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Os contos de Canterbury, de Geofrey Chaucer, a partir do carnaval bakhtiniano: a esposa de Bath e a subversão de gênero feminino pela profanação do discurso bíblico

RESUMO

O objetivo do artigo é proceder a uma análise da personagem Alison, esposa de Bath, na obra Os contos de Canterbury, de Geofrey Chaucer. Para isso, com base em Bakhtin (2010, 2018), em particular a partir da perspectiva da carnavalização, somada à teoria da performatividade de gênero de Butler (1988, 2017), pretendemos mostrar como a referida personagem subverte, carnavalizadamente, certos textos bíblicos referentes ao papel da mulher no matrimônio. Dessa forma, nesse estudo, para efeito de análise, tomamos da obra chaucereana o prólogo da esposa de Bath visto que nele a personagem elabora, de modo mais evidente, sua relação tensa e, ao mesmo tempo cômica, com a Bíblia. Da análise feita, concluímos, assim, que a esposa de Bath, de maneira carnavalizada, performatiza o gênero feminino em pleno período medieval, mostrando-se subversiva aos estereótipos da época ao profanar certas orientações bíblicas, tanto do Velho como do Novo Testamento, relativamente ao que é ser mulher e esposa.

PALAVRAS-CHAVE:
Os contos de Canterbury; Esposa de Bath; Carnavalização; Performance de gênero; Profanação

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the character Alison, the wife of Bath, in Geofrey Chaucer’s The Canterbury Tales. To do this, based on Bakhtin (1984a, 1984b), especially from the perspective of carnivalization, together with Butler’s theory of gender performativity (1988, 1999), we intend to show how this character carnivalistically subverts certain biblical texts relating to the role of women in marriage. Thus, for the purposes of this study, we have taken the Wife of Bath’s prologue from Chaucer’s work, because in it she constructs her polemical more explicitly and the comic relationship with the Bible at the same time. From this analysis, we conclude that Bath’s wife, in a carnivalized way, performs the feminine gender in the middle of the medieval period, showing herself to be subversive of the stereotypes of the time by profaning certain biblical guidelines, from both the Old and New Testaments, regarding what it means to be a woman and a wife.

KEYWORDS:
The Canterbury Tales; The Wife of Bath; Carnivalization; Gender Performance; Profanation

Introdução

Uma mulher sem filhos participa de uma jornada acompanhada, majoritariamente, de homens. Embora seja viúva, a personagem já teve cinco maridos, e anuncia a todos no seu entorno que está à procura do próximo. Ela é irreverente, desdentada, mas rica, tendo angariado os seus bens no comércio de tecidos e na própria viuvez; anda a cavalo com calças vermelhas como escarlate. Tal descrição pode ser vista como contrária às expectativas morais e sociais para as mulheres mesmo nos tempos atuais, e é essa, muito provavelmente, uma das explicações pelas quais a esposa de Bath1 1 No prólogo da obra de Chaucer, a personagem é referida como mulher ou esposa de Bath (a depender da tradução do original “wife of Bath”). , personagem da literatura medieval inglesa de Geoffrey Chaucer, permanece atual e relevante, da cultura pop aos estudos acadêmicos (Turner, 2023TURNER, Marion. The Wife of Bath: A Biography. New Jersey: Princeton University Press, 2023.).

Chaucer, nascido por volta de 1343 e falecido em 1400, contribuiu significativamente para o desenvolvimento da literatura inglesa como conhecemos hoje. Isso porque, durante seu período como escritor, desempenhou um papel crucial na consolidação e popularização do inglês como língua literária (Batkie, 2021BATKIE, Stephanie L.; IRVIN, Matthew W.; SHUTTERS, Lynn (ed.) A New Companion to Critical Thinking on Chaucer. ArcHumanities Press, 2021.). Uma de suas principais contribuições foi sua obra mais famosa, The Canterbury Tales (Os contos de Canterbury, conforme traduzido, na edição bilingue que usamos aqui, de Paulo Vizioli), que se constitui de um conjunto de histórias contadas por peregrinos que viajam de Londres a Canterbury para visitar o túmulo de Thomas Becket. A obra é notável por sua variedade de personagens, que representam uma ampla gama de classes sociais e de profissões da época medieval, abrindo o espaço da praça pública para a construção de uma cosmovisão carnavalesca (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.; 2018).

The Canterbury Tales, datada de cerca de 1380, é uma obra canônica marcada pelo diverso, sintomática do turbulento período de transformações religiosas, políticas e tecnológicas de seu tempo. O manuscrito mais famoso da obra é o mais antigo de que se tem notícia - The EllesmereManuscript- até hoje serve como referência para as mais respeitadas edições modernas da obra, como a coletânea completa de Chaucer The Riverside Chaucer e a tradução brasileira de Paulo Vizioli, Os Cantos de Canterbury. Usaremos essas edições para a análise aqui proposta, visto serem mais próximas do manuscrito Ellesmere2 2 Embora o manuscrito Ellesmere não seja considerado o primeiro produzido para publicar The Canterbury Tales, ele permanece sendo a mais frequente referência desta obra de Chaucer. Não há, atualmente, indícios de outros manuscritos com data da época de Chaucer, no fim do século XIV, de modo que, sendo o Ellesmere datado do início do século XV, permanece sendo a mais antiga cópia da obra completa de que se tem notícia, estando hoje na Biblioteca de Huntington, em San Marino, California (Simpson, 2022). . Nele, encontramos a obra dividida em dois momentos: o prólogo geral (onde o narrador principal apresenta ao leitor os personagens); e as histórias que cada personagem conta, sendo estas precedidas do seu próprio prólogo. É então que cada personagem assume o papel de narrador, revelando sua identidade, sua perspectiva de mundo, suas opiniões e seus valores.

Cabe, no entanto, destacar que, nos prólogos e nas narrativas enunciadas pelas personagens, há apenas quatro mulheres que assumem o papel de narradoras. Ademais, quase todas têm sua posição enquanto enunciadoras legitimadas pelo discurso moralista ou pela sua posição social de privilégio marcada pela religião, como freiras ou prioresas - com exceção da esposa de Bath. Assim, a própria estrutura da obra confere protagonismo à esposa de Bath, razão pela qual escolhemos concentrar a presente análise na referida personagem. De fato, embora apareça apenas em um dos 24 contos que compõem o corpo total do texto de The Canterbury Tales, a esposa de Bath oferece amplo espaço para a análise tanto da performance de gênero quanto do caráter carnavalesco da obra, conforme veremos adiante3 3 Importa aqui já salientar que, embora a carnavalização de modo geral, em seus diversos aspectos, ajude na construção dessa personagem, dado que este artigo pretende investir mais na ideia de como a mulher de Bath subverte o texto religioso bíblico, concentraremos nossa análise, sobretudo, na categoria carnavalesca da profanação, pela qual, portanto, poderemos ver de que forma se dá a relação inortodoxa que a personagem desenvolve com o texto sagrado cristão. .

Diante disso, o objetivo do presente artigo é proceder a uma análise da personagem Alison, a esposa de Bath, à luz do conceito bakhtiniano de carnavalização e da teoria da performatividade de gênero de Butler, a fim de compreendermos como se dá, nesse espaço literário, a subversão do gênero feminino pela profanação do discurso bíblico.

Assim, para efeito de organização do artigo, além dessa seção introdutória inicial, que nos serviu para a contextualização da nossa temática, e da seção de conclusão, que cumprirá o propósito de arrematar, de forma breve, o que foi discutido ao longo do texto, elaboramos quatro seções: na primeira ,mostraremoso lugar da Bíblia e do discurso religioso no contexto histórico e social de Geoffrey Chaucer na Inglaterra do século XIV. Em seguida, para sedimentar nosso aporte teórico de análise, reservaremos duas seções: a primeira em que discutiremos a teoria da carnavalização na esteira bakhtiniana, em especial a profanação carnavalesca; e depois uma outra seção, a segunda, para discorrer sobre a teoria da performatividade de gênero segundo a orientação butleriana; tudo isso com o propósito de compreendermos o tratamento dado ao discurso bíblico pela esposa de Bath no prólogo da obra de Chaucer. Finalmente, na quarta seção, analisaremos como, em seu prólogo, a personagem profana o texto bíblico não por querer contradizê-lo, mas por reinterpretá-lo, a partir de uma cosmovisão carnavalesca, quanto ao papel da esposa no casamento e quanto à sexualidade feminina numa sociedade em que o homem goza de privilégios e de direitos sobre a mulher.

1 A Bíblia e o discurso religioso na Idade Média4 4 Por “Idade Média”, referimo-nos, neste artigo, ao período entre 500 AD a 1500 AD. Ressaltamos, porém, que a discussão histórica que aqui apresentamos tem a finalidade de prover contexto ao texto para análise da obra de Chaucer sobre a esposa de Bath em The Canterbury Tales. Consequentemente, concentramo-nos no fim da Idade Média, ou “Baixa Idade Média” (período compreendido entre os séculos XI a XV), em vez da “Alta Idade Média” (período entre os séculos V a X), conforme a orientação do historiador Jacques LeGoff (2007). inglesa

Embora, no medievo, a Bíblia não tenha sido popularizada no sentido de haver alcançado as mais variadas camadas sociais, como sugere a Vulgata (como ficou conhecida a tradução das Escrituras Sagradas para o latim feita por São Jerônimo), todavia, entre intelectuais como Chaucer, não apenas traduções, mas também gêneros diversos de textos sobre a Bíblia haviam se tornado comuns nesse período. Entre tais gêneros discursivos, podemos destacar, por exemplo, auxílios de leitura, comentários, livros de citações bíblicas por assunto5 5 Besserman (1998) menciona, entre os gêneros derivados do texto bíblico, recursos vernaculares para ler a Bíblia (tais como gospel harmonies, distinctiones e concordances), além de livros derivados da Bíblia (por exemplo, a Bible moralisée, Biblia pauperum, and Speculum humanae salvationis), tornando o acesso à paráfrases, a citações e a trechos específicos por assunto mais dinâmico. Para mais detalhes sobre tais gêneros discursivos, ver Besserman (1998). .

Além disso, conforme Besserman (1998BESSERMAN, Lawrence. L. Chaucer’s Biblical Poetics. Norman, Okla: University of Oklahoma Press, 1998. ISBN 9780806130682. Disponível em: https://search-ebscohost-com.access.library.miami.edu/login.aspx?direct=true&db=nlebk&AN=15245&site=ehost-live. Acesso em: 10 ago. 2023.
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), as próprias edições do texto sagrado dispunham de recursos que ajudavam os leitores e estudiosos a encontrar informações específicas, índices e referências sobre os textos sagrados. Assim, aos poucos, o acesso ao discurso bíblico se expandiu, permitindo que autores diversos tivessem acesso a versões menores e mais baratas da Bíblia. Besserman (1998), nesse sentido, afirma que é provável que Chaucer possuísse uma Bíblia em formato menor, ou pelo menos tenha tido livre acesso a livros de referências bíblicas. Isso, possivelmente, explicaria a riqueza de detalhes da narrativa bíblica e do seu uso frequente de paráfrases e referências ao texto bíblico que o autor inglês explorou não apenas em The Canterbury Tales, mas também em obras anteriores, tais como Troilus and Criseyde6 6 Troilus and Criseyde (escrito provavelmente entre 1381-1386) foi o poema mais longo de Geoffrey Chaucer. A obra é uma adaptação de Il Filostrato, de Giovanni Boccacio, que narra a história de um romance trágico durante a guerra de Troia. Troilus, um príncipe guerreiro troiano que se apaixona por Criseyde, filha de um líder religioso acusado de traição a Troia. O poema é rico em referências a símbolos e acontecimentos bíblicos, conforme explica, em mais detalhes, Besserman (2015). .

Além disso, o discurso bíblico era quase onipresente na sociedade nos tempos de Chaucer. Isso significa que sua audiência e seus leitores tinham contato constante com a cosmologia cristã, fosse através dos gêneros escritos, fosse através de sermões e da liturgia cultivados na Igreja Católica, bem como através da arte financiada pelo patronato eclesiástico.

Dessa forma, o imaginário bíblico era utilizado persistentemente para conferir autoridade e incontestabilidade às normas religiosas e políticas de então. Isso incluía a normatização do papel da mulher, especialmente quanto à sua sexualidade, no sentido de constranger seu prazer, suas capacidades reprodutivas e seus corpos. Garret (2013) afirma, a este propósito, que o discurso intelectual, jurídico e político, no período medieval, derivava do religioso e se baseava no texto bíblico para estigmatizar a mulher como um ser inferior, inerentemente carnal e pecadora, e, dessa forma, vista como uma ameaça constante à disciplina e à honra do homem cristão.

Nesse cenário, ao mesmo tempo que o discurso cristão permeava a vida do indivíduo medieval, o contato com a literatura bíblica se expandia, o que, consequentemente, conferia ampla oportunidade para que vozes não-litúrgicas, incluindo artistas, interagissem com a Bíblia, ainda que fosse com abordagens pouco ortodoxas aos preceitos do livro sagrado cristão. De fato, textos bíblicos e seus comentários são comumente utilizados como recursos textuais e discursivos para a construção da obra de predecessores de Chaucer, tais como Dante, Boccaccio e Cervantes, cujas obras serviram de inspiração para o escritor inglês.

Entretanto, Chaucer, em particular, torna o discurso bíblico impregnado de humor e de riso e, ao mesmo tempo, imbrica com as sagradas escrituras as narrativas e as crenças pagãs, oferecendo, por conseguinte, interpretações alternativas e pouco ortodoxas do texto bíblico7 7 Conforme pontua Minois (2003), na tradição judaico-cristã, o riso pode assumir um caráter diabólico quando é entendido como um “verdadeiro insulto à criação divina, uma espécie de vingança do diabo, uma manifestação de desprezo, de orgulho, de agressividade, de regozijo com o mal” (p. 13). . A partir disso, Chaucer se utiliza da autoridade bíblica para defender comportamentos moralmente condenados em sua época, como veremos na análise da fala e da ação da mulher de Bath. É através dessa estratégia que florescem as ambiguidades marcantes da personagem, que ora aparenta ser uma revolucionária protofeminista, ora parece atuar de modo a repetir os estereótipos da imagem da mulher como tentação masculina tão fortemente cultivadas no período medieval. Essa ambivalência é também característica de uma cosmovisão carnavalesca na esteira bakhtiniana, que, como exploraremos mais adiante, permite o modo de ser subversivo da mulher de Bath com seu discurso profanador de certos preceitos bíblicos.

Passemos, então, a uma breve discussão do que consiste o carnaval na perspectiva bakhtiniana, dando ênfase às suas peculiaridades que arquitetam o profanar da esposa de Bath.

2 A esposa de Bath pelas lentes da cosmovisão carnavalesca

Em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento8 8 Sobre as condições históricas da produção dessa obra, ver Grillo (2022). , Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.) se debruça sobre a obra do escritor francês François Rabelais, do século XVI, e examina a relação entre a cultura cômica popular e a literatura, mostrando as múltiplas manifestações dessa cultura carnavalesca nesse período através das formas de ritos e espetáculos ocorridos na praça pública; das obras parodísticas escritas em latim oficial e vulgar; e das inúmeras formas e dos gêneros produzidos com linguagem familiar e grosseira, permeada pelo vocabulário do baixo corporal.

Com isso, o pensador russo argumenta que a cultura cômica popular desempenha um papel crucial na formação e na transformação da cultura oficial, enfatizando a importância do riso e a coexistência democrática de diferentes vozes na cultura cômica popular. A carnavalização está, pois, intimamente ligada à cultura popular e ao riso, visto que, durante o carnaval, as normas sociais são temporariamente suspensas, permitindo que vozes marginalizadas e subalternas se expressem. O carnaval é, assim, um momento de inversão, quando os papéis sociais são subvertidos, as hierarquias são desafiadas e as vozes excluídas encontram espaço para serem ouvidas9 9 É importante ressaltar, porém, que, para Bakhtin, o carnaval não é um espetáculo, ou uma performance limitada a um palco, artificial e montada. Bakhtin compreende o carnaval como uma cosmovisão, sendo ele, então, um mundo flexível, “às avessas”, desprendido de pudor moral ou das restrições sociais hierárquicas. Manifesta-se, por sua vez, através de contextos e em espaços específicos, onde as fronteiras entre o oficial e o cômico se dissolvem, a saber: os ritos e espetáculos populares, obras cômicas (tanto orais quanto escritas), e nas diversas formas e gêneros do vocabulário popular familiar e grosseiro. .

Em Problemas da poética de Dostoiéviski10 10 Para um panorama das diversas edições e retraduções dessa obra feitas diretamente da língua russa por Paulo Bezerra para o português do Brasil, consultar Brait (2021). ,Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.) dedica-se também a explorar a literatura carnavalizada. Aqui, o autor nos apresenta categorias que constituem a visão carnavalesca de mundo, as quais, embora possam ser percebidas com diferentes níveis, estão intrinsecamente interligadas. São elas: o contato familiar (quando as desigualdades sociais e limites hierárquicos são demolidos), a excentricidade (quando o escandaloso e o obsceno estão em evidência), as mésalliances (quando, pela aproximação dos contrários, há contato entre elementos que, em outras circunstâncias, estariam separados, como o sagrado versus o profano) e, por fim, a profanação (quando, através dos sacrilégios, do livre movimento entre céu e inferno ou das paródias de textos sagrados, por exemplo, as ações carnavalescas são construídas).

De acordo com Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.), no contato familiar, os participantes do carnaval têm as distâncias e fronteiras hierárquicas demolidas temporariamente entre si. Embora no contexto do carnaval sejam destacados eventualmente certos títulos e funções, isso é feito de modo proposital, de forma que provoque o riso e o escárnio às hierarquias representadas. Dessa maneira, desenvolve-se uma “familiaridade”, um senso de proximidade e de igualdade entre os sujeitos que participam desse momento festivo. Dessa forma, durante o carnaval, suas preocupações cotidianas quanto à classe e função social são diluídas, bem como as limitações em relação à idade, às riquezas e a outras demarcações sociais. No contexto medieval, essa característica carnavalesca tem um potencial subversivo marcante, visto ser esta uma sociedade com poucas possibilidades de mobilidade social, estruturada, tão fortemente, numa divisão comunitária estritamente hierárquica.

Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.) também explica que a excentricidade assume “um caráter solene e festivo” (Bakhtin, 2010, p. 177), através do exagero, por exemplo. No carnaval, são frequentes os banquetes festivos, a comilança, as palavras grosseiras dos insultos e do baixo corporal; a aliança da morte e da vida florescendo abundantemente, tudo embalado pelo ritmo do riso. Não à toa que Bakhtin descreve a ambivalência nessa excentricidade carnavalesca como “a festa da morte-ressurreição” (Bakhtin, 2010, p. 177), onde o velho e o novo se chocam e convivem de modo ambivalente.

Nesse ambiente, por consequência, também se encontra frequentemente o que Bakhtin caracteriza como mésalliances. O teórico destaca, com as mésalliances, que o carnaval não apenas remove as fronteiras entre os diferentes status sociais, mas cria, paradoxalmente, um ponto de vista livre e familiar em relação a tudo. Isso significa que, dentro do território do carnaval, qualquer aspecto da vida real que estava distanciado de outro é aproximado no ato do contato carnavalesco, mesmo que seja considerado oposto na vida extracarnavalesca.

Finalmente, na categoria da cosmovisão carnavalesca da profanação, se encontram as paródias, as sátiras e os movimentos de dessacralização de textos oficiais, especialmente religiosos e bíblicos. Durante o carnaval, formas de expressão humorísticas, como a paródia e a sátira, são amplamente utilizadas visto que as pessoas são encorajadas a ridicularizar figuras de autoridade, instituições sociais e normas estabelecidas por meio de piadas, canções satíricas e performances cômicas.

Nesse respeito, é digno de nota que, ao analisar a obra de Rabelais, por exemplo, Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.) aponta que a carnavalização ocorre de modo “não-niilista, porém alegre e carnavalesca, que regenera e renova” (Bakhtin, 2010, p. 409). Isso ocorre, por exemplo, pelo uso de símbolos, imagens, vestes, textos e orações/preces considerados sagrados, mas atribuídos, no contexto do carnaval, a atividades não-sacras, corriqueiras, grotescas ou até mesmo transgressoras. Especialmente elementos linguísticos de uma linguagem sacra e oficial misturam-se ao discurso dos comuns, gerando sentidos diferentes e completamente novos em relação ao seu uso oficial11 11 Ao estudar o contexto histórico e social no período medieval em que a obra de Rabelais foi escrita, Bakhtin (2010) mostra, por exemplo, textos escritos vindos de uma tradição oral da cultura cômica popular que profanavam a Bíblia, como é o caso da Coena Cypriani, que, parodisticamente, encena um banquete para o qual são convidados personagens bíblicos. .

Dentre tais categorias, a profanação permeia significativamente a fala da esposa de Bath. Desde o início de sua narrativa, a personagem demonstra seu elo com festividades pagãs, ao, por exemplo, relembrar de modo nostálgico os tempos em que as pessoas temiam seres como fadas e duendes em vez de autoridades cristãs. Além do mais, a peregrinação, da qual a esposa de Bath participa, é palco para os prólogos, e as narrativas de The Canterbury Tales acontecem em abril, durante a primavera, quando coincidem a celebração pascoal cristã, bem como a festividade pagã do equinócio de primavera. A obra de Chaucer também exibe um caráter de transição, simbolizado pela estrada, a viagem em peregrinação que parte de um lugar “mundano” (a taberna Inn em Southwark) para um lugar sagrado (o templo de São Tomás Becket em Canterbury).

Desse modo, no presente artigo exploraremos a interação profana da esposa de Bath com textos sacros, quando, ao citar a Bíblia ou recontar narrativas bíblicas, procura ressignificar, muitas vezes de forma subversiva, os sentidos normatizados conforme o imaginário cristão de sua época.

Entretanto, para compreender a subversão performada pela esposa de Bath, é fundamental nos atentarmos às questões de subversão de gênero, o que faremos através da perspectiva dos estudos de performance, de John L. Austin (1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Trad. SOUZA FILHO, Danilo M. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.) e da teoria da performatividade, de Judith Butler (1988BUTLER, Judith. Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory. Theatre Journal. The Johns Hopkins University Press, Vol. 40, No. 4 (Dez., 1988), pp. 519-531. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3207893. Acesso em: 6 jan. 2021.
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). Dessa forma, veremos, a seguir, como os conceitos de performance e de performatividade se entrelaçam e contribuem para entendermos a profanação do discurso cristão dentro da cosmovisão carnavalesca em que emerge a esposa de Bath na literatura chaucereana.

3 A visão performativa da linguagem e a performatividade de gênero

Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.) reconhece o uso real da língua dentro do contexto dos gêneros da cultura cômica popular, sendo, dessa forma, capaz de abarcar possibilidades de mudança social para além dos enunciados através de estratégias textuais. Por exemplo, para ele, os gêneros discursivos nascem a partir da reiteração de performances no uso da língua, que são, por sua vez, influenciadas por contextos diversos, incluindo o gênero social12 12 Cabe distinguir dois usos distintos do termo “gênero”: o gênero social na perspectiva butleriana do gênero discursivo na visão bakhtiniana. , a classe social, a etnicidade, o tempo, o espaço, dentre outras variáveis (Bauman e Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. L. Poética e performance com perspectivas críticas sobre a linguagem e vida social. Ilha - Revista de Antropologia. Tradução de Vânia Z. Cardoso e Revisão de Luciana Hartman. UFSC, v. 8, n.1/2, pp. 185-229, 2006.). Dessa maneira, a linguagem não é um objeto que pode ser isolado e empiricamente estudado como propunham os estruturalistas (Ottoni, 1998). Mais do que isso, numa visão performativa da linguagem, não há cisão entre o sujeito e um outro (a que Ottoni refere-se como “não-eu”).13 13 Ottoni (2002) traduz a abordagem austiniana sobre a língua como “visão performativa”. Embora Austin (1990) tenha inicialmente proposto uma diferenciação da linguagem enquanto constativa (ou seja, que constata, descreve e nomeia a realidade) e/ou performativa (que executa ações, que age, ou performa), ele logo compreende que toda a linguagem é performativa, e é então que Austin determina o fim da separação entre sujeito e fala. É nesse momento da filosofia da linguagem de Austin que nos baseamos para entender o caráter performativo da língua, através do qual nós atuamos de fato em oposição a entendê-la como uma mera representação da realidade.

É através dessa percepção que Arbo (2021ARBO, Jade Bueno. Performance e Performatividade: Aproximações entre Judith Butler e J. L. Austin. Revista Prolíngua, vol. 16, n. 2, ago/dez 2021.) elabora um paralelo e um diálogo entre a teoria austiniana dos atos de fala e a teoria da performatividade de gênero. Da mesma forma que a doutrina das infelicidades de Austin expõe os padrões e as expectativas dos atos de fala, a matriz de inteligibilidade de gênero proposta por Butler busca revelar as normas de gênero por ocasião da quebra de tais normas, o que ela chama de “performatividade de gênero”. Em 1988, a autora publicou um artigo considerado a gênese de sua teoria: Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory (1988). Nessa obra, ela examina como os atos performativos de linguagem contribuem para a constituição do gênero e questiona as noções de essência e estabilidade na identidade de gênero, - noção fundamental para este trabalho, conforme veremos adiante.

Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 13.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.), posteriormente, introduz e desenvolve extensivamente a teoria da performatividade de gênero14 14 Aqui cabe destacar que, ao se referir à performance de gênero, Butler não está sugerindo que a identidade de gênero é uma performance, de caráter teatral e artificial que partiria do sujeito. Pelo contrário, a autora sustenta que a performance preexiste ao performer, de modo que tal performance remete a conceitos filosóficos específicos, tais como a teoria austiniana que, conforme abordamos, defende uma visão performativa da linguagem (Salih, 2012). . Ela examina como o gênero é construído e mantido por meio de performances repetidas e questiona a noção de uma identidade de gênero essencial ou estável (Salih, 2012SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.). Dessa forma, Butler entende gênero não como algo inato ou fixo, argumentando que o gênero é uma construção social e performática, ou seja, é criado e mantido através de práticas repetidas e normas sociais. Para isso, a filósofa destaca a importância do corpo e da linguagem na construção do gênero, argumentando que nossas identidades de gênero são moldadas por meio de performances repetidas de feminilidade ou de masculinidade. Ela desafia a ideia de uma identidade de gênero estável e argumenta que o ele é uma performance contínua, sujeita a múltiplas interpretações e possibilidades, conforme discutiremos a seguir. Dessa forma, Gender Trouble (Butler, 2017) tem um caráter político e subversivo, uma vez que desafia as normas de gênero impostas pela sociedade.

Para Butler, o gênero é um efeito, ou uma ilusão de estabilidade sustentada por um conjunto de atos no contexto do tecido social e discursivo. Para ela, não há diferença entre sexo biológico e gênero social, pois não há uma “essência” ou um gênero “verdadeiro” ou “original”, apenas a aparência de estabilidade pela repetição das normas de gênero. Butler entende que os atos repetidos e reforçados constituem uma performance (Arbo, 2021ARBO, Jade Bueno. Performance e Performatividade: Aproximações entre Judith Butler e J. L. Austin. Revista Prolíngua, vol. 16, n. 2, ago/dez 2021.; Salih, 2012SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.), ao passo que o termo “performatividade” alude ao poder que o discurso tem de produzir aquilo que nomeia, de modo que, como proposto por Austin, não há uma linguagem que representa ou que intermedia a realidade, mas que atua sobre ela.

Dessa forma, Silva, Ferreira e Gonçalves (2021SILVA, Elayne G.; FERREIRA, Dina M. M.; GONÇALVES, João Batista C. Bakhtin e Butler dialogam em torno da construção discursiva do gênero: uma rede dialógica de atos repetidos. In: GONÇALVES, J. B. C.; SILVA, E. G.; AMARAL, M. R. S.; PONCIANO, J. A. Análise dialógica do discurso em múltiplas esferas da criação humana, pp. 303-318. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021.) sustentam um diálogo entre a teoria da performatividade butleriana e a perspectiva bakhtiniana da repetição paródica dos atos de gênero através de uma análise da linguagem enquanto lugar de materialização dos efeitos de gênero. Para Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), conforme comentamos acima, não há distinção entre o eu e o outro na medida em que o discurso do sujeito retoma sempre, dialogicamente, o discurso de outrem. Defendemos aqui, portanto, que o diálogo já proposto por Butler entre sua performance de gênero e a performance austiniana se beneficia e permanece em construção junto à perspectiva de Bakhtin de uma linguagem dialógica e parodística, que reconstrói e se reitera a partir de uma série repetitiva de atos.

Entretanto, em nosso objeto de estudo, ainda outro aspecto orienta também, de modo significativo, nossa análise. O contexto de produção do texto da esposa de Bath e de seu prólogo não apenas fazem parte de sua construção discursiva, mas ecoam dois aspectos da performance de gênero da mulher medieval: os estereótipos negativos de feminilidade, em especial, o da bruxa da representação literária de mulheres subversivas, tal qual a esposa de Bath.

4 Análise da representação da esposa de Bath como mulher profanadora do discurso bíblico-cristão a partir da perspectiva do carnaval e da teoria butleriana da performatividade de gênero

Iniciaremos a análise destacando o aspecto profano da esposa de Bath que já nos é anunciado pelo seu vocativo15 15 É importante destacar que o nome da mulher de Bath tem diversas ortografias possíveis, mesmo dentro do mesmo livro. Embora ela não se apresente diretamente ao longo de sua narrativa, ao descrever diálogos com seus maridos, ela revela ter sido chamada de “Alis” e “Alisoun”. O narrador principal, na ocasião do prólogo geral, não atribui à personagem nenhum nome próprio, referindo-se a ela apenas como “esposa de Bath”. . Embora a constante referência a ela ser “a esposa de Bath” em vez de seu primeiro nome, tal escolha não é genérica. Bath é a cidade de onde ela vem, desprendendo-a, assim, da figura de um marido cujo sobrenome ela poderia carregar.

Além disso, Alison enfatiza, desde os primeiros versos, que entende sua posição como privilegiada por sua experiência ao longo de cinco casamentos, tendo sido seu primeiro aos doze anos de idade. Além disso, ela destaca que teve como maridos homens “valiosos”, de diferentes classes sociais, através dos quais ela pode não somente navegar por classes sociais diversas, mas também construir seu próprio patrimônio ao ser viúva diversas vezes. O casamento é o tema que conecta tematicamente a subversão de gênero em dois aspectos principais, conforme veremos, através da dessacralização do texto bíblico e da enunciação de sua genitália.

Evidentemente, tal comportamento não era visto com bons olhos pela sociedade de seu tempo, e argumentamos aqui que a atmosfera carnavalesca é determinante para que seu comportamento e existência subversivas se manifestem. Na tentativa de justificar sua condição perante as normas morais de seu tempo, ela se apropria do texto bíblico, argumentando que ele é a base para concluir que sua jornada através de diversos casamentos não constitui pecado.

Por exemplo, a escolha da passagem bíblica16 16 Para essa pesquisa, utilizamos a tradução para o português da Versão Católica (disponível em https://bibliaestudos.com/vc/), para nos alinharmos à provável versão da Bíblia que Chaucer teria tido como referência a Vulgata em latim, conforme Besserman (1998), visto ser a Inglaterra, na época de Chaucer, ainda uma nação católica. para embasar o ideal de matrimônio vem daquilo que ela conta ter ouvido - apenas recentemente - sobre Jesus ter comparecido a apenas um casamento conforme os Evangelhos, criando um “precedente” para que se pudesse passar pelo matrimônio apenas uma vez na vida. É inusitado que ela aponte este relato como evidência, visto que, no relato original (Jo. 2), Jesus era um convidado, e não o próprio noivo. Dessa forma, dificilmente ele seria visto como um parâmetro de conduta para os casados no contexto dessa narrativa em particular. Por outro lado, a mulher de Bath se utiliza de outro trecho dos Evangelhos para exibir uma visão “cristã” em que múltiplos casamentos não são pecados.

De acordo com a narradora, a conversa que Jesus teve com uma mulher samaritana (Jo. 4), quando Jesus, falou, com naturalidade, a respeito dos maridos que a samaritana havia tido, revela que não há um número certo de vezes que alguém deve se casar. Além disso, o quinto homem com quem a samaritana vivia não era, de fato, seu marido, o que nem Jesus nem sua interlocutora revelam o porquê. Daí a esposa de Bath concluir que tais elipses no texto bíblico dão margem para interpretações diversas da parte dos homens, que se aproveitam dessa “abertura” para interpretação. Dessa forma, ela se recusa a obedecer a suposta ordem de casar-se apenas uma vez, após ter refutado as bases bíblicas para essa crença. Em vez disso, ela afirma reconhecer apenas a ordem divina de crescer e se multiplicar, a qual ela afirma “conhecer bem”, enfatizando a sua experiência sexual. Dessa forma, a narrativa bíblica do matrimônio monogâmico é diluída - subvertida - através de uma argumentação baseada no próprio texto bíblico e na performatividade de gênero da personagem principal.

Mesmo que ela, posteriormente em sua fala, se refira ao trecho de Gênesis, que é tomado como a primeira referência bíblica ao casamento monogâmico - a saber, a criação de Eva - o faz usando apenas como base de seu contra-argumento, como pode-se perceber no seguinte excerto:

“[…] he seyde myn housbonde
Sholde lete fader and mooder and take to me.

But of no name mention made he,
Of bigamye, or of octogamye”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 388).17 17 Tradução em português: “[...] também sei que Ele mandou que meu marido deixasse pai e mãe para unir-se a mim. Mas não fez qualquer alusão a números, se podia ser bigamia ou 'octogamia'. Sendo assim, porque é que todo mundo critica quem se casa muitas vezes” (Chaucer, 2014, p. 389).

Fora do contexto do carnaval, tal fala poderia facilmente ser classificada como herética. Tomemos como evidência o pensamento de Tomás de Aquino (2016AQUINO, Tomás de. Summa de Teologia. Tradução de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia, MG: EDUFU, 2016.), um dos mais influentes teólogos cristãos do fim da Idade Média. Para ele, relações conjugais estáveis e monogâmicas constituíam a única forma “natural” para que a humanidade pudesse gerar e criar filhos, e, por extensão, uma sociedade (Witte, 2019WITTE, John. Church, State and Family: Reconciling Traditional Teachings and Modern Liberties. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. DOI: https://doi.org/10.1017/9781316882542. Acesso em 27 de Agosto de 2023.
https://doi.org/10.1017/9781316882542...
). Assim, a esposa de Bath trata com “naturalidade” a perspectiva de que alguém, quer homem quer mulher, se case múltiplas vezes. Dessa forma, enquanto Tomás de Aquino defende que o casamento heterossexual monogâmico é uma predisposição natural da humanidade, a esposa de Bath, de modo contrário ao ensinamento bíblico, prevê que as pessoas naturalmente possam contrair matrimônio para além das limitações previstas pela Igreja. De fato, para ela, ao dizer a Bíblia que “deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne” (Gen. 2: 24), não estabelece o texto sagrado um limite para quantas vezes isso poderia ocorrer.

A estratégia de utilizar o texto bíblico e a tradicional interpretação da Igreja apenas como conteúdo sobre o qual discordar e contra-argumentar é constantemente presente na fala da mulher de Bath. Enquanto na apresentação que o narrador principal faz da personagem (no Prólogo Geral) se concentra na vestimenta, no corpo, nos estereótipos e na condição financeira de Alison, ela, enquanto narradora, inicia seu texto por apresentar seu pensamento sobre o casamento. Dado que a esposa de Bath alega ter ouvido o texto bíblico e as obras clássicas (greco-romanas) como base para a violência que seus maridos lhe infringiram, ela usa sua voz para inverter, ou subverter, o cânone de modo a adequá-los a seu favor. Percebe-se, portanto, que o discurso da mulher de Bath articula “um ato cômico de praça pública” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 166), em que usa do texto oficial bíblico de modo a dessacralizá-lo para que possa adaptar-se às suas intenções. Dessa forma, a linguagem do sagrado se mistura à defesa da poligamia e da sexualidade aflorada.

Podemos ainda recorrer a outro exemplo de uso de preceitos cristãos para o casamento, quando Alison cita, de modo animado, os prazeres de Salomão com suas inúmeras concubinas, e a bigamia de Lameque, Abraão e Jacó, que não os impediu de serem considerados “homens de Deus”. Além das referências a personagens do Velho Testamento, ela ainda traz à atenção, o pensamento do apóstolo Paulo sobre o manter-se virgem até o casamento. Para ela, casar ou não casar é uma questão de escolha, uma performance, dotada de intencionalidade e de agência da parte do sujeito, mesmo que seja o sujeito feminino, como se observa no trecho a seguir.

“I graunte it wel; I have noon envie,
Thogh maydenhede preferre bigamye.
It liketh hem to be clene, body and goost;
Of myn estaat I nyl nat make no boost”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 390).18 18 Tradução em português: “De minha parte, posso garantir-lhes que... não tenho inveja alguma da virgindade: quem quiser ser puro de corpo e alma que o seja” (Chaucer, 2014, p. 391).

A citação revela a opinião de Alison sobre o celibato e a virgindade (maydenhede, ou, em inglês moderno, “maidenhood”), bem como sua atitude em relação ao casamento e sua própria posição na sociedade :embora a esposa de Bath afirme anteriormente que reconhece que o celibato é considerado superior ao casamento, ela não o considera desejável para si. Alison sabe que o celibato era considerado uma escolha mais sagrada e virtuosa, enquanto o casamento era visto como uma concessão para aqueles que não podiam ou não queriam adotar a vida religiosa. No entanto, ela declara que não sente inveja da virgindade, indicando que ela não deseja ser pura de corpo e alma, posicionando-se como uma mulher que valoriza sua própria experiência sexual e o prazer que ela encontra no casamento. Essa afirmação mostra que a personagem não considera a virgindade como um ideal superior ou desejável, mesmo que essa posição se oponha ao discurso normativo da Igreja. Com essa atitude, ela reconhece, portanto, estar em discordância desta regra, embora suavize seu discurso ao dizer que não se orgulhava disso. Na verdade, o termo boost (em inglês moderno, “boast”) aqui em uso não necessariamente significa que ela tinha vergonha de sua condição, mas apenas descreve uma suposta atitude “humilde” em relação a isso, ou seja, ela não se gaba de sua posição - o que pode ser também interpretado como uma crítica àqueles que se vangloriam de sua virtude ou superioridade moral devido à sua escolha de celibato ou castidade. A esposa de Bath rejeita a ideia de que o status social ou moral esteja ligado à sexualidade ou à ausência dela.

Tal recorte permite-nos ver ainda outra característica marcante do discurso da mulher de Bath: a constante contradição. Embora afirme que “não se gaba” de sua condição de mulher casada múltiplas vezes, ela já havia afirmado anteriormente, ao expressar admiração pela poligamia de Salomão, que ela mesma já havia casado cinco vezes e estava amplamente disposta a casar-se uma sexta vez. Essa contradição constante se repete ainda quando a personagem se refere ao matrimônio: ora exclama em favor dos prazeres sexuais ou financeiros adquiridos através do casamento; ora aponta o matrimônio como o maior dos martírios.

Entre as referências ao texto bíblico que tratam do casamento como uma fonte de prazer “autorizada”, encontramos a menção da presença de Jesus em um casamento em Caná (Jo. 2:1), onde ele realiza seu primeiro milagre; quando Alison afirma conhecer bem a ordem divina de “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, e enchei a terra” (Gn. 1:28); e até mesmo menções a profetas e “homens de Deus” bígamos e polígamos presentes no Velho Testamento, que vão desde o Rei Salomão, até Abraão, Jacó e Lameque - todos personagens fundamentais na tradição judaica.

Posteriormente, Alison se utiliza das palavras de Paulo para defender seu posicionamento. Por exemplo, ela explica que a cada servo de Deus uma dádiva diferente foi concedida (sendo a virgindade, portanto, não possível para todos os cristãos), de modo que ela não comete pecado ao escolher o casamento e a vivência de sua sexualidade, embora não seja, a seu ver, o proceder “perfeito”, ou moralmente superior, como expressa no trecho a seguir.

“And everich hath of God a propre yifte --
Som this, som that, as hymliketh shifte.
Virginitee is greet perfeccion,
And continence eek with devocion, …
And lordynges, by youre leve, that am nat I.
I wol bistowe the flour of al myn age
In the actes and in fruyt of mariage”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 390).19 19 Tradução em português: “Deus tem muitos caminhos para chamar-nos a Si, concedendo a cada um uma dádiva diferente, a um isto e a outro aquilo, conforme a sua vontade. A virgindade, ligada à devoção e à abstinência, pode significar a perfeição; [...] e, com a devida licença, cavalheiros, eu não desejo. Prefiro ver a flor da minha existência frutificar nos atos do matrimônio” (Chaucer, 2014, p. 391).

Porém, Alison emprega as palavras de Paulo de modo a expor o casamento como algo negativo. Isso porque, como ela mesma menciona, embora para o apóstolo seja “melhor casar do que abrasar-se” (I Co.7: 9), a virgindade permanece como uma forma “superior” de conduta cristã. Além disso, a esposa de Bath faz referência ao ponto de vista do apóstolo de que o casamento é um flagelo, ou um martírio. Afora isso, ela dessacraliza o texto bíblico quando contrapõe Cristo a Paulo, sugerindo que, embora o Messias tenha acedido ao celibato, ele não determinou que isso fosse um modelo para todos. A força desse argumento consiste na construção discursiva que coloca Cristo acima de Paulo em termos de autoridade. Com efeito, para Alison, se nem o filho de Deus determinou regras sobre o celibato para todos os cristãos, pouco poderia Paulo fazê-lo.

Ademais, Alison relata que um de seus maridos lia, em voz alta, textos bíblicos e tratados filosóficos greco-romanos, com o objetivo de coibir seu comportamento, sugerindo uma ameaça de que ela deveria se encaixar em tais perfis transgressores denunciados por autores como Paulo. Numa dessas ocasiões de leitura em voz alta, ela relata ter respondido com sua opinião a respeito da visão de Paulo sobre o comportamento e o lugar da mulher, por responder a seu marido nos seguintes termos:

“Thou seyst also, that if we make us gay
With clothyng, and with precious array,
That it is peril of oure chastitee;
And yet -- with sorwe! -- thou most enforce thee,
And seye thise wordes in the Apostles name:
‘In habit maad with chastitee and shame
Ye wommen shul apparaille yow,’ quod he,
‘And noght in tressed heer and gay perree,
As perles, ne with gold, ne clothes riche.’
After thy text, ne after thy rubriche,
I wolnatwirche as muchel as a gnat”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 398, 400).20 20 Tradução em português: “Você diz além disso, que quando nos vestimos bem, com trajes e joias de valor, colocamos em perigo a nossa castidade, reforçando essa afirmação infeliz com a citação destas palavras do Apóstolo: ‘Da mesma sorte que as mulheres, em traje decente, se ataviem com modéstia e bom-senso, não com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso’. Dou menos importância que um mosquito a este seu texto ou às suas ordens” (Chaucer, 2014, pp. 399, 401).

O trecho mencionado pela personagem da esposa de Bath em “The Canterbury Tales” é uma referência a um trecho da Bíblia, extraído de uma epístola paulina: I Timóteo 2:921 21 O texto referido diz: “Do mesmo modo, quero que as mulheres usem traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade. Seus enfeites consistam não em primorosos penteados, ouro, pérolas, vestidos de luxo” (I Tim.2:9). . Ela está respondendo a alguém que acredita que, quando as mulheres se vestem com roupas e joias valiosas, elas estão colocando em perigo sua castidade. Sua opinião é claramente expressa quando ela diz que dá tanta importância a esta afirmação quanto se importa com um “gnat”, ou um mosquito. Com essa afirmação, ela está rejeitando a ideia de que usar roupas e joias valiosas possa levar à perda de castidade - rejeita assim tanto a fala sexista de seu marido controlador quanto o próprio texto bíblico. A personagem da esposa de Bath é conhecida por seu estilo de vida extravagante e por sua vontade de desafiar as normas sociais da época. Ela é uma mulher confiante e autoafirmada, que acredita em aproveitar as coisas boas da vida. Para a personagem, a riqueza e a aparência são aspectos importantes de sua identidade e ela não vê nenhuma contradição entre se vestir bem e manter sua castidade.

Entretanto, é importante ressaltar que, apesar da inerente ambivalência na atitude de Alison em relação ao casamento, ambas as perspectivas se alinham com as experiências que ela relata ter vivido enquanto esposa. Embora ela tenha conseguido obter prazer sexual e benefícios financeiros através da viuvez, até mesmo conseguindo navegar na difícil escalada social, foi, dentro desses relacionamentos, que ela também viveu na pele a violência por parte dos maridos, tanto de modo verbal quanto de modo físico. De fato, ela narra como violência, sexo e dinheiro estavam entrelaçados. Um de seus maridos, jovem e letrado, abusava verbalmente dela com frequência, lendo, em voz alta, muitas vezes, textos da Bíblia e da filosofia greco-romana para defender um ponto de vista misógino sobre como tratar as esposas e lidar com mulheres em geral, usando sua leitura como ameaça a Alison. Em decorrência disso, Alison resolve se vingar.

“And whan I saugh he wolde nevere fyne
To reden on this cursed book al nyght,
Al sodeynly thre leves have I plyght
Out of his book, right as he radde, and eke
I with my fest so took hym on the cheke…
He yaf me al the bridel in myn hond,
To han the governance of hous and lond,
And of his tonge, and of his hond also”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 420, 421).22 22 Tradução em português: “Por isso, quando percebi que ele pretendia passar a noite inteira lendo aquele maldito volume, num impulso repentino arranquei-lhe três folhas do livro, enquanto ele ainda lia, e desferi-lhe tal soco no rosto que ele perdeu o equilíbrio e caiu de costas no fogo. (...) Ele entregou o cabresto em minhas mãos, confiando-me a direção da casa e das terras, bem como o controle de sua pessoa” (Chaucer, 2014, pp. 421, 423).

Conforme vimos no trecho acima, Alison sofre violência doméstica; mesmo assim afirma ter controle sobre o marido e sobre suas posses. Alison relata aqui aos seus colegas peregrinos uma versão da história quando ela foi sagaz, vingativa, de modo a performar o gênero de modo subversivo, o que só parece ser possível dentro dos limites do carnaval através do humor. Ela, com efeito, é o alvo da piada quando se coloca numa posição de domínio mesmo vivendo sob a constante ameaça de ser morta por violência doméstica. É nesse contexto que o gênero é performativo, pois aqui Alison refaz o discurso do papel da mulher e das possibilidades de poder no ambiente doméstico através da sua narrativa de si. Na verdade, o próprio comportamento de Alison, ao dessacralizar o texto sacro, parece ser uma inversão daquilo que seus maridos fizeram. Afinal, se eles puderam se utilizar da autoridade da palavra escrita para sustentar seus abusos, ela assume um papel de utilizar os mesmos, ou outros textos, com autoridade similar, para defender seu ponto de vista.

O fato de Alison fazer da estrada rumo a Canterbury praça pública para, em voz alta, refletir e compartilhar suas experiências e opiniões controversas, a constrói como uma personagem subversiva, performando o gênero de modo contrário às normas da época para as mulheres - especialmente se considerarmos que a maioria das outras personagens de Os contos da Cantuária eram homens.

Por outro lado, é inegável o efeito da constante contradição no discurso da mulher de Bath no sentido de enfraquecer sua confiabilidade. Ao apresentar falas divergentes sobre a violência que ela causa e que sofre, sobre sexualidade, casamento, entre outros temas centrais para a personagem, o leitor é levado a crer que não se trata de uma narradora confiável. No trecho a seguir, por exemplo, Alison revela direta e intencionalmente como ela manipulava seus maridos, por se utilizar dos estereótipos negativos da sexualidade feminina, como no exemplo a seguir, onde ela acusa o marido de infidelidade ao mesmo tempo que sugere que ela carece de roupas e adornos caros.

“But herkneth how I sayde:
Sire olde kaynard, is this thyn array?
Why is my neighebores wyf so gay?
She is honoured overal ther she gooth;
I sitte at hoom; I have no thrifty clooth.
What dostow at my neighebores hous?
Is she so fair? Artow so amorous?
What rowne ye with ouremayde? Benedicite!
Sire olde lecchour, lat thy japes be!
And if I have a gossib or a freend,
Withouten gilt, thou chidest as a feend,
If that I walke or pleye unto his hous!
Thou comest hoom as dronken as a mous,
And prechest on thy bench, with yvel preef!
Thou seist to me it is a greet meschief
To wedde a povre womman, for costage;
And if that she be riche, of heigh parage,
Thanne seistow that it is a tormentrie
To soffre hire pride and hire malencolie.
And if that she be fair, thou verray knave,
Thou seyst that every holour wol hire have;

She may no while in chastitee abyde,
That is assailled upon ech a syde.”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 396, 398)23 23 Tradução em português: “Mas ouçam o que eu costumava dizer "Escute aqui, oh velho preguiçoso, então é assim que se faz? Sabe por que a mulher do vizinho está sempre contente? É porque todos lhe dão atenção quando sai à rua! Ao contrário de mim, que nem posso sair de casa porque não tenho sequer um vestido decente para usar. E o que você vive fazendo na casa dela? Você a acha tão bonita? Está apaixonado? Valha-me Deus, pensa que não o vejo a cochichar com a criada? Bode velho, não percebe que o tempo de farras já passou? Mas eu, se tenho um confidente ou um amigo e dou um pulo à casa dele para distrair-me. você me cai em cima como um demônio, acusando-me de coisas que nunca fiz. Chega da rua bêbado como um gambá, e lá do seu banquinho - ele que leve a breca - põe-se a me fazer sermões, falando da desgraça que é casar-se com uma pobretona, por causa da despesa. Quando a mulher é rica e de alta classe, você diz que é um tormento suportar o seu orgulho e a sua melancolia; quando é bonita, canalha, diz que cede ao primeiro conquistador que surge à sua frente, pois, com tantas investidas, não há castidade que resista” (Chaucer, 2014, pp. 397, 399).

Na verdade, Alison inverte a dinâmica normativa do gênero social novamente. Uma das características que compõem o estereótipo da “megera” (em inglês, shrew), além de ser tagarela e de envergonhar o marido, é o de cometer adultério. Acreditava-se que uma mulher irreverente e destemida não se refrearia de exercer sua dita sexualidade aflorada, mesmo fora do casamento (Brown, 2003BROWN, Rosalind Grant. Christine de Pizan as a Defender of Women. Christine de Pizan, a Casebook. New York, Routledge, 2003. pp. 81-98.). Aqui a esposa de Bath emprega a mesma estratégia de coerção que o marido utilizaria para coibir comportamentos de sua mulher: sugerir, ou ameaçá-la, de enfrentar as consequências de uma possível infidelidade conjugal. Embora a estratégia de coerção aqui seja um exemplo de performatividade de gênero, o cômico a atravessa, possibilitando tanto sua performance subversiva quanto conferindo a ela o lugar de alvo da piada, transformando-a num narrador menos confiável. Dessa forma, mesmo que Alison faça críticas à sociedade misógina em que viveu, essas críticas têm seu potencial de convencer o leitor severamente diminuído, em razão de a personagem se mostrar, muitas vezes, contraditória e pouco confiável. Contraditoriamente, portanto, o mesmo ambiente cômico que permite a performatividade de Alison se desfaz quando ela é o alvo do riso.

Outro aspecto que merece destaque no prólogo para a construção dos atos profanadores da esposa de Bath é a utilização da linguagem do baixo corporal pela personagem em alusão à genitália feminina. No original em inglês, a vagina é referida, por exemplo, em diferentes níveis de especificidade e em diferentes nuances de sentido, a saber, “órgãos de reprodução”, “boceta” e “belle chose”. Conforme veremos, a escolha no uso de cada termo está ligada a contextos e propósitos específicos, onde não há pudor da parte da narradora em se referir a esse vocabulário da praça pública.

Por exemplo, ao alegar que Deus criou os “órgãos de reprodução”, ou “membres of generacioun” (em inglês medieval), Alison questiona:

Telle me also, to what conclusion
Were members maad of generacioun,
And of so parfit wys a [wright] ywroght?
Trusteth right wel, they were natmaad for noght . (…)
So that the clerkes be nat with me wrothe,
I sey this: that they maked ben for bothe;
That is to seye, for office and for ese
Of engendrure, ther we nat God displese.
Of procreation, in which we do not displease God”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 390, 392).24 24 Tradução em português: “Além disso, gostaria que me dissessem: qual a finalidade dos órgãos de reprodução? E por que foram formados desse modo tão engenhoso? Acreditem-me, se foram feitos, é lógico que foram feitos para alguma coisa! (...) Espero que os doutos não se zanguem comigo, mas, na minha opinião, eles foram feitos para as duas coisas, isto é, para o serviço e para o prazer da procriação” (Chaucer, 2014, pp. 391, 393).

É interessante notar que “generation” (termo equivalente no idioma atual) aparece em inglês em especial a partir das traduções da Bíblia do latim para o inglês, que incorporaram os diversos sentidos atribuídos a “generātiō” (palavra no latim clássico usada para traduzir do aramaico e do grego). Dentre estes, predomina o sentido de “reproduzir semelhantes”, enfatizando o produto do ato sexual enquanto meio por meio do qual Deus não apenas permite que os humanos produzam novos “exemplares de si”, mas também ressalta o primado da genealogia, ou seja, de uma produção de novos seres dentro da mesma família e, consequentemente, do mesmo estrato social. Ela, então, expressa uma opinião ousada e franca sobre a finalidade dos órgãos de reprodução ao questionar a visão convencional de que esses órgãos servem apenas para a excreção da urina ou para diferenciar fêmeas de machos. Em vez disso, ela argumenta que eles foram criados, de forma engenhosa, para desempenhar duas funções importantes: o “serviço” sexual e o “prazer” da procriação. Sexo para ela, conforme a interpretação da Bíblia que ela propõe, tem duas finalidades fundamentais: servir de moeda de troca e povoar a terra.

Posteriormente, Alison afirma (e defende) que tais membros também foram feitos com o objetivo de conferir prazer, e a personagem passa, então, a referir-se à genitália feminina como “queynte” e “quoniam”. Além de ser esta uma palavra específica para a genitália feminina, é também uma forma vulgar de se referir à vagina, até mesmo, algumas vezes, usada como eufemismo para “cunt” (palavra vulgar utilizada até hoje para se referir de modo chulo à genitália feminina ou a uma mulher vista como hipersexualizada). Daí, na tradução para o português, a escolha de Vizioli de verter tanto “queynte” quanto “quoniam” como “boceta”. Diferentemente da primeira menção a genitálias (“membres of generacioun”), “queynte” e “quoniam” demonstram foco em outro sentido: aquele do ato sexual em si, em vez do produto dele25 25 “Hipersexualização” aqui se refere ao fenômeno de atribuir conflitos de poder ao corpo, abrindo, no caso do corpo feminino, espaço para transgressão. . Ademais, curiosamente, ambas as ocorrências ocorrem num contexto em que se sugere que a mulher presta um serviço, ou cumpre um dever ao marido através da vagina, o que deveria lhe conferir alguma vantagem em troca do uso de sua genitália. Por isso, ela diz, por exemplo:

“Of alle men yblessed moot he be,
The wise astrologien, Daun Ptholome,
That seith this proverbe in his Almageste:
"Of alle men his wysdom is the hyeste
That rekketh nevere who hath the world in honde."
By this proverbe thou shalt understonde,
Have thou ynogh, what thar thee recche or care
How myrily that othere folkes fare?
For, certeyn, olde dotard, by youre leve,
Ye shul have queynte right ynogh at eve.
He is to greet a nygard that wol dewerne
A man to lighte a candle at his lanterne;
He shal have never the lasse light, pardee.
Have thou ynogh, thee thar natpleyne thee”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 398).26 26 Tradução em português: “E o que significa essa história de andar me investigando e espionando? O que você gostaria mesmo era de me ver trancada em seu baú! Mas isto é o que você deveria dizer-me: “Mulher, pode ir aonde quiser, distraia-se, não acredito em boatos. Sei que você é fiel, dona Alice”. Nós não amamos os homens que estão sempre querendo saber aonde vamos; gostamos de liberdade. Entre todos os homens, bendito seja o sábio astrólogo Dom Ptolomeu que escreveu este provérbio no Almagesto: O homem mais inteligente é aquele que não se preocupa em saber quem tem o governo do mundo. Por esse adágio se deve entender que aquele que tem o suficiente não precisa ficar reparando na felicidade dos outros. Com licença, mas aí está, velho caduco: por que tanta preocupação, se você sabe que à noite não vai passar sem a sua boceta? Deve ser muito avaro o homem que não permite que um outro acenda uma vela em seu candeeiro; não é por causa disso que ele vai ter luz de menos” (Chaucer, 2014, pp. 399).

No trecho exposto, a esposa de Bath expressa uma opinião ousada e desafiadora em relação ao uso de sua genitália e à infidelidade conjugal. Ela confronta a ideia de controle masculino sobre as mulheres, questionando por que os homens sentem a necessidade de vigiar e investigar suas esposas. A personagem acredita que as mulheres devem ter liberdade para ir aonde quiserem e desfrutar de suas vidas sem a desconfiança constante de seus parceiros. Ela menciona que gostaria que seu marido dissesse a ela: “Mulher, pode ir aonde quiser, distraia-se, não acredito em boatos. Sei que você é fiel, dona Alice”. Essa declaração reflete sua vontade de que confiem nela e que não seja restringida, e mostra sua crença de que a confiança mútua é fundamental em um relacionamento.

Essas afirmações demonstram a visão provocativa da esposa de Bath em relação à sexualidade e ao papel da mulher no casamento. Ela desafia as normas tradicionais da sociedade medieval, reivindicando sua independência, liberdade e direito à satisfação sexual. Sua postura desafia as noções convencionais de fidelidade e monogamia, sugerindo que os homens que têm o suficiente não devem se preocupar com a suposta infidelidade de suas esposas. De fato, no contexto da época em que a história foi escrita, as opiniões expressas pela esposa de Bath eram altamente controversas e subversivas, possíveis apenas dentro do contexto profano da cosmovisão carnavalizada (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Além disso, posteriormente, por sua vez, ao apontar sua genitália como meio de manipular o comportamento de seus maridos, a vagina é chamada de “belle chose” (termo que Vizioli decidiu manter conforme o original francês em sua tradução para o português). Tal nomenclatura ressalta a representação da genitália feminina como instrumento intencional de sedução e manipulação em face de um confronto com o marido. Dessa forma, o prenúncio discursivo do ato sexual é aquilo que exerce o poder sobre as emoções do cônjuge enquanto parceiro sexual. Afinal, Alison afirma que a oferta de sexo - em vez da vagina de fato - é a “arma secreta” que ela reserva para situações de conflito.

Dessa forma, intencionalmente articular esse discurso não apenas para seus maridos, mas para um público, é um exemplo de como essa personagem é capaz de exercer performatividade de uma mulher que foge aos estereótipos da figura feminina na Idade Média. Mesmo em meio ao caos de contradições, a esposa de Bath ainda é capaz de articular uma autorrepresentação que se alinha aos seus objetivos, utilizando-se discursivamente do próprio corpo como moeda de troca, equivalente aos bens materiais, conforme podemos ver no trecho a seguir:

“But tel me this: why hydestow, with sorwe,
The keyes of thy cheste are awey from me?
It is my good as wel as thyn, pardee!...
Thou shalt nat bothe, thogh that thou were wood,
Be maister of my body and of my good;
That oon thou shalt forgo, maugreethyne yen”
(Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 398).27 27 Tradução em português: “Mas agora diga-me uma coisa, desgraçado: por que você escondeu as chaves do baú? Pelos céus, ele é tanto meu quanto seu... você vai ter que escolher entre o meu corpo e meu dinheiro; de um deles terá que abrir mão; pode até se arrebentar” (Chaucer, 2014, p. 399).

No excerto citado, Alison propõe que o marido escolha ter acesso ao seu corpo ou ao seu dinheiro, colocando os dois elementos em pé de igualdade. Ainda outra similaridade entre o corpo e a riqueza é o fato de que ambos, em teoria, já pertencem ao marido: o primeiro, por ser ela esposa, e posse dele; o segundo, porque o baú é do marido, entretanto ela apresenta o tesouro como sendo de ambos, na verdade, como majoritariamente dela, caso contrário, ele perderia acesso ao corpo da esposa. Aqui vemos como a linguagem do baixo corporal desempenha um papel imprescindível no exercício da performatividade exercida pela mulher de Bath para profanar a figura religiosa do feminino medieval.

O universo carnavalizado pela profanação permite, portanto, que a mulher de Bath se torne cômica enquanto engloba aspectos que, fora do carnaval, seriam encarados como evidências para acusá-la de ser uma bruxa, ou uma megera. Na verdade, ela assume esses papéis, mas, uma vez que ela se encontra em meio ao carnaval, elementos opostos, contraditórios e profanos se misturam numa grande festa. Assim, ao mesmo tempo que o carnaval se ergue e abre espaço para uma performatividade de gênero e a subversão do texto oficial cristão, esse contexto se encontra marcado pelo riso e o humor. Nesse sentido, se a mulher de Bath é alvo da risada (seja dos leitores seja dos outros peregrinos), ela tem também o seu caráter subversivo amenizado, pois todos entendem que sua performance constitui uma piada28 28 Uma questão que poderíamos levantar aqui é: por que Chaucer escreveu o conto da esposa de Bath e dedicou a ela o mais longo prólogo dentre os demais personagens? Embora não haja registros de que o escritor inglês tenha comentado sobre a relevância da personagem para sua obra e para sua audiência, a análise sobre a qual nos debruçamos permite concluir que, embora a autoridade patriarcal tenha sido norma para as mulheres medievais, esse não era o único cenário possível. Chaucer escreveu The Canterbury Tales num período de transição, quando as vilas lentamente se transformaram em cidades, e onde o comércio, e não apenas a concessão de terras, abria possibilidades econômicas para artesãos como Alison. A esposa de Chaucer, bem como sua filha, tinham renda própria através de serviços prestados à elite aristocrática inglesa, sendo que ele mesmo se beneficiou do trabalho na fabricação e venda de tecidos (Turner, 2023). Mesmo que não saibamos se Chaucer originalmente pretendia construir uma personagem para vislumbrar um futuro em que as mulheres pudessem ser livres das normas morais - ou ridiculizar aquelas que performavam o gênero de modo subversivo, é certo que a sintomática mudança, a irreverência e a liberdade que Alison encarna permanecem ecoando na cultura e na literatura popular e, ao mesmo tempo, mantém indelével sua marca na trajetória feminina para além do próprio Chaucer e do período histórico em que o autor viveu da Idade Média. .

Apesar disso, no prólogo do conto que se segue ao da mulher de Bath, O conto do Frade, o próprio clérigo classifica a história da mulher de Bath como séria, e sugere que a história que ele contará - em contraste com a fala de Alison - servirá como puro entretenimento e humor. Bakthin (2010) também prevê esse caráter ambivalente no universo do carnaval. A esposa de Bath, portanto, não constitui uma espécie de personagem protofeminista, mas é capaz de gerar empatia apesar de suas contradições e de ser ela o alvo do humor.

Conclusão

Com esse trabalho, foi nosso propósito, amparados na teoria bakhtiniana da carnavalização e na teoria da performatividade de gênero de Butler, fazer uma análise da personagem Alison, a esposa de Bath, a fim de compreendermos como é produzida a subversão do gênero feminino pela profanação do discurso bíblico.

Ao examinar o prólogo de Os contos da Cantuária a partir da teoria da carnavalização, vimos, ao longo desse artigo, como Chaucer constrói, de maneira carnavalizada, a personagem da esposa que performa o gênero feminino de maneira subversiva ao profanar o discurso bíblico normativo quanto ao papel da mulher enquanto esposa. Sua ambivalente atitude em relação ao texto bíblico se reflete no fato de que ela não o reescreve, mas oferece interpretações alternativas à ortodoxia eclesiástica de seu tempo. Nesse gesto profanador, reinterpreta, questiona, e manipula citações bíblicas, permitindo, assim, que a autoridade da Bíblia justifique e legitime o seu comportamento, especialmente quanto às suas experiências nos diversos casamentos e quanto ao entendimento da sua sexualidade e do seu papel enquanto esposa.

Assim, ela torna-se livre para exercer o caráter cômico em sua apresentação de si mesma, seja por meio da linguagem vulgar da praça pública, seja por meio das ações permeadas de excentricidade, de deboche, de irreverência e de teimosia ao ocupar sua posição no matrimônio e, consequentemente, profanar os mandamentos bíblicos sobre o casamento. Ela, com isso, pode então aceder ao enfoque no corpo e na sua materialidade, o grotesco, as imagens de “fertilidade, crescimento e superabundância”, o rebaixamento (do espiritual para o carnal), a degradação, a ambivalência (como as representações simultâneas de morte e de renascimento), um caráter regenerador, tudo interligado com riso popular.

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    » https://doi.org/10.1017/9781316882542
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    No prólogo da obra de Chaucer, a personagem é referida como mulher ou esposa de Bath (a depender da tradução do original “wife of Bath”).
  • 2
    Embora o manuscrito Ellesmere não seja considerado o primeiro produzido para publicar The Canterbury Tales, ele permanece sendo a mais frequente referência desta obra de Chaucer. Não há, atualmente, indícios de outros manuscritos com data da época de Chaucer, no fim do século XIV, de modo que, sendo o Ellesmere datado do início do século XV, permanece sendo a mais antiga cópia da obra completa de que se tem notícia, estando hoje na Biblioteca de Huntington, em San Marino, California (Simpson, 2022SIMPSON, James. The Ellesmere Chaucer: The Once and Future Canterbury Tales. The Huntington Library Quarterly, vol. 85, no. 2, 2022, pp. 197-218, I.).
  • 3
    Importa aqui já salientar que, embora a carnavalização de modo geral, em seus diversos aspectos, ajude na construção dessa personagem, dado que este artigo pretende investir mais na ideia de como a mulher de Bath subverte o texto religioso bíblico, concentraremos nossa análise, sobretudo, na categoria carnavalesca da profanação, pela qual, portanto, poderemos ver de que forma se dá a relação inortodoxa que a personagem desenvolve com o texto sagrado cristão.
  • 4
    Por “Idade Média”, referimo-nos, neste artigo, ao período entre 500 AD a 1500 AD. Ressaltamos, porém, que a discussão histórica que aqui apresentamos tem a finalidade de prover contexto ao texto para análise da obra de Chaucer sobre a esposa de Bath em The Canterbury Tales. Consequentemente, concentramo-nos no fim da Idade Média, ou “Baixa Idade Média” (período compreendido entre os séculos XI a XV), em vez da “Alta Idade Média” (período entre os séculos V a X), conforme a orientação do historiador Jacques LeGoff (2007).
  • 5
    Besserman (1998BESSERMAN, Lawrence. L. Chaucer’s Biblical Poetics. Norman, Okla: University of Oklahoma Press, 1998. ISBN 9780806130682. Disponível em: https://search-ebscohost-com.access.library.miami.edu/login.aspx?direct=true&db=nlebk&AN=15245&site=ehost-live. Acesso em: 10 ago. 2023.
    https://search-ebscohost-com.access.libr...
    ) menciona, entre os gêneros derivados do texto bíblico, recursos vernaculares para ler a Bíblia (tais como gospel harmonies, distinctiones e concordances), além de livros derivados da Bíblia (por exemplo, a Bible moralisée, Biblia pauperum, and Speculum humanae salvationis), tornando o acesso à paráfrases, a citações e a trechos específicos por assunto mais dinâmico. Para mais detalhes sobre tais gêneros discursivos, ver Besserman (1998).
  • 6
    Troilus and Criseyde (escrito provavelmente entre 1381-1386) foi o poema mais longo de Geoffrey Chaucer. A obra é uma adaptação de Il Filostrato, de Giovanni Boccacio, que narra a história de um romance trágico durante a guerra de Troia. Troilus, um príncipe guerreiro troiano que se apaixona por Criseyde, filha de um líder religioso acusado de traição a Troia. O poema é rico em referências a símbolos e acontecimentos bíblicos, conforme explica, em mais detalhes, Besserman (2015BESSERMAN, Lawrence. Biblical Figura in Chaucer’s Troilus and Criseyde, II, 1380-86: “As Don Thiserokkes or Thisemilnestones.” The Chaucer Review, vol. 49 no. 3, 2015, pp. 344-351.).
  • 7
    Conforme pontua Minois (2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.), na tradição judaico-cristã, o riso pode assumir um caráter diabólico quando é entendido como um “verdadeiro insulto à criação divina, uma espécie de vingança do diabo, uma manifestação de desprezo, de orgulho, de agressividade, de regozijo com o mal” (p. 13).
  • 8
    Sobre as condições históricas da produção dessa obra, ver Grillo (2022GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin Sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, Contexto, Desfecho. Alfa, São Paulo, v.66, e15167, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5794-e1516.
    https://doi.org/10.1590/1981-5794-e1516...
    ).
  • 9
    É importante ressaltar, porém, que, para Bakhtin, o carnaval não é um espetáculo, ou uma performance limitada a um palco, artificial e montada. Bakhtin compreende o carnaval como uma cosmovisão, sendo ele, então, um mundo flexível, “às avessas”, desprendido de pudor moral ou das restrições sociais hierárquicas. Manifesta-se, por sua vez, através de contextos e em espaços específicos, onde as fronteiras entre o oficial e o cômico se dissolvem, a saber: os ritos e espetáculos populares, obras cômicas (tanto orais quanto escritas), e nas diversas formas e gêneros do vocabulário popular familiar e grosseiro.
  • 10
    Para um panorama das diversas edições e retraduções dessa obra feitas diretamente da língua russa por Paulo Bezerra para o português do Brasil, consultar Brait (2021BRAIT, Beth. Problemas da poética de Dostoiévski: a recepção brasileira. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, [S. l.], v. 16, n. 2, pp. Port. 70-89 / Eng. 78, 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48770. Acesso em: 25 ago. 2023.
    https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
    ).
  • 11
    Ao estudar o contexto histórico e social no período medieval em que a obra de Rabelais foi escrita, Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.) mostra, por exemplo, textos escritos vindos de uma tradição oral da cultura cômica popular que profanavam a Bíblia, como é o caso da Coena Cypriani, que, parodisticamente, encena um banquete para o qual são convidados personagens bíblicos.
  • 12
    Cabe distinguir dois usos distintos do termo “gênero”: o gênero social na perspectiva butleriana do gênero discursivo na visão bakhtiniana.
  • 13
    Ottoni (2002OTTONI, Paulo. John Langshaw Austin e a Visão Performativa da Linguagem. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, v. 18, n. 1, pp. 117-143, 2002.) traduz a abordagem austiniana sobre a língua como “visão performativa”. Embora Austin (1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Trad. SOUZA FILHO, Danilo M. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.) tenha inicialmente proposto uma diferenciação da linguagem enquanto constativa (ou seja, que constata, descreve e nomeia a realidade) e/ou performativa (que executa ações, que age, ou performa), ele logo compreende que toda a linguagem é performativa, e é então que Austin determina o fim da separação entre sujeito e fala. É nesse momento da filosofia da linguagem de Austin que nos baseamos para entender o caráter performativo da língua, através do qual nós atuamos de fato em oposição a entendê-la como uma mera representação da realidade.
  • 14
    Aqui cabe destacar que, ao se referir à performance de gênero, Butler não está sugerindo que a identidade de gênero é uma performance, de caráter teatral e artificial que partiria do sujeito. Pelo contrário, a autora sustenta que a performance preexiste ao performer, de modo que tal performance remete a conceitos filosóficos específicos, tais como a teoria austiniana que, conforme abordamos, defende uma visão performativa da linguagem (Salih, 2012SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).
  • 15
    É importante destacar que o nome da mulher de Bath tem diversas ortografias possíveis, mesmo dentro do mesmo livro. Embora ela não se apresente diretamente ao longo de sua narrativa, ao descrever diálogos com seus maridos, ela revela ter sido chamada de “Alis” e “Alisoun”. O narrador principal, na ocasião do prólogo geral, não atribui à personagem nenhum nome próprio, referindo-se a ela apenas como “esposa de Bath”.
  • 16
    Para essa pesquisa, utilizamos a tradução para o português da Versão Católica (disponível em https://bibliaestudos.com/vc/), para nos alinharmos à provável versão da Bíblia que Chaucer teria tido como referência a Vulgata em latim, conforme Besserman (1998BESSERMAN, Lawrence. L. Chaucer’s Biblical Poetics. Norman, Okla: University of Oklahoma Press, 1998. ISBN 9780806130682. Disponível em: https://search-ebscohost-com.access.library.miami.edu/login.aspx?direct=true&db=nlebk&AN=15245&site=ehost-live. Acesso em: 10 ago. 2023.
    https://search-ebscohost-com.access.libr...
    ), visto ser a Inglaterra, na época de Chaucer, ainda uma nação católica.
  • 17
    Tradução em português: “[...] também sei que Ele mandou que meu marido deixasse pai e mãe para unir-se a mim. Mas não fez qualquer alusão a números, se podia ser bigamia ou 'octogamia'. Sendo assim, porque é que todo mundo critica quem se casa muitas vezes” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 389).
  • 18
    Tradução em português: “De minha parte, posso garantir-lhes que... não tenho inveja alguma da virgindade: quem quiser ser puro de corpo e alma que o seja” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 391).
  • 19
    Tradução em português: “Deus tem muitos caminhos para chamar-nos a Si, concedendo a cada um uma dádiva diferente, a um isto e a outro aquilo, conforme a sua vontade. A virgindade, ligada à devoção e à abstinência, pode significar a perfeição; [...] e, com a devida licença, cavalheiros, eu não desejo. Prefiro ver a flor da minha existência frutificar nos atos do matrimônio” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 391).
  • 20
    Tradução em português: “Você diz além disso, que quando nos vestimos bem, com trajes e joias de valor, colocamos em perigo a nossa castidade, reforçando essa afirmação infeliz com a citação destas palavras do Apóstolo: ‘Da mesma sorte que as mulheres, em traje decente, se ataviem com modéstia e bom-senso, não com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso’. Dou menos importância que um mosquito a este seu texto ou às suas ordens” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 399, 401).
  • 21
    O texto referido diz: “Do mesmo modo, quero que as mulheres usem traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade. Seus enfeites consistam não em primorosos penteados, ouro, pérolas, vestidos de luxo” (I Tim.2:9).
  • 22
    Tradução em português: “Por isso, quando percebi que ele pretendia passar a noite inteira lendo aquele maldito volume, num impulso repentino arranquei-lhe três folhas do livro, enquanto ele ainda lia, e desferi-lhe tal soco no rosto que ele perdeu o equilíbrio e caiu de costas no fogo. (...) Ele entregou o cabresto em minhas mãos, confiando-me a direção da casa e das terras, bem como o controle de sua pessoa” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 421, 423).
  • 23
    Tradução em português: “Mas ouçam o que eu costumava dizer "Escute aqui, oh velho preguiçoso, então é assim que se faz? Sabe por que a mulher do vizinho está sempre contente? É porque todos lhe dão atenção quando sai à rua! Ao contrário de mim, que nem posso sair de casa porque não tenho sequer um vestido decente para usar. E o que você vive fazendo na casa dela? Você a acha tão bonita? Está apaixonado? Valha-me Deus, pensa que não o vejo a cochichar com a criada? Bode velho, não percebe que o tempo de farras já passou? Mas eu, se tenho um confidente ou um amigo e dou um pulo à casa dele para distrair-me. você me cai em cima como um demônio, acusando-me de coisas que nunca fiz. Chega da rua bêbado como um gambá, e lá do seu banquinho - ele que leve a breca - põe-se a me fazer sermões, falando da desgraça que é casar-se com uma pobretona, por causa da despesa. Quando a mulher é rica e de alta classe, você diz que é um tormento suportar o seu orgulho e a sua melancolia; quando é bonita, canalha, diz que cede ao primeiro conquistador que surge à sua frente, pois, com tantas investidas, não há castidade que resista” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 397, 399).
  • 24
    Tradução em português: “Além disso, gostaria que me dissessem: qual a finalidade dos órgãos de reprodução? E por que foram formados desse modo tão engenhoso? Acreditem-me, se foram feitos, é lógico que foram feitos para alguma coisa! (...) Espero que os doutos não se zanguem comigo, mas, na minha opinião, eles foram feitos para as duas coisas, isto é, para o serviço e para o prazer da procriação” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 391, 393).
  • 25
    “Hipersexualização” aqui se refere ao fenômeno de atribuir conflitos de poder ao corpo, abrindo, no caso do corpo feminino, espaço para transgressão.
  • 26
    Tradução em português: “E o que significa essa história de andar me investigando e espionando? O que você gostaria mesmo era de me ver trancada em seu baú! Mas isto é o que você deveria dizer-me: “Mulher, pode ir aonde quiser, distraia-se, não acredito em boatos. Sei que você é fiel, dona Alice”. Nós não amamos os homens que estão sempre querendo saber aonde vamos; gostamos de liberdade. Entre todos os homens, bendito seja o sábio astrólogo Dom Ptolomeu que escreveu este provérbio no Almagesto: O homem mais inteligente é aquele que não se preocupa em saber quem tem o governo do mundo. Por esse adágio se deve entender que aquele que tem o suficiente não precisa ficar reparando na felicidade dos outros. Com licença, mas aí está, velho caduco: por que tanta preocupação, se você sabe que à noite não vai passar sem a sua boceta? Deve ser muito avaro o homem que não permite que um outro acenda uma vela em seu candeeiro; não é por causa disso que ele vai ter luz de menos” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., pp. 399).
  • 27
    Tradução em português: “Mas agora diga-me uma coisa, desgraçado: por que você escondeu as chaves do baú? Pelos céus, ele é tanto meu quanto seu... você vai ter que escolher entre o meu corpo e meu dinheiro; de um deles terá que abrir mão; pode até se arrebentar” (Chaucer, 2014CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Canterbury. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 399).
  • 28
    Uma questão que poderíamos levantar aqui é: por que Chaucer escreveu o conto da esposa de Bath e dedicou a ela o mais longo prólogo dentre os demais personagens? Embora não haja registros de que o escritor inglês tenha comentado sobre a relevância da personagem para sua obra e para sua audiência, a análise sobre a qual nos debruçamos permite concluir que, embora a autoridade patriarcal tenha sido norma para as mulheres medievais, esse não era o único cenário possível. Chaucer escreveu The Canterbury Tales num período de transição, quando as vilas lentamente se transformaram em cidades, e onde o comércio, e não apenas a concessão de terras, abria possibilidades econômicas para artesãos como Alison. A esposa de Chaucer, bem como sua filha, tinham renda própria através de serviços prestados à elite aristocrática inglesa, sendo que ele mesmo se beneficiou do trabalho na fabricação e venda de tecidos (Turner, 2023TURNER, Marion. The Wife of Bath: A Biography. New Jersey: Princeton University Press, 2023.). Mesmo que não saibamos se Chaucer originalmente pretendia construir uma personagem para vislumbrar um futuro em que as mulheres pudessem ser livres das normas morais - ou ridiculizar aquelas que performavam o gênero de modo subversivo, é certo que a sintomática mudança, a irreverência e a liberdade que Alison encarna permanecem ecoando na cultura e na literatura popular e, ao mesmo tempo, mantém indelével sua marca na trajetória feminina para além do próprio Chaucer e do período histórico em que o autor viveu da Idade Média.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O artigo traz uma análise muito pertinente e relevante de um texto clássico da literatura inglesa. Utiliza-se da cosmovisão carnavalesca e da performatividade de gênero para analisar o discurso da “esposa de Bath”. Apesar de ser um texto bem articulado, precisa, ao meu ver, de alguns ajustes, que cito abaixo:

  1. A Introdução não deixa claro o objetivo do texto.

  2. Alguns trechos bíblicos são apenas apontados (como, por exemplo, I Timóteo 2:9), mas não são trazidos ao corpo do texto. É necessária a lembrança de que o dialogismo tem como base teórico-analítica o discurso, por isso a necessidade de estabelecer diálogo entre discursos (ver observação que faço no caso do casamento e a samaritana).

  3. Ao trazer trechos bíblicos, devido às suas múltiplas versões/traduções (umas até questionáveis), é importante explicitar qual versão da Bíblia está utilizando. Sugiro a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia).

  4. Ao trazer passagens do conto para a análise, o/a articulista traz a tradução e não o texto original. Nas análises de algumas citações, evidencia palavras em português e não em inglês. Mesmo que não queira trazer o inglês medieval para o corpo do trabalho, pode trazer uma versão no inglês moderno para facilitar a leitura. A tradução ao português pode vir no rodapé. Sem isso, o leitor fica com a impressão de que toda a análise foi feita em cima de uma tradução ao português, tornando o/a articulista refém dessa tradução.

  5. Há algumas citações do conto no corpo do artigo que são muito longas. Isso dificulta a leitura em um texto breve, como é o artigo. Sugiro que sejam feitas paráfrases de parte das citações e deixe como citação direta apenas os trechos que, de fato, vai analisar em sua arquitetônica (conteúdo, material e forma).

  6. Nessa esteira, há várias citações que são mais ilustrativas do conteúdo argumentado do que objeto de análise. A citação se torna objeto quando, de fato, ela é analisada em sua relação conteúdo-forma, apontando para o material escolhido pelo autor. Diante disso, as palavras que ganham destaque na análise devem vir em inglês e a tradução entre parênteses.

  7. As considerações finais não retomam o objetivo do artigo (que não foi apresentado na Introdução). Há, dessa forma, uma conclusão do assunto, mas não do gênero artigo.

  8. Por fim, senti falta de um distanciamento, mostrando o projeto estético do autor com as escolhas que ele fez ao criar essa personagem e os seus ideologemas. CORREÇÕES OBRIGATÓRIAS [Revisado]

  • recomendação: revisão

Histórico

  • Parecer recebido em
    20 Set 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O título do artigo, a saber, Os Contos de Canterbury, de Geofrey Chaucer, a partir do carnaval bakhtiniano: a esposa de Bath e a subversão de gênero feminino pela profanação do discurso bíblico”, condiz perfeitamente com o conteúdo apresentado no decorrer do texto. O objetivo do trabalho, qual seja, “proceder a uma análise da personagem Alison”, à luz do conceito bakhtiniano de carnavalização e da teoria da performatividade de gênero de Butler, segundo o recorte da “subversão do gênero feminino pela profanação do discurso bíblico”, é evidenciado de forma clara e precisa no Resumo e Abstract e retomado de forma reiterada no corpo do texto, de modo a nortear a leitura. Vale observar que o texto é bem estruturado, com subdivisões bem articuladas que, na sua sequência, mostram-se pertinentes, lógicas e coerentes, colaborando para a consecução do objetivo almejado. No que concerne aos fundamentos teóricos, ancorados em bibliografia canônica e atualizada pertinente à meta proposta, as referências e comentários que permeiam e sustentam a argumentação revelam conhecimento de causa, com aportes relevantes para uma análise frutuosa dos trechos selecionados vis-a-vis o objetivo do artigo. Ao aplicar os conceitos de Bakhtin e de Butler à análise da personagem chauceriana Alison, figura central do conto “A esposa de Bath”, o artigo reveste-se de inegável originalidade e traz uma importante contribuição tanto para o campo dos Estudos do Discurso quanto para os Estudos Literários, particularmente aqueles voltados a Os contos da Cantuária, obra canônica da literatura inglesa. O texto apresenta-se claro e bem redigido, condizente às normas a escrita acadêmica, desse modo propiciando uma leitura fluida e agradável.

A Introdução é bem realizada, fornecendo ao leitor uma visão sucinta, porém suficientemente esclarecedora, sobre o autor e obra Os contos da Cantuária, assim como indicação das partes estruturais do artigo.

O item 1, que trata da Bíblia e o discurso religioso na Idade Média inglesa, está ancorado em aportes a autores relevantes para o propósito em questão (Besserman, 1998; Garret, 2013; Minois, 2003), trazendo a necessária contextualização para condução do argumento nas partes que se seguem.

Os itens 2 e 3, voltados ao tema da Esposa de Bath, sob a perspectiva do conceito bakhtiniano de carnavalização e da visão performativa da linguagem e performatividade de gênero, com base na teoria butleriana e aportes complementares de estudiosos de destaque (Bauman & Briggs, 2006; Ottoni, 1998; Arbo, 2021; Salih, 2012; Silva, Ferreira e Gonçalves, 2021, dentre outros), têm, outrossim, caráter sucinto, porém revestidos de densidade e riqueza argumentativa, conducente ao item seguinte.

O item 4, dedicado à análise da representação da personagem Alison como mulher profanadora do discurso bíblico-cristão, é de maior dimensão e conteúdo, com aplicação dos aportes anteriormente anunciados, complementados por citações de outros autores relevantes para a continuidade da linha analítico-argumentativa. Trata-se de um exercício de análise bem conduzida, instigante e frutífera, que impõe ao artigo uma marca de qualidade e originalidade.

Um aspecto digno de nota no decorrer do artigo são as notas de rodapé que enriquecem sobremaneira o trabalho, propiciando maior densidade conceitual à exposição e análise.

A conclusão é breve e objetiva, arrematando o artigo satisfatoriamente.

Parabenizamos o/a autor/a do artigo pela relevante contribuição para o avanço do conhecimento no âmbito dos Estudos do Discurso e Estudos Literários, particularmente os direcionados à obra chauceriana.

Sugerimos que pequenos lapsos decorrentes de digitação, espaçamento, formatação e de questões gramaticais (concordância, uso da crase, sintaxe, pontuação) sejam corrigidos.

Será enviado separadamente ao Editor arquivo com destaques em amarelo, indicativos dos pontos que sugerimos sejam ajustados. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    24 Jan 2024

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

A nova versão do artigo busca preencher as lacunas que foram apontadas anteriormente, como a necessidade de o corpus da pesquisa ser apresentado em seu original em inglês, a análise da materialidade de todos os excertos do conto trazidos ao artigo, a inserção dos textos bíblicos e não somente da referência, entre outros.

Gostaria de apontar algumas coisas que precisam de ajustes finais:

  1. É necessário que a versão final seja apresentada sem as marcas de revisão. Isso dificulta a leitura.

  2. É necessário ajustar o formato das citações para a edição revisada da ABNT NBR 10520 de 2023.

  3. É necessário trazer a tradução do título ao inglês na versão do artigo em português.

  4. O artigo apresenta os textos bíblicos a partir de uma versão protestante, atestada pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBS). Afirma que a SBS se orienta : pelo princípio da tradução por equivalência formal em que se procura traduzir, de forma mais fidedigna, o texto original respeitando às suas palavras e à sua estrutura”. Precisam pensar em quatro coisas:
    1. Qualquer estudo de manuscritologia disputa essa questão do original, já que ele praticamente não existe; o que existem são cópias das cópias das cópias... Se quiserem ler sobre o assunto, indico a obra de Bart Ehrman “O que Jesus disse? O que Jesus não disse?”

    2. Apesar de a SBS dizer que respeita as palavras e as estruturas do texto “original”, é muito improvável que isso aconteça, pois a estrutura do grego Koiné, em que foi escrito o Novo Testamento, por exemplo, não apresenta uma estrutura semelhante à do português.

    3. Quando dizem, no rodapé, que a SBS busca uma tradução fidedigna do texto “original”, isso compromete o entendimento do que, de fato, é uma tradução, ou seja, uma refração do/a tradutor/a, pois, para traduzir, é necessário interpretar o texto - e isso é subjetivo e refratário. Não é à toa que, somente na língua inglesa, o site biblegateway.com traz mais de 60 versões diferentes da Bíblia.

    4. Se The Canterbury Tales se refere ao mundo do catolicismo, por que não trazer uma versão católica da Bíblia? Fica mais coerente com a proposta.

  5. Ao reduzirem o tamanho dos excertos de análise, precisam verificar se a nota de rodapé (em que trazem a tradução) corresponde ao excerto no corpo do texto. Vejam o exemplo da nota de rodapé 26, em que a tradução é maior do que o excerto. Inclusive no parágrafo posterior à citação trazem uma oração entre aspas que está na tradução, mas não está no excerto no corpo do texto. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    05 Fev 2024

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2023
  • Aceito
    12 Maio 2024
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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