Resumo
Estudos etnomusicológicos recentes sobre as flautas xinguanas revelam sistemas de extraordinária complexidade sociológica, simbólica e sonora, abrangendo poética musical, relações de gênero, ontologia política e agência cosmológica. Entretanto, pouco se conhece sobre suas identidades espirituais específicas e as implicações de tais identidades para a economia simbólica dos rituais musicais. O objetivo deste artigo é oferecer uma contribuição ao conhecimento do instrumentarium zoologica Amazonia a partir dos xamanismos musical e visionário-divinatório wauja. O objeto central da minha análise é um trio de flautas de madeira, feito em 1991 e ainda atuante, que tem o jaguar como identidade espiritual e cuja identificação decorre de processos xamânicos. Essa relação entre aerofones e jaguares aponta para o modelo teórico, recentemente proposto, da continuidade ontológica entre seres sobrenaturais e artefatos na Amazônia. Embora a organologia e a materialidade sejam importantes para o entendimento dessa relação, há, porém, um aspecto ainda pouco considerado por esse modelo: a visualidade. Este artigo propõe avançar a hipótese de que a atribuição de identidades espirituais aos aerofones tem uma relação direta com o modo como as transformações corporais são imaginadas pelos xamãs.
Palavras-chave Amazônia indígena; Wauja; Aerofones; Xamanismo; Visualidade; Ritual
Abstract
Recent ethnomusicological studies on Xinguano flutes reveal systems of extraordinary sociological, symbolic, and sonic complexity, encompassing musical poetics, gender relations, political ontology, and cosmological agency. However, little is known about their specific spiritual identities and their implications for the symbolic economy of musical rituals. This article aims to contribute to the knowledge of the instrumentarium zoologica Amazonia based on Wauja musical and visionary-divinatory shamanic knowledge and practices. The central object of this analysis is a trio of wooden flutes, made in 1991 and still active, which has the jaguar as spiritual identity and whose identification derives from shamanic processes. This relationship between aerophones and jaguars points to the recently proposed theoretical model of ontological continuity between supernatural beings and artifacts in Amazonia. Although organology and materiality are important for understanding this relationship, there is, however, an aspect still little considered by this model: visuality. This article proposes to enhance the hypothesis that the attribution of spiritual identities to aerophones directly relates to how shamans imagine bodily transformations.
Keywords Indigenous Amazonia; Wauja; Aerophones; Shamanism; Visuality; Ritual
INTRODUÇÃO
A relação entre aerofones e jaguares tem um antigo e longo registro entre os povos indígenas das Américas. Na América do Sul, por exemplo, uma das primeiras referências data do Horizonte Inicial Andino (c.1000-200 a.C.); a iconografia cosmológica de Chavín de Huántar, Peru, mostra trompetes de concha strombus em uma clara associação com felinos. No obelisco Tello, um dos objetos de culto mais singulares e emblemáticos do Horizonte Inicial Andino (Burger, 2008, p. 683), vê-se, por exemplo, um trompete de concha ao seu centro, cercado por várias figuras de felinos, aves rapinantes e répteis (Rowe, 1967, p. 328). Uma figura estilizada de jaguar também aparece na decoração incisa de um trompete de concha (Rick, 2004)1. Em um dos frisos líticos oriundos do complexo de templos e praças de Chavín de Huántar, vê-se uma figura antropomorfa, com face estilizada de jaguar e com serpentes entrelaçadas como cabelos, segurando uma concha spondyllus na mão esquerda e um trompete de concha strombus na mão direita (Kauffmann, 1978)2. Esse mesmo trompete tem, na sua extremidade superior, uma decoração incisa representando a cabeça de um jaguar. No Palácio de Quetzalpapálotl (AD 450-500) em Teotihuacán, México, encontra-se uma pintura-mural que representa dois jaguares emplumados tocando trompetes igualmente emplumados (Figura 1). Embora os exemplos dessa relação não sejam mais observados nos Andes e na Mesoamérica contemporâneos, eles ainda o são na Amazônia, e em condições de excepcional vitalidade.
Detalhe de mural policromo do Palácio de Quetzalpapálotl, Teotihuacán. Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Contribuições etnomusicológicas recentes sobre as flautas xinguanas (kawoká em wauja, yaku’i em kamayurá, kagutu em kuikuro) revelam sistemas de extraordinária complexidade sociológica, simbólica, formal e sonora, abrangendo poética, gênero e pensamento musical (Piedade, 2004), relações de gênero (Mello, 2005; Franchetto & Montagnani, 2012), ontologia política (Menezes Bastos, 2006) e agência cosmológica (Fausto, 2020a). Em Piedade (2004, p. 119), há menção específica sobre a identidade jaguar de um trio de flautas wauja. Em uma extensa introdução aos estudos dos instrumentos de sopro nas Terras Baixas da América do Sul, Hill e Chaumeil (2011, p. 19) são enfáticos sobre essa relação entre musicalidade e animalidade, afirmando que “The instrumentarium Amazonia is to some degree also an instrumentarium zoologica Amazonia that ties specific peoples and local animal species into musicochoreographic configurations”.
Este artigo é uma contribuição ao conhecimento do instrumentarium zoologica Amazonia a partir dos xamanismos musical e visionário-divinatório wauja do alto Xingu3. O objeto central de minha análise é um trio de flautas kawoká, feito em 1991 e ainda atuante, cuja identidade espiritual é afirmada como sendo do jaguar4, e cuja existência é imbricada na biografia de seu dono ritual original, Itsakumã Wauja, um importante nobre e xamã-cantor, nascido em 1960 e falecido em 2017.
Essa antiga e persistente relação entre jaguares e instrumentos musicais aponta para o modelo teórico da continuidade ontológica entre seres sobrenaturais e artefatos na Amazônia (Santos-Granero, 2009, pp. 4-9). Embora a materialidade seja importante para o entendimento dessa relação, como demonstra Santos-Granero (2009), há, porém, um aspecto ainda pouco considerado por esse modelo: a visualidade, a qual inclui diversos elementos de importância estética. A análise das representações figurativas permite expandir esse modelo em direção às relações entre aspecto e morfologia e entre transformações corporais e atribuição de identidades espirituais. A fim de aprofundar esse modelo entre os Wauja e de entender essas relações em torno de uma manifestação específica do jaguar, este artigo apresenta novas evidências para duas hipóteses desenvolvidas em um recente artigo (Barcelos Neto, 2020a), a partir de um outro instrumento musical xinguano, o trocano, um idiofone de madeira de grandes dimensões. A primeira hipótese sugere a existência de um regime de continuidades ontológicas baseado em transformações interartefatuais (Barcelos Neto, 2020a, pp. 13-19), e a segunda, sustentada pelas categorias dos sistemas musical e visual wauja e kamayurá, sugere que “pitsana (música-timbre) e ogana (desenho, composição gráfica) são expressões de um sistema complexo de identificação animal-espiritual dos instrumentos musicais” (Barcelos Neto, 2020a, p. 22).
Diferentemente do trocano, cujo ritual os Wauja não realizam desde pelo menos 1951, as flautas kawoká têm uma presença ritual frequente e duradoura – mas a ideia primordial é, sem dúvida, de permanência –, cujas consequências podem ser observadas no modo como sua posse e performance ritual conferem significativo prestígio social aos seus donos e músicos. O ciclo completo da existência de kawoká, do seu fazimento e atuação terapêutica à criação das condições para a manutenção duradoura do seu ritual, constitui um dos pontos centrais da ontologia política do sensível (Viveiros de Castro, 2012b, pp. 7-8) xinguana. A prova disso advém, sobretudo, das atuações de kawoká nos rituais intercomunitários de trocas – o Huluki e o Yeju – nos quais o status nobre de pessoas, tanto deste mundo quanto de outros, pode ser reconhecido, reafirmado ou, em circunstâncias muito excepcionais, amplificado (Barcelos Neto, 2008, pp. 235-296).
É também objetivo do presente texto analisar o campo semântico de kawoká na ontologia política wauja do sensível. Os diferentes estados de existência de kawoká apontam para três significados: uma flauta que ‘é’ jaguar (ou outro animal), uma flauta que é ‘do’ jaguar e uma flauta que é, em si, o corpo contingencial de um espírito primordial e excepcional. Essas três condições parecem poder coexistir e, como veremos adiante, não há um esforço discursivo em separá-los de maneira categórica. Uma experiência narrada por Itsakumã Wauja, que reproduzo na seção seguinte, trata do seu adoecimento e cura e sobre como diferentes estados de existência de kawoká se manifestam.
O APARECIMENTO DOS JAGUARES DE ITSAKUMÃ: SUAS FORMAS RITUAIS
O texto a seguir é a transcrição integral de uma narrativa feita em wauja por Itsakumã, em um único episódio, em outubro de 2004. Após ser gravemente adoecido pelos jaguares, Itsakumã se torna dono ritual de kawoká yanumakanãu, as poderosas flautas-jaguar. Os eventos narrados aconteceram entre junho de 1990, início do seu adoecimento, e outubro de 1991, quando ele se considerou curado.
Tempos atrás, vieram até Piyulaga os convidadores kalapalo do Yawari5 que iria ser realizado na sua aldeia de Aiha ainda naquela semana. No dia seguinte, o pessoal começou a tomar epeje, uma raiz que tem como dono o jaguar. Então eu também tomei para provocar vômito, para tirar o sangue6. Depois dos vômitos com epeje não podemos mais comer peixe. Eu voltei para casa, descansei e saí para cortar sapé.
Enquanto eu estava arrancando sapé, eu comecei a sentir falta de ar, não consegui respirar bem e desmaiei naquele mesmo lugar. Depois eu me recuperei e consegui voltar para casa, porém os desmaios retornaram. Meu pai cuidou de mim e eu melhorei um pouco, só assim eu pude ir até Aiha participar do Yawari.
Cheguei em Aiha com um pouco de mal-estar. Mesmo assim participei da festa. Diverti-me com eles. Durante meu retorno para Piyulaga, senti uma forte dor na garganta. Foi porque eu não tomei o epeje do jeito certo que os jaguares causaram essa dor em mim; eu acho que comi algo perigoso depois que vomitei epeje. À dor de garganta juntou-se ainda a falta de ar. Aí eu tive que ir para o Posto Leonardo (Villas-Bôas), para que o médico da FUNAI [Fundação Nacional do Índio] cuidasse de mim. Logo que melhorei, voltei para Piyulaga.
Eu estou contando essa história desde seu início mesmo. Naquele tempo, trabalhávamos na demarcação da Terra Indígena Batovi7. Eu fui até lá ajudar o pessoal a fazer uma picada em direção ao Kamukuwaká8. Eu trabalhei toda a manhã, desde muito cedo. Ao meio dia, aquelas mesmas dores voltaram. Foram os jaguares que voltaram a me fazer mal. Novamente desmaiei.
O pessoal me socorreu. Levaram-me desacordado para o barco e me trouxeram até Piyulaga. Nada sei sobre a viagem. Só sei que viajei desacordado todo o tempo9. Enquanto eu estava assim, eu apenas via apapaatai10, eles eram pessoas estranhas que conversavam comigo.
De Piyulaga fui levado para o Posto Leonardo. Lá, colocaram-me num avião para Brasília. No hospital, o médico cuidou de mim, deu-me remédio, ouviu meu coração e disse que ele não estava bom. Eu sentia dor. Fiquei em Brasília até melhorar. Então voltei para Piyulaga. Quando cheguei aqui, a dor voltou. Parecia que não ia parar.
Meu irmão Ulepe fez sessões xamânicas para mim e me viu passeando e festejando com os jaguares. Eles apareciam mascarados de atujuwá11 e como flautistas de kawoká e kawokátãi12. Aí, o pessoal trouxe apapaatai13 para mim e sopraram tabaco na minha cabeça e no meu corpo. Pouco mais tarde, fizeram Pukay14 para eu melhorar. Só depois disso eu pude voltar a andar. Mas essa doença ainda não tinha acabado, a qualquer hora ela poderia voltar a me afligir. Realmente minha dúvida se mostrou certa: os jaguares voltariam tempos mais tarde a me matar.
Quando você está passeando com os jaguares, eles não te dão comida de gente humana, como peixe e beiju. Eles te fazem comer carne de gente humana. Então, enquanto você dorme, você os vê trazendo braços e pernas de gente para você. No sonho, você aceita tudo o que eles te oferecem. Essa carne não é assada, é crua e cheia de sangue. Ao acordar, você sentirá seu estômago inchado, cheio de gazes, soltando arrotos fétidos, sua boca ficará com um gosto ruim e você perderá o apetite.
Fiquei assim, melhorando e piorando. Então, fui mais uma vez para Brasília. O médico examinou meu coração e pediu para eu parar de comer sal. Recuperei um pouco e voltei para o Posto Leonardo, mas não tinha carro para me levar de volta a Piyulaga. Então, fui de bicicleta. No meio do caminho apareceu um jaguar. Ele estava parado no meio da estrada, bem na minha frente. Então, ele veio andando na minha direção, como se eu fosse o dono dele, como se ele fosse o meu cachorro. Jaguar nunca fica manso assim com ninguém.
Já era noite quando cheguei na aldeia e os jaguares me mataram de novo. Passei toda a noite morto, em metsepui (com a alma a passear com os apapaatai).
Meu irmão Ulepe veio até minha casa na manhã seguinte para fazer mais sessões de cura xamânica. Ele viu os jaguares novamente. Eles estavam me matando porque eu tive wĩtsixu15 antes de tomar o epeje para participar do Yawari kapalapo. Foi o meu wĩtsixu que permitiu que os jaguares entrassem em mim.
Passou um mês. Eu já não suportava mais as dores e o mal-estar. Então, pedi para Kaomo16 fazer as flautas kawoká17 para mim, para que os jaguares parassem de me adoecer. Fizeram também kawokátãi e atujuwá. Demorou três semanas para que ficasse tudo pronto. Aí, me entregaram as kawoká e eu fiz os pagamentos: quatro cintos grandes de caramujo, um para cada flautista e um extra para Kaomo. Eles começaram a tocar as flautas e logo em seguida dei comida para eles. Aí, os jaguares ficaram satisfeitos com as comidas e pararam de me matar. Fizeram atujuwá também.
É assim que funciona. Eu sou dono de kawoká yanumakanãu, eles já me mataram muitas vezes porque eles não comiam da minha comida. Por isso, eu tive que fazer as kawoká para mim. Para eu levar mingau, beiju e peixe cozido para os jaguares. Agora eles não me matam mais, nunca mais eu senti dor no coração.
Eram muitos os apapaatai que me causavam metsepui: sapukuyawá, yakui, kuwahãhalu18.
A presença dos kawoká-mona perto de mim me faz bem.
Quando você estiver doente e dormir, e durante o seu sono você vir uma pessoa se aproximando, saiba que ela não é gente de verdade como nós, ela é apapaatai. Então, quando você acordar, começará, com o passar das horas, a sentir dores. Os apapaatai causam muita dor.
Os jaguares, esses são os meus kawoká.
Nos quinze meses compreendidos pela narrativa, há quatro acontecimentos agentivos fundamentais na experiência de Itsakumã: a descoberta, por um xamã visionário-divinatório (yakapá), dos causadores da doença; o breve encontro de Itsakumã, então desperto, com um deles; a decisão de encomendar a feitura das flautas; e, finalmente, a confirmação de que os jaguares se tornaram seus protetores. Nos últimos trechos da sua fala, sabemos finalmente que foi feito para ele um Apapaatai Iyãu, um grande ritual de máscaras e aerofones (Barcelos Neto, 2008), cuja liderança maior fica sempre a cargo de Kawoká, na qualidade de apapaatai primordial, espírito de grande poder, liderança e capacidade protetora. Esse ritual tem atujuwá, poderoso espírito celeste, como máscara principal. Carregado de substâncias e elementos de poder patogênico letal, atujuwá teria sido o vetor, segundo uma narrativa mítico-histórica (awnaki) wauja, do grande surto epidêmico que exterminou, no início do século passado, os Kustenau, outro povo de língua arawak do alto Xingu (Ireland, 1988).
O fato de a terapia xamânica de Itsakumã ter culminado em um Apapaatai Iyãu, ao invés de ter sido feita de pequenos em pequenos rituais ao longo de vários meses, como é comum para os indivíduos de pouco prestígio político ou de status não nobre, indicava uma decisão de um grupo de nobres sênior em favor de um nobre júnior, Itsakumã, neste caso. A realização de um Apapaatai Iyãu foi um passo definitivo para o engrandecimento de seu status nobre em nível aldeão.
Quando Itsakumã tomou a decisão crucial de encomendar as flautas para que os jaguares parassem de lhe adoecer, ele deixou aberta a possibilidade para que seus kawoká-mona lhe preparassem o Apapaatai Iyãu, pois kawoká yanumaka, um dos espíritos que o adoeceu, é o chefe (amunaw) de todos os espíritos, e o jaguar, o chefe dos animais. A flauta-jaguar é, portanto, o dono-chefe de todos os espíritos-animais.
Para o Apapaatai Iyãu de Itsakumã foram feitas, além de kawoká, a flauta globular mutukutãi e a flauta de bambu kawokatãi. Dentre as dezenas de tipos de máscaras conhecidas pelos Wauja, foram feitas atujuwá, sapukuyawá, kuwahãhalu e yakui. As três primeiras são de palha e a última de madeira, sendo esta uma roupa-máscara usada pelos povos-peixes para se movimentarem tanto pelos rios terrestres quanto celestes. Yakui é a única máscara que integra o complexo ritual do trocano, tanto entre os Wauja quanto entre os Kamayurá. Mas a novidade da festa era mesmo atujuwá, a máscara gigante que veio como jaguar, o jaguar celeste (Figura 2). A máscara atujuwá é uma onaĩ, i.e. roupa-equipamento para voar (‘tipo foguete, helicóptero, avião’, em uma comparação feita pelos xamãs Kamo e Aulahu), por isso ela confere aos seres-jaguares que a vestem a possibilidade de ir passear no céu. Ao todo, foram trazidos sete jaguares diferentes para o Apapaatai Iyãu de Itsakumã: três na forma das flautas kawoká, dois na forma da máscara sapukuyawá e dois na forma da máscara atujuwá. As duas primeiras formas realizam um trânsito aquático-terrestre e a segunda, celeste-terrestre. Assim, no Apapaatai Iyãu, os Wauja colocam em curso um grande movimento de espíritos-animais desde seus diferentes domínios do cosmos até a aldeia. Havia no Apapaatai Iyãu de Itsakumã dois grupos distintos, porém não antagônicos, de espíritos-animais: os jaguares e os peixes. Esses são os mesmos grupos de espíritos-animais reunidos para um confronto ritual, na forma de luta, no Kaumai (Kwarup) primordial que os irmãos gêmeos Kamo (Sol) e Kejo (Lua), filhos do jaguar, fizeram para sua mãe humana. Embora o Kaumai e o Apapaatai Iyãu sejam rituais muito diferentes entre si, eles reafirmam e celebram o status nobre de seus donos. Ao fim do Apapaatai Iyãu, que pode durar entre três e oito semanas, as máscaras são gradualmente queimadas, permanecendo intactos apenas os aerofones. Embora esses movimento e espacialidade espiritual sugiram um desenho cosmográfico terrestre-celeste-aquático, a ênfase simbólica é mesmo sobre uma ideia de encontro e reencenação, cujos principais mediadores, ou mestres de cena, são invariavelmente os xamãs musicais e visionário-divinatórios. Todos os seres sobrenaturais presentes no Apapaatai Iyãu são imagens-personagens do passado mítico. O encontro com eles é, para os Wauja, uma experiência apoteótica. Como explicam as teorias kamayurá (Menezes Bastos, 2007, pp. 297-298) e wauja do ritual (Barcelos Neto, 2013, pp. 182-190), a música é o pivot da transformação do mito (verbo) em dança (corpo, movimento). Em uma variação desse modelo transformacional, música e máscara somam-se, no Apapaatai Iyãu, para produzir o desenho cosmográfico ora mencionado. Sobre a relação entre ambas, escreve Piedade (2004, p. 226):
Como as máscaras, as flautas são extensões existenciais do kawoká, sendo que a música das flautas está posicionada como simétrica à imagem da máscara. Assim, a música de kawoká é como a imagem do apapaatai, potalapitsi (“cópia”), uma sua extensão existencial. Não se trata de uma metáfora, mas muito mais de uma metonímia. Parece-me que o som da música de kawoká é mais do que o som dos instrumentos: nos termos da semiótica peirceana (Peirce, 1999), trata-se de um índice do apapaatai, uma marca concreta de sua existência. . .
Máscara atujuwá yanumaka do Apapaatai Iyãu de Itsakumã dançando no centro da aldeia Piyulaga, 1991. Fotografia de uma fotografia de autoria desconhecida. Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2000).
A jaguaridade é um tema complexo na Amazonia e sua indexicalidade é amplamente heterogênea, como demonstram várias etnografias. Entre os xinguanos, ela se apresenta em formas visuais, artefatuais, sonoras, musicais (Fausto, 2020a, pp. 179, 183; Vanzolini, 2010, pp. 267-269; Menezes Bastos, 2013) e discursivas (Guerreiro, 2012, pp. 213-214, 222). A jaguaridade, entretanto, não é completamente capturada por indexes materiais ou sensíveis; ela é constituída, antes de tudo, por ideias de poder e de transformação; e suas figuras centrais na Amazônia são o xamã-jaguar (Reichel-Dolmatoff, 1975) e o chefe-jaguar (Fausto, 2020b). Sobre o primeiro, entre os Cubeo, escreve Goldman (1968, p. 331):
El shamán es el principal poseedor del parié (“poder”). Puede ser conocido como pariékokü, hombre de poder, o como yaví, jaguar. . . . El yaví es el shamán supremo, el que puede tomar la forma del jaguar, el que se asocia con los jaguares, el que mantiene al jaguar como un perro.
Seguindo essa referência da identificação do jaguar como cachorro, retomo um trecho da narrativa de Itsakumã: “ele (o jaguar) veio andando na minha direção, como se eu fosse o dono dele, como se ele fosse o meu cachorro”. Essa aparição, de natureza claramente xamânica, era o prenúncio de que Itsakumã se tonaria, de fato, dono dos jaguares. A mansidão indicava uma aproximação entre iguais, pois, logo na noite depois do encontro na estrada, a alma de Itsakumã seria novamente levada pelos jaguares para suas aldeias para comer carne humana.
Essa ideia de poder contida na jaguaridade raramente opera desvinculada de uma presença material e sensível. Entre os Cubeo, novamente, sabemos que uma noção de força-potência agrupa aerofones e jaguares:
El término nativo para poder es parié, un término que se aplica a la fuerza y vigor de un guerrero, a la potencia mágica de las flautas y trompetas ancestrales, a terrible fiereza del jaguar, así como a los poderes mágicos del shamán
(Goldman, 1968, p. 331).
Um agrupamento relativamente semelhante também é observado entre os Wauja, onde ‘lutadores’ (cuja natureza guerreira foi historicamente minimizada por um ethos pacifista) (Gregor, 1994, pp. 244-250), ‘chefes’ (reconhecidos como personificações do jaguar, devem, contudo, permitir seu próprio amansamento) (Fausto, 2020b), ‘xamãs’ (embora não se transformem em jaguares, podem por eles ser tutelados ou guiados) (Barcelos Neto, 2008, p. 167) e ‘flautas’ podem manifestar, de maneiras desiguais, a força-potência do jaguar. Essa desigualdade, que, em princípio, se apresenta como uma diferença de grau, é definida mais profundamente por uma diferença entre as capacidades transformativas dos corpos, inclusive dos corpos nos quais os espíritos-animais podem se manifestar em âmbito ritual. Vejamos na sessão seguinte como esses corpos são vistos pelos xamãs visionário-divinatórios (yakapá) e materializados em processos de figuração e personificação.
TRANSFORMAÇÕES DE ESPÍRITOS-ANIMAIS E CORPOS ARTEFATUAIS: AEROFONES WAUJA
A possibilidade de cura de uma pessoa afetada pelos apapaatai depende amplamente da revelação precisa das características dos mesmos pelos yakapá. É sob uma diversidade de formas mascaradas que os espíritos-animais aparecem mais frequentemente nos sonhos e transes xamânicos (Barcelos Neto, 2020b). Quando os apapaatai aparecem tocando aerofones é o indício de que as almas do doente já estão em um estágio avançado de transformação animal. E dentre esses aerofones, a flauta kawoká é a que tem o maior poder de transformar os doentes, ou seja, de mantê-los comensais em seus domínios espaciais.
Consciente e interessado na excepcional importância da música na cosmologia xinguana, dediquei vários meses das minhas temporadas de campo, de 1998, 2000 e 2004, a recolher desenhos que permitissem construir uma imagética do mundo simbólico dos instrumentos musicais. À abordagem estritamente musicológica das flautas kawoká escapam alguns detalhes sobre seu campo semântico. Para os Wauja, kawoká existe como um espírito primordial e excepcional, cuja forma é exclusivamente uma hiper-flauta (Figura 3). Essa forma não está, em princípio, associada a nenhuma identidade animal específica. Kawoká também existe como instrumento musical nos mundos dos apapaatai. Assim, quando elas são tocadas pelos homens do povo-jaguar (yanumakapoho) em suas aldeias, ganham consequentemente uma identidade jaguar e passam a ser chamadas de kawoká yanumakanãu. Elas são, ao mesmo tempo, flauta-jaguar, ou seja, uma flauta infundida de jaguaridade, e flauta ‘do’ povo-jaguar (yanumakapoho okawokala). A preposição ‘do’ significa fundamentalmente que aquele que tem a posse do instrumento, seja ela temporária ou não, tem sobretudo a responsabilidade de cuidá-lo correta e generosamente.
Kamo Wauja, Kawoká, 2000, pastel a óleo sobre papel, 63 x 45cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (KAM.2000.129.200). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Entre 1998 e 2004, recebi vários desenhos xamânicos visionários que se apresentam como exegeses visuais da sobrenatureza dos instrumentos musicais e dos espíritos-animais a eles associados. Um dos primeiros desenhos relacionados a esse universo foi feito por Itsautaku (Figura 4), o mais sênior yapaká wauja e o dono de vários rituais de apapaatai, dentre eles de kawoká kajutukalunãu, o trio de flautas-sapo, ou de sapos flautistas19. Itsautaku foi um dos meus principais informantes e dos mais prolíficos desenhistas com quem trabalhei em Piyulaga. No dia 3 de abril de 1998, Itsautaku desenhou espontaneamente20 para mim o sonho em que dois de seus sapos flautistas, kajutukalu-kumã (figuras em vermelho, Figura 4), se transformavam em panelas zoomorfas sapo (kajutukalukana, figuras em preto à esquerda e à direita da folha, Figura 4). As transformações de pessoas e de animais em panelas de cerâmica e vice-versa são um tema de interesse dos yakapá, sobretudo de Kamo (Barcelos Neto, 1999, p. 134)21, Ajoukumã (Barcelos Neto, 2002)22 e Itsautaku (Barcelos Neto, 2020b, pp. 231-232). No dia 10 de abril de 1998, Itsautaku desenhou, também espontaneamente, o terceiro e último sapo flautista (Figura 5), que é precisamente o kawokatupá, ou seja, o mestre de música do seu trio de flautas. Foi apenas quando Itsautaku explicou a relação do segundo desenho com o primeiro que tive uma pista inicial de que os kajutukalu-kumã poderiam fazer parte de um tema mais amplo que envolvia música e transformações artefatuais.
Itsautaku Wauja, Kajutukalunãu, Kajutukalukana, Watapakana, 1998, crayon sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (ITS.1998.005.386). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Itsautaku Wauja, Kajutukalu-kumã, 1998, lápis de cera e caneta hidrocor sobre papel, 44 x 32 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (ITS.1998.020.401). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Kaomo, o então kawokatupá das kawoká kajutukalunãu de Itsautaku, apresentou, no dia 11 de abril de 1998, uma visão aparentemente inusitada desses sapos flautistas. Ele os desenhou, também de modo espontâneo, com a cabeça em forma do aerofone globular (mutukutãi)23 e incluiu olhos, boca, pintura facial e membros superiores, apresentando-os como seres mascarados (Figura 6). Itsautaku, por sua vez, desenhou kajutukalu-kumã com quatro dedos nos membros superiores, próprio da morfologia desse bufonídeo, porém lhe conferiu um curioso corpo zooantropomorfo e uma cabeça com características de máscara: face em forma de trapézio invertido, boca dentata e pintura de um motivo gráfico de linhas escuras em torno dos olhos. Esse motivo, chamado wakuyukuyu (falcão), é exclusivo da pintura facial aplicada em pessoas e máscaras.
Kaomo Wauja, Kajutukalu-kumã onaĩ/mutukutãi, 1998, grafite e crayon sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (KAO.1998.012.565). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Importante abordar aqui o contexto em que esses três desenhos foram produzidos. Um dia depois de desenhar seu kawokatupá kajutukalu-kumã e de explicar seu significado para mim, Itsautaku chamou a mim e a Maria Ignez Mello24 para conhecermos seus kawoká kajutukalunãu, que ficavam guardados em um pequeno depósito no quintal de sua casa. Esse evento deflagrou uma situação tensa e delicada em Piyulaga, que durou alguns dias, pois Mello, sendo mulher, não poderia ter visto as flautas kawoká25. Essa apresentação inesperada e turbulenta de kawoká despertou um interesse repentino sobre o apapaatai kajutukalu. Logo naquele mesmo dia, Kaomo os desenhou (Figura 6), e os yakapá Ajoukumã e Kamo o desenharam em cinco diferentes versões, todas espontâneas, durante as semanas seguintes ao evento. Depois disso, o interesse por esse personagem desapareceu, retornando apenas uma única vez, em 23 de setembro de 2000, em um desenho feito por Kamo (Figura 7), que apresenta um casal de kajutukalu-kumã com o tronco em forma de sepultura, sem os membros superiores e inferiores e o rosto com pintura facial. Itsautaku, por sua vez, nunca mais mencionou nem desenhou de novo seus kajutukalunãu.
Kamo Wauja, Kajutukalu-kumã toneju e oneja, 2000, pastel a óleo sobre papel, 63 x 45 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (KAM.2000.089.160). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
O desenho de Kaomo dos kajutukalunãu como um corpo artefatual musical explicita um princípio transformativo-construtivo que toma os instrumentos musicais como partes do corpo. Em um outro desenho dessa mesma época, Kaomo apresenta três máscaras que têm flautas como cabeça (Figura 8). O nome dessas máscaras é watana onaĩ, literalmente roupa de flauta. Por tratar-se de um trio, sabemos que o conjunto pode ser tanto kawoká quanto kuluta26, uma especificação curiosamente indiferenciada por Kaomo nesse desenho. Devido a essa configuração ternária, sabemos que não se trata de uma representação canônica de máscaras, pois essas são feitas basicamente em configurações duplas, e menos frequentemente em quartetos e quintetos. Apresentadas como espíritos em festa, as flautas desse trio têm seus corpos inteiramente pintados: a da esquerda com o motivo kupato onape (espinha de peixe), a do centro com o motivo kulupiyene (alusivo a peixes em cardume, porém mais comumente relacionado ao peixe pacu; Barcelos Neto, 2020a, p. 14) e a da direita com uma variação do motivo kupato onape. Essas marcas gráficas indicam a natureza aquática dessas flautas vestidas.
Kaomo Wauja, Watana onaĩ, 1998, grafite e crayon sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (KAO.1998.011.564). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Embora Kaomo não fosse um xamã visionário-divinatório, algumas das imagens que ele produziu para mim têm afinidades estilística e conceitual com aquelas produzidas por xamãs visionário-divinatórios (yakapá). Ele era um excepcional kawokatopá e, como tal, tinha uma visão fundamentalmente musical do mundo dos apapaatai. Piedade (2011, p. 246) apresenta uma interpretação interessante sobre a relação entre ver e ouvir os apaapatai:
The kawokatopá can open to himself the world of the apapaatai in its sonic dimension: he is the only one that can remember the music that the apapaatai play for the humans on certain occasions in their dreams. For this reason, the flute masters are like iakapá shaman, except that, instead of being clairvoyant, they are “clairaudient”.
Corroborando essa interpretação, penso ser possível incluir ainda a ideia de que a relação entre os xamanismos musical e visionário-divinatório é mediada pelo conhecimento que ambos tipos de xamanismo compartilham da cosmologia construcional wauja, que imagina uma origem não criacionista das coisas do mundo (Santos-Granero, 2009, pp. 4-5). Estas seriam, antes de tudo, resultados de intrincados modos de combinação entre coisas e partes de coisas pré-existentes ou de suas transformações (Hugh-Jones, 2009, pp. 35-39). Além desse aspecto construcional, a cosmologia wauja tem uma ênfase primordialista, no sentido de que há uma força-potência maior nas coisas que se assemelham e que estão próximas das construções originais ou de suas transformações iniciais. Embora xamãs músicos e visionário-divinatórios tenham conhecimento de como são as coisas verdadeiramente primordiais, muitas delas já não existem mais, e as que ainda existem são muito perigosas para uma aproximação sem as devidas proteções xamânicas.
ELEMENTOS DA COSMOLOGIA CONSTRUCIONAL WAUJA: MORFOLOGIA, GRAFISMO E FIGURAÇÃO DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS
Tal ideia sobre qualidades primordiais é amplamente observada nas representações figurativas xamânicas, e ela é bastante explícita para os instrumentos musicais e para alguns objetos que têm sua origem mítica em rituais musicais. Em 15 de março de 2000, recebi de Ajoukumã um desenho espontâneo do matapu-kumã, o zunidor27 sobrenatural (Figura 9), que, nesse caso, dá corpo ao peixe yũwĩsi (Leporinus friderici, popularmente conhecido como piau), identificado aqui por uma variação do motivo de pontos ligados verticalmente por linhas retas no centro da imagem28. Embora o afixo-modificador -kumã – que indica prototipia, alteridade espiritual, estado superlativo ou máximo, potência xamânica e sobrenatureza29 – não deixe nenhuma dúvida de que se trata de um ser/objeto de qualidades e aspectos extraordinários, há três detalhes nesse desenho que merecem uma observação mais detida.
Ajoukumã Wauja, Matapu-kumã, 2000, crayon sobre papel, 44 x 32 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (AJO.2000.026.356). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
A corda e a vara de girar são muito desproporcionais ao tamanho do matapu-kumã. Tendo em mente as dimensões de um zunidor comum, essa desproporcionalidade permite interpretar que, se a vara estivesse sendo segurada por uma pessoa humana, o matapu-kumã teria pelo menos 2 metros de altura. Essa maneira de representar as coisas primordiais de modo agigantado é comum na figuração wauja. Em um desenho de kutejo-kumã (Figura 10), a espátula sobrenatural de virar beiju, feito por Aruta, um importante xamã-cantor wauja, nota-se duas figuras antropomorfas, uma masculina e outra feminina, segurando-a respectivamente em seus lados superior e inferior. As representações figurativas de matapu-kumã e kutejo-kumã seguem o mesmo princípio imaginativo.
Aruta Wauja, Kutejo-kumã, 1998, crayon sobre papel, 44 x 32 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (ARU.1998.002.732). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
O terceiro detalhe no desenho de Ajoukumã diz respeito à evidenciação de uma característica anatômica. Na seção que corresponde à metade esquerda do peixe, entre os dois pontos pretos, destacam-se um campo branco com dez linhas paralelas e diagonais: são as espinhas do peixe yũwĩsi. Uma observação apressada facilmente teria interpretado essas linhas como sendo o motivo espinha de peixe (kupato onapo), mas esse não é o caso, pois nesse motivo o número de linhas diagonais varia de duas a seis, tendendo para quatro, e sendo sempre dispostas em ziguezague. Não se trata, portanto, da representação de uma superfície com decoração gráfica, e sim de uma interioridade. Ajoukumã quis deliberadamente mostrar o interior do corpo do matapu-kumã, esclarecendo que se trata tanto de um zunidor quanto de um peixe.
A representação do interior do corpo é uma prática muito rara na figuração wauja. Dos 29 desenhistas wauja que contribuíram para minha pesquisa, apenas Ajoukumã a realizava. Dono de uma narrativa visual sofisticada, Ajoukumã produziu para Piedade (2004, p. 73) um desenho do dono-de-kawoká no qual a flauta aparece guardada em uma bolsa incorporada à anatomia interna do flautista, tornando, portanto, flauta e flautista indissociáveis. Sobre esse desenho, comenta Fausto (2020a, p. 109):
This drawing gives an insight into the complex interplay of interior and exterior in the production of the sacred flutes’ sound-breathing. During the performance the flute inside the spirit is outside (as a visible flute) but also and simultaneously inside (as breath). The topology evokes the Klein bottle referred to by Lévi-Strauss in The Jealous Potter (1985, p. 216): a tube internal to the body appears as an external tube, which contains the inner breath, exteriorized as organized sound beyond-the-human
(to paraphrase Blacking, 1973).
Esses dois desenhos de Ajoukumã – de um ‘corpo dentro de um objeto’ (matapu-kumã) e de um ‘objeto dentro de um corpo’ (dono-de-kawoká) – permitem uma visão mais nuançada da cosmologia construcional wauja, indicando ainda que as intrincadas relações morfológicas e fisiológicas entre seres e coisas são um dos aspectos constitutivos da ideia de primordialidade, que é fundamental para o entendimento dos sentidos dos poderes xamânicos entre os Wauja.
Dos cinco trios de kawoká constituídos em Piyulaga, um deles tem como dono um casal que ficou doente mais ou menos ao mesmo tempo, no fim da década de 1990. Os apapaatai que adoeceram o marido, Ulepe, e a esposa, Maná, foram, respectivamente, Itsei-xumã (homem-fogo sobrenatural) e mutukutãi (aerofone globular). Em 21 de abril de 1998, Ajoukumã produziu para mim um desenho desses dois donos de kawoká (Figura 11). A natureza ígnea de Itsei-xumã é identificada por quatro fachos de fogo, que ele leva acima da sua cabeça, e por todos os dedos das mãos em chamas. Mais quatro detalhes iconográficos merecem especial atenção, pois eles revelam que, além de flautista de kawoká, Itsei-xumã é também um lutador de Kaumai: em suas pernas, ele leva joelheiras, em vermelho, e tornozeleiras, em azul, e, no centro do peito, um desenho da sepultura do Kaumai e, nas laterais, o motivo gráfico walamá (anaconda) (ver Waurá, 2018, p. 34), próprio da pintura corporal dos campeões de luta. Por essas características, sabemos, assim, que Itsei-xumã é um nobre (amunaw) entre o seu povo. Mutukutãi, por sua vez, é pintada com três motivos gráficos: na seção superior, uma variação do motivo kupato onape (espinha de peixe), com detalhes de kulupiyene; na seção central, o motivo gráfico ayuwe-ojata (casco de jabuti) (ver Waurá, 2018, p. 34), conhecido em todo alto Xingu como próprio da pintura dos troncos de Kaumai (Figura 12); e, na seção inferior, o motivo imitsewewené (dentes de piranha). Pela iconografia, sabemos que se trata de um indivíduo do sexo masculino. Assim como Itsei-xumã, este mutukutãi é também um nobre. Esse desenho aponta para um aspecto da relação entre os rituais de kawoká e kaumai30, cujas especificidades estão ligadas a eventos, ainda não revelados, das biografias de Ulepe e Maná, ambos nobres.
Ajoukumã Wauja, Itsei-xumã e mutukutãi, 1998, crayon sobre papel, 44 x 32 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (AJO.1998.029.297). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Embora a maioria dos desenhos que coletei fosse realizada de modo espontâneo, devo esclarecer que os assuntos que eu conversava nas casas dos meus informantes criavam um contexto para produções visuais direcionadas a esses mesmos assuntos. O principal assunto sempre foi o mundo dos apapaatai e os rituais que os Wauja faziam para eles. Participante dessas conversas, Yapunumã se ofereceu para desenhar os yanumakanãu de seu irmão, Itsakumã. Nesse desenho (Figura 13), realizado em 30 de abril de 1998, Yapunumã as representa, aparentemente, como uma simples espécie animal (apapaatai-mona, i.e., animal de pelo), tal como é vista nas florestas do alto Xingu. A plástica expressada no seu desenho é típica da figuração apreendida e reproduzida no contexto de escolarização indígena. Um pouco mais tarde, no mesmo dia, Yapunumã fez um segundo desenho de outro casal de jaguares, dito pertencer ao grupo do anterior. O segundo desenho apresenta a mesma expressão plástica do primeiro e indica a persistência dos yanumakanãu como assunto de interesse doméstico naqueles dias de 1998. Dois anos mais tarde, nessa mesma casa, o genro de Itsakumã mostrou-me uma fotografia da máscara atujuwá (Figura 2) produzida em 1991 para o Apapaatai Iyãu de seu sogro. Noto que a figuração do jaguar realizada por Yapunumã é estilisticamente idêntica à do jaguar que vemos na fotografia dessa atujuwá.
Yapunumã Wauja, Yanumaka toneju e oneja, 1998, grafite e guache sobre papel, 44 x 32 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (YAP.1998.006.622). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
Foi apenas quando retomei o assunto sobre os yanumakanãu na temporada de campo de 2000 que me dei conta de que minha impressão inicial dos desenhos de Yapunumã estava equivocada. Pelo estilo escolar do desenho dele, fui induzido a pensar que se tratava apenas de bichos do mato. Pela fotografia que me foi mostrada pude, contudo, finalmente entender que Yapunumã tinha, de fato, desenhado os jaguares em sua forma sobrenatural, porém, na forma figurativa que ele conheceu, expressada na atujuwá de seu irmão, que é, na verdade, a forma como os apapaatai são dados a ver aos não xamãs. Yapunumã, não sendo xamã, não poderia, portanto, produzir uma figuração dos jaguares diferente da que ele gentilmente me ofereceu. Mas essa questão não se encerra com a dissolução do equívoco, pois há uma diferença conceitual e material fundamental entre os suportes de produção das imagens desses jaguares que torna secundária a questão estilística. Os jaguares desenhados por Yapunumã em ‘folhas de papel’ podem facilmente ser tomados, por qualquer Wauja desavisado, como simples representações de bichos do mato. Já aqueles desenhados na superfície de máscaras são, inequivocamente, representações de seres sobrenaturais. Para evitar potenciais equívocos em cascata, a coleta de desenhos figurativos como método de pesquisa deve estar cuidadosamente relacionada ao estudo dos sistemas de objetos e dos motivos gráficos tradicionais.
Buscando conhecer um pouco mais sobre os yanumakanãu de Itsakumã, pedi a Kamo que ele as desenhasse para mim, pois me interessava comparar sua versão com a de Yapunumã. No dia 25 de setembro de 2000, Kamo produziu um desenho enigmático do kawokatupá dos yanumakanãu de Itsakumã (Figura 14): uma figura com cabeça retangular, tronco bojudo, aparentemente sem membros, e olho arregalado. A composição cromática, que emprega dois tons de azul-escuro, violeta, vermelho e branco, foi realizada em combinação com uma composição de linhas retas e curvas. O efeito é um contraste dinâmico entre a rigidez da cabeça e o aparente movimento do resto do corpo. Fora o olho, é praticamente impossível distinguir, com precisão, qualquer elemento anatômico zoomorfo ou antropomorfo na imagem desse apapaatai, que também não se assemelha a nenhum objeto da cultura material wauja. Trata-se da representação de um corpo de morfologia estranhamente singular, que, contudo, não é uma exclusividade dos xamãs wauja, como podemos constatar em alguns dos desenhos coletados por Fénelon Costa (1988)31, entre os Mehinako, nas décadas de 1960 e 1970. Kamo explicou que o elemento sinuoso central em azul, margeado por uma linha branca e que vai da ponta superior à inferior do corpo do jaguar, é uma de suas garras recolhida no corpo. Essa imagem de uma hipergarra representa a extrema ferocidade desse apapaatai e seu potencial letal. Tal nível de ferocidade deve-se ao fato de que esse ser – que, convém enfatizar, não é hipotético nem uma mera representação idiossincrática – incorpora duas forças semelhantes e perigosas, a de kawoká e a de yanumaka. Sua condição híbrida e sua incomum morfologia fazem dele simultaneamente uma hiperkawoká e um hiperjaguar. É com base na questão da sua ferocidade que concluo este artigo, na seção seguinte.
Kamo Wauja, Yanumaka-kumã, 2000, pastel a óleo sobre papel, 63 x 45 cm. Coleção Aristoteles Barcelos Neto (KAM.2000.114.185). Foto: Aristoteles Barcelos Neto (2018).
PALAVRAS FINAIS
Um dos objetivos deste artigo é apresentar novos elementos para a hipótese de que a atribuição de identidades espirituais aos aerofones wauja tem uma relação direta com o modo como as transformações corporais são imaginadas pelos xamãs. Como exemplo de um artifício explicativo da cosmologia wauja, que se baseia em imagens feitas a partir de relações complexas entre antropomorfia, zoomorfia, figuração, esquematismo e grafismo geométrico, a sequência de desenhos analisados anteriormente parece-me ter permitido cumprir esse objetivo. Quando somada à sequência de desenhos dedicada aos trocanos wauja e kamayurá (Barcelos Neto, 2020a), essa sequência dedicada aos aerofones wauja se constitui em um exemplo de tradição iconográfica pertencente à uma tradição maior, amazônica, “. . . na qual a representação dos seres é indissociável da representação de suas relações” (Severi, 2013, p. 51). Há, entretanto, duas questões muito importantes sobre os aerofones xinguanos que dificilmente podem ser compreendidas por abordagens exclusivamente iconográficas e materialistas. Trata-se do seu propósito de existência e dos seus afetos, em especial dos afetos violentos e agressivos.
Kawoká é descrito como sendo um apapaatai faminto, seja na condição de predador ou comensal. Seu ritual entre os Wauja demanda muitos recursos alimentares, que, quando não cumpridos, despertam a brabeza de kawoká, colocando os Wauja em risco. Além disso, seu corpo é de produção laboriosa, pois, sendo feito de uma madeira duríssima, são necessárias várias semanas de trabalho para completá-lo. A execução de sua música é cara, seu conhecimento é restrito, e seus repertórios são simbolicamente complexos, sendo que algumas peças do seu repertório mais sagrado, chamado kanupá, são secretas e perigosas. Kawoká é ciumento, exclusivista e, acima de tudo, muito exigente:
Ao tocar kanupá, se o flautista cometer um erro, o que seria imediatamente percebido por todos [os demais flautistas] já que o repertório tocado nesta ocasião é comum, ele deve terminar a peça e pingar pimenta no olho, para não ficar doente
(Piedade, 2004, p. 133).
Uma das suas exigências mais sérias diz respeito à proibição de sua visão pelas mulheres. A violação dessa proibição, seja ela intencional ou não, resulta em um estupro coletivo (Menezes Bastos, 2006, p. 562). Em wauja, esse ato violento é chamado aixawakakinapai. Aixapai significa comer e aixawakapai fazer sexo, enquanto kina indica uma ação coletiva. Assim, do ponto de vista das mulheres, os flautistas de kawoká existem como seus potenciais predadores-estupradores. Tomando esse ponto de vista a partir das ideias do perspectivismo e multinaturalismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2012a), somos tentados a entender aixawakakinapai como um fato cosmológico total, no qual as mulheres são presas e os homens são simultaneamente predadores e comensais. Por ser um acontecimento raro, traumático e estigmatizante, o aixawakakinapai é talvez uma das questões menos conhecidas sobre os povos xinguanos.
Um episódio ocorrido alguns meses antes do meu retorno ao campo, em 2002, permite entendê-lo um pouco melhor. No momento em que o trio de Kajutukalunau de Itsautaku lhe entregava ritualmente, na beira da lagoa Piyulaga, uma canoa de madeira, sua performance musical foi avistada de longe e inadvertidamente por um casal, que vinha em um barco a motor. O barulho do motor e uma manobra em curva ao se aproximar da beira da lagoa impediram o piloto e a passageira de ouvirem e verem as flautas antecipadamente. Ao notá-las, ele inclinou a cabeça de sua esposa e imediatamente fez meia-volta. Os flautistas indicaram a Itsautaku que o aixawakakinapai deveria ser levado à cabo quando a mulher retornasse à aldeia. Itsautaku teve uma forte reação de oposição, alegando que não era possível afirmar, com absoluta certeza, que a mulher tinha visto as flautas, devido à rapidez com que tudo aconteceu. E para ter certeza de que um aixawakakinapai não aconteceria, Itsautaku ameaçou que uma sanção seria aplicada contra as suas próprias flautas: ele as destruiria e dissolveria permanentemente seu ritual. Esse episódio e seu desfecho permitem sugerir que os Wauja, talvez à diferença de outros povos xinguanos, não tratam questões relativas às flautas kawoká de maneira absolutamente rigorosa, restritiva e reservada. Um exemplo dessa diferença se deu em um fato ocorrido em abril de 1998, na aldeia Yawalapíti. Em uma viagem de Piyulaga a Brasília, Mayaya, o principal chefe wauja naquele tempo, também flautista e importante cantor, parou na casa do chefe Aritana Yawalapíti para se abastecer de beiju fresco. Mayaya e seus companheiros de viagem levavam consigo um trio de flautas kawoká para uma apresentação musical na sede do Ministério da Justiça, em comemoração ao Dia do Índio. Ao saber desse plano, Aritana advertiu os wauja sobre o risco de mulheres, brancas ou de outras etnias, verem sua apresentação e que uma restrição visual feminina total deveria ser mantida. Mayaya, então convencido por Aritana, deixou as kawoká guardadas em sua casa para recuperá-las quando retornasse da viagem.
Ainda sobre percepções de restrição visual, noto que a prolífica produção de desenhos figurativos das flautas e seus donos espirituais mostra que os Wauja fazem uma clara distinção entre ‘fisicalidade’, ou seja, o corpo de madeira da flauta, e ‘representação da aparência’. Para os Wauja, os desenhos têm apenas uma relação de semelhança com as coisas físicas; eles são descrições visuais delas, estando, portanto, próximos das descrições verbais. O próprio sentido ‘sagrado’ das kawoká parece não ser tratado de maneira ‘dogmática’. Piedade (2004, p. 129)32 menciona, por exemplo, a venda, em São Paulo, pelos Wauja, de um trio de kawoká para realizar a compra de um desejado barco metálico de oito metros. Ao efetuarem a venda, os Wauja perderam definitivamente o controle visual sobre aquelas kawoká. Pouco tempo depois, um outro trio foi encomendado para substituir aquele que tinha sido vendido, o que parece sugerir que, para os Wauja, o que é propriamente ‘sagrado’ é a música, e não o instrumento. Apesar das muitas restrições que a envolvem, kawoká não está totalmente excluída da dinâmica wauja de ocultar e revelar conhecimentos xamânicos e musicais.
Todo o conjunto de relações discutidas até aqui neste artigo, sejam elas rituais, visuais, artefatuais e musicais, circunscrevem os aerofones, em especial kawoká, em uma economia simbólica da alteridade (Viveiros de Castro, 1996, pp. 189-190), marcada pela afinidade potencial e pela predação. Ainda que os mitos, os rituais e as imagens nos mostrem insistente e extensivamente em kawoká um aspecto aterrador, uma musicalidade atraente, um poder extraordinário e um turbilhão de sentimentos, essas não podem ser tomadas como características para uma definição total e final de kawoká. Como acontece com outros instrumentos musicais amazônicos (Chaumeil, 2011; Wright, 2011), kawoká é um feixe de vários tipos de complexidades, muitas delas ainda desconhecidas pelos não Wauja. Seu conhecimento exigiria uma mirada para outros espaços e relações, e sobretudo para os momentos em que as flautas kawoká estão em silêncio, embrulhadas e intocadas em algum canto doméstico.
Depois do falecimento de Itsakumã, em 2017, seus kawoká yanumakanãu tiveram um destino incomum: foram herdados por Tsimayu Mahi, uma de suas filhas mais jovens. Embora impedida de ver as flautas, Tsimayu as mantém guardadas – embrulhadas em grosso papelão e amarradas – em sua casa, onde a sua presença é a presença de seu falecido pai, e não apenas a de objetos evocativos da sua memória. A família de Itsakumã conta que dar carinho às flautas é também dar carinho ao espírito de seu falecido pai. Na verdade, a maior parte da vida dos kawoká yanumakanãu é assim, quieta, mansa como o jaguar que apareceu na estrada para Itsakumã há quase trinta anos.
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Barcelos Neto, A. (2021). A flauta-jaguar e outros aerofones wauja: uma contribuição xinguana ao instrumentarium zoologica Amazonia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(3), e20200127. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0127
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1
Ver figura 5. 10 na obra citada.
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2
Ver figura 21 na obra citada.
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3
Os Wauja estão distribuídos em cinco aldeias no Território Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso. A maior delas, Piyulaga, situa-se a 400 metros de uma lagoa homônima, ligada por um canal à margem direita do longo e sinuoso rio Batovi, pelo qual navegou, em toda sua extensão, a primeira expedição alemã ao Xingu, em 1884 (Steinen, 1886). A segunda maior aldeia, Ulupuwene, situa-se no alto rio Batovi, a poucos quilômetros da fronteira sudoeste do Parque Indígena do Xingu, com as extensas fazendas de soja e gado dos municípios de Paranatinga e Gaúcha do Norte. A terceira aldeia, Piyulewene, é a mais distante de Piyulaga e localiza-se à margem esquerda do médio rio Von Den Steinen, um dos formadores do rio Ronuro, que é, por sua vez, um dos formadores do rio Xingu (Barcelos Neto, 2020a, p. 2). Duas novas aldeias, Topepeweke e Tsekuru, foram abertas, respectivamente, no médio e alto rio Batovi, em 2018 e 2019. O senso sanitário de 2012 confirmou a população wauja em 542 indivíduos (Secretaria Especial da Saúde Indígena, 2013). Em abril de 2021, os Wauja estimaram sua população em aproximadamente 740 indivíduos, incluindo aqueles que vivem nas cidades.
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4
Trata-se do mesmo trio mencionado por Piedade (2004, p. 119).
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5
Ritual mortuário interétnico dos povos do alto Xingu. Para uma etnografia detalhada desse ritual, ver Menezes Bastos (2013).
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6
A raiz é tomada com o propósito de ‘tirar o sangue do estômago e o cheiro das relações sexuais’, pré-requisitos básicos para uma participação bem-sucedida no ritual Yawari.
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7
Declarada em 1997 e homologada em 1998 (Instituto Socioambiental, 2020).
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8
Sítio sagrado de excepcional importância para os Wauja; lugar onde tem origem, segundo conta o mito de Kamukuwaká, o Pohoká, ritual de iniciação dos jovens nobres (Waurá et al., 2019). Os petróglifos da gruta de Kamukuwaká foram extensivamente danificados em um ato de vandalismo no inverno de 2018 (Kuikuro & Waurá, 2019).
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9
O tempo de viagem entre o Kamukuwaká e Piyulaga é de aproximadamente 9 horas, pelo sinuoso rio Batovi.
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10
Seres prototípicos da alteridade na cosmologia wauja. Em geral, de aparência antropomorfa ou zooantropomorfa e/ou com deformações anatômicas da cabeça, membros e genitais. Apresentam-se normalmente mascarados ou tocando instrumentos musicais. Possuem excepcionais poderes xamânicos.
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11
Máscaras gigantes de palha, sobre as quais trataremos adiante.
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12
Pequena flauta de bambu, dita ser filhote da flauta de madeira kawoká.
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13
‘Trazer apapaatai’ refere-se ao ritual em que pessoas da aldeia assumem para o doente o compromisso de representar (no sentido de representante) os apapaatai que os adoecem e, assim, levar a cabo uma importante etapa da terapia ritual. Vide etnografia detalhada do ritual de trazer apapaatai em Barcelos Neto (2009).
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14
Ritual em que os cantos xamânicos agem terapeuticamente sobre o doente. Vide etnografia detalhada da versão kamayurá desse ritual em Menezes Bastos (1984-1985).
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15
O wĩtsixuki é a categoria central para o entendimento da noção de patogênese entre os Wauja. Trata-se de um estado decorrente de um desejo alimentar não satisfeito de imediato. Vide etnografia detalhada sobre o wĩtsixuki em Barcelos Neto (2007).
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16
Sucessor do chefe e xamã Walakuyawá, seu irmão, como principal mestre de música de kawoká (kawokatupá) a partir de 1986. Kaomo faleceu em 2015, aproximadamente aos 80 anos de idade.
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17
Kawoká é assim descrita por Mello (1999, p. 99): “Aerofone tipo flauta com um conduto e defletor de cera de abelha. O tubo é feito de madeira yalapaná (e mais raramente de wajo), formado por dois hemisférios que são colados com cera de abelha, iyapi, e amarrados com fibra de embira, mehepejo. O tubo é aberto nas duas extremidades e possui quatro orifícios digitais. Seu comprimento é de aproximadamente 1 metro”.
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18
Tipos de espíritos-animais mascarados.
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19
Kajutukalu é o sapo cururu (gênero Rhinella).
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20
Durante meus trabalhos de campo, entre 1998 e 2004, coletei 803 desenhos, dos quais três quartos foram feitos por xamãs. Empreguei os métodos de coleta de desenhos espontâneos e encomendados, sendo o primeiro mais recorrente.
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21
Ver figura 37 na obra citada.
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22
Ver figura 26 na obra citada.
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23
Mello (1999, p. 105) o identifica como uma flauta feita de cabaça pequena com dois orifícios, um em cada uma das duas extremidades. Piedade (2004, p. 119) ora o identifica como flauta, ora como trompete (ver Piedade, 2004, p. 130). Mello e eu não tivemos oportunidade de ver esse instrumento, mas Piedade sim. Devido à inconsistência na identificação do mesmo, mantenho o termo mais abrangente de aerofone.
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24
Etnomusicóloga e minha colega de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina, com quem eu realizei o trabalho de formação da coleção etnográfica wauja para o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, entre março e maio de 1998.
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25
Vide em Mello (1999, pp. 44-45) uma explicação sobre esse evento e sobre as consequências que ele teve para seu trabalho de campo.
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26
Mello (1999, p. 102) descreve kuluta como sendo um “Aerofone tipo flauta aberto nas duas extremidades, com defletor de iyapi, ‘cera de abelha’, e quatro orifícios digitais. É feita de õtapi, ‘taquara’, e amarrada na extremidade proximal com fibra de mehepejo, ‘embira’. É passado urucum em toda sua extensão, sendo seu comprimento de aproximadamente 70 centímetros. É sempre executada em trio (três módulos e três flautistas) em uníssono. Os três exemplares que pude observar apresentavam uma variação microtonal de afinação e produziam muitos sons harmônicos durante sua execução”.
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27
Um tipo de aerofone livre. Mello (1999, p. 108) assim o descreve: “Placa de madeira plana recortada no formato de peixe, representados sempre aos pares, macho e fêmea, variando muito em comprimento, entre 40 e 70 centímetros aproximadamente. Esta placa é presa por um cordão à uma vara comprida (de aprox. 2 m) que deve ser girada pelo executante em torno de seu próprio eixo, produzindo assim sons mais agudos ou mais graves de acordo com a velocidade empregada, ou seja, mais veloz – mais agudo, mais lento – mais grave”. Embora a maioria dos zunidores tenha entre 40 e 70 centímetros de comprimento, alguns deles podem ocasionalmente ter entre 10 e 30 centímetros.
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28
O piau é um peixe normalmente caracterizado por ter três pintas pretas em cada um de seus lados. A primeira, segunda e terceira pinta são respectivamente próximas à nadadeira dorsal, adiposa e caudal. Em alguns espécimes, a última pinta pode ser muito pouco visível ou mesmo inexistente. Na lagoa Piyulaga, é comum encontrar piaus com apenas as duas primeiras pintas, como esse desenhado por Ajoukumã.
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29
Kumã é um dos quatro afixos-modificadores dos conceitos-base na língua wauja, que também são encontrados em Yawalapíti. A análise de Viveiros de Castro (2002) sobre os mesmos é bastante semelhante à minha (Barcelos Neto, 2008, pp. 64-65).
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30
Essa relação é descrita como parte de um longo continuum ritual, no qual sujeitos nobres são produzidos social e historicamente (Barcelos Neto, 2008, pp. 305-317).
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31
Ver figuras 9, 10 e 29 na obra citada.
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32
Ver nota 183 na obra citada.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
09 Nov 2020 -
Aceito
18 Fev 2021