dito”.

Na canção, há um trecho em espanhol. As misturas, na letra, entre a língua portuguesa e hispânica podem se dar a partir do imaginário de língua “caliente” que há nos sotaques, um tom sensual. Talvez as formações imaginárias de línguas quentes se constitua a partir da imagem de objetificação sexual desses povos, como se a imagem de toda e qualquer mulher latinoamericana fosse antes de tudo vinculada aos sentidos de sensualidade e profanidade, pois é esse imaginário de língua que, em sua sonoridade e timbre, causa tal sensação. Então, ao ouvir palavras em espanhol, o sujeito, a partir da memória sobre a imagem de línguas hispânicas, pode vir a ser tomado por sentidos de prazer.

Como afirma Freyre (1984FREYRE, Gilberto. Uma paixão nacional. Revista Playboy, n. 113, dez./1984. Disponível em http://www.releituras.com/gilbertofreyre_bunda.asp Acesso em: 21 jun. 2023.
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) com relação às mulheres ibéricas do século XVI, essas seriam notadas por suas nádegas notavelmente protuberantes ou por suas bundas salientemente grandes, assim como as afro-negras. Isso faz uma correlação com a imagem sexualizada que se faz desse corpo latino. A língua vai funcionar como uma metonímia desse corpo latino, uma vez que substitui e rima esses vocábulos porque há neles uma possível relação de sentido. É possível dizer que, sobre esses exageros empregados, constituindo uma hipérbole na canção, na expressão “muy loca”, o advérbio “muito” é um qualificador que intensifica o sentido da loucura, e não se trata de uma anomalia psíquica, mas um estado máximo de excitação do sujeito.

A cantora faz uma mistura na composição entre as frases dessas duas línguas para provocar uma sensação de expressividade na letra, com o recurso de aliteração. Além disso, há a presença de rimas com “loca”, “boca”, “ropa”, causando uma assonância. Essa produção causa um efeito harmônico, proporcionando uma sonoridade que causa semelhança entre as línguas. Uma possível significação para a união dessas duas línguas, pensadas a partir do significante “encruzilhada”, no sentindo de cruzamento, encontro entre essas línguas, é partir desse princípio de Exu como entidade que baixa em qualquer corpo e fala qualquer língua (Rufino, 2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.). Esse cruzo entre as possibilidades de conexão com todo e qualquer corpo, que Padilha enquanto essa mulher plural e que possui liberdade sexual, pode fazer.

De acordo com Vainfas (2020VAINFAS, Ronaldo. Sexualidades mestiças. In: FIGUEIREDO, Luciano. (org). História do Brasil para ocupados. São Paulo: Laya, 2020. p. 269-283., p. 269), “‘não existe pecado do lado de baixo do Equador’ - esse ditado que corria na Europa no século XVII e se tornou verso de Chico Buarque é quase um lugar-comum quando se fala da liberdade sexual nos tempos coloniais”. Com base nessa afirmação, é possível discutir essa liberdade sexual abordada, pois, para que houvesse, seria então necessário a supressão das regras morais e religiosas que reprimem práticas ditas sexuais? É provável que sim, um sujeito cristão, dadas as suas interpelações ideológicas, deveria suspender suas convicções morais para, por exemplo, ter relações carnais fora do casamento, sem que isso lhe causasse culpa.

A liberdade ou libertinagem sexual é uma constituição dos sujeitos que fogem à doutrina de religiões cristãs, quando se assujeitam ao discurso de religiões afro-brasileiras e se afirmam enquanto eróticos, como se percebe na entidade Maria Padilha. E essa tomada de posição do sujeito enquanto erótico, é dada na/e pela língua, quando se fantasia um desejo sobre uma entidade, como presente na música.

O assujeitamento às línguas para enfatizar um dado afeto, na ordem religiosa, é como uma (re)aproximação com Deus. Dizer em latim um dado sintagma, é como se extinguisse o pecado no ato pecaminoso, tendo em vista o funcionamento dessa língua enquanto sacra, que, mesmo sendo tida como uma língua morta, a memória sobre ela é de sacralidade. E, a partir disso, é importante entender que esses funcionamentos são ideológicos. Então, o sujeito não se apropria da linguagem num movimento individual (Orlandi, 2007ORLANDI, Eni P. Análise do discurso. Princípios e Procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007.), o assujeitamento é dado na ordem social e tem relação com a constituição ideológica desse sujeito.

No Brasil colonizado, era comum a crença de se dizer palavras da consagração da hóstia na boca dos maridos, esposas ou amantes, de preferência durante a relação sexual. Havia um detalhe precioso, as palavras tinham que ser ditas em latim: nada menos que as palavras sagradas da Eucaristia, entre sussurros e gemidos. A linguagem da sedução seguia, assim, a sina da religião, entre o Cristo fálico e a Virgem fêmea (Vainfas, 2020VAINFAS, Ronaldo. Sexualidades mestiças. In: FIGUEIREDO, Luciano. (org). História do Brasil para ocupados. São Paulo: Laya, 2020. p. 269-283.).

Ancorado a isso, o uso da língua hispânica pode funcionar como uma aproximação ao efeito erótico da canção. A Padilha, sendo a menina que proporciona prazer, é essa entidade que não se limita a um falante e um dado léxico, mas é carregada de linguagem de sedução. E, por isso, mesmo que se utilize de uma língua não considerada sacra pela sua ideologia religiosa para expressar seus desejos, há esse funcionamento da fantasia erótica. Ainda que toda essa eloquência se faça “uma diaba” para seus nãos fiéis.

E isso é patente, porque como compreende Silva (2019SILVA, Vagner Gonçalves. O guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019., p. 78) sobre as pombagiras: “Embora ela possa ser também vista como mãe, é como ‘mulher da rua’ e não ‘da casa’, que a pombagira assume um estereótipo da prostituta. Nesse sentindo, seu poder decorre do domínio que manifesta sobre seu corpo e sua vontade, ainda que isso lhe custe uma reputação social estigmatizada”.

Considerando que Padilha ocupa esse lugar de “mulher da rua”, Orlandi (2019ORLANDI, Eni P. Ocupar ou construir espaços? Uma ética cívica do social. Traços de linguagem, v. 3, n. 1, p. 9-15, 2019., p. 13) diz que “ocupar” no sentido de construção social é pensar nesse “sujeito múltiplo, plural e nas possibilidades que a construção de espaços abre para a relação dos sujeitos entre si e do sujeito com ele mesmo”. Com isso, a rua sendo esse lugar comum, um espaço público, é ocupado por essa entidade, porque nele se produz um sentido, de uma posição sujeito que legitima esse lugar. Padilha assume a rua, a encruzilhada como um lugar de poder.

Nos versos “com minha voz rouca e minha mão boba posso te encher de prazer”, a voz rouca pode ser atribuída a esse desejo por emitir sussurros e gemidos. Também é possível ler como se esse funcionamento discursivo evocaria a erotização, de modo a se utilizar dessa sensação poética com efeitos sonoros, pois a fala é também emissora de sopros de ar, refere-se a sinestesia, cujo sujeito, através da estimulação sensorial, pode associar com outros sentidos.

Então, a rouquidão da voz anseia o desejo sobre o outro. E essa voz rouca é lida como sensual, uma vez que a rouquidão pode ser associada à ausência de voz num dado momento de êxtase, mas também por se associar a falar perto do ouvido, como um sussurro e/ou gemido. Concomitante, a voz ao ouvido e o deslizamento da mão boba sobre o corpo. Os sussurros são realizados através do assopro do ar e provocam uma sensação tátil e intimista, potencialmente erótica na cumplicidade. Ao sentir fisicamente esse ar quente no corpo, em conluio com a mão indolente que desliza, provoca-se esse efeito sinestésico, misturando e (con)fundindo sentidos. Num instante de estímulos, ocasionando o descontrole dos sentidos de e do corpo, a afonia sendo uma das consequências desse frenesi erótico. O corpo se enaltece enquanto a voz falha.

A expressão “mão boba” é popularmente conhecida como um gesto falsamente involuntário, de quem toca ao outro com intenções libidinosas. O adjetivo “boba” é um qualificador de ingenuidade. O termo “bobo” remeteria aos bobos da corte que, na Idade Média, faziam graça para divertir os reis. Desse modo, a expressão na música funciona evocando a dissimulação, ou cumplicidade tácita, dessa tentação pelo outrem levada a termo. Como se, no momento de intimidade, a mão deslizasse sobre o corpo próximo, sem direção, de modo indolente, como uma forma de disfarçar o anseio, a avidez que sugere passar a mão sobre esse corpo. O corpo nu, significado em suas zonas erógenas, é percorrido por essas mãos que estão dispostas a encher-se e dar prazer. Retomando o falo, como esse imaginário da avidez de Exu, a mão boba seria aquela que furtivamente seguraria o falo, manipulando-o, acariciando-o até o jorro do gozo. O gozar sendo esse ponto de clímax, te encher de prazer.

O segmento da música “eu sei que você me conhece” é índice de que haveria uma relação consolidada, o verbo “conhecer” indica um vínculo, uma certa relação de pertencimento. Como também é opaco esse conhecimento, não diz qual ou quais tipos de vínculos, se é amoroso e/ou religioso, mas se revela uma identificação. “Você sabe onde pode me encontrar”, esse jogo discursivo de possibilidade descreve bem Padilha. Essa entidade eventual, que domina seu corpo e suas vontades, pode ser múltipla e se adequa a todo e qualquer espaço.

O verbo “saber” está presente nas duas orações da música. Isso funciona, de algum modo, como demonstração de conhecimento e relação entre as partes. “Eu sei” - “você sabe”, há então uma manifestação de domínio/propriedade. Em paráfrases, Padilha sabe que eu sei, assim como Eu sei que ela sabe ou Eu sei que Padilha sabe sobre mim, assim como eu sei sobre Ela. É um saber aludido entre esses sujeitos, uma alusão a um saber que não é dito, mas compartilhado. A cumplicidade entre os sujeitos tem a ver com o erotismo: Padilha demonstra, enquanto entidade religiosa, conhecer seus fiéis, assim como seus adoradores reconhecem conhecer a ela.

Retomando o termo npambu nzila traduzido como “entre caminhos”, “encruzilhadas”, e sua relação com a palavra pombagira, as ruas são dadas como espaço de morada dos Exus (femininas e masculinos), uma vez que a palavra nzila é traduzida como estrada/rua. Rufino (2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019., p. 108) diz que “o lugar que se abre e onde se cruzam os poderes que reinventam a vida enquanto possibilidade chama-se encruzilhada, vulgo encruza (…) a encruzilhada é onde se destroem as certezas, é, por excelência, o lugar das frestas e das possibilidades”. Por isso, na música, existe um fragmento que complementa a ideia do verbo “saber”, que Padilha diz que se pode encontrá-la “em qualquer esquina, em qualquer bar”. A esquina, então, faz menção a esse espaço da rua, sendo qualquer lugar, e o bar, a esse espaço de consumo de bebidas alcoólicas, retomando o consumo de cachaça mencionado anteriormente.

A invocação a entidades de candomblé e umbanda ocorre mediantes cânticos, rezas, danças, rituais, oferendas etc. É nesse cenário de festividade que comumente se fala em terreiros: chamar pelo santo/orixá/energia. E essa expressão se atribui à invocação, chamar pela entidade seria, então, na dimensão espiritual. E, na canção, há uma oração que resgata esse processo de espiritualidade. Quando a letra diz “basta meu nome você chamar”, ou seja, chamar pelo nome de Maria Padilha, seria uma possível invocação dessa entidade. Desse modo, o sujeito procura se conectar com a entidade invocada, buscando incorporar suas sabedorias. Então, ao chamar pela Padilha, ela se revela nos corpos por meio da incorporação. Com isso, teríamos uma interpelação da entidade pelos fiéis e dos fiéis pela entidade.

Como já mencionado, no processo de incorporar, as pombagiras utilizam de expressões jocosas para sinalizar sua chegada. Essas expressões são gargalhadas em tom alto, para demonstrar a sua potência, reverência e maneira de constituir as relações através da diversão. Saraceni (2020SARACENI, Rubens. Livro de Exu: o mistério revelado. São Paulo: Madras, 2020., p. 16) aborda que os Exus são um tipo de “energia que quando irradia para alguém, vitaliza-o, fazendo com que se sinta forte e vigoroso, feliz mesmo”. Por isso que Exu gargalha. E, na letra da música, para enfatizar esse gargalhar de Exu, há a expressão “hahahahaha”, a qual é muito utilizada na grafia digital para simbolizar o riso.

O riso pode funcionar como a supressão do limiar entre o sacro e profano, de modo que a derrisão, a jocosidade desfaz o endeusamento intocável, tornando a divindade mais cúmplice aos seus fiéis. Assim, como as mãos bobas deslizam sobre os corpos de modo indolente, o riso carregaria ou descarregaria sentidos mais espontâneos, de mais regozijo. Desse modo, a satisfação do riso pode ser aproximada ao gozo, ao ato de gozar, ao ápice de um prazer religioso e profanador.

Considerações finais

Em suma, Exu (feminina e masculino) pode significar uma entidade com sentidos eróticos, uma vez que suas relações com a genitália não estão ligadas somente ao ato sexual. Os modos de funcionamento do erotismo vinculados à análise da letra da música simbolizam Maria Padilha enquanto essa entidade concreta, tangível, próxima aos sujeitos, dotada de mecanismos de prazer e erotismo. Padilha mostra uma intimidade, uma cumplicidade, porque provoca a fabulação erótica nos sujeitos, a imaginação que se tece por meio do desejo. Além disso, sendo a rua, a encruzilhada seu lugar de identificação, a entidade assume sua proximidade com os sujeitos, sendo essa Deusa plural, múltipla, que se invoca em qualquer corpo, se assujeita em qualquer língua para dizer sobre si e sobre o outrem.

Na canção, com base nas investigações, é possível dizer que Padilha não se esconde enquanto entidade de caráter sensual. Embora o discurso sobre uma energia/entidade da promiscuidade circule nas ideologias religiosas dominantes, Padilha borraria esse funcionamento discursivo para afirmar suas condições de mulher livre e provocadora de prazer. Logo, se sua imagem é de uma diaba, Maria Padilha assume esse lugar e sua relação erótica. Portanto, na música, há uma fantasia sobre uma Padilha, enquanto Deusa que se anuncia como estritamente ligada às condições concretas e tangíveis dos sujeitos, uma vez que é próprio do humano, diferente dos outros animais, sua capacidade e necessidade de imaginar, criar, fantasiar nas relações sexuais. Padilha se assume como signo de reprodução e erotização.

O erotismo evocado na canção funciona provocando ou significando o descontrole de si, um desequilíbrio nos termos de Bataille (1987BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 1987.). Diversamente da religião cristã, que imporia um controle sobre si, um sacrifício de si, a imagem da entidade Exu-feminina parece levar a uma perda de si, por meio de provocações sensuais e eróticas, incitando uma entrega que desfaz momentaneamente os limites dos corpos, dos indivíduos e o limiar entre o profano e o sagrado religioso.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2023
  • Aceito
    29 Jan 2024
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