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Etnoculinária do povo indígena Huni Kuin do Jordão, Acre: conhecimentos, práticas e transformações alimentares na Amazônia ocidental brasileira

Ethnoculinary of the Huni Kuin indigenous people of Jordão, Acre: knowledge, practices and food transformations in the Western Brazilian Amazon

Resumo

Os povos indígenas possuem diferentes hábitos alimentares, permeados de uma vasta diversidade de princípios, comportamentos, crenças, costumes e práticas culinárias. Todo este conhecimento é construído empiricamente e multiplicado oralmente de forma intergeracional há milhares de anos. Em que pese a importância sociocultural desses hábitos alimentares, seus pressupostos encontram-se ameaçados pela globalização. Para lançar luz sobre o conhecimento tradicional, este estudo pretendeu compreender as interações socioecológicas presentes no sistema alimentar dos indígenas Huni Kuin (Kaxinawá) do baixo rio Jordão, Acre. Além disso, o trabalho buscou refletir sobre as dinâmicas de transformação da cultura alimentar, de modo a identificar os fatores sociais, culturais, ambientais e econômicos que as influenciam. Apesar de preservarem grande parte dos alimentos tradicionais, existem preparações subutilizadas e em desuso. Este fato preocupa os núcleos familiares indígenas, sobretudo se forem levados em conta aspectos relacionados à saúde e à conservação dos sistemas naturais e da agrobiodiversidade. É preciso fortalecer políticas públicas de segurança e soberania alimentar, como a regionalização da alimentação escolar indígena através de mercados institucionais. No intuito de subsidiar a valorização da alimentação tradicional pelos próprios indígenas, sugere-se também viabilizar políticas de preservação cultural, como a patrimonialização da culinária huni kuin.

Palavras-chave
Amazônia ocidental brasileira; Conhecimento tradicional; Etnoculinária; Hábitos alimentares; Povo indígena Huni Kuin (Kaxinawá)

Abstract

Indigenous peoples have different eating habits, permeated by a vast diversity of principles, behaviors, beliefs, customs and culinary practices. All this knowledge is built empirically and orally multiplied intergenerationally for thousands of years. Despite the sociocultural importance of these eating habits, their assumptions are threatened by globalization. In order to shed light on traditional knowledge, this study aimed to understand the socio-ecological interactions present in the food system of the Huni Kuin (Kaxinawá) indigenous peoples of the Lower Jordão River, Acre. In addition, this article seeks to reflect on the dynamics of transformation of food culture, in order to identify the social, cultural, environmental and economic factors that influence them. Despite preserving much of the traditional foods, there are underutilized and disused preparations. This worries indigenous families, especially if one takes into account aspects related to the health and conservation of natural systems and agrobiodiversity. Public policies for food security and sovereignty, such as the regionalization of indigenous school meals through institutional markets, should be strengthened. In order to stimulate the appreciation of traditional food by the indigenous people themselves, implementation of cultural preservation policies, such as the heritage of Huni Kuin cuisine is recommended.

Keywords
Western Brazilian Amazon; Traditional knowledge; Ethnoculinary practices; Food habits; Huni Kuin (Kaxinawá) Indigenous People

INTRODUÇÃO

A alimentação é uma prática considerada essencial para garantir a manutenção da vida. Para além de suprir as necessidades fisiológicas dos indivíduos, alimentar-se também é um ato sociocultural que abrange uma série de elementos imateriais capazes de conformar cosmovisões, valores, identidades, costumes, entre outros. O aspecto sociocultural da alimentação diz respeito à comensalidade, ou seja, ao ato de se alimentar em conjunto (Lima et al., 2015Lima, R. S., Neto, J. A. F., & Farias, R. D. C. P. (2015). Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, 10(3), 507-522. https://doi.org/10.12957/demetra.2015.16072
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).

Os povos originários possuem variados hábitos alimentares formados por uma diversidade de saberes e práticas relacionados aos processos de produção e de preparo do alimento e de sua partilha (Klotz-Silva et al., 2017Klotz-Silva, J., Prado, S. D., & Seixas, C. M. (2017). A força do “hábito alimentar”: referências conceituais para o campo da alimentação e nutrição. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27(4), 1065-1085. https://doi.org/10.1590/S0103-73312017000400011
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). Esse amplo conhecimento é considerado patrimônio de tais sociedades. Sua multiplicação é realizada oralmente de geração a geração desde tempos imemoriais (Eloy et al., 2015Eloy, C. C., Vieira, D. M., Lucena, C. M., & Andrade, M. O. (2015). Apropriação e proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil: a conservação da biodiversidade e os direitos das populações tradicionais. Gaia Scientia, 14(3), 189-198. https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/gaia/article/view/22587
https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php...
). Neste contexto, entende-se que as práticas alimentares, por meio do manejo, cultivo e preparo de plantas alimentícias, são uma das principais ações que articulam a interação entre os seres humanos e os sistemas naturais e, particularmente, com a biodiversidade comestível (Murrieta, 2001Murrieta, R. S. S. (2001). Dialética do sabor: alimentação, ecologia e vida cotidiana em comunidades ribeirinhas da Ilha de Ituqui, Baixo Amazonas, Pará. Revista de Antropologia, 44(2), 39-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012001000200002
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).

O hábito alimentar dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais está, todavia, sob ameaça: em razão da globalização e da acelerada expansão da economia de mercado, vem ocorrendo um processo conhecido por transição alimentar, ou seja, a substituição de alimentos regionais por produtos processados e ultraprocessados que são, atualmente, acessíveis, tanto financeiramente, quanto nos comércios urbanos, tais como óleos e açúcares refinados. Ao passo que, por um lado, ocorre uma redução nas taxas de desnutrição, por outro, observa-se a emergência de doenças crônicas, como câncer, obesidade, diabetes e outras comorbidades. Se, recentemente, tais distúrbios não afrontavam essas populações, há de se analisar que as mudanças nos hábitos alimentares possuem certa responsabilidade no desencadeamento de novas formas de insegurança alimentar (Batista Filho &Batista, 2010Batista Filho, M., & Batista, L. V. (2010). Transição alimentar/nutricional ou mutação antropológica? Ciência e Cultura, 62(4), 26-30.).

De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) (Araújo & Kubo, 2017Araújo, M. L. L., & Kubo, R. R. (2017). Segurança alimentar e nutricional e povos indígenas: a experiência dos Asheninkas do Alto Rio Envira com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Revista Paranaense de Desenvolvimento, 38(132), 195-210.), a manutenção dos patrimônios alimentares tradicionais está atrelada à garantia da segurança e à soberania alimentar e nutricional. Sob essa ótica, a grave condição atual potencializa a necessidade de atitudes por parte dos setores públicos competentes para a promoção do etnodesenvolvimento a partir do paradigma da autodeterminação, respeitando o modo de vida tradicional e a soberania dos povos. Nessa perspectiva, este estudo se propõe a compreender as interações socioecológicas no âmbito do sistema alimentar dos indígenas Huni Kuin da Terra Indígena (TI) Kaxinawá do baixo rio Jordão, Acre, Amazônia ocidental brasileira. Será conferido tratamento especial às diversas técnicas associadas aos alimentos-patrimônios de origem vegetal – haja vista constituir um conhecimento ancestral sobre como viver, bem-viver e sobreviver na floresta. Finalmente, o trabalho busca refletir sobre as dinâmicas de transformação da cultura alimentar e dos processos culinários1 1 Sequência contínua de técnicas reproduzidas com regularidade para a preparação de alimentos. e os aspectos sociais, culturais, ambientais e econômicos que as influenciam.

BREVE CARACTERIZAÇÃO DO POVO HUNI KUIN (KAXINAWÁ)

O povo indígena autodenominado Huni Kuin – cujo significado pode ser traduzido por ‘gente verdadeira’ – é o mais populoso e com o maior número de terras indígenas demarcadas no Acre. Ocupam onze TI demarcadas e uma em fase de identificação, distribuídas nos principais rios e seus afluentes da região do alto Juruá e, em menor escala, do alto Purus, cuja superfície total dos territórios é de aproximadamente 655.000 hectares, para uma população estimada de 14.000 pessoas, segundo dados da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC) (“Dados populacionais...”, 2020Dados populacionais do povo Huni Kuĩ. (2020). Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC). http://cpiacre.org.br/huni-kui-kaxinawa/
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). O idioma nativo é o hãtxa-kuin (‘língua verdadeira’), pertencente à família linguística Pano. Um dos aspectos que os diferenciam dos demais povos Pano é a maneira como se organizam socialmente, em metades exogâmicas, e a intercalação geracional para a transferência de nomes próprios (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre.). As metades exogâmicas (duabakebu e inubakebu) operam dois arranjos complementares de núcleos familiares que descendem de ancestrais comuns e casam entre si. Os parentes concernentes a uma mesma metade são consanguíneos, enquanto entre metades opostas são tidos como afins (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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).

ÁREA DE ESTUDO

A pesquisa foi realizada na TI Kaxinawá do baixo rio Jordão, localizada na região do alto Juruá, no estado do Acre. O processo de demarcação da TI foi concluído no ano de 2001, a qual possui cerca de 9.000 hectares, inseridos em um complexo de terras indígenas contíguas, ao qual também pertencem as TI Kaxinawá do rio Jordão e Kaxinawá do Seringal Independência (em particular, localizada no alto rio Tarauacá). A população total das três TI é estimada em torno de 4.000 pessoas, o que representa cerca de 1/3 da população do município do Jordão. Juntos, tais territórios somam 107.603 hectares, contando com 32 aldeias registradas (Ramalho & Gavazzi, 2012Ramalho, A. L. M., & Gavazzi, R. (2012). Plano de gestão territorial e ambiental das três terras indígenas Kaxinawá do Jordão. Comissão Pró-Índio do Acre., p. 59).

Os indígenas participantes do estudo são oriundos de três aldeias, a saber, Nova Empresa, Nova Cachoeira e São Joaquim – Centro de Memória (Figura 1). Distribuídas em sequência ao longo das margens do baixo rio Jordão, essas localidades distam entre si, em média, uma hora em viagem de canoa. O tempo de percurso pode variar, em virtude do regime pluviométrico. Existem igarapés que banham todas as comunidades, os quais são considerados pontos de referência para delimitar os territórios.

Figura 1
Mapa das aldeias Nova Empresa, Nova Cachoeira e São Joaquim – Centro de Memória, na Terra Indígena Kaxinawá do baixo rio Jordão, município de Jordão, Acre.

METODOLOGIA

Foram utilizadas as seguintes metodologias para desenvolver este estudo: observação participante e entrevistas abertas e estruturadas, adequadas para a Etnobotânica (Albuquerque & Lucena, 2004Albuquerque, U. P., & Lucena, R. F. P. (2004). Métodos e técnicas na pesquisa etnobotânica. Livro Rápido.). As informações foram registradas por meio de gravador de voz, caderno de campo e fotografias. O conteúdo sistematizado esteve relacionado aos costumes alimentares dos Huni Kuin do Jordão e às transformações alimentares que ocorreram ao longo do tempo, em especial, a partir do contato com a sociedade não indígena. Com autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) expedido pela Plataforma Brasil (número 82076018.5.0000.0006), foram realizadas entrevistas com 60 indígenas (todos maiores de 18 anos). Dessas, 36 foram feitas com mulheres e 24 com homens. A sistematização das informações ocorreu de acordo com três categorias de análise: i) cultura alimentar; ii) práticas alimentares vigentes e em desuso; iii) salvaguarda do patrimônio alimentar. Para além, buscou-se dialogar com trabalhos acadêmicos de antropólogas que desenvolveram etnografias sobre os indígenas Huni Kuin (McCallum, 1989McCallum, C. (1989). Gender, personhood and social organization among the Cashinahua of western Amazonia [Tese de doutorado, University of London]., 1998McCallum, C. (1998). Alteridade e sociabilidade kaxinauá: perspectivas de uma antropologia da vida diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(38), 127-136. https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300008
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, 1999McCallum, C. (1999). Aquisição de gênero e habilidades produtivas: o caso Kaxinawá. Revista Estudos Feministas, 7(1-2), 157-175., 2001McCallum, C. (2001). Gender and sociality in Amazonia: how real people are made. Berg Publishers.; Lagrou, 1991Lagrou, E. M. (1991). Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75772
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, 1998Lagrou, E. M. (1998). Caminhos, duplos e corpos: uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawa [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.1998.tde-03012023-135130
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, 2007Lagrou, E. M. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Topbooks.; Yano, 2014Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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).

HISTÓRICO DO POVO HUNI KUIN DO JORDÃO

No ‘tempo das malocas’ (tempos imemoriais) – período anterior ao contato com as frentes de colonização da região, quando apenas populações indígenas habitavam a região –, os Huni Kuin viviam dispersos por um extenso território e ocupavam, sobretudo, paisagens de terra firme situadas em local próximo aos igarapés de rios afluentes da margem direita do rio Juruá (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre., p. 12).

O período seguinte de ocupação e apropriação do oeste amazônico é conhecido como ‘tempo das correrias’: invasão violenta dos territórios tradicionais por não indígenas, que teve início no final do século XIX, com a exploração ocorrida por meio dos altos rios Juruá, Purus e Tarauacá e seus afluentes, em decorrência do empreendimento seringalista que atraía e assentava migrantes nordestinos sob a prerrogativa de trabalhar em colocações florestais2 2 Unidade familiar e seringueira socioprodutiva cujo intuito era a cadeia produtiva inicial da borracha. , financiados por patrões seringalistas para o extrativismo de borracha (Kaxinawá, 2002Kaxinawá, J. P. M. (2002). Índios no Acre: organização e história. Comissão Pró-Índio do Acre.).

Em que pese a especulação econômica inicial, de 1912 até 1945, o empreendimento seringalista atravessou uma intensa crise comercial. A razão majoritária esteve associada ao plantio de indivíduos de seringueira na Malásia e à posterior concorrência avassaladora do látex produzido por esta então colônia britânica. Em virtude disso, os patrões seringalistas brasileiros foram obrigados a mudar a estratégia de uso do território: diversificar as atividades econômicas, cessar as correrias e forçar a inclusão das populações indígenas nos seringais. A subjugação da mão de obra nativa se valeu do modo de vida e dos conhecimentos locais sobre os sistemas socioecológicos para impor diversos trabalhos braçais atrelados ao extrativismo, à pesca, à caça e à agricultura.

Esse período de mais de 50 anos, conhecido pelos Huni Kuin como ‘tempo do cativeiro’, atravessou ainda outro lucrativo ciclo da borracha durante a segunda grande guerra e durou até a década de 1970. Nessa época, a maioria dos grupos indígenas foi forçada a aderir a um sistema de aviamento3 3 Provimento de produtos exógenos e ferramentas de trabalho. Neste sistema, os indígenas encontravam-se sempre endividados, em razão da imposição, por parte dos patrões, de altos preços pelos mantimentos e, em contrapartida, do ínfimo valor recebido pela mão de obra seringueira. Além disso, outro aspecto que prejudicava os indígenas foi a criação da ‘renda’ – pagamento aos patrões pelo uso das estradas de seringa. que criava uma força de trabalho imobilizada à terra, a fim de servir exclusivamente aos patrões seringalistas. Era um regime de domínio político e socioeconômico, que se refletia na proibição de se comunicarem na língua indígena, de praticarem rituais e celebrações de sua cultura ou mesmo de realizarem as práticas agrícolas tradicionais (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre., p. 25).

No início da década de 1970, a presença dos indígenas era desconhecida ou marginalizada pelas autoridades públicas – apenas a partir de 1975 foi instalada uma Ajudância em Rio Branco, espécie de núcleo da Fundação Nacional do Índio (hoje, Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI) (Aquino, 1993Aquino, T. (1993). Relatório para demarcação da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. FUNAI.). Em decorrência das reivindicações indígenas, foram iniciados levantamentos socioeconômicos e fundiários da população huni kuin do rio Jordão, com vistas a reconhecer um território próprio naquela região. Os anos de 1980 foram então marcados por intensa articulação política regional para demarcação de terras indígenas.

Após a constatação da existência de populações indígenas, chegou o ‘tempo dos direitos’, período que desencadeou processos de regularização fundiária, que se intensificaram entre os anos 1990 e 2000. Desde então, os povos indígenas do Acre buscam autonomia e qualidade de vida, em parceria com o poder público e organizações da sociedade civil. O fortalecimento das comunidades está atrelado à valorização das atividades produtivas tradicionais, em especial, aquelas relativas ao manejo de sistemas naturais e sistemas agrícolas tradicionais.

CULTURA ALIMENTAR HUNI KUIN

Conforme analisou Pilnik (2019, p. 100)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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,

Muitas das atividades diárias exercidas por homens e mulheres indígenas Huni Kuin dizem respeito à alimentação (piti xarabu). Em uma divisão de trabalho bem definida, homens caçam, pescam, praticam extrativismo e preparam os roçados de terra firme (bai kuin) e de praia (maxi bai), enquanto que as mulheres cozinham, colhem os vegetais, manejam os terreiros e quintais, amamentam os recém-nascidos, cuidam das criações de animais de pequeno porte etc. A dedicação a essas atividades ocupa praticamente o dia inteiro. Nos intervalos entre uma e outra tarefa, confeccionam artesanatos, utensílios domésticos e culinários, zelam pelos espaços, cuidam e brincam com as crianças e permanecem juntos em família – o que é bastante estimado.

Os conhecimentos teórico e prático de tais atividades produtivas e alimentares são transmitidos intergeracionalmente, por meio de métodos de observação e de tentativa e erro, que acontecem na convivência cotidiana junto aos familiares. O processo de aprendizagem é desenvolvido entre sujeitos do mesmo sexo: avós, mães, tias, primas, irmãs; e avôs, pais, tios, primos, irmãos etc. (McCallum, 1998McCallum, C. (1998). Alteridade e sociabilidade kaxinauá: perspectivas de uma antropologia da vida diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(38), 127-136. https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300008
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). Uma das distinções entre o aprendizado feminino e o masculino encontra-se no lugar em que as habilidades são desenvolvidas: meninas aprendem as práticas femininas sobretudo no interior e entorno das moradias; já meninos iniciam a interação socioeconômica e produtiva em ambientes florestais e, atualmente, também nos centros urbanos (McCallum, 1998McCallum, C. (1998). Alteridade e sociabilidade kaxinauá: perspectivas de uma antropologia da vida diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(38), 127-136. https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300008
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).

A dieta alimentar desse povo é composta, sobretudo, por alimentos oriundos do sistema agrícola tradicional (roçados itinerantes de corte e queima). De acordo com Pilnik (2019, p. 103)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, os indígenas os denominam como ‘legumes do roçado’ (yunu). Dessa forma, diferenciam as espécies cultivadas das espécies florestais (ni). Cumpre dizer que os produtos florestais (da fauna e da flora) também se configuram em valiosos recursos alimentícios, tanto em virtude do seu uso cultural, quanto nutritivo (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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). A alimentação pode ser considerada o cerne da cultura huni kuin, haja vista tratar-se de um dos aspectos mais significativos da sociabilidade entre os núcleos familiares (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre., p. 161). Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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ressalta que, de acordo com essa etnia, se alimentar bem é essencial para manter a saúde do corpo (yuda) e do espírito (yuxĩ). Quem assim o faz é considerado um bom xinanya, ou seja, repleto de boa consciência. Nessa perspectiva, o saber/fazer da alimentação constitui-se também em patrimônio imaterial, repleto de conhecimentos, memórias, práticas e processos diversos, dos quais os Huni Kuin são legitimamente detentores.

A pluralidade de símbolos que o sistema alimentar abrange se manifesta na comensalidade. São valores socioculturais intrínsecos ao ato de se alimentar, expressos em praticamente todas as ações que envolvem o universo da alimentação. Nesta linha de pensamento, a comensalidade diz respeito a estabelecer, atualizar e recriar laços, espaços e representações de sociabilidade (Poulain, 2013Poulain, J. P. (2013). Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar (Série Nutrição). Editora da UFSC.).

A dimensão simbólica da alimentação se apresenta na materialidade das relações sociais do povo Huni Kuin. Senão, vejamos: visitar (bai kai) parentes é um hábito primordial aos vínculos de confiança e reciprocidade. Nestas ocasiões, em regra, os(as) anfitriões(ãs) ofertam alimentos para serem consumidos em conjunto; por seu turno, os(as) visitantes retribuem, levando um preparo culinário ou mesmo algo relacionado, como sementes e mudas. A troca solidária de alimentos, portanto, concede lugar privilegiado à permanência e à renovação do parentesco. Quando os membros das famílias que realizaram a visita retornam para a casa, normalmente o primeiro assunto tratado pelos que não foram é do que se alimentaram quando se encontravam ausentes. Portanto, os recém-chegados são questionados: “mi hawa pishu?”, quer dizer, “o que você comeu lá?” (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 201), um costume que reforça a centralidade da comida nessa cultura.

No momento da refeição, geralmente se formam dois círculos delimitados pelo gênero: de um lado, homens e meninos; de outro, mulheres, meninas e crianças. Dentro desses espaços, incidem regras costumeiras que balizam a postura apropriada de um bom xinanya, qual seja, a moderação: não se grita, nem se aponta com o dedo aos demais, tampouco se mantêm olhar fixo para outrem. Caso contrário, se assume o risco de ser considerado raivoso (sinata) ou imaturo. Conforme observa Yano (2014, p. 35)Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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, “. . . o tom de voz é ameno, as risadas são discretas e os gestos comedidos”.

Para os Huni Kuin, vegetais possuem capacidade de modular o yuxĩ (espírito) dos animais consumidos na mesma refeição. Logo, não é recomendado consumir carne pura. A regulação energética é operada pelo hábito de mastigar juntos alimentos oriundos tanto da fauna (peixes, carnes de caça e/ou de animais de criação) quanto da flora local. Tal costume neutraliza a força do espírito animal (Lagrou, 1991Lagrou, E. M. (1991). Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75772
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). O ato de ingerir os alimentos ao mesmo tempo é denominado naikĩ. Segundo Yano (2014, p. 117)Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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É pela mistura. . . que se efetua o equilíbrio: não apenas na disposição da carne animal e do vegetal nos pratos, mas no modo correto de levá-los à boca, saboreando-os devagar e simultaneamente. É nesse ato da mastigação, denominada nai, que os caxinauá tiram proveito dos atributos gustativos de cada alimento e modulam seus efeitos.

No campo da formação das corporalidades, nota-se a relação existente entre a alimentação dos recém-nascidos e o fato de o leite materno ser entendido como insípido (paisma). Segundo Abreu (1938)Abreu, J. C. D. (1938). Os Caxinauás: ensaios e estudos (3. ed.). Sociedade Capistrano de Abreu., o sabor insosso do leite materno é um aspecto que pode estar relacionado e que se projeta metaforicamente ao corpo dos bebês, peculiarmente tenros e sem rigidez para se manterem em pé sozinhos. Com o desenvolvimento motor, ao passo que se enrijecem, iniciam uma alimentação baseada em sabores diversificados. Dentre eles, destaca-se o adocicado (bata) da caiçuma de milho verde; o azedo (bũkax) de certos frutos cítricos; e o sabor amargo (muka) de sementes e ervas medicinais, o qual está particularmente relacionado à firmeza do corpo (kuxpa) e simboliza a maturidade (McCallum, 1989McCallum, C. (1989). Gender, personhood and social organization among the Cashinahua of western Amazonia [Tese de doutorado, University of London].; Lagrou, 1998Lagrou, E. M. (1998). Caminhos, duplos e corpos: uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawa [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.1998.tde-03012023-135130
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; Yano, 2014Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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, p. 79).

Existem duas espécies da agrobiodiversidade que são essenciais na alimentação huni kuin, a saber, a macaxeira (Manihot esculenta Crantz) e a banana (Musa x paradisíaca L.). Isso ocorre, provavelmente, tanto por uma razão prática (a grande diversidade de preparos possíveis de serem feitos com ambos alimentos) quanto por motivos simbólico-culturais – considerando que os dois vegetais se constituem nos principais alimentos consumidos durante as dietas/restrições alimentares (samã kea) de cunho espiritual realizadas pelos xamãs (mukaya). Para além, também constituem a dieta de pessoas doentes e de mulheres nos diferentes períodos do ciclo menstrual e da gravidez. De acordo com McCallum (2001)McCallum, C. (2001). Gender and sociality in Amazonia: how real people are made. Berg Publishers., a preferência por esses alimentos ocorre por serem isentos de gordura e de yuxĩ (espíritos/almas) maléficos.

PRÁTICAS ALIMENTARES HUNI KUIN

As práticas alimentares4 4 Conceito amplo que envolve aspectos psicológicos, fisiológicos e socioculturais de uma determinada cultura com relação à alimentação. resultam de métodos e procedimentos, levados a cabo por centenas de anos, constituídos de prospecção, seleção, domesticação, cultivo/criação, experimentação e inovação em processos culinários de espécies vegetais, animais e fungos. Tais ações, concernentes à construção do sistema alimentar de um povo indígena, remetem à profunda interação existente entre os indivíduos e seu entorno – sendo um dos aspectos da consolidação de sistemas socioecológicos. As diferentes técnicas5 5 Operações relativas a uma das etapas ou ao processo culinário (caso seja composto por apenas uma técnica). e preparações6 6 Preparos alimentares, a comida propriamente, que resultam dos processos culinários. dizem respeito à cultura (conhecimentos, memórias e práticas) de determinada sociedade. No caso dos Huni Kuin, esta questão promove uma distinção significante: de acordo com colaboradores, existem, de um lado, alimentos tradicionais e substanciais, conforme a expressão “isso é comida de Huni Kuin”, cujo subtexto pode ser traduzido como “comida de gente verdadeira”; e, de outro, alimentos típicos dos nawá (não indígenas), comida do outro, cultural e socialmente distinto (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 20).

Sobre o ato de cozinhar, McCallum (1999)McCallum, C. (1999). Aquisição de gênero e habilidades produtivas: o caso Kaxinawá. Revista Estudos Feministas, 7(1-2), 157-175. sublinha: o termo no hãtxa kuin para cozido é ‘ba’, palavra igualmente utilizada para designar ações relacionadas à reprodução humana, como ‘criar’, ‘procriar’ e ‘nascer’. Tal identificação léxica pode indicar uma forte relação, na cosmovisão huni kuin, entre o ato de cozinhar e a agência da reprodução humana. Ademais, McCallum (1999)McCallum, C. (1999). Aquisição de gênero e habilidades produtivas: o caso Kaxinawá. Revista Estudos Feministas, 7(1-2), 157-175. aponta que parte dos recipientes culinários são considerados análogos, pelos indígenas, ao útero feminino. Nessa perspectiva, Lagrou (2007, p. 509)Lagrou, E. M. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Topbooks. analisa a cosmologia huni kuin no tocante à constituição corpórea dos seres humanos, formada ao mesmo tempo por elementos masculinos (ossos e alimentos amargos) e femininos (pele e alimentos doces).

Tradicionalmente, a panela ritual para caiçuma (bebida tradicional) era decorada nas bordas com caudas de arara. A cauda de arara é um símbolo fálico ligado à origem da menstruação. A caiçuma, produto feminino, se transformará, uma vez consumida pelos homens, em sêmen. A panela é vista como o recipiente daquilo que se tornará sêmen. O instrumento usado para transferir o líquido para os copos, a colher, é representado na decoração da borda da panela. A cauda de arara que decora a panela representa a colher e o pênis. Como uma colher transportando a caiçuma para o copo, o pênis transporta o sêmen para o útero

(Lagrou, 2007Lagrou, E. M. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Topbooks., p. 509).

Uma inferência que pode ser realizada ao se refletir sobre a relação entre cozinhar e reproduzir é que, em ambos os casos, existe um processo de transformação inerente: no primeiro, transforma-se, por meio do uso do fogo, matéria crua em matéria cozida e, no segundo, por meio da relação sexual, os gametas transformam-se em um embrião – futuro ser humano. Esta analogia, em última análise, demonstra a centralidade do gênero feminino na cultura alimentar, porque, além de cozinhar ser uma atividade feminina, também o são as ações que dizem respeito à produção e à reprodução material e simbólica da vida.

PREPARAÇÕES CULINÁRIAS

O Quadro 1 traz uma lista de preparações culinárias registradas entre os Huni Kuin, que serão melhor discutidas a seguir.

CAIÇUMAS

Quadro 1
Resultados dos registros em atividades de campo nas aldeias Nova Empresa, Nova Cachoeira e São Joaquim, na Terra Indígena Kaxinawá do baixo rio Jordão, em 2018-2019, sobre os preparos alimentares com nomes em português e hãtxa-kuin, as formas de consumo, os ingredientes utilizados, os diferentes tipos existentes de cada preparo (a partir das diversas combinações de ingredientes) e se tais preparos são consumidos na atualidade ou se estão em desuso.

Caiçuma costuma ser uma denominação genérica para bebidas fermentadas preparadas pelos povos indígenas da região amazônica, contudo, aquela cujo nome no hãtxa kuin é mabex corresponde a uma bebida que não passa pelas etapas de fermentação e é consumida no dia a dia, em quase todas as refeições. Embora existam diferentes formulações desta bebida, em que os ingredientes são combinados de múltiplas maneiras, a macaxeira ou o milho sempre estão presentes. Os ingredientes complementares são amendoim, batata-doce ou banana madura. Esses, são incorporados como ‘temperos’ que agregam um sabor adocicado (batapa) à caiçuma (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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). Para o preparo desta, os ingredientes são ralados no nisti8 8 Nisti é a denominação no hãtxa kuin para ‘ralador’. Antigamente, era produzido a partir das raízes-escoras da espécie de palmeira paxiubinha (Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.), a qual é permeada de espinhos (acúleos) que possibilitam a técnica. De acordo com Pilnik (2019, p. 128): “. . . atualmente, os raladores são produzidos a partir de latas de alumínio como as de leite em pó, abertas e perfuradas com pregos”. e pilados no xaxu runeti9 9 Em Pilnik (2019, p. 129): “. . . Xaxu é o mesmo nome dado à ‘canoa’, porque a base do pilão também possui formato côncavo, porém em menor tamanho. É produzida a partir da madeira extraída do mulateiro (Calycophyllum spruceanum (Benth.) Hook. f. ex K. Schum.), mede em torno de um metro e meio de comprimento e é disposto no chão com o lado côncavo voltado para cima. Nele, são dispostos gradualmente os vegetais anteriormente ralados (banana, macaxeira, batata-doce) e crus ou torrados (amendoim, milho). Runeti é o pilão propriamente. Esculpido a partir da sapopema do cumaru (Dipteryx ferrea (Ducke) Ducke), possui um formato característico, retangular, como uma espécie de tábua e possui duas ‘alças’ nas laterais superiores, possibilitando seu manuseio”. (pilão tradicional). É formada uma ‘massa’ (paxa), que é, posteriormente, diluída em água e posta para cozinhar no fogão à lenha. Ao passo que a mistura esquenta, é importante mexê-la com um bastão de madeira (bĩti), até engrossar. A consistência apreciada é encorpada com a presença de fibras de amendoim ou milho (Figura 2).

Figura 2
Passo a passo do preparo da caiçuma de macaxeira com amendoim.

Por meio do consumo cotidiano de caiçuma, os indígenas ingerem altos índices de carboidratos e proteínas, contribuindo para a manutenção do padrão de beleza cultural, em que o sobrepeso é considerado belo. Com relação às transformações culinárias das variedades de caiçuma, Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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registrou observações da colaboradora Aldenira Sereno Kaxinawá/Ibatsãi Huni Kuin, 63 anos (in memoriam), quanto às transformações históricas:

Antigamente, não se colocava açúcar na caiçuma, nunca sentimos a necessidade, porque adoçamos de forma natural com banana madura, batata-doce ou mundubim [amendoim]. Hoje em dia, tem mulheres que colocam açúcar na caiçuma e no mingau. A gente percebe que isso não é muito bom para o crescimento das crianças

(Aldenira Sereno Kaxinawá em entrevista concedida a Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 141).

MINGAUS (MUTSA)

O mingau é considerado um dos preparos alimentares mais comuns na cultura de povos indígenas e de comunidades tradicionais amazônicas (Cascudo, 2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil(4. ed.). Global.). Dentre os Huni Kuin, Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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registrou seis variedades de mingau (mutsa): quatro são elaborados com a mistura de espécies cultivadas nos sistemas agrícolas (banana, macaxeira e amendoim) e dois são preparados a partir da farinha de mandioca ou de banana-verde diluída em água.

Os Huni Kuin possuem roçados com uma grande diversidade e abundância de variedades de banana, o que faz com que colham tais frutos ao longo de todo o ano. Possivelmente, em razão desse fator, o mingau mais corriqueiro é o preparado a partir da variedade de banana-comprida (Musa x paradisiaca L.) madura. Para o preparo, deve-se cozinhar as bananas desta variedade, pilá-las no pilão tradicional e peneirá-las para extrair as fibras. Em seguida, a massa formada é diluída em água e posta novamente ao fogo. Pode ser servido puro ou acompanhado de pasta de amendoim ou paçoca (Figura 3). É um alimento-bebida doce e encorpado, muito apreciado pelas crianças. Atualmente, algumas famílias adicionam açúcar refinado a este preparo.

Figura 3
Preparo do mingau de banana-comprida.

Existem mingaus específicos voltados à alimentação das crianças com idade entre seis meses a dois anos. São preparados à base de biomassa de banana-verde ou de farinha de mandioca. Segundo Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, esses mingaus são denominados, respectivamente, de duru mani shu mutsa e duru atsa mutsa. De modo grosseiro, são o resultado da diluição das ‘massas’ (uma ou outra) em água quente. Em Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, as colaboradoras Maria Isaura Mateus/Dani Huni Kuin, 65 anos, e Maria Laisa Sales/Pãteani Huni Kuin, 45 anos, reportam que, para atingir um crescimento saudável e o fortalecimento do corpo, as crianças devem consumi-los com frequência.

MACAXEIRA COM FOLHA (ATSA PEI)

Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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constata que atsa pei, cujo significado é ‘macaxeira com folha’, corresponde à maneira mais trivial de se consumir a macaxeira: cozida com as folhas das espécies nawãti (Trichostigma octandrum (L.) H. Walter), hashumãwã (Phytolacca rivinoides Kunth & C.D. Bouché) ou da própria macaxeira (Manihot esculenta Crantz). Existe também uma variação deste preparo, conhecido como atsa henã, ou seja, ‘rio de macaxeira’, em que é feito uma espécie de caldo, no qual se adiciona mais água ao cozimento e se ralam as folhas das espécies mencionadas acima, o que modifica a coloração do preparo, tornando-o esverdeado (Figura 4). A adição das folhas em ambos cozimentos, além de saborizar a macaxeira, também se configura em uma técnica ancestral de conservação dos alimentos – uma vez que, com a adição das hortaliças, este preparo mantém-se apropriado para consumo até três dias após o cozimento inicial.

Figura 4
Preparo de macaxeira com folhas de nawãti (atsa pei) (A); caldo de folhas de nawãti com macaxeira (atsa henã) (B).

PAMONHAS (MISSI)

A palavra ‘pamonha’ diz respeito a um preparo de milho, que, na língua tupi, é designado “pamunã” (Algranti, 2000Algranti, M. (2000). Pequeno dicionário da gula. Record., p. 382). Embora possua origem incerta, trata-se de um preparo tipicamente indígena (Cascudo, 2011Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil(4. ed.). Global.). O milho, originário do México há milhares de anos, é o ingrediente principal. Configura-se em uma espécie amplamente difundida em diferentes sistemas agroalimentares. O missi, especialidade própria da cultura alimentar huni kuin, notabiliza a origem indígena que Cascudo (2011)Cascudo, L. C. (2011). História da alimentação no Brasil(4. ed.). Global. compete às pamonhas. É preparado por meio de variadas combinações entre as espécies anualmente cultivadas (Quadro 1). Seu beneficiamento é semelhante ao da caiçuma, mas, em vez de a massa (paxa) de milho com amendoim ser diluída em água, é embrulhada na folha de sororoca, de bananeira (mani pei) ou na própria ‘palha’ do milho (Figura 5). Em virtude do uso das folhas para envolver o alimento, pode ser denominado de missi kawá em que kawá quer dizer folha.

Figura 5
Preparo da pamonha de milho com amendoim, embrulhada na folha de sororoca (missi kawá).

Destaca-se que as técnicas de ralar (nissa kin) e pilar (rãnã kin) – no pilão tradicional ou no moedor – são essenciais para a culinária huni kuin. Isto porque elas permitem misturar ingredientes como o milho com o amendoim ou a macaxeira com a batata-doce, atribuindo a eles consistência, textura e sabor, conceito que no hãtxa kuin se diz ‘kapan’ (Yano, 2014Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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).

PASTA DE AMENDOIM E PAÇOCA (MÃTU)

O mãtu, conhecido no português regional pelos Huni Kuin, como pamonha ou ‘bolão’ de amendoim (tama). Todavia, devido ao óleo que é extraído das sementes durante o seu preparo, a textura e a consistência se assemelham mais a uma pasta/manteiga. Para tanto, as sementes de amendoim são torradas e, em seguida, piladas no pilão tradicional até formar uma massa consistente (Figura 6). Caso as sementes estejam imaturas (tama pati), o mesmo processamento resultará em uma paçoca, cujo acompanhamento pode ser a banana-comprida (madura e cozida) ou o açúcar refinado. Os Huni Kuin possuem sete variedades de amendoim que se distinguem basicamente em virtude da coloração das sementes (marrom, branco, rajado, vermelho, vinho etc.).

Figura 6
Preparo da pasta de amendoim ou ‘bolão’ (mãtu) no pilão tradicional.

PURÊS (TUSH)

Existem três variedades de purês que consistem em amassar: a) macaxeira cozida (atsa tush); b) banana-comprida verde (mani shu tush); ou c) banana-comprida madura (mani huxĩ tush). A maceração desses alimentos é realizada no pilão tradicional ou com o auxílio de mão de pilão. No caso do purê de banana madura, que possui sabor adocicado, pode ser acrescentada a pasta de amendoim (mãtu) (Figura 7).

Figura 7
Purê de macaxeira (atsa tush) (A); purê de banana-comprida verde (mani shu tush) (B); purê doce de banana-comprida madura (mani huxĩ tush) (C).

Atualmente, é agregado, em menor ou maior escala, o óleo de soja refinado e o sal marinho à maioria dos purês de sabor que tende ao salgado.

CALDOS (BETE)

O bete é um tipo de caldo ou sopa, cuja mistura (kapan) entre diversos ingredientes, como vegetais, carnes de caça, peixes e/ou fungos silvestres, resulta em seis combinações distintas. É uma especialidade considerada completa na culinária huni kuin, conforme sugere Marluce Sales/Dani Huni Kuin, 45 anos, em Pilnik (2019, p. 149)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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: “O bete é uma comida forte, porque na mesma panela misturamos yunu [vegetais] e nami [carne]. Quando não há carne, pode comer o caldo apenas dos legumes ou com kunu [fungos]. Fica nuwe [gostoso]!”.

No ‘tempo das malocas’, era comum a prática do endocanibalismo entre os Huni Kuin. De acordo com Lagrou (1991)Lagrou, E. M. (1991). Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75772
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, costumava ser habitual o preparo deste tipo de caldo, elaborado com a carne, os ossos e os dentes de parentes falecidos, por parte dos núcleos familiares mais próximos. Os interlocutores da autora ora mencionados reportam que a carne humana é a mais forte dentre todas as demais carnes porque possui ‘muito espírito’ (yuxĩ). Essas carnes costumavam ser cozidas com vegetais para neutralizá-las e não ocasionar nenhuma moléstia; tal prática, todavia, foi abandonada, em razão da intensa repressão feita pelos agentes de contato. Após a proibição do ritual de endocanibalismo pela Igreja e pelo Estado, há atualmente três formas de preparar o bete (Figura 8). São elas:

Figura 8
Preparo do caldo de milho com amendoim e carne de caça (bete).

[Na primeira], a base é banana-comprida verde e variam as misturas, que podem ser carne de caça pequena (jabuti, paca, cutiara), peixes de igarapé (paxku paka) e de rio (henã) ou fungos orelha-de-pau (kunu). Caso não haja disponibilidade dessas misturas, faz-se o caldo apenas dos vegetais. Destaca-se a consistência que a banana-verde atribui ao caldo, que se torna viscoso, em razão do alto teor de amidos resistentes que a banana possui nesse estágio de maturação. Outra maneira de preparar é a partir da massa (paxa) do milho pilado com o amendoim, misturada com os mesmos ingredientes citados anteriormente

(Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 149).

EMBRULHOS NA FOLHA DE SOROROCA OU DE BANANEIRA (KAWA)

Kawa é um termo genérico para os preparos elaborados na folha de sororoca ou de bananeira (mani pei) (pamonhas, beijus, carnes, peixes, fungos silvestres e/ou palmitos) que serão assados ou cozidos no fogão à lenha. As folhas (mani pei), além de armazenar os alimentos enquanto assam/cozinham, possuem a função de atribuir um sabor e um aroma autêntico, bastante apreciado. Esta é uma prática alimentar frequente na cultura de outros povos indígenas da família linguística Pano, como os Jaminawa, os Shanenawa e os Shawãdawa (Martini & Jaminawa, 2010Martini, A., & Jaminawa, J. R. I. (2010). Ambiência Jaminawa: diálogos em pesquisa. Revista de Estudos Universitários, 36(3), 155-180. http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/reu/article/view/505
http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php...
).

O kunukawá é a especialidade em que cogumelos silvestres, denominados popularmente por ‘orelhas-de-pau’, são envoltos nas folhas supracitadas (Figura 9). Neste estudo, foram registradas seis etnoespécies alimentícias de fungos (kunu) que são preparadas desta maneira. Importa considerar que, além de os cogumelos serem alimentícios, também apresentam outros valores culturais. Para ilustrar, durante a etapa de queima da área destinada aos roçados, é tradicionalmente sugerido que as mulheres entoem um canto invocando os cogumelos e seus yuxĩ (espíritos) para que lhes conceba um ‘fogo forte’ para beneficiar o processo de transformação da matéria orgânica em cinzas e, dessa forma, forneça uma produção abundante. Os cogumelos são considerados, para os Huni Kuin, os donos dessa unidade produtiva. Além disso, o canto simboliza um pedido para que os fungos se reproduzam e para que, assim, as mulheres possam coletá-los para o preparo do caldo (bete) e do embrulho na folha (kunukawa). Em que pese esses processos culinários estarem em desuso, é possível observar, a partir da relação estabelecida entre o cultivo de alimentos e os cogumelos, a importância cultural que esses últimos têm para o povo huni kuin.

Figura 9
Preparo de cogumelos orelha-de-pau envoltos na folha de sororoca (kunu kawá).

Já no burãkawa, os palmitos (burã) é que são embrulhados. Foram levantados ao longo da pesquisa os palmitos de murumuru (Astrocaryum murumuru Mart.), paxiubão (Iriartea deltoidea Ruiz & Pav.) e paxiubinha (Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.), espécies que ocorrem em abundância tanto em áreas florestais do entorno das aldeias, quanto também de maneira espontânea nos agroecossistemas indígenas.

CREME DE FOLHAS E BROTOS/PALMITOS (YUXI)

O yuxi é um preparo cremoso e salgado, elaborado com brotos de cana-brava (Gynerium sagittatum (Aubl.) P. Beauv.) ou de taboca (Guadua sp.) ou, ainda, dos palmitos descritos no item anterior; em adição, folhas das espécies mencionadas no item ‘atsa pei’. A massa de milho e amendoim é misturada a esses ingredientes. A depender da combinação entre esses vegetais, é possível criar seis variedades deste creme (Figura 10).

Figura 10
Preparo do creme de brotos e folhas (yuxi).

Para algumas mulheres, é importante preparar e comer o yuxi para a saúde e para a manutenção dos saberes e práticas tradicionais, conforme comentou a interlocutora Maria Isaura Mateus Kaxinawá/Dani Huni Kuin, 65 anos (em entrevista concedida a Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 154):

O yuxi é muito saudável para as crianças. Elas crescem rápido como a tawa maxu [cana-brava]. Hoje em dia é difícil encontrar uma mulher que faz yuxi. Um costume nosso, que vem desde os antigos, de quando está comendo, é repetir três vezes para não gripar! Pra tu ver, é uma comida dos nossos antepassados mesmo.

Durante o período do estudo, em uma oficina de culinária junto às mulheres, foi preparado o yuxi com os brotos da cana-brava e as folhas de nawãti. Entretanto, de acordo com algumas anciãs, antigamente havia uma maior variedade de folhas utilizadas:

Minha mãe preparava o yuxi com vários tipos de folha, não era só nãwãti, haxumãwa e tawa nuki não. Fazia também da folha do yubĩ [taioba], chama xuni yuxi e da folha do nixi barã [jerimum] também. Hoje em dia, a mulherada não faz mais como antigamente

(Carmita Sereno Kaxinawá, 67 anos, em entrevista concedida a Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1...
, p. 154).

O preparo deste prato envolve uma diversidade de técnicas culinárias empregadas. Primeiramente, é realizada a coleta seletiva de brotos de cana-brava10 10 Embora já existam registros científicos sobre o seu uso e potencial alimentício (Kunkel, 1984), ainda não há informações sobre a bromatologia dos brotos de cana-brava na literatura especializada. (tawa maxu) e do nawãti na mata ciliar do rio Jordão; ou dos brotos de taboca (paka maxu) no interior da floresta (ni); ou, ainda, dos palmitos de Arecaceae, distribuídos em distintas unidades de paisagem. Inicia-se o beneficiamento ao se cortar e descascar os indivíduos dos vegetais mencionados no próprio local em que ocorrem. Esta etapa pode levar horas, sendo realizada até que seja reunida a quantia desejada, o que submete as mulheres a possíveis acidentes com insetos e animais peçonhentos.

Após a coleta, regressam às moradias, onde cortam e picam os ingredientes. No intuito de amenizar o amargor, a mistura das folhas e dos brotos ou palmitos (nuki nawãti/raxuãti kapan) permanece ‘de molho’ (txaxka) até o dia seguinte. Dando continuidade ao processamento, pela manhã as mulheres descascam o amendoim (bãrukin) e debulham (rabukin) o milho. Em seguida, ambos são macerados no pilão tradicional ou moídos no moinho manual (introduzido durante o ‘tempo do cativeiro’ nos seringais). Concomitantemente, o nuki nawãti kapan é posto para cozinhar. Havendo carne ou fungos, esses são agregados na mesma panela. Por último, é misturada ao cozimento a massa (paxa) de milho com amendoim. O preparo deve ser mexido com o instrumento bĩti, até engrossar e ficar com a consistência de creme – ponto desejado para servir.

Como informado anteriormente, este preparo é considerado importante para a saúde, pois, de acordo com mulheres interlocutoras, auxilia no desenvolvimento do corpo e na prevenção de doenças – como a gripe –, agindo como um possível imunoestimulante. Um fator de extrema relevância é que os ingredientes utilizados para este preparo são encontrados com frequência nos ambientes naturais e antropizados, o que colabora para a segurança e a soberania alimentar da população – com destaque para a espécie cana-brava (Gynerium sagittatum (Aubl.) P. Beauv.), um recurso local, abundante nas matas ciliares do rio Jordão.

CUSCUZ (MÃKU MISSI)

Antigamente, para o preparo do cuscuz, o milho verde era pilado e, em seguida, colocado em uma cumbuca de cerâmica ou em cuias de espécies da família botânica Cucurbitaceae. Para tornar possível o cozimento à vapor, ambos materiais eram perfurados. Esse beneficiamento tinha como resultado o cuscuz tradicional (Figura 11), que, atualmente, é preparado em panelas de alumínio (cuscuzeiras).

Figura 11
Cuscuz de milho tradicional (mãku missi).

VINHOS DE ARECACEAE

Os ‘vinhos’ são, em realidade, sucos elaborados a partir dos frutos de espécies de palmeiras. Embora não sejam submetidos ao processo de fermentação, a denominação é utilizada devido à coloração e à consistência que adquirem. As espécies mais utilizadas para a bebida são: patauá (Oenocarpus bataua Mart.), bacaba (Oenocarpus bacaba Mart.) e dois tipos de açaí: açaí-solteiro (Euterpe precatoria Mart.) e açaí-de-touceira (Euterpe oleracea Mart.). O manejo dessas palmeiras é realizado em volta das moradias e nos agroecossistemas – neste caso, quando germinam espontaneamente. Já o açaí-de-touceira (E. oleracea Mart.), por se tratar de uma espécie oriunda da Amazônia oriental, portanto, exótica ao Acre, ocorre apenas através do plantio de mudas realizado diretamente nos quintais e sistemas agroflorestais. A preparação desta bebida requer que os frutos sejam lavados e deixados de molho em água morna para amolecer, sendo possível extrair a polpa com maior facilidade. Logo, são pilados com o auxílio da mão de pilão para, na sequência, o conteúdo ser peneirado (Figura 12). O produto é o vinho in natura. Atualmente, costuma-se agregar açúcar no consumo.

Figura 12
Preparo do vinho do patauá.

CAIÇUMA-FORTE (MASATO)

Sombra (1913)Sombra, L. (1913, jan. 11). Os cachinauás: ligeiras notas sobre seus usos e costumes. Jornal do Commercio. – agente enviado aos altos rios acreanos no início do século XX para conter os efeitos perversos das correrias perpetradas contra os povos indígenas – registrou a forma como a bebida fermentada, denominada no português de ‘caiçuma-forte’, era tradicionalmente preparada nas primeiras décadas dos anos de 1900:

Um caldo grosso e escuro, que é preparada com uma mistura de aipim [macaxeira], milho e momdobi [amendoim] bem amassados e posta a fermentar durante cinco dias em um cocho de pachiuba [Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.] cheio de água e que cobrem com folhas de bananeira até poder ser servida, o que é feito pelas mulheres em tigelas de barro

(Sombra, 1913Sombra, L. (1913, jan. 11). Os cachinauás: ligeiras notas sobre seus usos e costumes. Jornal do Commercio. citado em Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 157).

Trata-se de uma bebida fermentada alcoólica semelhante ao caxiri dos povos indígenas da bacia do rio Negro, no Amazonas (Gonçalves, 2017Gonçalves, G. G. (2017). Etnobotânica de plantas alimentícias em comunidades indígenas multiétnicas do baixo rio Uaupés-Amazonas [Tese de doutorado, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho]. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150944
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) ou à chicha dos povos pré-incaicos nos Andes (Cutler & Cardenas, 1947Cutler, H. C., & Cardenas, M. (1947). Chicha, a native South American beer. Botanical Museum Leaflets, 13(3), 33-60.). Culturalmente, os Huni Kuin a consomem em momentos festivos, como aniversários, casamentos, nascimentos, entre outros. A bebida é preparada com órgãos tuberosos: primeiramente cozidos e depois mastigados pelas mulheres para acelerar a fermentação – visto que, dentre as substâncias presentes na saliva, há a enzima ptialina, que possui a capacidade de reverter a atividade de produção do amido, transformando-o novamente em açúcar. Dessa forma, ao mastigar e devolver os tubérculos já liquidificados, as mulheres acabam atraindo fungos úteis para as etapas de fermentação (Gonçalves, 2017Gonçalves, G. G. (2017). Etnobotânica de plantas alimentícias em comunidades indígenas multiétnicas do baixo rio Uaupés-Amazonas [Tese de doutorado, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho]. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150944
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). Para tanto, as indígenas sentam-se em círculo, em volta de duas panelas, a primeira com macaxeira cozida e, por ventura, outras batatas, como ararutão (Canna edulis Ker Gawl.), batata-doce (Ipomoea batatas (L.) Lam.) e jacatupé (Pachyrhizus tuberosus (Lam.) Spreng.). Já a segunda panela é reservada para o líquido salivar (Figura 13). Finalizado o processo, a bebida é armazenada em um recipiente fechado e exposto ao sol durante, em média, três a cinco dias (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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).

Figura 13
Preparo da bebida fermentada de macaxeira (masato).

ÓLEOS E LEITES VEGETAIS

De acordo com os indígenas, a extração de óleos e leites vegetais foi praticamente abandonada na TI Kaxinawá do baixo rio Jordão. As mulheres anciãs, em depoimento extraído de Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, relatam quais espécies eram utilizadas e explicam o método de extração:

Minha mãe tirava muito óleo do patoá, pupunha-brava, cocão, ouri-curi e do ‘mundubim’ [amendoim]. Eu só via, mas nunca tirei. Ela fazia o mingau [‘vinho’] com um pouco de água, deixava descansar por uma noite, no outro dia o óleo estava por cima e bastava tirar com a colher. Já o mundubim era pisado [pilado] cru e o que saía era o óleo, ficava pronto na hora. O leite tirava só do cocão mesmo. A amêndoa era pisada e aquilo ali é o leite

(Olga Sereno Kaxinawá/Tamani Huni Kuin, 78 anos, em entrevista concedida a Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 157).

Em que pese estar em desuso, é importante reforçar os benefícios nutricionais e medicinais dos óleos e leites vegetais, sobretudo se comparados aos seus (pseudo)substitutos industrializados.

CHÁS

De acordo com os indígenas, o costume de beber chá como uma bebida do cotidiano, para além do uso medicinal, foi introduzido pelos migrantes nordestinos no período dos seringais. Para esta finalidade, são preparados por meio da infusão das folhas de abacateiro (Persea americana Mill.) (Figura 14A), erva-cidreira brasileira (Lippia alba Mill. NE Br.), capim-santo (Cymbopogon citratus Stapf.) etc. São consumidos ao acordar, antes de iniciar as atividades do dia a dia. Geralmente, adiciona-se a esta bebida quente o açúcar refinado branco. São acompanhados, normalmente, por pamonhas ou beijus preparados na hora. Além dos chás matinais, existem também os preparados para uso medicinal feitos com folhas, cascas e sementes florestais, os quais são consumidos tradicionalmente desde antes do período do contato.

Figura 14
Chá de folhas de abacateiro (A); frutos de araçá-boi (Eugenia stipitata McVaugh) sendo beneficiados (B); suco de araçá-boi liquidificado manualmente (C).

FRUTOS: IN NATURA E SUCOS

A maior diversidade alimentícia entre os Huni Kuin é proveniente dos frutos (nativos e exóticos), consumidos, em sua maioria, in natura. São considerados alimentos complementares à dieta do dia a dia e possuem a classificação de ‘bimi xeati’, cuja tradução mais fiel seria ‘vitaminas’ (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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), o que sugere a compreensão que os indígenas possuem quanto à importância de tais vegetais para a segurança alimentar e nutricional.

Além da forma de consumo in natura, os indígenas também beneficiam os frutos coletados e cultivados em sucos, espremendo a polpa com as mãos ou com auxílio de liquidificador manual (Figuras 14B e 14C). Identificaram-se 19 frutos assim beneficiados, entre os quais dez são cultivados: abacaxi (Ananas comosus L. Merr.), acerola (Malpighia emarginata Sessé & Moc. Ex DC), araçá-boi (Eugenia stipitata McVaugh), cajarana (Spondias dulcis Parkinson), caju (Anacardium occidentale L.), carambola (Averrhoa carambola L.), cupuaçu (Theobroma grandiflorum Willd. Ex Spreng L. Schum), lima (Citrus aurantiifolia Christm. Swingle), limão (Citrus limon L. Burm), melancia (Citrullus lanatus Thunb. Matsum. & Nakai) e tangerina (Citrus reticulata Blanco); e oito são coletados: biorana (Pouteria pariry Ducke Baehni), cacau (Theobroma cacao L.), cacauarana (Theobroma microcarpum Mart.), cajá (Spondias mombin L.), jenipapo (Genipa americana L.), maracujá-suspiro (Passiflora nitida Kunth), pracuúba (Agonandra peruviana Hiepko) e sapota (Matisia cordata Kunth) (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 159).

DINÂMICAS DE TRANSFORMAÇÃO DA CULTURA ALIMENTAR E DOS PROCESSOS CULINÁRIOS

As dinâmicas de transformação da cultura alimentar não são determinadas exclusivamente por estímulos externos, de forma passiva e meramente reativa (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). O nativo relativo. Mana, 8(1), 113-148. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005
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). Ao contrário, os Huni Kuin tendem a responder às transformações históricas, socioculturais, econômicas e ambientais de maneira inovadora e autêntica. Considerando que as culturas são dinâmicas e se transformam ao longo do tempo, no caso específico, observa-se, de um lado, a manutenção de certas práticas fundamentais inerentes ao sistema alimentar e à organização social; de outro, a modificação daquelas que, devido às transformações históricas, são ressignificadas conforme os valores e princípios de cada grupo indígena. Embora parta-se da compreensão de que as práticas culinárias estão contidas no saber tradicional, este, por seu turno, não se configura em mero conteúdo ancestral estagnado no tempo, mas em um modo de vida específico, no qual se praticam saberes (Cunha, 1999Cunha, M. C. D. (1999). Populações tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica. Estudos Avançados, 13(36), 147-163. https://doi.org/10.1590/S0103-40141999000200008
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). Ou seja, o saber tradicional não corresponde a um repositório de conhecimentos, mas personifica-se em uma ciência viva – portanto, dinâmica –, que pesquisa, combina pressupostos, experimenta e inova.

Sob essa ótica, reconhecemos duas principais ondas de transformações no hábito alimentar huni kuin. A primeira teria ocorrido no início do século XX, entre o ‘tempo das correrias’ e o ‘tempo do cativeiro’. Nessa época, ingredientes alheios ao paladar nativo foram agregados à alimentação diária dos grupos indígenas. De acordo com os colaboradores anciãos, o sal e o açúcar teriam sido consumidos pela primeira vez quando os indígenas, foragidos e desprovidos de instrumentos para exercer atividades de caça ou pesca, encontravam acampamentos abandonados de seringueiros e, famintos, se alimentavam do que esses últimos deixavam para trás. Conforme os registros de Sombra (1913)Sombra, L. (1913, jan. 11). Os cachinauás: ligeiras notas sobre seus usos e costumes. Jornal do Commercio., extraídos de Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, ao invés do sal, no hábito tradicional huni kuin as mulheres temperavam o alimento principalmente com a chicória-da-amazônia (Eryngium foetidum L.) e diversas espécies de pimentas (Capsicum spp.):

As iguarias salgadas são desconhecidas entre eles, custando a se afeiçoar a elas quando vêm para nossa companhia; costumam, entretanto, temperar com pimenta ou com folhas de coentro [Eryngium foetidum L.] e de uma outra planta hortense [possivelmente Trichostigma octandrum L.], que encontram no mato

(Sombra, 1913Sombra, L. (1913, jan. 11). Os cachinauás: ligeiras notas sobre seus usos e costumes. Jornal do Commercio. citado em Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 110).

Já no ‘tempo do cativeiro’, os Huni Kuin encontravam-se em condições de subjugação: não lhes era permitido manter suas atividades produtivas tradicionais, o que os obrigava a adquirir nos ‘barracões’ (entrepostos comerciais) dos patrões os suprimentos de primeira necessidade, além das ferramentas de trabalho para o extrativismo do látex da seringueira (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre.). Subordinados obrigatoriamente ao sistema de aviamento que dominava as colocações, inevitavelmente passaram a consumir, com maior frequência, uma série de produtos exógenos anteriormente desconhecidos (Aquino & Iglesias, 1994Aquino, T. D., & Iglesias, M. P. (1994). Kaxinawá do rio Jordão: história, território, economia e desenvolvimento sustentado. Comissão Pró-Índio do Acre.). Nos registros de Pilnik (2019)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, os(as) anciãos(ãs) apontam que, nesse período, houve a introdução de diferentes itens alimentícios, como o café, o arroz, o feijão-de-corda, o açúcar mascavo e a farinha de mandioca. Após o primeiro ciclo da borracha, engenhos rústicos e casas de farinha foram sistematicamente introduzidos nos seringais, configurando-se em uma nova atividade econômica de responsabilidade dos grupos indígenas.

É possível verificar que a dieta alimentar foi inicialmente modificada de maneira limitada. Em geral, houve introdução de um número determinado de produtos de primeira necessidade, sobretudo oriundos de processamento artesanal e isentos de aditivos sintéticos. A datar de 1980, os Huni Kuin passaram a reivindicar junto aos poderes públicos constituídos a demarcação de seus territórios e a implementação da educação escolar indígena. Por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as aldeias com estabelecimentos de ensino passaram a receber merenda escolar, constituída, essencialmente, por produtos industrializados. Na década de 1990, a municipalização da vila do Jordão, adjacente às terras indígenas Kaxinawá, intensificou o comércio local. Este conjunto de fatores representam o início da segunda onda de mudanças contemporâneas no hábito alimentar, determinada pelo consumo, sem precedentes, de gêneros alimentícios (ultra)processados.

No início do século XXI, com a efetivação de políticas públicas voltadas à previdência e à assistência social, quase todos os núcleos familiares tiveram pelo menos um integrante contemplado com os mecanismos de seguridade social. Em virtude disso, os Huni Kuin passaram a acessar com mais frequência os mantimentos industrializados que circulam nas cidades. Atualmente, todo início de mês, os indígenas deslocam-se à sede do município de Jordão, no Acre, para sacar dinheiro e adquirir o que julgam necessário. Se, por um lado, essa renda financeira é fundamental para possibilitar a aquisição de produtos indispensáveis ao modo de vida sedentário (combustível, óleo, sabão etc.); por outro, contudo, intensificou o consumo de produtos alimentícios industrializados. Dentre eles, vale ressaltar, além dos já mencionados anteriormente, estão leite de gado e suco em pó, ‘salgadinhos’, macarrão, bolachas/biscoitos, frituras, doces, refrigerantes etc.

Outro possível desdobramento do incremento monetário entre os indígenas diz respeito ao abandono da produção de açúcar mascavo (‘gramixó’) por grande parte dos núcleos familiares, os quais passaram a adquirir açúcar refinado na cidade. Da mesma forma, muitos deixaram de produzir farinha de mandioca para adquirir o produto pronto, disponível nos mercados. Ademais, foi informado que nenhum morador da TI Kaxinawá do baixo rio Jordão extrai os óleos vegetais de palmeiras, tampouco de amendoim, haja vista a opção pelo óleo de soja ou de milho, ambos refinados, igualmente obtidos na cidade. Frente a essa nova realidade, os indígenas envolvidos no estudo alertam para a redução da produção e da diversificação da agrobiodiversidade, em razão da substituição de certos alimentos tradicionais por produtos (ultra)processados. Essas reflexões apontam para o caráter contraditório presente neste contexto social amazônico: ao mesmo tempo que existe a necessidade de esses grupos se relacionarem com a sociedade não indígena para garantir direitos, também se tornam suscetíveis ao que os centros urbanos oferecem e que, por vezes, não se traduz em benefícios à saúde, nem à própria sociedade indígena.

Neste ponto, cabe retomar a ideia de que a cultura não é estática. Conforme constatado em Pilnik (2019, p. 173)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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Às formas de preparo tradicionais são adicionados sal nos cozidos e açúcar em certas bebidas (vinhos, sucos e chás). O óleo de soja transformou-se em um ingrediente essencial para os purês, além de seu consumo ser responsável pela introdução de frituras no hábito alimentar.

Igualmente, ao acompanhar famílias huni kuin em atividades no Jordão, Acre, é possível observar um consumo excessivo de doces, bolachas e sorvetes – sobretudo por jovens e crianças. Para alguns colaboradores, entrevistados por Pilnik (2019, p. 173)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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Essa comida da cidade tem química. As crianças gostam porque é doce. A gente sabe que faz mal pra saúde. Com a falta de orientação, acham que pelo gosto ser bom, faz bem pra saúde, mas estão enganados. Melhor comer mingau com banana e mundubim [amendoim] pra ficar bem forte. Muito melhor do que suco em pó com bolacha. Tem muita gente que tá comprando da cidade porque vê os brancos comer, mas eles estão doentes também

(Lucas Sales Kaxinawá/Bane Duabake Huni Kuin, 36 anos, agente agroflorestal indígena).

O que eu já observei é que quando a gente tem filho, compra leite, bombom, doce. Os pais não mostram as comidas naturais pros filhos, só comida da cidade. Desde criança já está se acostumando com açúcar, muito sal, muita banha. Os donos das famílias não estão cuidando. Os dentes das crianças estão estragando. A culpa não é das crianças, é do pai e da mãe. Se não cuidar do corpo, ele já próprio estraga os dentes. Quando o dente nasce já está quebrado

(Francisco das Chagas Sabino Maia/Huni Kuin, 33 anos).

Embora existam indígenas que, por experiência própria, já percebem as desvantagens do consumo desmedido de alimentos industrializados, em termos gerais, prevalece a carência de informação sobre o impacto desses produtos na soberania e segurança alimentar e nutricional. Ainda assim, conforme identificou Yano (2014)Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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, é interessante destacar a percepção que os Huni Kuin possuem quanto aos condimentos industrializados (‘comida dos nawá’, isto é, dos não indígenas): “... tanto o sal como o açúcar é bata, cuja ingestão desmedida faz doer o estômago, dilui a força da carne, tira seu gosto e quebra o equilíbrio necessário entre os sabores” (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 173). Na dinâmica da cultura alimentar, hábitos ora assíduos e tradicionais estão atualmente subutilizados e/ou em desuso. Em todo caso, possivelmente, estão presentes apenas na memória dos anciãos, e não mais na prática coletiva cotidiana. A depender das mediações, as mudanças constatadas podem ameaçar a agrobiodiversidade, as preparações culinárias e até a autonomia alimentar das comunidades.

PRÁTICAS ALIMENTARES SUBUTILIZADAS E EM DESUSO

Conforme apresentado no Quadro 1, existem algumas preparações alimentares que se encontram subutilizadas ou, até mesmo, em desuso. Em comum, possuem ingredientes oriundos de áreas florestais. Outra característica compartilhada é que podem ser considerados alimentos emergenciais por serem associados a estratégias de sobrevivência em momentos cuja alimentação é escassa. Também, são atualmente menos consumidos possivelmente em razão da introdução, nas últimas quatro décadas, de alimentos exógenos industrializados. Outrossim, colaboradores anciãos reportam que, no passado, os núcleos familiares caminhavam com maior frequência nas unidades de paisagem florestais e, por isso, possuíam maior interação com sementes, brotos, palmitos, fungos e certos frutos. Segundo constatou Pilnik (2019, p. 114)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, esse maior contato se deu:

a) no “tempo das malocas”, em virtude da significativa importância das práticas de coleta para a segurança alimentar; b) no “tempo das correrias”, devido à escassez de alimentos a que estavam sujeitos pelas perseguições; e c) no “tempo do cativeiro”, em decorrência da própria condição de trabalho extrativista, enquanto seringueiros, percorrendo a pé, cotidianamente, as chamadas “estradas de seringa” no interior da floresta.

Na atualidade, outro fator que influencia diretamente a subutilização e o desuso de certas práticas alimentares são as transformações no modo de vida. O fato de viverem em um território delimitado impõe restrições ao acesso e ao controle dos recursos florísticos e faunísticos a que estavam habituados a utilizar. Esta situação é agravada se for considerado que o crescimento populacional aumenta a pressão na biodiversidade. Frente a esta nova condição de sedentarismo, os Huni Kuin priorizam atividades produtivas voltadas à agricultura. Portanto, atividades ora corriqueiras tornam-se acessórias (como coleta de frutos, sementes, brotos e palmitos), afinal, deixaram de circular nos ambientes naturais, como antigamente, o que pode se desdobrar no abandono de determinadas preparações alimentícias (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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). Para além, a conversão de porções de vegetação nativa em áreas de pastagens também compele a certas transformações alimentares.

Nesse sentido, entende-se que existe um processo em curso de fragilização da transmissão intergeracional do conhecimento. É o que se observa ocorrer com saberes e práticas alimentares relacionados tanto aos recursos vegetais florestais quanto às variedades de espécies cultivadas. Em ambos os casos, trata-se de um conhecimento relativo à biodiversidade que era manejada (e, portanto, reproduzida socialmente), mas que, hoje em dia, representa práticas quase extintas. Cruz et al. (2013)Cruz, M. P., Peroni, N., & Albuquerque, U. P. (2013). Knowledge, use and management of native wild edible plants from a seasonal dry forest (NE, Brazil). Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, 9(1), 79. https://doi.org/10.1186/1746-4269-9-79
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indicam que o abandono de práticas tradicionais diz respeito, entre outros aspectos, à perda do conhecimento associado aos processos. Tal fenômeno se coaduna com o depoimento da colaboradora Neusa Maia Kaxinawá/Maspã Huni Kuin, 45 anos, citado em Pilnik (2019, p. 166)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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: “Eu lembro da minha mãe preparando o kunukawá [fungos preparados na folha de sororoca] quando eu era pequena, mas eu mesma nunca fiz aqui em casa. Meus filhos nunca comeram”.

No depoimento acima, caso os filhos de Neusa Maia não conheçam outras famílias que costumem preparar os cogumelos na folha, a transmissão dos conhecimentos relacionados a esta prática será cessada de uma geração a outra; entre eles, a seleção e a coleta dos recursos, as técnicas de preparo e os saberes imateriais relacionados (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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). Tendo em vista que os hábitos são transmitidos oralmente, levando em conta a mudança para um modo de vida sedentário e considerando o volume de propagandas comerciais acessadas pelos indígenas nas ocasiões em que estão nos centros urbanos, é possível sugerir que, em um futuro próximo, haverá redução na aceitabilidade dos preparos de origem florestal – tidos pelos jovens como ‘comidas do passado’ ou com pouca importância, se comparadas aos alimentos processados e ultraprocessados, que poderiam, suposta e erroneamente, ser considerados de melhor qualidade (Cruz et al., 2013Cruz, M. P., Peroni, N., & Albuquerque, U. P. (2013). Knowledge, use and management of native wild edible plants from a seasonal dry forest (NE, Brazil). Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, 9(1), 79. https://doi.org/10.1186/1746-4269-9-79
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).

Tal processo pode ser observado no abandono da extração de óleos e leites vegetais, os quais eram beneficiados por mulheres. Esta situação abrange as três comunidades pesquisadas e, em realidade, toda a TI Kaxinawá do baixo rio Jordão. Segundo a colaboradora Olga Sereno Kaxinawá/Tamani Inanibake Huni Kuin, de 78 anos, isso aconteceu, entre outros motivos, porque, de um lado, a população passou a utilizar o óleo de cozinha industrializado para função alimentícia e, de outro, os óleos vegetais medicinais foram substituídos por medicamentos alopáticos adquiridos na cidade. No ‘tempo das malocas’ e no ‘tempo do cativeiro’, óleos vegetais eram usados tanto para alimentação, quanto para sanar doenças. Nesse sentido, destaca-se o relato de Sombra (1913 citado por Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 158), sobre o uso cosmético e medicinal dos óleos vegetais extraídos na época:

A cabeça é coberta por uma vasta cabeleira de pêlos duros, espessos luzidios e negros, qualidades essas adquiridas com o uso que fazem de óleo do côco da palmeira patauá. Nunca vi índio velho de cabelos brancos, parecendo-se nisso com os africanos que custam a encanecer. . . Esses índios, embora asseados e amigos de tomar banho, desprendem, entretanto de seu corpo um desagradável odor proveniente do óleo de mondubim com que se untam, não só para se resguardar das constipações, catarraes a que estão sujeitos por viverem nus, como também para evitarem as cáusticas e dolorosas ferroadas dos irritantes piuns e carapanãs, terríveis mosquitos e os mais ferozes de quantos animais pululam nos inúmeros rios, lagos e igapós do vasto mediterrâneo amazonense.

Ainda sobre preparações totalmente em desuso, verificamos, neste trecho do relato do viajante Abreu (1938 citado por Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, p. 157), descrições de bebidas elaboradas com plantas essencialmente florestais:

Sani bari tirou casca de sumaúma, palmitos e gommos de paxiubinha, de paxiúba, de urucuri, de jarina, misturou-os, pillou-os, despejou a mistura em uma panella, levou-a ao fogo, fez uma beberagem chamada xuma, e depois de fria ingeriu-a. Deitou-se na rede, no mesmo instante veiu a bebedeira; ficou tonto, levantou-se, poz-se a rodar, sahiu para fora cantando, trepou até os galhos de uma sumauma pequena, aonde as almas o acolheram e trataram bem e deram muitos presentes. Chegado a casa deitou-se, deram-lhe um banho quente e nunca mais bebeu.

A respeito das preparações culinárias categorizadas como subutilizadas e em processo de desuso (Quadro 1), destacam-se as seguintes: i) kunukawa (fungos orelha-de-pau embrulhados na folha); ii) burãkawa (palmitos embrulhados na folha); iii) yuxi (creme de palmitos ou de brotos de cana-brava/taboca com amendoim, milho e folhas de hortaliças nativas e cultivadas); iv) bete (caldos de banana-comprida verde ralada); v) sementes de espécies florestais cozidas ou assadas; e vi) certos frutos florestais consumidos in natura. As pamonhas (missi), conforme apontam algumas mulheres, também são menos consumidas do que antigamente. Além disso, sua técnica de preparo sofreu alterações. Algumas famílias têm substituído a folha de sororoca e a palha do milho por embalagens plásticas descartáveis, oriundas de produtos como arroz ou macarrão. Esta é uma prática preocupante, visto que o plástico, submetido a altas temperaturas, libera substâncias tóxicas, por exemplo, dioxinas, bastante prejudiciais à saúde (Freire et al., 2008Freire, M. T. D. A., Bottoli, C. B. G., Fabris, S., & Reyes, F. G. R. (2008). Contaminantes voláteis provenientes de embalagens plásticas: desenvolvimento e validação de métodos analíticos. Química Nova, 31(6), 1522-1532. https://doi.org/10.1590/S0100-40422008000600043
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).

Dentre as espécies cultivadas em desuso, sobretudo devido à redução de sua produção, pode-se identificar o dale-dale (siu), o feijão-macuco (yuxu) e certas variedades de taioba (yubĩ – das quais é possível consumir as batatas e as folhas) e de milho-massa com colorações raras (como arroxeadas e avermelhadas). Para além, os indígenas indicaram haver também algumas espécies das quais não se tem informação sobre seu cultivo atual nas aldeias, como uma variedade de macaxeira (nia yuxu) consumida crua e um tipo de jerimum nomeado xupã na língua indígena. Um ponto em comum observado nas entrevistas promovidas com os adultos está relacionado aos ingredientes hoje subutilizados: muitos narram que se alimentavam deles durante a infância, quando as mulheres das famílias as preparavam. Igualmente, constatam que grande parte dos jovens e das crianças das novas gerações nunca sequer teve oportunidade de experimentar tais sabores. A colaboradora Melita Sereno Kaxinawá, de 51 anos (em entrevista concedida a Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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, pp. 168-169), sugere que um dos aspectos determinantes para essa situação está relacionado à introdução de alimentos exógenos:

Tem comida nossa antiga, do tempo dos xenipabu [antepassados], [como] o yuxi e o kunu [fungos orelha-de-pau], que hoje em dia os parentes tão deixando de fazer. Acho que porque estão gostando de comer esses produtos da cidade. Aqui a gente ainda cozinha, mas menos do que antigamente.

Frente a essa constatação, é importante notar que os Huni Kuin – principalmente mães, avôs e avós – consideram uma questão sensível o impacto que tais alterações acarretam para a saúde das futuras gerações e a manutenção dos hábitos tradicionais. Este tema está relacionado, portanto, com a segurança, a soberania alimentar e a reprodução sociocultural. As preparações tidas como ‘dos xenipabu’ (antepassados) são vistas pelos indígenas mais velhos e experientes como fundamentais para o crescimento da criança e para a saúde coletiva do núcleo familiar, conforme relato registrado por Pilnik (2019, p. 176)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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:

A comida da nossa cultura é muito forte! Quando a gente dá o yuxi feito de nuki [broto de Gynerium sagittatum (Aubl.) P. Beauv.] pra criança, ela cresce rápido igualmente o tawa maxu [cana-brava]. O bete é muito saudável porque nele a gente mistura a nami [carne] com os yunu [vegetais]... O kunu [fungos orelha-de-pau] é o dono do roçado, ele tem muita força. É sempre bom comer pra ter força também!

(Mariana Paulino Kaxinawá/Yeke Huni Kuin, 82 anos).

De acordo com os interlocutores anciãos, para os Huni Kuin todos os corpos (yuda) são habitados por yuxĩ – traduzido como ‘espírito’ –, o que confere ao corpo a vitalidade e o movimento (Lagrou, 1991Lagrou, E. M. (1991). Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75772
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; Yano, 2014Yano, A. M. T. (2014). Carne e tristeza sobre a culinária Caxinauá e seus modos de conhecer [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-16072015-122344
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). Portanto, esse yuda yuxĩ (composto por matéria e espírito) deve se alimentar de comidas que lhes são substanciais, forjadas para adaptação à vida na floresta. Caso contrário, o pensamento (xinan) se tornará enfraquecido, impactando o corpo através de desmaios, nissũ (atração de energias negativas maléficas à saúde, que causam tontura, preguiça, sonolência etc.), ou, até mesmo, acarretando óbito (Pilnik, 2019Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
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). Sob essa perspectiva, alimentar-se de comida huni kuin não é apenas essencial à saúde, mas está intimamente ligado à cosmovisão desse povo indígena.

CAMINHOS PARA SALVAGUARDAR O PATRIMÔNIO ALIMENTAR

Conforme visto, no ‘tempo dos direitos’, foi estabelecida a alimentação escolar industrializada nas escolas indígenas do Jordão, Acre. Segundo os agentes agroflorestais, os produtos chegavam às comunidades em grandes quantidades. Embora fossem destinados a suprir a alimentação referente a um mês de aulas, eram assimilados pelas famílias como uma novidade e tratados como alimentos sazonais. De acordo com os participantes, é “como se fossem frutas”. Nesse sentido, a remessa enviada para abastecer as escolas por um mês acabava sendo consumida em poucos dias. Depois de um período de experiência com esses novos ingredientes na alimentação dos estudantes, pais e professores perceberam que não seria conciliável com a cultura alimentar, nem com a gestão do território, conforme um depoimento do agente agroflorestal da aldeia Nova Empresa acerca do tema, registrado por Pilnik (2019, p. 171):

Além de prejudicar nossa saúde, a merenda industrializada estava sujando nossa terra porque é muito lixo, tem certos tipos de embalagem que é muito perigoso. Por exemplo, as latas. Se não cuidar, os meninos podem se cortar, se encher de água pode trazer mais problemas, carapanã, dengue. Então é um monte de problemas que tínhamos na terra indígena

(Lucas Sales Kaxinawá/Bane Duabake Huni Kuin, 36 anos).

A partir da iniciativa de pais e professores indígenas, demandou-se da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) do Jordão, no Acre, uma solução conjunta para garantir a permanência das escolas dentro dos territórios indígenas, sem, contudo, comprometer a saúde dos jovens e das crianças. Após anos de tentativas frustradas na alimentação escolar, sobretudo diante das dificuldades encontradas pela SEMEC para distribuir os produtos industrializados às aldeias (devido às longas distâncias e aos complexos deslocamentos), somado aos prejuízos à saúde, à conservação da cultura alimentar e à gestão territorial, foi levada a cabo a primeira iniciativa de alimentação regionalizada do estado do Acre, operacionalizada por meio do PNAE.

Em vista disso, grande parte do alimento fornecido nas escolas passou a ser oriundo dos roçados das próprias comunidades. Esta iniciativa trouxe múltiplos benefícios, como a preservação de práticas alimentares tradicionais, promoção de qualidade de vida e redução de resíduos sólidos. Do mesmo modo, houve geração de renda para os indígenas que cultivam os alimentos (fornecedores) e para as pessoas que cozinham e servem as refeições (merendeiras), em virtude do mercado institucional operacionalizado via SEMEC, com subsídio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Fruto da organização e luta das comunidades, em articulação com o poder público, essa conquista social pode ser compreendida como um dos caminhos para a salvaguarda do patrimônio alimentar do povo Huni Kuin, tendo em vista promover a valorização da alimentação tradicional desde a primeira infância.

Em diálogo com Santilli (2015)Santilli, J. (2015). The recognition of foods and food-related knowledge and practices as an intangible cultural heritage. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, 10(3), 585-606. https://doi.org/10.12957/demetra.2015.16054
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, a patrimonialização de práticas e saberes relacionados à alimentação é uma ferramenta de reconhecimento e valorização do saber material e imaterial de um determinado coletivo. Observando as experiências positivas entre outros povos indígenas – como a salvaguarda de sistemas agrícolas tradicionais da região do rio Negro (Neri, 2018Neri, I. F. (2018). Valorização dos produtos do sistema agrícola tradicional do médio rio Negro no Amazonas: de circuitos invisíveis a novas alternativas de mercados [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. https://repositorio.unb.br/handle/10482/36769
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, p. 62) –, e tendo em mente a cultura alimentar do povo Huni Kuin, sua implementação poderia ser entendida como uma ação pertinente também para essa etnia. Isto porque a patrimonialização caracteriza-se como um instrumento de salvaguarda, conservação e divulgação dos processos tangíveis (i.e., preparações culinárias) e intangíveis (como entoações) que abrangem, inclusive, as práticas alimentares relacionadas com o manejo da agrobiodiversidade e a garantia da segurança e da soberania alimentar e nutricional da população.

A título de ilustração, existem alguns preparos pertencentes ao hábito alimentar tradicional huni kuin que seriam, pelo menos em tese, passíveis de patrimonialização devido a: a) diversidade de espécies e partes vegetais utilizadas; b) diferentes ambientes de ocorrência; c) valor nutricional; d) distintas formas de preparo; e, e) processo de subutilização que enfrentam. Dentre elas, destacam-se o sofisticado creme de brotos, folhas e sementes (yuxi) e as preparações elaboradas na folha de bananeira ou sororoca (kawá), tais como: palmitos; cogumelos orelhas-de-pau; beijus (macaxeira, macaxeira com amendoim); e pamonhas (milho, milho com amendoim, milho com batata-doce, milho com banana-madura, milho com ouri-curi). Nesse sentido, esforços acadêmicos para a pesquisa de espécies tradicionalmente utilizadas poderiam ser pertinentes para enfatizar a necessidade de valorização e preservação do patrimônio alimentar dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.

Os caldos (bete) também são preparações culturalmente importantes para os Huni Kuin. Nesse caso, existe a mistura (kapan) entre vegetais (yunu) e proteína animal (nami) no mesmo preparo. As mulheres explicam a importância dos vegetais como reguladores energéticos do espírito dos animais. Assim, eles são considerados profiláticos contra diversas doenças. Para tanto, a carne deve ser mastigada junto a um vegetal, e isso ocorre de maneira ainda mais sinérgica, ao serem preparados ambos no mesmo processo culinário.

Por fim, trazemos como destaque a pasta de amendoim (mãtu), a qual possui alto valor nutricional e cultural entre os Huni Kuin. Este povo indígena é um dos únicos que cultivam o amendoim na região do alto Juruá. Nesse caso, uma possibilidade de reconhecer o valor intrínseco e a identidade própria da origem sociocultural deste alimento seria o registro de identificação geográfica, ou seja, um símbolo de proteção e valorização não apenas do produto em si, mas dos conhecimentos associados às técnicas agrícolas, aos processos culinários e ao agroecossistema tradicional em que é cultivado.

CONCLUSÕES

A partir desta mirada etnobotânica para o sistema culinário huni kuin, foi possível trazer à tona comidas autênticas elaboradas a partir de diferentes conhecimentos e técnicas – que envolvem processos específicos, desde a colheita ou coleta dos alimentos até o seu processamento (deixar de molho, lavar, descascar, debulhar, ralar, pilar, embrulhar, cozinhar, fermentar etc.). São alimentos oriundos da interação socioecológica entre os indígenas e os sistemas naturais. Essa relação remete à domesticação (em diferentes níveis) de diversas espécies nativas da região amazônica. Por isso, podem ser considerados patrimônios alimentares huni kuin, cujo marcador de sociobiodiversidade ameríndia requer atenção de políticas públicas de preservação cultural.

Conforme podemos notar, a cultura alimentar huni kuin é rica e diversa. Ao mesmo tempo, constatamos que determinados alimentos tradicionais estão sob ameaça de desuso por diferentes razões que dizem respeito às mudanças históricas que o povo enfrenta desde o período do contato com a sociedade não indígena. De acordo com relatos dos interlocutores, muitas transformações nas dinâmicas de processos culinários levam a prejuízos à saúde, à conservação da agrobiodiversidade e à gestão dos territórios. Nesse sentido, verificamos a necessidade de adoção de medidas que auxiliem na valorização da alimentação tradicional e, com isso, garantam a segurança e a soberania alimentar e nutricional das comunidades.

Algumas propostas em âmbito de políticas públicas indicam: fortalecimento e multiplicação de experiências de regionalização da alimentação escolar (por meio de mercados institucionais); capacitação em educação alimentar para professores, pais/mães e agentes agroflorestais; conscientização sobre os prejuízos dos produtos industrializados; e fomento a feiras de trocas de sementes e mudas para incentivar e valorizar a diversificação da agrobiodiversidade local.

  • 1
    Sequência contínua de técnicas reproduzidas com regularidade para a preparação de alimentos.
  • 2
    Unidade familiar e seringueira socioprodutiva cujo intuito era a cadeia produtiva inicial da borracha.
  • 3
    Provimento de produtos exógenos e ferramentas de trabalho. Neste sistema, os indígenas encontravam-se sempre endividados, em razão da imposição, por parte dos patrões, de altos preços pelos mantimentos e, em contrapartida, do ínfimo valor recebido pela mão de obra seringueira. Além disso, outro aspecto que prejudicava os indígenas foi a criação da ‘renda’ – pagamento aos patrões pelo uso das estradas de seringa.
  • 4
    Conceito amplo que envolve aspectos psicológicos, fisiológicos e socioculturais de uma determinada cultura com relação à alimentação.
  • 5
    Operações relativas a uma das etapas ou ao processo culinário (caso seja composto por apenas uma técnica).
  • 6
    Preparos alimentares, a comida propriamente, que resultam dos processos culinários.
  • 7
    Optou-se por utilizar neste estudo a terminologia local para as diferentes variedades de Manihot esculenta Crantz. A variedade consumida cozida ou beneficiada de outras maneiras diferentes da farinha é a macaxeira, já a variedade tóxica utilizada apenas para o preparo da farinha é a mandioca.
  • 8
    Nisti é a denominação no hãtxa kuin para ‘ralador’. Antigamente, era produzido a partir das raízes-escoras da espécie de palmeira paxiubinha (Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.), a qual é permeada de espinhos (acúleos) que possibilitam a técnica. De acordo com Pilnik (2019, p. 128)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
    https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1...
    : “. . . atualmente, os raladores são produzidos a partir de latas de alumínio como as de leite em pó, abertas e perfuradas com pregos”.
  • 9
    Em Pilnik (2019, p. 129)Pilnik, M. S. (2019). “Isso é comida de Huni Kuĩ”: etnobotânica da alimentação indígena no Baixo Rio Jordão, Acre [Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/12861
    https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1...
    : “. . . Xaxu é o mesmo nome dado à ‘canoa’, porque a base do pilão também possui formato côncavo, porém em menor tamanho. É produzida a partir da madeira extraída do mulateiro (Calycophyllum spruceanum (Benth.) Hook. f. ex K. Schum.), mede em torno de um metro e meio de comprimento e é disposto no chão com o lado côncavo voltado para cima. Nele, são dispostos gradualmente os vegetais anteriormente ralados (banana, macaxeira, batata-doce) e crus ou torrados (amendoim, milho). Runeti é o pilão propriamente. Esculpido a partir da sapopema do cumaru (Dipteryx ferrea (Ducke) Ducke), possui um formato característico, retangular, como uma espécie de tábua e possui duas ‘alças’ nas laterais superiores, possibilitando seu manuseio”.
  • 10
    Embora já existam registros científicos sobre o seu uso e potencial alimentício (Kunkel, 1984Kunkel, G. (1984). Plants for human consumption. Koeltz Scientific Books.), ainda não há informações sobre a bromatologia dos brotos de cana-brava na literatura especializada.

AGRADECIMENTOS

Toda nossa gratidão ao povo Huni Kuin, em especial às aldeias Nova Empresa, Nova Cachoeira e São Joaquim – Centro de Memória, da Terra Indígena Kaxinawá do baixo rio Jordão, pela participação ativa no desenvolvimento deste estudo, pelo conhecimento compartilhado, além de toda confiança, respeito e cumplicidade. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento desta pesquisa, dentro do Programa de Apoio à Pós-Graduação e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Desenvolvimento Socioeconômico no Brasil (PGPSE) e do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD-Amazônia), respectivamente.

  • Pilnik, M. S., & Argentim, T. (2024). Etnoculinária do povo indígena Huni Kuin do Jordão, Acre: conhecimentos, práticas e transformações alimentares na Amazônia ocidental brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(2), e20210078. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0078

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Editado por

Responsabilidade editorial: Márlia Coelho Ferreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2023
  • Aceito
    24 Nov 2023
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