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“Anoche tuve un sueño, desde anoche, no dejo de mirar el río”: as relações cosmológicas nos sonhos do povo indígena Kukama (Peru)

“Anoche tuve un sueño, desde anoche, no dejo de mirar el río”: cosmological relationships in the dreams of the Kukama indigenous people (Peru)

Resumo

Os estudos sobre os sonhos têm sido abordados desde a psicanálise, a antropologia cultural e a linguística, constituindo uma base documentária relevante para compreender os diversos grupos humanos. No caso da América Latina, nos últimos anos, eventos oníricos se tornaram relevantes como objeto de pesquisa a partir da relação que os povos indígenas têm com sonhos, como os vivenciam e interpretam. Assim, as cosmologias de diversos povos, como os das terras baixas, acreditam que esses sonhos são acontecimentos ou eventos do cotidiano. Para o caso em estudo, realizou-se uma aproximação aos sonhos do povo indígena Kukama (Peru), da família Tupi-Guarani. Metodologicamente, o estudo utiliza a análise de conteúdo etnográfico aplicado a 12 vídeos do Youtube, produzidos pela rádio indígena Ucamara, que pertence aos Kukama. Os resultados principais evidenciam as formas nas quais as cosmologias amazônicas são representadas por meio de diversas relações espaço-temporais-ontológicas nas quais humanos e não humanos mantêm afetações constantes no tempo noturno. As conclusões principais mostram que nos sonhos é plausível ver, sentir e conversar com as ‘gentes’ numa linguagem comum para todos e, dependendo do sonhador, perceber as outras formas corporais que humanos e não humanos possuem, além do tempo presente.

Palavras-chave
Sonhos; Cosmologias; Ontologias; Amazônia; Povos indígenas

Abstract

Studies on dreams have been approached from psychoanalysis, cultural anthropology and linguistics, constituting a relevant documentary base for understanding different human groups. In the case of Latin America, in recent years, oneiric events have become relevant as an object of research based on the relationship that indigenous peoples have with dreams and how they experience and interpret them. Thus, the cosmologies of different peoples, such as those from the lowlands, hold that these dreams are everyday events. In the present study focuses on the dreams of the Kukama indigenous people of Peru, whose language belongs to the Tupi-Guarani family. Methodologically, this study uses ethnographic content analysis applied to 12 YouTube videos, produced by the indigenous Ucamara radio, which belongs to the Kukama. The main results show the ways in which the Amazonian cosmologies are represented through different space-time-ontological relationships in which humans and non-humans maintain constant affectations at night time. The main conclusions show that in dreams it is plausible to see, feel and talk with people in a common language for all and, depending on the dreamer, to perceive other bodily forms that humans and non-humans have beyond the present time.

Keywords
Dreams; Cosmologies; Ontologies; Amazon; Indigenous peoples

Esta madrugada desperté con un aburrimiento y con la cara ajada.
Ningún lado de la cama era cómoda.
Hace un buen tiempo que no sueño y eso me preocupa. Soñar es vital para mí.
Dependiendo del sueño, el siguiente día se torna diferente. Muchas cosas que el día anterior no estaban claras, con los sueños encuentran claridad. Si no sueño, si no puedo soñar, algo está pasando. No se puede vivir sin soñar
(Tello, 2018Tello, L. (2018, maio 3). Curarse para comunicar [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/2018/05/curarse-para-comunicar.html
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).

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre os sonhos têm sido abordados desde a antropologia cultural e linguística, constituindo uma base documentária relevante para a compreensão de diversos grupos humanos (Tedlock, 1991Tedlock, B. (1991). The new anthropology of dreaming. Dreaming, 1(2), 161-178. https://doi.org/10.1037/h0094328
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; Graham, 2001Graham, L. (2001). Dreams. In A. Duranti (Ed.), Key terms in language and culture (pp. 56-69). Blackwell.). Rodrigues (2020, p. 165)Rodrigues, T. O. (2020). Outros modos de pensar e sonhar: a experiência onírica em Reinhart Koselleck, Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Revista de Teoria da História, 23(1), 152-177. https://doi.org/10.5216/rth.v23i1.62894
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argumenta que os sonhos fazem parte da memória dos povos indígenas, caracterizando um espaço para a sabedoria em que “os aprendizados fundamentais são revelados”, de forma que os eventos oníricos são articulados como espaços-tempos que permitem a aparição de diversos recursos e linguagens que, além de preparar os sujeitos para a vida do cotidiano, “auxiliam os seres a lidar com os desafios que aparecem aos sonhadores”.

Eventos oníricos podem ser vistos, assim, como experiências de trânsito do cotidiano, espaços para a comunicação dos seres que fazem parte da cosmologia de cada grupo cultural. Como lembram Canal e Ramón (2017)Canal, G. O., & Ramón, P. P. (2017). Presentación. EntreDiversidades, 1(9), 9-20. https://doi.org/10.31644/ED.9.2017.p01
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, a consideração geral do sonho nas teorias indígenas convida a analisar as relações e as dimensões cosmológicas implicadas em cada evento onírico, de maneira que esse acontecimento se transforme numa fonte de conhecimento e de ação sobre o mundo.

Assim, na medida em que os sonhos podem funcionar como representações culturais, como mitos ou rituais, e na medida em que são tratados em relação às visões de mundo, sistemas de crenças e orientações epistemológicas das pessoas, são considerados também fatos sociais (El-Aswad, 2010El-Aswad, E. S. (2010). Dreams and the construction of reality: symbolic transformations of the seen and the unseen in the Egyptian imagination. Anthropos, 105(2), 441-453. http://dx.doi.org/10.5771/0257-9774-2010-2-441
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)1 1 Todas as traduções são de minha autoria. O sentido de ‘fato social’ utilizado por El-Aswad (2010) está relacionado ao mesmo conceito proposto por Durkheim (1985). O autor argumenta que os fatos sociais podem ser definidos como “maneira de fazer, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo e que estão dotadas de um poder de coerção em virtude do qual impõem [maneras de hacer, de pensar y de sentir, exteriores al individuo y que están dotadas de un poder de coerción en virtud del cual se le imponen]” (Durkheim, 1985, p. 5). A partir dessa definição e da compreensão de que esses fatos sociais existem, segundo Durkheim (1985), como realidades externas aos indivíduos, conferindo significado ao coletivo e exercendo um impacto significativo no comportamento e na estrutura social como um todo, é possível considerar algumas práticas culturais como fatos sociais. No caso mencionado por El-Aswad (2010), os sonhos possuem um valor enquanto ‘fato social’, na medida em que o próprio ato de sonhar e todos os elementos sociais a ele associados (mitos, rituais, crenças, epistemologia etc.) são construídos como normas sociais e culturais que influenciam o comportamento, a organização social e as práticas dos membros do grupo. Assim, assimilando a perspectiva de Durkheim (1985), os sonhos, a que se refere El-Aswad (1994), podem ser entendidos como expressões concretas de fatos sociais que desempenham um papel na coesão social e na configuração da vida em sociedade de alguns grupos. . Como acontecimentos da vida social dos grupos culturais, as relações estabelecidas nos sonhos estão imersas na cosmologia dos povos indígenas. Nesse sentido:

Estamos diante de um regime ontológico em que as relações entre os pontos de vista, cujo desdobrar define mutuamente a natureza dos sujeitos, são, tipicamente falando, assimétricas, nos sonhos e nas visões; e simétricas, de dia, em vigília. O argumento aqui é que a vida humana existe e persiste por meio da interação com entidades não humanas descritas como espíritos-donos e parentes mortos

(Morais Neto, 2019Morais Neto, O. R. (2019). Espíritos demais: notas sobre o xamanismo Akwẽ-Xerente. Revista de Antropologia da UFSCar, 11(2), 167-195. https://doi.org/10.52426/rau.v11i2.318
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, p. 170).

Sobre as cosmologias dos povos indígenas das terras baixas, se faz necessário lembrar, segundo Riol Gala (2016, p. 57)Riol Gala, R. (2016). Etnografía del lugar: hacía una práctica intersubjetiva de conocimiento y defensa del territorio indígena. OPSIS, 16(1), 45-67. https://periodicos.ufcat.edu.br/Opsis/article/view/37046
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, que diversas sociedades de caçadores-recolhedores e horticultores acreditam que objetos naturais e seres humanos formam parte do seu território, o qual é composto por um: “. . . denso tecido social e cognitivo, constituído por todas as relações entre humanos e não humanos (animais, plantas, ancestrais, espíritos dos mortos, espíritos guardiões, donos ou espíritos de animais e plantas etc.)”2 2 “. . . denso tejido social y cognitivo, constituido por todas las relaciones entre humanos y no humanos (animales, plantas, antepasados, espíritus de los muertos, espíritus tutelares, dueños o espíritus de los animales y las plantas, etc.)”. .

Nessa perspectiva, os povos indígenas multiplicam “ . . . o número de conexões que compõem seu mundo. O sistema de parentesco os liga ao seu próprio país, juntamente com os países de outros grupos, seus ancestrais e os eventos associados a esses ancestrais” (Drahos, 2011Drahos, P. (2011). When cosmology meets property: indigenous people’s innovation and intellectual property. Prometheus, 29(3), 233-252. https://doi.org/10.1080/08109028.2011.638213
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, p. 6).

Se as cosmologias amazônicas apresentam as relações entre humanos e não humanos como parte de uma ampla rede de afetações e relacionamentos, o espaço-tempo do sonho adquire uma importância fundamental ao fazer possível cartografar uma maior quantidade de relações estabelecidas entre os humanos e não humanos nos múltiplos cenários em que a vida do povo indígena Kukama acontece.

O POVO INDÍGENA KUKAMA

Os povos indígenas representam 6% da população do mundo e, na América Latina e no Caribe, 5,8% dos habitantes pertencem a um dos 522 povos indígenas (Gutiérrez, 2022Gutiérrez, Á. (2022). Día Internacional de los Pueblos Indígenas: comunidades violentadas, pobres y en el olvido. France 24. https://www.france24.com/es/am%C3%A9rica-latina/20220809-d%C3%ADa-internacional-de-los-pueblos-ind%C3%ADgenas-comunidades-violentadas-pobres-y-en-el-olvido
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). O Estado peruano reconhece a existência de 55 povos indígenas no seu território, com quase 4 milhões deles que falam 47 línguas (Ministerio de Cultura del Perú, 2022Ministerio de Cultura del Perú. (2022). Kukama Kukamiria. BDPI - Base de Datos de Pueblos Indígenas u Originarios. https://bdpi.cultura.gob.pe/pueblos/kukama-kukamiria
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). A maior parte desses grupos humanos habita a floresta amazônica do país.

Sobre sua localização na Amazônia, é importante lembrar que historicamente os Kukama chegaram até os rios Ucayali, Puinahua e Maranhão, no Peru, a partir de diversas migrações vindas do Brasil (séculos IX e X) como parte de uma migração dos Tupi-Guarani (Rivas, 2000Rivas, R. (2000). Ipurakari: los Cocama-Cocamilla en la várzea de la Amazonía peruana [Tese de doutorado, Pontificia Universidad Católica do Peru].). As crônicas coloniais os mencionam durante a expedição de Juan Salinas de Loyola, em 1557, ao longo do rio Ucayali, no Peru (Angulo-Giraldo, 2019Angulo-Giraldo, M. A. (2019). Las cosmologías amazónicas y las narraciones mediáticas. El caso de la Radio Ucamara del pueblo indígena Kukama Kukamiria (Perú). Pós - Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 14(1), 119-147. https://periodicos.unb.br/index.php/revistapos/article/view/26128
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; Mori, 2018Mori, A. C. (2018). Resenha: a grammar of Kukama-Kukamiria: a language from the Amazon. LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, 18(1), 191-201. https://doi.org/10.20396/liames.v1i1.8652456
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).

No século XVI, os Kukama eram encontrados em relativo isolamento, possivelmente situados entre um povo identificado como Benorinas, ao norte, e os povos Pano, ao sul. No século seguinte, os Kukama estiveram envolvidos em conflitos com este último grupo (Stocks, 1981Stocks, A. (1981). Los nativos invisibles: notas sobre la historia y realidad actual de los Cocamilla del Río Huallaga, Perú. Centro Amazónico de Antropológica y Aplicación Práctica (CAAAP).). Segundo Stocks (1981)Stocks, A. (1981). Los nativos invisibles: notas sobre la historia y realidad actual de los Cocamilla del Río Huallaga, Perú. Centro Amazónico de Antropológica y Aplicación Práctica (CAAAP)., muitos dos documentos históricos sobre os Cocama e os Cocamilla do século XVI misturam a identidade étnica dos grupos pela presença das reduções, momento em que os povos foram forçados a conviver. Nessa linha, Mori (2018)Mori, A. C. (2018). Resenha: a grammar of Kukama-Kukamiria: a language from the Amazon. LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, 18(1), 191-201. https://doi.org/10.20396/liames.v1i1.8652456
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observa que, em 1619, os Kukama se fragmentaram em dois grupos distintos: os Kukama em si e os Cocamilla (Kukamíria).

Stocks (1976)Stocks, A. (1976). Notas sobre los autóctonos tupi del Perú. Amazonía Peruana, (1), 59-72. https://doi.org/10.52980/revistaamazonaperuana.vi1.43
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explica que Nauta, a cidade onde funciona a Rádio Ucamara e onde são produzidos os materiais analisados neste estudo, foi fundada em 1830 como uma redução indígena de Cocamas, onde, nessa época, habitavam muitos deles.

O autor menciona que teve dificuldades para encontrar registro dos Cocama no rio Ucayali durante o século XIX, porque a maioria das pessoas os referia só como falantes de Cocama, e não como sujeitos indígenas kukama. Nesse sentido, falavam deles como ribeirinhos ou mestiços, pessoas que se tinham misturado e não eram mais “índios selvagens” (Stocks, 1978Stocks, A. (1978). The invisible indians: a history and analysis of the relations of the Cocamilla indians of Loreto, Peru, to the state [Tese de doutorado, University of Florida]., p. 7). Sendo assim, para a segunda metade do século XX, é possível observar que os Cocama que moravam nas proximidades de Pucallpa, Iquitos e Requena não se percebiam mais como indígenas; os Cocamilla, que falam a língua Cocama (Stocks, 1983Stocks, A. (1983). Candoshi and Cocamilla swiddens in eastern Peru. Human Ecology, 11(1), 69-84. https://doi.org/10.1007/BF00891231
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), estão localizados nas proximidades dos rios Huallaga e Maranhão e conservam um “. . . sentido definido de ‘etnicidade’”3 3 “sentido definido de ‘etnicidad’”. (Stocks, 1976Stocks, A. (1976). Notas sobre los autóctonos tupi del Perú. Amazonía Peruana, (1), 59-72. https://doi.org/10.52980/revistaamazonaperuana.vi1.43
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, p. 60).

Atualmente, como observa Vallejos-Yopán (2017)Vallejos-Yopán, R. (2017). Proyecto de documentación del Kukama-Kukamiria. https://www.unm.edu/~rvallejos/proyectokukama.html
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, a maior parte dos Kukama se instala nas áreas de menor altitude ao longo dos rios Huallaga, Marañón, Ucayali e Amazonas, ocupando territórios que se estendem por diversas províncias das regiões de Loreto e Ucayali, no Peru. Essas localidades incluem áreas de Loreto, Requena, Ramón Castilla, Maynas e alto Amazonas na região de Loreto, bem como algumas comunidades adicionais na região de Ucayali.

É importante destacar que o Estado peruano une os dois povos em um único coletivo indígena (Ministerio de Cultura del Perú, 2022Ministerio de Cultura del Perú. (2022). Kukama Kukamiria. BDPI - Base de Datos de Pueblos Indígenas u Originarios. https://bdpi.cultura.gob.pe/pueblos/kukama-kukamiria
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). Porém, os próprios Kukama da cidade de Nauta e outras regiões do Peru têm trabalhado para reconhecer sua singularidade histórica a partir de sua tradição tupi-guarani, de sua própria língua com o mesmo nome e de suas práticas históricas. Por exemplo, o vocábulo Kukama em vez de Kukama-Kukamiria foi empregado nos eventos desse povo ocorridos ao longo de 2023. Esses encontros, denominados Kukamakana katupi (traduzido como ‘os Kukama aparecem’), foram realizados quatro vezes durante o ano. Participantes deste povo indígena provenientes do Peru, do Brasil e da Colômbia estiveram envolvidos nessas reuniões.

Dadas as condições históricas apresentadas e o uso identitário nas reuniões citadas, em que a própria rádio que faz parte deste estudo participou como organizadora, tomou-se a decisão de utilizar unicamente a palavra Kukama, e não Kukama-Kukamiria, para nos referirmos ao coletivo. Mas qual é o significado desse vocábulo? Existem duas interpretações possíveis. Por um lado, para L. Espinosa (1935, pp. 13-14)Espinosa, L. (1935). Los tupí del oriente peruano: estudio lingüístico y etnográfico. Casa Editorial Hernando., Kukama poderia referir-se a “pessoas com força”, aludindo à sua força física; ou pode significar “gente de lá”4 4 “personas con fuerza”, “gente de allá”. , denotando que vem de regiões distantes, como os Kukama que chegaram das terras brasileiras. Por outro lado, o Ministerio de Cultura del Perú (2022)Ministerio de Cultura del Perú. (2022). Kukama Kukamiria. BDPI - Base de Datos de Pueblos Indígenas u Originarios. https://bdpi.cultura.gob.pe/pueblos/kukama-kukamiria
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propõe outra interpretação: ku estaria relacionado com chácara, enquanto kama com seios ou peitos, sugerindo, assim, uma interpretação como “quem se amamenta da chácara”5 5 “quien se amamenta de la chacra”. .

Em relação ao número exato da população Kukama, as fontes diferem em suas estimativas. Campanera Reig (2012)Campanera Reig, M. (2012). ¿Campesina o Nativa? Derecho, política e identidad en los procesos de titulación de comunidades en la Amazonía Peruana. Quaderns-e de l’Institut Català d’Antropologia, 17(1), 10-24. https://raco.cat/index.php/QuadernseICA/article/view/264704
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aponta que são aproximadamente 85 mil pessoas, enquanto Hagiwara Grández (2014)Hagiwara Grández, F. (2014). Cosmogonía y cosmovisión en la racionalidad y el pensamiento cocama-cocamilla. Phainomenon, 13(1), 55-68. https://doi.org/10.33539/phai.v13i1.328
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refere-se à Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP) para afirmar que são 20 mil pessoas. Por sua vez, o Ministerio de Cultura del Perú (2022)Ministerio de Cultura del Perú. (2022). Kukama Kukamiria. BDPI - Base de Datos de Pueblos Indígenas u Originarios. https://bdpi.cultura.gob.pe/pueblos/kukama-kukamiria
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registra em seu banco de dados um total de 21.658 pessoas pertencentes a esta comunidade.

A literatura científica abordou o povo Kukama a partir de diferentes perspectivas: a partir da linguística, foi construída uma gramática Kukama que possa ser útil para o ensino e a revitalização da língua (Vallejos, 2015Vallejos, R. (2015). La importancia de la documentación lingüística en la revitalización de las lenguas: un esfuerzo colaborativo entre los Kukama-Kukamirias. In L. E. López & R. Moya (Eds.), Pueblos indígenas y educación (pp. 57-100). Ediciones Abya Yala., 2016Vallejos, R. (2016). A grammar of Kukama-Kukamiria: a language from the Amazon. Brill. https://brill.com/display/title/32951
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, 2018Vallejos, R. (2018). Kukama-Kukamiria. International Journal of American Linguistics, 84(51), 129-147. https://doi.org/10.1086/695549
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); nas teorias da geografia crítica, o território do povo indígena tem sido debatido a partir das suas cosmologias próprias e das afetações nas paisagens e nos diversos espaços (Rivas, 2022Rivas, R. (2022). Reconociendo al río: gran serpiente acuática como ser vivo en la cosmología animista kukama-kukamiria de la Amazonía peruana. Amazonía Peruana, (35), 89-114. https://doi.org/10.52980/revistaamazonaperuana.vi35.301
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; Campanera Reig, 2018Campanera Reig, M. (2018). Humanidad territorializada: madres, dueños y personas que cuidan. AIBR: Revista de Antropología Iberoamericana, 13(2), 189-212. https://doi.org/10.11156/aibr.v13i2.68518
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; Grados Bueno & Pacheco Riquelme, 2016Grados Bueno, C. V., & Pacheco Riquelme, E. M. (2016). El impacto de la actividad extractiva petrolera en el acceso al agua: el caso de dos comunidades kukama kukamiria de la cuenca del Marañón (Loreto, Perú). Anthropologica, (37), 33-59. https://doi.org/10.18800/anthropologica.201602.002
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; Fernandes Moreira & Ramírez Colombier, 2019Fernandes Moreira, D., & Ramírez Colombier, M. (2019). Mi casa pequeña, mi corazón grande: política territorial y cosmológica del pueblo Kukama. Mundo Amazónico, 10(1), 157-184. https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.73980
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); ao mesmo tempo, a antropologia fez um trabalho de abordagem sobre as práticas culturais do povo indígena (Rivas, 2003Rivas, R. (2003). Aspectos de la cosmovisión kukama-kukamiria. Amazonía Peruana, (28-29), 189-206. https://doi.org/10.52980/revistaamazonaperuana.vi28-29.85
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; Álvarez, 2014Álvarez, E. H. (2014). Acerca de la organización discursiva de los mitos de origen en la Amazonía peruana. Revista Sentidos da Cultura, 1(1), 55-76. https://periodicos.uepa.br/index.php/sentidos/article/view/355
https://periodicos.uepa.br/index.php/sen...
; Berjón Martínez & Cadenas Cardo, 2009Berjón Martínez, M. M., & Cadenas Cardo, M. A. (2009). La inquietud se hizo carne... y vino a vivir entre los kukama: dos lecturas a propósito de los pelacara. Estudio Agustiniano, 44(3), 425-437. https://doi.org/10.53111/estagus.v44i3.260
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, 2014Berjón Martínez, M. M., & Cadenas Cardo, M. A. (2014). Inestabilidad ontológica: el caso de los kukama de la Amazonía peruana. Organización de los Agustinos de Latinoamérica. http://www.oalagustinos.org/pdf/2014_15Manuel.pdf
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); assim como as teorias da comunicação e da cultura pesquisaram sobre os processos comunicativos da Rádio Ucamara e fizeram trabalhos a partir de relatos contidos nela (Angulo-Giraldo & Guanipa Ramírez, 2022Angulo-Giraldo, M. A., & Guanipa Ramírez, L. (2022). Humanos y no-humanos en los videos de Radio Ucamara del pueblo indígena Kukama Kukamiria (Perú): una aproximación desde el neomaterialismo. Letras, 93(137), 4-19. https://doi.org/10.30920/letras.93.137.1
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; Cabel García, 2022Cabel García, A. (2022). Más allá de la herida y el olvido: la voz memoriosa y su narrativa en dos documentales de Radio Ucamara. Antípoda: Revista de Antropología y Arqueología, (46), 99-122. https://doi.org/10.7440/antipoda46.2022.05
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; Calderon Vives, 2020Calderon Vives, E. J. (2020). El río que camina: estrategia comunicacional kukama para la defensa del territorio por Radio Ucamara [Trabalho de conclusão de curso, Pontifícia Universidade Católica do Peru]. https://tesis.pucp.edu.pe/repositorio/handle/20.500.12404/17423
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); e, finalmente, novos estudos abordaram os problemas de saúde e os efeitos da pandemia (Ulfe & Vergara, 2021Ulfe, M. E., & Vergara, R. (2021). ¡Hemos sobrevivido a todo! Cuidado y trabajo colaborativo en los pueblos Kukama Kukamiria de la Amazonía peruana frente a la COVID-191. Sociedade e Cultura, 24, e66318. https://www.redalyc.org/journal/703/70373188022/; Reyes Fernández Prada, 2022Reyes Fernández Prada, A. I. (2022). ¿Cómo habrá llegado esa enfermedad?: narrativas y experiencias de cuidado durante la pandemia del COVID-١٩ en la comunidad kukama kukamiria Nueva Santa Rosa [Trabalho de conclusão de curso, Pontifícia Universidade Católica do Peru]. https://tesis.pucp.edu.pe/repositorio/handle/20.500.12404/23375
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; Vergara Rodríguez, 2021Vergara Rodríguez, R. (2021). Préserver la vie dans le bassin de Puinahua: les femmes Kukama Kukamiria face à la COVID-19 dans un contexte d’exploitation pétrolière. Caminando/En Marche!, 35(2), 57-61. https://id.erudit.org/iderudit/97509ac
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).

Embora observemos uma diversidade temática de estudos sobre o povo indígena Kukama, as pesquisas não têm conseguido aprofundar-se nos sonhos como parte do dia a dia. Para este povo indígena, os sonhos são acontecimentos que fazem parte do cotidiano. Nesse sentido, os eventos oníricos refletem um conjunto de relações espaço-tempo-ontológicas em que aqueles que sonham podem estabelecer relações com diversas ‘gentes’, tanto humanos (filhos, irmãos, mães, pais e outros familiares) como não humanos (os espíritos das plantas, os animais do rio, entre outros). Todos eles se inter-relacionam num amplo conjunto de espaços, das cidades embaixo dos rios aos céus e à própria terra, em que não há diferença entre o tempo passado, pressente e futuro, de maneira que algumas narrações apresentam ocorrências que ainda não aconteceram e que podem ser entendidas como premonições do futuro.

O autor desta pesquisa tem trabalhado em textos anteriores com o povo indígena Kukama. Primeiro, a partir dos vídeos de Youtube da Rádio Ucamara, foram analisadas reportagens jornalísticas, pequenos documentários e músicas a partir de uma abordagem antropológica (Angulo-Giraldo, 2019Angulo-Giraldo, M. A. (2019). Las cosmologías amazónicas y las narraciones mediáticas. El caso de la Radio Ucamara del pueblo indígena Kukama Kukamiria (Perú). Pós - Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 14(1), 119-147. https://periodicos.unb.br/index.php/revistapos/article/view/26128
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) e de uma abordagem comunicativa neomaterialista (Angulo-Giraldo & Guanipa Ramírez, 2022Angulo-Giraldo, M. A., & Guanipa Ramírez, L. (2022). Humanos y no-humanos en los videos de Radio Ucamara del pueblo indígena Kukama Kukamiria (Perú): una aproximación desde el neomaterialismo. Letras, 93(137), 4-19. https://doi.org/10.30920/letras.93.137.1
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). Aliás, a partir do livro “Karuara, la gente del río”, produzido também pela Radio Ucamara (2016)Radio Ucamara. (2016). Karuara, la gente del río. Tarea Asociación Gráfica Educativa., se estudaram os relatos sobre os territórios nos mitos dos Kukama (Angulo-Giraldo, 2022Angulo-Giraldo, M. A. (2022). Territórios submersos em rios: narrativas míticas em textos e desenhos do povo indígena Kukama Kukamiria (Peru) em Karuara, la gente del río (2016). Revista Campo-Território, 17(48), 1-26. https://doi.org/10.14393/RCT174866733
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). Finalmente, uma primeira intepretação sobre os sonhos deste coletivo foi feita, analisando o documento “Mito y chamanismo: el mito de la tierra sin mal en los Tupí-Cocama de la Amazonia peruana”, de Ochoa Abaurre (2002)Ochoa Abaurre, J. C. (2002). Mito y chamanismo: el mito de la tierra sin mal en los Tupí-Cocama de la Amazonia peruana [Tese de doutorado, Universitat de Barcelona]. https://www.tdx.cat/handle/10803/2033#page=1
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(Angulo-Giraldo, 2023Angulo-Giraldo, M. A. (2023). El sueño como hecho social: análisis de las narrativas del pueblo indígena Kukama-Kukamiria (Perú). Revista Geadel, 4(1), 91-107. https://doi.org/10.29327/269116.4.1-8
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).

Neste artigo, o objetivo é aprofundar a aproximação aos sonhos, entendidos como episódios altamente significativos do dia a dia das pessoas que formam parte do povo indígena estudado, como acontecimentos que mostram um conjunto amplo de relacionamentos cosmológicos. De maneira específica, o artigo tenta responder às três perguntas que o próprio povo indígena procura reconhecer nos relatos daqueles que sonham: “Quais são os sonhos das ‘gentes’? Quem aparece nos sonhos? Como se comunicam os seres nos eventos oníricos?”6 6 “¿Qué sueña la gente? ¿Quiénes aparecen en sus sueños? ¿Cómo se comunican los seres en nuestros sueños?”. (Radio Ucamara, 2021bRadio Ucamara. (2021b, jul. 29). Tutorial 6: la salud mental, un abordaje desde los sueños en pueblos indígenas [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CuDD4Os9QjI
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).

QUEM SÃO AS ‘GENTES’ PARA OS KUKAMA?

O termo ‘gentes’ é utilizado pelos pesquisadores para se referir às relações entre humanos e não humanos desde o ponto de vista dos Kukama. Berjón Martínez e Cadenas Cardo (2014, pp. 4-5)Berjón Martínez, M. M., & Cadenas Cardo, M. A. (2014). Inestabilidad ontológica: el caso de los kukama de la Amazonía peruana. Organización de los Agustinos de Latinoamérica. http://www.oalagustinos.org/pdf/2014_15Manuel.pdf
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referem que a organização do universo dos Kukama está composta por três grandes espaços: o céu, lugar onde habitam as almas dos mortos, os trovões, o vento, a chuva, entre outros; a terra, onde moram as pessoas, os animais, as plantas e alguns espíritos; e os mundos subaquáticos, que são inúmeros mundos embaixo dos rios, onde residem os desaparecidos, os botos, as sereias, a mãe boa e outras ‘gentes’ que permanecem em grandes cidades. Dessa forma, o uso da palavra ‘gentes’ representaria “um nós inclusivo” (Berjón Martínez & Cadenas Cardo, 2009Berjón Martínez, M. M., & Cadenas Cardo, M. A. (2009). La inquietud se hizo carne... y vino a vivir entre los kukama: dos lecturas a propósito de los pelacara. Estudio Agustiniano, 44(3), 425-437. https://doi.org/10.53111/estagus.v44i3.260
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, p. 433).

Rivas (2022, p. 509)Rivas, R. (2022). Reconociendo al río: gran serpiente acuática como ser vivo en la cosmología animista kukama-kukamiria de la Amazonía peruana. Amazonía Peruana, (35), 89-114. https://doi.org/10.52980/revistaamazonaperuana.vi35.301
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destaca as formas como o próprio povo indígena marca uma diferença entre a “gente de cima” e a “gente do mundo embaixo”. Além do anterior, o próprio termo yacurunas, que é utilizado para se referir a pessoas que moram embaixo dos rios, se traduz como “gente do rio ou da água” (Rivas, 2023Rivas, R. (2023). La serpiente, madre del agua: Chamanismo acuático entre los kukama-kukamiria de la Amazonía peruana (Vol. 4). Fondo Editorial de la PUCP., p. 220).

A palavra ‘gentes’ também é usada por Leonardo Tello, intelectual indígena kukama e diretor da Rádio Ucamara, que se autoidentifica como pertencente a este coletivo. Tello (2014a, p. 39)Tello, L. (2014a). Ser gente en la Amazonía, fronteras de lo humano: aporte del pueblo kukama. In R. Badini (Ed.), Amazzonia indigena e pratiche di autorappresentazione (pp. 39-48). Franco Angeli. reflete sobre a frase de muitos mitos dos Kukama que indicam “antes, quando os animais eram gente”7 7 “antes, cuando los animales eran gente”. , sentença que se refere ao tempo mítico dos relatos, no qual não existiam diferenças entre humanos e não humanos. Para o autor indígena, “existem três modalidades de ‘ser gentes’: as pessoas são gentes; os animais da selva são gentes; os espíritos são gentes. A interligação de pessoas, animais e espíritos baseia-se em sermos todos gentes”8 8 “Existen tres modalidades de ‘ser gente’: las personas som gente; los animales en la selva son gente; los espíritus son gente. La interconexión de personas, animales y espíritus tienen como base el ser gente y es frecuente traspasar las fronteras de unos y otros”. (Tello, 2014aTello, L. (2014a). Ser gente en la Amazonía, fronteras de lo humano: aporte del pueblo kukama. In R. Badini (Ed.), Amazzonia indigena e pratiche di autorappresentazione (pp. 39-48). Franco Angeli., p. 40).

Sendo assim, neste artigo, o vocábulo ‘gentes’ vai ser utilizado entre aspas e em plural para marcar a diferença com o termo gente, que refere unicamente as pessoas. Com ‘gentes’, vamos nos referir a diversas ontologias/seres não necessariamente humanas/os que aparecem nos relatos da rádio indígena kukama.

UMA RÁDIO INDÍGENA NO MEIO DA AMAZÔNIA PERUANA

Em abril de 1972, foi inaugurada a rádio La Voz de la Selva, em Iquitos (Peru), que é parte do Instituto de Promoção Social Amazônica (IPSA) do Vicariato Apostólico de Iquitos. A filial desta emissora foi fundada no porto de Nauta e foi chamada como La Voz de la Selva Nauta. Inicialmente, seus trabalhadores foram animadores cristãos, membros mais velhos ligados à Igreja e alguns jornalistas estabelecidos nessa cidade. A rádio deixou de funcionar em 2003 e voltou em 2006, graças à ajuda dos párocos Miguel Ángel Cadenas e Manolo Berjón Martínez, e nesse ano trocou seu nome para Rádio Ucamara (Calderon Vives, 2020Calderon Vives, E. J. (2020). El río que camina: estrategia comunicacional kukama para la defensa del territorio por Radio Ucamara [Trabalho de conclusão de curso, Pontifícia Universidade Católica do Peru]. https://tesis.pucp.edu.pe/repositorio/handle/20.500.12404/17423
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; O. Espinosa et al., 2021Espinosa, O., Fabiano, E., & Tello, L. (2021). La radio indígena ante la pandemia de la Covid-19 en la Amazonía peruana: el caso de Radio Ucamara (Nauta, Loreto, Perú). América Crítica, 5(1), 33-45. https://doi.org/10.13125/americacritica/4933
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).

Atualmente, a rádio transmite seus conteúdos da cidade de Nauta, na região de Loreto, situada na zona de amortecimento da Reserva Nacional Pacaya-Samiria. Seus programas são escutados na região de Loreto, nos municípios de Parinari, Sapuena, Genaro Herrera, San Juan e Fernando Lores Tenazoa (Radio Ucamara, 2015bRadio Ucamara. (2015b). [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/
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). Aliás, muitos dos seus conteúdos podem ser acessados na internet pelo Youtube (ver Radio Ucamara, n.d.aRadio Ucamara. (n.d.a). Youtube. https://www.youtube.com/@radioucamara2911
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), pelo site (ver Radio Ucamara, 2015bRadio Ucamara. (2015b). [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/
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) e por redes sociais como o Facebook (ver Radio Ucamara, n.d.bRadio Ucamara. (n.d.b). Facebook. https://www.facebook.com/radioucamara
https://www.facebook.com/radioucamara...
) e o TikTok (ver Radio Ucamara, n.d.cRadio Ucamara. (n.d.c). TikTok. https://www.tiktok.com/@ucamara98.7
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).

A Radio Ucamara (2015a)Radio Ucamara. (2015a). Proyecto Político Comunicacional [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/p/ppc.html
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expressa sua identificação e posição política ao declarar: “Somos uma rádio indígena, localizada às margens do rio Marañón, na Amazônia peruana” que luta “pela defesa de nosso rio e território, da nossa memória e sabedoria”9 9 “Somos una radio indígena situada a las orillas del río Marañón, en la Amazonía peruana”, “por la defensa de nuestro río y territorio, de nuestra memoria y sabiduria”. . Nesse processo, estão construindo um “projeto político comunicativo” que inclui, dentro do seu olhar cosmológico, as “diferentes categorias de gentes que coabitam a Amazônia”10 10 “proyecto político comunicacional”, “diversas categorías de gentes que cohabitan en la Amazonía”. (Calderon Vives, 2020Calderon Vives, E. J. (2020). El río que camina: estrategia comunicacional kukama para la defensa del territorio por Radio Ucamara [Trabalho de conclusão de curso, Pontifícia Universidade Católica do Peru]. https://tesis.pucp.edu.pe/repositorio/handle/20.500.12404/17423
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, p. 132). Dessa forma, os conteúdos trabalhados por eles abordam temáticas de preocupação indígena constante: as invasões nos territórios, os problemas de afetação pela contaminação e os derramamentos de petróleo, as próprias violências históricas contra os povos indígenas, entre outras.

ABORDAGEM ETNOGRÁFICA

O presente artigo segue a metodologia da análise de conteúdo etnográfico. Como sugere Altheide (1987, p. 65)Altheide, D. L. (1987). Reflections: ethnographic content analysis. Qualitative Sociology, 10(1), 65-77. https://doi.org/10.1007/BF00988269
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, “. . . aspectos de uma abordagem de pesquisa etnográfica podem ser aplicados à análise de conteúdo para produzir a análise de conteúdo etnográfica (ECA), que pode ser definida como a análise reflexiva de documentos”11 11 “. . . aspects of an ethnographic research approach can be applied to content analysis to produce ethnographic content analysis (ECA), which may be defined as the reflexive analysis of documents”. .

Sobre a recolecção de dados, o trabalho foi feito com os produtos comunicativos da Rádio Ucamara, que nos permitem aproximação com os depoimentos recolhidos pelo próprio povo indígena por meio de produtos culturais contados desde suas narrativas, quer dizer, uma aproximação das memórias de algumas ‘gentes’ pertencentes aos Kukama.

Leonardo Tello, diretor da Rádio Ucamara, comenta:

Quando a memória passa pelo rádio ela ganha força, torna-se visível, torna-se explícita, e deveria nos ajudar a compreender o que está acontecendo em nossas populações na mesma lógica do pensamento indígena, situando esses discursos em outros espaços e permitindo que sejam pensados e compreendidos por outros atores políticos e sociais. É dizer, procurar um diálogo reivindicativo12 12 “Cuando la memoria pasa por la radio cobra fuerza, se visibiliza, se explicita, y debe ayudarnos a comprender lo que está pasando en nuestras poblaciones en la misma lógica del pensamiento indígena, situando estos discursos en otros espacios y permitiendo que sean pensados y comprendidos por otros actores políticos y sociales. En suma, buscando diálogo reivindicante”.

(Tello, 2014bTello, L. (2014b, set. 11). Cultura y memorias del pueblo Kukama - lanzamiento de campaña “Que nuestra voz se escuche”- martes 16 de septiembre 2014 – LUM [Blog]. Radio Ucamara. http://radio-ucamara.blogspot.com/2014/09/cultura-y-memorias-del-pueblo-kukama.html
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).

Dessa forma, as unidades de análise foram definidas como os vídeos de Youtube da Rádio Ucamara, onde estão disponíveis reportagens, mitos, tradições referidas ao povo indígena estudado ou conteúdo publicitário da própria rádio. Foram excluídas deste estudo as músicas produzidas pelas crianças e os vídeos que fazem referência a outros povos indígenas. Assim, um total de 71 vídeos, publicados entre 7 de novembro de 2013 e 19 de outubro de 2022, conformaram o universo do estudo13 13 A coleta dos dados do Youtube foi feita entre os dias 01/12/2022 e 08/01/2023. .

Uma primeira divisão que deve ser feita nessa seção é entre os sonhos antes e durante a pandemia. Assim, as temáticas serão apresentadas considerando que 42 vídeos foram produzidos antes da declaração da chegada da covid-19 ao Peru (e as ações do governo nesse sentido), enquanto outros 29 foram apresentados no contexto de emergência da epidemia no território peruano14 14 O governo peruano declarou estado de emergência nacional no dia 15 de março de 2020 e estabeleceu uma medida de isolamento social obrigatório, com um período de quarentena obrigatória para todo o território nacional. . Desse grupo, um total de 12 produtos audiovisuais foram escolhidos porque neles se fala sobre os sonhos ou são mencionadas suas características. Adicionalmente, foram incluídos no artigo dois textos publicados no site da Rádio Ucamara, pois mostravam testemunhos de pessoas do povo indígena e suas relações com os eventos oníricos. Como lembra Huaytán Martínez (2014)Huaytán Martínez, E. (2014). Indigenismo, antropología y testimonio en el Perú: rupturas, ampliaciones y plataformas de representación. Desde El Sur, 6(1), 31-44. https://revistas.cientifica.edu.pe/index.php/desdeelsur/article/view/19
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, a importância de valorizar as vozes dos próprios sujeitos indígenas se torna relevante nas ciências sociais peruanas desde 1970, quando promoveram a própria apresentação das vozes indígenas e não só representações fictícias.

Para saber as temáticas que apareceram nos sonhos, fez-se uma primeira classificação construindo categorias a partir das ideias mais repetidas nos vídeos e nos textos, isto é, das interpretações e significações relatadas (Giesecke, 2020Giesecke, M. P. (2020). Elaboración y pertinencia de la matriz de consistencia cualitativa para las investigaciones en ciencias sociales. Desde el Sur, 12(2), 397-417. https://doi.org/10.21142/DES-1202-2020-0023
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). Tal conjunto de dados foi dividido principalmente em dois grandes conjuntos: as relações com as ‘gentes’ (humanos e não humanos) e as previsões do futuro e da pandemia.

‘DESDE EL INICIO DE LOS TIEMPOS HEMOS SOÑADO’ - AS RELAÇÕES COM AS GENTES

Nos sonhos relatados, os Kukama contam os encontros que têm com seus familiares, especificamente aqueles que aconteceram com filhos, irmãos, pais, sobrinhos, avós ou outros. A particularidade das reuniões que acontecem nos sonhos radica em dois pontos: primeiro, a possibilidade de comunicação entre seres ontologicamente diversos – alma humana com corpos humanos e não humanos – e segundo, o sentido de cuidado, proteção e alerta que as ‘gentes’ tentam ter com os sonhadores.

Por exemplo, Julia conta sua relação com a sua irmã:

Eu ia me lavar aqui no porto, uns botos vieram aqui de canoa. Por que esse golfinho está me perseguindo sob as canoas? Peguei a lança do meu pai. Meu pai me diz: “essa é sua irmã, minha filha, ela é, eu sonhei com ela”. Ele me disse: “Eu tenho um negócio tremendo, papai”. Em seus sonhos, ele foi com meu pai. Viva está sua irmã, sua irmã não está morta, ela está viva, viva dentro do lago15 15 “Yo me iba a lavar aquí en puerto, venían unos bufeos aquí en balsa. ¿Por qué será este bufeo que me persigue debajo de las balsas? Sacaba el lanzón de mi papá. Mi papá me dice: ‘esa es tu hermana, hijita, ella es, yo la he soñado’. Me dijo: ‘tremendo comercio tengo, papito’. En sus sueños se ha ido con mi papá. Viva está tu hermana, tu hermana no está muerta, está viva, viva dentro del lago”.

(Radio Ucamara, 2015cRadio Ucamara. (2015c, maio 11). Ayriwa: las muyunas [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=TSMljd5YtHU&t=25s
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).

Neste trecho, a protagonista e seu pai estavam pescando no rio quando avistaram um boto. A estranheza de Julia contrasta com o relato do pai, que explica que esse animal é realmente a sua irmã. Como aconteceu essa revelação ontológica? No sonho. A partir disso, é possível explicar as relações ontológicas entre as ‘gentes’.

Vale lembrar que, como dito anteriormente, as ‘gentes’ congregam múltiplas ontologias que se relacionam, se comunicam e se afetam entre si dentro dos que estão conectados nos territórios do povo indígena Kukama. Assim, fazem parte de uma ampla rede de associações e vinculações que conectam diversos tempos históricos e espaços nos quais humanos e não humanos atuam sobre e com os outros.

Voltando aos eventos oníricos, estes se convertem em pontos de encontro entre os familiares – as ‘gentes’ –, em que não existe uma distinção ontológica, quer dizer, corporal, de maneira que o pai consegue falar diretamente com a sua filha no momento do sonho. A possibilidade de eles se comunicarem permite que a filha mostre para o pai seu lugar de residência: as cidades embaixo dos rios. É nesse momento que o espaço-tempo do sonho permite uma viagem espacial que no tempo diurno não aconteceria, pela impossibilidade física e corporal desse tempo. Nesse percurso sob o rio, a filha com corpo de boto exibe para o pai um mercadinho que ela tem.

Duas reflexões são necessárias nesse ponto: os desaparecidos e os mundos embaixo dos rios. Na cosmologia do povo Kukama, a desaparição de uma pessoa não garante sua morte. Nessa perspectiva, os corpos dos desaparecidos vão morar em grandes cidades que fazem parte dos mundos nas profundidades dos rios. As cidades embaixo dos rios são quase uma réplica dos espaços geográficos da terra; em outras palavras, são localidades com municípios, parques, praças, mercados, transporte, universidades e outros, habitados pelas mães dos animais e, em geral, pelas gentes. A consideração ontológica do desaparecido cobra relevância como aquele que está vivo e que jaz nessas cidades cobertas de água, as quais permitem a continuidade da vida por meio de outras corporeidades.

Como reflete Ander Ordoñez Mozombite, membro do coletivo, o rio é o “espaço onde vivem nossos familiares”16 16 “espacio donde viven nuestros familiares”. (Radio Ucamara, 2018aRadio Ucamara. (2018a, out. 13). El río que camina 02 [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=2qV3T5tbHWY
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), de maneira que a relação estabelecida com as vidas nele o considera tanto como um espaço que brinda a alimentação, a partir do consumo de peixes, como uma via de comunicação e como um território de vida per se: “Nós de maneira direta temos contato mediante sonhos com eles, e são eles que indicam que estão vivendo nesse lugar, que a cidade onde estão morando fica lá”17 17 “Nosotros de manera directa tenemos contacto por medio de sueños con ellos, y ellos son los que indican que sí están viviendo en ese lugar, que allí es la ciudad donde están vivendo”. (Radio Ucamara, 2018bRadio Ucamara. (2018b, nov. 21). El río que camina 05 [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=JryHCx61yFU
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).

Os encontros entre humanos e não humanos que acontecem nos sonhos permitem as viagens além do território geográfico da terra para incluir o espaço aquático e as vidas que aí residem. No entanto, as comunicações com eles só seriam possíveis mediante determinados espaços geográficos, como as muyunas18 18 As muyunas são redemoinhos que se formam nos rios e que permitem a comunicação entre os mundos embaixo dos rios e os que habitam a terra. , com o apoio dos xamãs ou por meio dos sonhos. Sendo assim, os eventos oníricos são considerados lugares privilegiados para a continuidade das relações intrafamiliares.

Nesse tipo de comunicações, os desaparecidos vão conseguir alertar aos familiares sobre possíveis futuras ocorrências para ajudar a preveni-las, porém também vão apresentar suas inseguranças, seus medos e suas preocupações:

Ontem à noite tive um sonho. Ontem à noite meu filho que mora dentro do rio veio me visitar. Ele não estava feliz como sempre. Ontem à noite ele parecia triste e preocupado. Ontem à noite, algo interrompeu meu sono. Eu me pergunto: o que está acontecendo com meu filho? Ontem à noite tive um sonho. Desde ontem à noite, não consigo parar de olhar o rio19 19 “Anoche tuve un sueño. Anoche, mi hijo que vive dentro del río vino a visitarme. No estaba feliz como siempre. Anoche se veía triste y preocupado. Anoche, algo interrumpió mi sueño. Me pregunto: ¿qué estará pasando con mi hijo? Anoche tuve un sueño. Desde anoche, no dejo de mirar el río”.

(Radio Ucamara, 2017aRadio Ucamara. (2017a, out. 11). Amazonia: justicia y solidaridad [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=1AoP6pQAIJI
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).

O episódio anterior mostra a forma por meio da qual a incerteza do filho que mora embaixo do rio é mostrada para a sua mãe. A relação mãe-filho se torna importante porque é o filho quem vai procurar a mãe, não para compartilhar com ela o motivo da sua preocupação, mas para simplesmente conversar com ela. Ela percebe sua tristeza e, ao acordar, fica refletindo frente ao rio para tentar entender o que está acontecendo no território submergido na água, isto é, para encontrar uma explicação no cotidiano para aquilo que foi percebido no sonho.

A complexidade da vida cotidiana permite compreender que os eventos oníricos e a vida diurna fazem parte de uma continuidade, de maneira que esses acontecimentos podem ser interpretados fora do próprio sonho, com os recursos compartilhados com a comunidade. Dessa forma, o sonho não pode ser explicado como um sistema autorreferenciado, precisando ser refletido e conversado com os outros quando a pessoa está acordada. Como comenta Rita Muñoz: “. . . contar os nossos sonhos nos torna curadores, contá-los em família nos une, nos mostra caminhos”20 20 “. . . contar nuestros sueños nos vuelve sanador, contarlo en familia nos une, nos muestra caminhos”. (Radio Ucamara, 2021bRadio Ucamara. (2021b, jul. 29). Tutorial 6: la salud mental, un abordaje desde los sueños en pueblos indígenas [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CuDD4Os9QjI
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).

O relato anterior deixa claro que o tempo do sono e o tempo da vigília não podem ser interpretados como realidades separadas, mas como continuidades da vida cotidiana; todas as relações que são estabelecidas nos dois espaços vão mostrar um conjunto diverso e heterogêneo de afetações e comunicações entre as ‘gentes’, que é tomado e interpretado como parte desse percurso do dia a dia. Em vista disso, na cosmologia dos Kukama, as relações entre as ‘gentes’ não têm a menor ou maior validade ou relevância por ter acontecido no sonho, e não no tempo diurno, de maneira que os eventos que passam no dia ou na noite têm a mesma importância.

Se as ‘gentes’ até aqui incluíam os humanos em corpos humanos (os que sonham) e os não humanos com corpos de animais (os presentes nos sonhos), os relatos contados nos vídeos nos levam a perceber também a presença dos espíritos das plantas nos sonhos. Rita Muñoz afirma que: “Nos sonhos, as plantas se revelam para nós. Nos sonhos somos visitados por parentes que moram dentro do rio. Nos sonhos aparece nossa mãe, nossos avôs, e eles nos avisam sobre questões do futuro”21 21 “En sueños las plantas se nos revelan. En sueños nos visitan los familiares que viven dentro del río. En sueños se aparece nuestra madre, nuestro abuelo, y nos previenen”. (Radio Ucamara, 2021bRadio Ucamara. (2021b, jul. 29). Tutorial 6: la salud mental, un abordaje desde los sueños en pueblos indígenas [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CuDD4Os9QjI
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).

Os mapas das relações e afetações se amplificam conforme os relatos apresentam cada vez outras ‘gentes’ que interatuam no cotidiano do tempo diurno e que também aparecem nos sonhos:

As pessoas a descobrem através dos sonhos. Eles sonham com ela quando o comem, pedem remédio à folha. Através dos sonhos eles perguntam a ela. É uma pessoa que está indicando para maltratá-lo. Alguém lhe diz: preciso que você me cure. . . Qualquer planta medicinal que você tenha que pedir. Você tem que falar. Alguém olha para ele e diz: você tem que me curar, estou doente. . . . Você dorme, você sonha. Sim, esta plantinha vai te curar22 22 “La gente le descubre por medio de sueños. Le sueñan cuando le comen, le piden a la hoja para medicina. Por medio de sueños le piden. Es una persona que les está indicando para que le maltraten. Uno le dice: yo te necesito para que me cures. . . . Toda planta medicinal tú tienes que pedirle. Tienes que hablar. Uno se le ve y le dice: me tienes que curar, estoy mal. . . . Tú duermes, te sueñas. Sí te va a sanar esta plantita”.

(Radio Ucamara, 2017bRadio Ucamara. (2017b, out. 12). Daños a la Espiritualidad de los kukama 1 [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=Gc4mzux0afM
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).

As relações cosmológicas do povo indígena Kukama mostram, então, as relações de convivência e apoio entre humanos e não humanos, no caso, as plantas, por meio dos processos de cura. A pessoa que tenta ser curada mediante a ingestão de um tipo de planta precisa se comunicar com ela de maneira direta, quer dizer, conversando com ela, pedindo-lhe o favor de ser curado. Esse processo de se relacionar com a erva mediante a palavra falada precisa que a pessoa que está doente estabeleça a relação com muito respeito. Essa primeira fala vai possibilitar que, durante a noite, a planta apareça em sua forma de espírito para estabelecer um contato físico.

Mais uma vez, os espíritos que são vistos no dia como plantas ou ervas mudam de forma corporal no espaço onírico, de maneira que eles se mostram em outros corpos para os humanos, mas mantendo a mesma alma. Ao entender o sonho como um espaço-tempo de assimetria ontológica, no qual cada corpo é um agente ativo e que estabelece relações diretas com os outros, as ‘gentes’ estabelecem contatos, mantêm conversas e se relacionam plenamente com os humanos, assim como foi feito com a planta.

No relato de Darling Murayari, as curas passam a ser entendidas como parte das relações de convivência entre os habitantes do território indígena:

Eu aprendi medicina desde muito jovem, aos 13 anos. As plantas me faziam sonhar. . . . Primeiro comecei a curar manchari [sic] [no povo Kukama, manchari [sic] é interpretado como inquietação ou que algum espírito roubou sua alma] que é muito fácil de curar, é fácil tirar o medo do corpo da criaturinha, devolver-lhe a sua pequena alma, dar-lhe paz de espírito. Através de sonhos, as mães das plantas me questionaram que [sic] remédio é esse e seu nome. Cada planta tem sua música. Para pegar uma folha ou um galho é preciso pedir permissão. Assim, você não pode pegar ou arrancar uma folha. É por isso que muitas vezes não surte efeito quando você faz um remédio porque você não pediu permissão, isso é sagrado23 23 “Yo aprendí desde muy pequeña la medicina a la edad de 13 años. Las plantas me hacían soñar. . . . Primero empecé a curar manchari [sic] [En el pueblo kukama manchari [sic] se interpreta como la intranquilidad o que algún espíritu le robo su alma] eso es muy fácil de curar, es sencillo quitarle el susto del cuerpo de la criaturita, regresarle su almita, darle tranquilidad. A través de los sueños, las madres de las plantas me decían ¿qué [sic] remedio es?, y su nombre. Cada planta tiene su canción. Para coger una hoja o una rama tienes que pedirle permiso. Así nomás no puedes coger o arrancar una hoja. Por eso muchas veces no hace efecto cuando haces un remedio porque no le has pedido permiso, eso es sagrado”.

(Muñoz Ramírez, 2016Muñoz Ramírez, R. (2016, set. 9). Los espíritus del río ya no vienen porque el río está contaminado [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/2016/09/los-espiritus-del-rio-ya-no-vienen.html
https://radio-ucamara.blogspot.com/2016/...
).

Um tema adicional que aparece nas reflexões sobre os relacionamentos entre humanos e não humanos radica o grau de vinculação e relação familiar que os humanos têm com os não humanos, quer dizer, a forma pela qual a relação, ao ser estabelecida, remete a um tipo de ligação afetiva que deriva de relações familiares consanguíneas. A curandeira Darling Murayari explica que as reuniões com os espíritos das plantas lhe ensinaram que as formas de curar são similares a um encontro com seu familiar: “. . . digo-lhes que são meus amigos, ou também os chamamos de avós, porque são como uma família; eles estão muito próximos e estamos nos comunicando com eles”24 24 “. . . yo les digo que son mis amigos, o, también les llamamos los abuelos, porque son como de la familia; son muy cercanos y estamos comunicándonos con ellos”. (Muñoz Ramírez, 2016Muñoz Ramírez, R. (2016, set. 9). Los espíritus del río ya no vienen porque el río está contaminado [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/2016/09/los-espiritus-del-rio-ya-no-vienen.html
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).

Finalmente, para o caso estudado, as relações familiares abrangem uma grande quantidade de relações entre humanos e não humanos que convivem com o território indígena e o habitam, as quais podem mudar seus corpos e as comunicações nos eventos que acontecem no espaço-tempo onírico.

O FUTURO POR VIR A PARTIR DA PANDEMIA

Se as afetações entre humanos e não humanos fazem parte do cotidiano por meio dos sonhos como parte das relações de cura, apoio e afetividade, um ponto importante são também as relações de cuidado que alertam aos humanos acontecimentos que poderiam passar no futuro, isto é, servem como previsões de situações num tempo por chegar.

Leonardo Tello Imaina, diretor de Rádio Ucamara, reflete sobre os avisos dos eventos posteriores, ao testificar: “O sonho comunica, avisa, avança. O sonho te conecta com a vida após a morte, é uma conexão com os ancestrais e com o futuro”25 25 “El sueño comunica, avisa, adelanta. El sueño te conecta con el más allá, es conexión con los antepasados y con el futuro”. (Tello, 2018Tello, L. (2018, maio 3). Curarse para comunicar [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/2018/05/curarse-para-comunicar.html
https://radio-ucamara.blogspot.com/2018/...
).

Ao entender os sonhos como lugares de mediações espaço-tempo-ontológicas, é possível ver as conexões entre humanos e não humanos dentro do território do povo indígena e, além disso, se torna plausível imaginar os acontecimentos de outros tempos, seja o passado, seja o futuro. Os relatos que aparecem nas memórias do povo indígena recebem alertas das diversas ‘gentes’ acerca de afetações que poderiam ter um impacto negativo nas vidas das pessoas que moram na terra, motivo pelo qual o contato serve como uma chamada de atenção para modificar as atividades do tempo presente, do tempo da vigília.

Os alertas do futuro nesta análise se misturam com os relatos sobre a pandemia, de forma que as crises no campo social e na saúde, que tiveram um impacto direto na vida das pessoas e nas suas relações no cotidiano, aparecem também nos sonhos. A interpretação da doença mostra duas caraterísticas: primeiro, a presença física e corporal da doença no próprio espaço-tempo do evento onírico; e segundo, nas formas pelas quais as ‘gentes’ tentam proteger os Kukama com recomendações e cuidados.

No primeiro caso, a covid-19 é vista como uma ameaça de morte, de acontecimentos funestos que tiram a vida das pessoas. No relato seguinte, um pássaro passeia pelos tetos das casas, rindo. A mãe da pessoa que sonha interpreta dentro do mesmo evento onírico a presença da ave e aponta que é a mãe da doença, a mãe da morte:

Noite passada sonhei que um passarinho voou por cima do telhado da minha casa e ficou em cima, lá em cima, e saiu rindo hahaha, então voou e foi para outra casa. Minha mãe me dizia em sonho que a morte estava chegando, que esta é a mãe da morte, da doença, que temos que fechar tudo para que não entre e que não devemos deixar parar, nem no telhado, nem na porta, nem no degrau da casa. Isso é o que minha mãe costumava me dizer26 26 “Anoche he soñado que un pájaro volaba sobre el techo de mi casa y se paraba en la cumba, allá arriba, y se iba riéndose jajaja, así volaba y se iba a otra casa. Mi mamá me decía en sueño que estaba llegando la muerte, que esa es la madre de la muerte, la enfermedad, que tenemos que cerrar todo para que no entre y que no hay que dejarle parar ni el techo, ni en la puerta, ni en el escalón de la casa. Así me decía mi mamá”.

(Radio Ucamara, 2020aRadio Ucamara. (2020a, jun. 5). Loreto: dois demônios e muitos povos amazônicos em risco [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=hhL97bYPcpE
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).

Duas interpretações do cotidiano são feitas aqui: por um lado, nem a morte nem a enfermidade aparecem com uma forma física, mas sim são apresentadas a partir dos riscos e da visão do pássaro, entendido como a mãe da doença; por outro lado, as restrições de confinamento que foram decretadas no mundo inteiro e também no Peru são reinterpretadas a partir do conselho da mãe da pessoa que sonha, que recomenda que a vivenda seja fechada totalmente, de maneira que não se permita que nenhuma ave tenha contato com a casa.

A partir do parágrafo anterior, a ave não representa a doença, mas sim a possibilidade de a morte ser espalhada em todos os lugares, a rapidez da viagem da enfermidade e como ela é uma ameaça que diretamente se coloca em qualquer lugar da casa. As medidas de proteção para não deixar o pássaro ficar em qualquer cantinho da casa são as mesmas que o filho, no tempo da vigília, vai ter que colocar em prática no seu dia a dia.

Adicionalmente, a presença da mãe mostra como o evento onírico conecta também os familiares mortos com aqueles que moram na terra. Ela tenta proteger o próprio filho mediante as recomendações explicadas anteriormente. Assim, é possível notar, mais uma vez, como a comunicação acontece durante o sonho, sendo esse um espaço-tempo que conecta os humanos independente da sua existência terrena.

Se a presença da mãe, que tinha morrido na terra e que aparece viva nos sonhos, serve para explicar a existência do sonho como um espaço-tempo em que as ‘gentes’ podem se comunicar além das suas corporeidades e vidas na terra, a presença das pessoas que vão nascer no futuro também cobra sentido. Assim, no relato de um jornalista da própria rádio aparece seu filho que ainda não tinha nascido:

Ontem à noite tive um sonho. Ontem à noite sonhei que estava conversando com meu filho ainda não nascido. Ontem à noite no meu sonho, meu filho me disse: cuida, papai, porque ainda não nasci e quem vai cuidar de mim depois? Desde então saio para trabalhar todos os dias como repórter, me protejo muito para não ficar doente, pensando no que meu filho me contou em meus sonhos27 27 “Anoche tuve un sueño. Anoche soñé que hablaba con mi hijo que aún no nace. Anoche en mi sueño, mi hijo me decía: cuídate, papito, porque aún no nazco y quien va a cuidar después mí. Desde entonces salgo a trabajar todos los días como reportero, me protejo mucho para no enfermarme, pensando en lo que mi hijo me dijo en sueños”.

(Radio Ucamara, 2020cRadio Ucamara. (2020c, set. 17). Sanando el alma - intsawa mutsanakari [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CIeglEoDfKM
https://www.youtube.com/watch?v=CIeglEoD...
).

O tempo do sonho, assim, não só mistura as ‘gentes’ do passado e do presente, mas também aqueles que ainda vão morar na terra, como o filho do jornalista. O anúncio do futuro por acontecer também é mostrado num outro relato no qual aparecem os sobrinhos e a mãe de um sonhador: “Sonhei que olhavam para nós peixinhos puros e aí meus sobrinhos vieram morar na minha casa nessa quarentena. . . Sonhei com minha mãe que me ensinou a me curar, e foi assim que me curei”28 28 “Yo he soñado que nos miraba puro pescadito chiquitito y después mis sobrinitos han venido a vivir a mi casa en esta cuarentena. . . Yo la he soñado a mi madre que me enseñaba como curarme, y así me sané”. (Radio Ucamara, 2020bRadio Ucamara. (2020b, jul. 23). Y así es mi sueño, soñar en tiempos de pandemia [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=wvpYfgRxdIM
https://www.youtube.com/watch?v=wvpYfgRx...
).

Os eventos oníricos acontecem num tempo além do tempo em que as ‘gentes’ do passado, do presente e do futuro experienciam, ou seja, as divisões das temporalidades que derivam do mundo ocidental se inter-relacionam de maneira constante, se comunicam para explicar seus medos, suas alegrias e os cuidados que os outros devem ter. Nesse sentido, as afetações se tornam relevantes porque são as ‘gentes’ do futuro ou do passado que interagem com os sonhadores para protegê-los ou para mostrar o que vai acontecer, como a futura chegada dos sobrinhos.

Destarte, se as interações multitemporais são importantes, a possibilidade de as ‘gentes’ se mostrarem em outros corpos, que são diferentes daqueles que são percebidos no tempo presente e diurno a partir dos pontos de vista dos humanos, pode ser entendida como a mudança do ponto de vista do sonhador. Essa alteração é plausível de acontecer num espaço em que as ontologias dos humanos e não humanos não têm uma distinção nem corpórea, nem de linguagem.

Adicionalmente, o contexto de estudo é marcado pela presença da pandemia de covid-19. Como foi explicado antes, a doença modificou as práticas sociais da população do mundo, na América Latina e no Peru, estando entre eles os Kukama. As imagens que aparecem nos sonhos sobre a chegada da pandemia mostraram sua presença como uma ameaça que não tem um corpo físico próprio, mas que utiliza outras materialidades para se apresentar.

Em algumas narrações, a doença é referida como um filho/filha de uma mãe, quer dizer, é uma ontologia que tem vida, e tem vida porque tem família, de modo que ela interage com os outros, afeta os outros, e, sendo assim, é uma ontologia que existe no tempo da vigília e do sonho. Ao existir, sua materialidade é percebida pelos outros:

O coronavírus tem sua mãe. Digo assim porque sonhei com ele. Sonhei com um homem enrolado, estava de máscara, mas não me atendeu. Eu estava gritando em meus sonhos, sei que ele estava me perseguindo, mas fiquei corajosa em meu sonho e acordei, e continuei sentindo-o ao meu lado, mas voltei aos meus sentidos e não havia nada. Para mim, é a mãe do coronavírus29 29 “El coronavirus tiene su madre. Yo lo digo así porque yo le soñé. Le soñé a un hombre envuelto, estaba con la mascarilla, pero no me contestaba. Yo gritaba en mis sueños, yo sé que me perseguía, pero yo me puse valiente en mi sueño y me desperté, y yo le seguía sintiendo a mi lado, pero me puse en mi sentido y no había nada. Para mí, es la madre del coronavirus”.

(Radio Ucamara, 2020cRadio Ucamara. (2020c, set. 17). Sanando el alma - intsawa mutsanakari [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CIeglEoDfKM
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).

A persecução assume uma alta relevância no relato porque o sujeito que sonha percebe que um corpo estranho (um homem com máscara) se aproxima dele para estabelecer um contato físico. O sonhador não vê nesse homem um familiar nem reconhece nele uma pessoa próxima, mas sente medo e grita. Esse sujeito desconhecido persegue os outros, é uma ameaça para as pessoas porque tenta pegá-las.

Num outro relato, Rita Muñoz comenta que um tipo de tartaruga, que tinha a particularidade de ser gigante, apareceu num evento onírico. O tamanho gigantesco do animal pode indicar justamente a forma material de uma doença que se espalhava muito rápido e que podia cobrir um grande espaço de forma acelerada. A forma de interação entre eles é também um tipo de perseguição em que a sonhadora sente que tem que fugir do lugar para não se deixar prender pelo animal: “Sonhei que uma enorme tartaruga me perseguia pela praia, eu corria, mas ela se movia mais rápido”30 30 “He soñado que una charapa inmensa me perseguía por la playa, yo corría, pero ella avanzaba más rápido”. (Radio Ucamara, 2021bRadio Ucamara. (2021b, jul. 29). Tutorial 6: la salud mental, un abordaje desde los sueños en pueblos indígenas [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=CuDD4Os9QjI
https://www.youtube.com/watch?v=CuDD4Os9...
).

A materialidade ontológica da covid-19 não tem uma forma corporal fixa, de fato, e vai aparecer por intermédio dos risos de um pássaro, na perseguição de uma tartaruga ou no encontro com um homem com máscara, por exemplo. Não obstante, sua existência não é colocada em julgamento: a presença ontológica existe e varia conforme o ponto de vista dos sonhadores. Cada sonhador tem uma experiência diferente e vê a doença no espaço-tempo do sonho com a corporeidade que ele consegue sentir, perceber e observar.

O importante, portanto, não reside na forma material per se das ‘gentes’, numa materialidade apriorística inexistente, e sim na relação que a pessoa estabelece com ela. Nos casos narrados, toda as relações tiveram um humano (quem sonhava) que, ao reconhecer a presença física da doença, se sentiu ameaçado por ela. O sentimento de desconforto e de medo é a interpretação a que os sonhadores referem quando acordam, o qual guarda relação com os próprios sentimentos de desamparo, solidão e intranquilidade que a população do mundo experimentou durante o tempo da pandemia.

Paralelamente ao dito, um fato que na pandemia se tornou relevante foram as medidas sanitárias que as pessoas deviam tomar para evitar se contagiar e, conforme foi avançando a pandemia, as formas de se curar, se houvesse contraído o vírus. No caso do povo indígena Kukama, os relatos recolhidos pela Rádio Ucamara mostram que as práticas curativas contra a doença incluíam as plantas como parte dos remédios para os doentes.

Nesse sentido, existe uma maior presença de histórias sobre a importância das plantas a partir do momento em que a covid-19 chegou ao território. Rita Muñoz explica que: “As plantas nos fazem sonhar, através de nossos sonhos elas se apresentam e falam conosco para nos curar”31 31 “Las plantas nos hacen soñar, por medio de nuestros sueños se presentan y nos hablan para poder sanarnos”. (Radio Ucamara, 2021aRadio Ucamara. (2021a, jul. 29). Tutorial 5: el conocimiento de los poderes curativos de las plantas medicinales [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=PKLU2Zpg6Mg
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); enquanto outro membro do povo indígena reflete sobre a importância das curas nos eventos oníricos: “. . . a cura, a cura através de sonhos que muitas vezes recebemos dos espíritos para curar doentes. . .”32 32 “. . . la sanidad, la curación a través de los sueños que recibimos muchas veces de los espíritus para hacer la curación de los pacientes. . .”. (Radio Ucamara, 2020dRadio Ucamara. (2020d, out. 1). Conversatorio mapa rio marañon 2020 [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=uxztTDWcxUQ
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).

Assim, os sonhos com as plantas parecem se tornar mais comuns na medida em que existe uma maior necessidade dos humanos para se curar; ao mesmo tempo, as próprias plantas, como ontologias presentes na vida cotidiana dos Kukama, procuram interagir mais com eles. Por conseguinte, as interações e as afetações que acontecem no tempo onírico não estão motivadas somente pelas atividades conscientes dos humanos; em outros termos, a possibilidade de que os encontros só aconteçam porque os sonhadores têm uma relevância ontológica maior e dominante. As interações ocorrem porque os não humanos, desde uma agência ativa e não passiva, procuram interagir com eles. Isto quer dizer que tanto humanos como não humanos procuram se relacionar nos sonhos na mesma medida, de maneira que as possibilidades das ‘gentes’ de interagir são iguais no espaço-tempo-ontológico do tempo onírico.

O testemunho de Darling Murayari é fundamental para compreender que o sonho não ocorre só pela vontade dos humanos de sonhar com os não humanos, e sim pela vontade, o desejo dos não humanos de mostrar, ensinar e proteger os humanos. Essa relação de apoio acontece e faz parte das relações entre as ‘gentes’ que participam da vida cotidiana do povo indígena Kukama: “As plantas me fizeram sonhar. Disseram-me para que serve e como preparar o remédio. Nos meus sonhos, as plantas me ensinaram a cantar. Quando acordei, lembrei e cantei. Não esqueço até agora”33 33 “Las plantas me hacían soñar. Me decían para que es bueno y como preparar el remedio. En mis sueños, las plantas me enseñaban a cantar. Cuando despertaba me acordaba y cantaba. No [sic] me olvido hasta ahora”. (Muñoz Ramírez, 2016Muñoz Ramírez, R. (2016, set. 9). Los espíritus del río ya no vienen porque el río está contaminado [Blog]. Radio Ucamara. https://radio-ucamara.blogspot.com/2016/09/los-espiritus-del-rio-ya-no-vienen.html
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).

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Entendidos os sonhos como espaços-tempos-ontológicos em que todas as ‘gentes’ interagem, os acontecimentos narrados como encontros familiares ocorrem no tempo onírico como parte do dia a dia dos Kukama. As narrações revisadas são relevantes, além do fato mesmo do encontro, como alertas, previsões e avisos que mostram as relações de cuidado, apoio e guia que aqueles parentes mortos ou desaparecidos desejam manter com aqueles que moram na terra.

Dessa forma, se as relações familiares do tempo diurno são limitadas àqueles que moram na terra, os sonhos expandem as possibilidades físicas (espaço) e temporais das relações para levar os sonhadores a outros lugares e em outros momentos do tempo. Além do anterior, o importante é ver como as ‘gentes’ conseguem conservar as relações de família que tinham independentemente de não continuar habitando a terra. Se a corporeidade dos mortos ou desaparecidos não existe mais na terra, isso não implica a sua alma ou o seu ponto de vista ser inexistente, pelo contrário, ele pode continuar sendo e se relacionando com os que moram lá por meio dos sonhos. Sendo assim, os eventos oníricos são considerados lugares privilegiados para a continuidade das relações intrafamiliares.

Sobre a manutenção das relações com os parentes, os episódios oníricos são muito relevantes para os povos Tupi-Guarani, como os Guarani Mbya, da aldeia Sapukaia (Rio de Janeiro, Brasil), porque, nesses momentos, “o parente reaparece” (Oliveira, 2004Oliveira, V. L. (2004). Aecha ra’u: vi em sonho. História e memória Guarani Mbyá. Tellus, (7), 59-72. https://tellusucdb.emnuvens.com.br/tellus/article/view/86
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, p. 69). Dessa forma, “existe uma relação entre parente/força, não parente/fraqueza, de forma que os sonhos irão marcar a passagem de uma ação individual. . . para o coletivo que absorve seus sonhos na interpretação direcionando suas ações” (Oliveira, 2004Oliveira, V. L. (2004). Aecha ra’u: vi em sonho. História e memória Guarani Mbyá. Tellus, (7), 59-72. https://tellusucdb.emnuvens.com.br/tellus/article/view/86
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, pp. 69-70).

Vale lembrar que, na cosmologia kukama, não são todos os sujeitos que habitam a terra, existindo outros mundos para a vida de outras gentes. Assim, as interações entre as ‘gentes’ (humanos e não humanos) acontecem nos sonhos porque esses acontecimentos espaciais de comunicação cosmológica são lugares em que se misturam os momentos (tempos) e em que há a possibilidade das ‘gentes’ de viajar entre os três mundos (o céu, a terra e os mundos subaquáticos) (Angulo-Giraldo & Guanipa Ramírez, 2022Angulo-Giraldo, M. A., & Guanipa Ramírez, L. (2022). Humanos y no-humanos en los videos de Radio Ucamara del pueblo indígena Kukama Kukamiria (Perú): una aproximación desde el neomaterialismo. Letras, 93(137), 4-19. https://doi.org/10.30920/letras.93.137.1
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). Nesse sentido, o sonho pode ser visto como uma experiência comunicativa entre os seres do cosmos, de maneira que se torna possível analisar as relações e as dimensões cosmológicas neles implicadas como fonte de conhecimento e de ação sobre o mundo (Canal & Ramón, 2017Canal, G. O., & Ramón, P. P. (2017). Presentación. EntreDiversidades, 1(9), 9-20. https://doi.org/10.31644/ED.9.2017.p01
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).

Faz-se necessário lembrar aqui que, na medida em que é um acontecimento do cotidiano, as interpretações sobre eles acontecem dentro do próprio compartilhamento da comunidade. Como argumenta El-Aswad (2010, p. 443)El-Aswad, E. S. (2010). Dreams and the construction of reality: symbolic transformations of the seen and the unseen in the Egyptian imagination. Anthropos, 105(2), 441-453. http://dx.doi.org/10.5771/0257-9774-2010-2-441
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, os sonhos não são um mundo autárquico e fechado; pelo contrário, estão relacionados a um cenário mais amplo de representações, imaginários, sentimentos e experiências com as quais os sujeitos organizam seu mundo na cotidianidade das suas vidas.

Num caso de outros povos Tupi-Guarani, Corraini (2017, p. 53)Corraini, S. R. (2017). A construção política e social Tupi Guarani: uma visão sobre os povos Tupi Guarani ao longo da história, seus enredos cosmológicos, diferenças e posições entre os subgrupos [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho]. https://agendapos.fclar.unesp.br/agenda-pos/ciencias_sociais/4205.pdf
https://agendapos.fclar.unesp.br/agenda-...
explica a importância dos episódios oníricos para o cotidiano na medida em que transmitem “mensagens enviadas pelos deuses” que são relevantes para reconhecer os “caminhos que se deve ou não tomar, além de conselhos sobre a própria vida diária”, de maneira que contêm também “advertências salutares” (Corraini, 2017Corraini, S. R. (2017). A construção política e social Tupi Guarani: uma visão sobre os povos Tupi Guarani ao longo da história, seus enredos cosmológicos, diferenças e posições entre os subgrupos [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho]. https://agendapos.fclar.unesp.br/agenda-pos/ciencias_sociais/4205.pdf
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, p. 53).

Se as relações e afetações podem sobreviver às mudanças dos mundos dos familiares, daqueles que desapareceram e foram morar embaixo dos rios ou de alguém que morreu, também se faz possível sonhar com outras ‘gentes’ que não são familiares diretos. Assim, vão ser incluídas outras ‘gentes’ a partir de múltiplas relações novas que os sonhadores possam criar com diversos humanos e não humanos no seu processo de vida.

Entender a possibilidade de que os sonhadores possam ter encontros com pessoas além da sua família direta se torna relevante pelo fato explicado por Davi Kopenawa, que reflete que os sonhos são entendidos de um jeito diferente pelos brancos por não terem acesso ao “mundo invisível dos espíritos e às suas imagens reveladoras” (Limulja, 2022Limulja, H. (2022). O desejo dos outros. Ubu Editora., p. 10). Nessa reflexão, seus eventos oníricos apresentam uma diferença central em relação aos povos indígenas: além da possibilidade de sonhar com outras subjetividades, o que é impossível para os brancos porque eles só conseguem ver e ter contato com seus próprios corpos, o espaço onírico se abre como uma viagem que permite ao sonhador um percurso para conhecer lugares e pessoas distantes. Se para os brancos os sonhos são representações do mundo, acontecimentos de um tempo que não seria considerado real ou que carece de veracidade, para o povo Yanomami estes representam “um instrumento de conhecimento sobre o mundo” (Limulja, 2022Limulja, H. (2022). O desejo dos outros. Ubu Editora., p. 13).

Num diálogo com outros povos tupi-guarani, estas relações estabelecidas nos sonhos e os saberes que são obtidos neles fazem parte também das suas cosmologias. Danaga (2016, p. 27)Danaga, A. C. (2016). Encontros, efeitos e afetos: discursos de uma liderança Tupi Guarani [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/8777/TeseACD.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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explica que as famílias Tupi-Guarani e Guarani Mbya, da aldeia Renascer (São Paulo, Brasil), percebem os episódios oníricos como um “. . . deslocamento entre corpo e alma, o que permite relações com outros seres do cosmos em um espaço-tempo diverso, suscitando conhecimentos e saberes”, de forma que os sonhos são percebidos como “fontes de conhecimento e experiência” (Danaga, 2016Danaga, A. C. (2016). Encontros, efeitos e afetos: discursos de uma liderança Tupi Guarani [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/8777/TeseACD.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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, p. 27). Numa outra aldeia do mesmo coletivo, de nome Ywu Pyhaú (São Paulo, Brasil), Almeida (2022, p. 4)Almeida, L. R. (2022). “É preciso força pra saber sonhar”: reflexões a respeito dos sonhos entre famílias tupi guarani no sudoeste do estado de São Paulo. Revista de Antropologia, 65(3), e195929. https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195929
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observa que essas experiências são vistas como “viagens da alma enquanto o corpo dorme”, as quais permitem a aquisição de um tipo de conhecimento/saber. Sendo assim, diferentes atividades desse coletivo estão relacionadas com os sonhos: “. . . as práticas de mobilidade, as relações entre parentes, os processos de adoecimento e cura, a vivência entre os irmãos de fé e a palavra que Deus lhes ‘revela em sonho’” (Almeida, 2022Almeida, L. R. (2022). “É preciso força pra saber sonhar”: reflexões a respeito dos sonhos entre famílias tupi guarani no sudoeste do estado de São Paulo. Revista de Antropologia, 65(3), e195929. https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195929
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, p. 4).

O mesmo acontece com os Guarani Mbya, para quem cada um desses acontecimentos é interpretado como um “. . . caminho pelo qual transita a alma” (Santos, 2022Santos, H. S. (2022). Sonho entre os Guarani: ensaio bibliográfico [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/D.8.2022.tde-15022023-181459
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, p. 87). O sentido de caminho, aqui, tem relação com nexos que ligam as pessoas, os lugares, os conhecimentos e as experiências de diferentes maneiras, mas “. . . não necessariamente bons, podem levar a relações indesejadas com outros seres”, de forma que cada sonho é um “lugar de suscetibilidade” (Santos, 2022Santos, H. S. (2022). Sonho entre os Guarani: ensaio bibliográfico [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/D.8.2022.tde-15022023-181459
https://doi.org/10.11606/D.8.2022.tde-15...
, p. 87).

Na amplitude das relações cosmológicas mostradas, os sonhos permitem que as relações com as plantas sejam estabelecidas para curar as pessoas. Assim, os espíritos que são vistos no dia como plantas ou ervas mudam de forma corporal no espaço onírico, de maneira que eles se mostram em outros corpos para os humanos, mantendo seu espírito. Essas relações com as plantas também aparecem entre os Guarani Mbya, da aldeia Sapukaia (Rio de Janeiro, Brasil), para quem os sonhos são usados também para obter conhecimentos sobre processos de cura com plantas medicinais (Oliveira, 2004Oliveira, V. L. (2004). Aecha ra’u: vi em sonho. História e memória Guarani Mbyá. Tellus, (7), 59-72. https://tellusucdb.emnuvens.com.br/tellus/article/view/86
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); da mesma forma, está presente entre os Ava Guarani, de Salta (Argentina), os quais recebem conhecimentos dos não humanos (plantas, animais, ancestrais etc.) por meio dos sonhos (Flores, 2023Flores, M. E. (2023). Antropología de los territorios indígenas: aportes para el estudio de las naturalezas entre guaraní y chané del noroeste argentino. Horizontes Antropológicos, 29(66), e195929. https://doi.org/10.1590/1806-9983e660404
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).

No contexto da pandemia, as relações de apoio com as plantas se tornaram mais relevantes. Nesse cenário, os humanos procuraram formas de se proteger contra a pandemia por meio do contato com elas, e dessa forma os sonhos permitiram os encontros entre os sonhadores e os espíritos delas.

Ao pensar nas agências dos sonhadores e das plantas, o que o artigo mostra é a consideração ativa das ‘gentes’. Assim, se as plantas aparecem nos sonhos, não é só porque os humanos precisam delas para se curar (entendendo os humanos como um agente ativo que utiliza as plantas como um objeto passivo), mas porque as plantas, sendo seres ontológicos, desejam se relacionar com os humanos. É nesse encontro que as agências ativas dos humanos e dos não humanos interagem num nível ontológico, em que o apoio entre eles é fundamental para a preservação da vida no território. Sendo assim, os acontecimentos que ocorrem nos sonhos poderiam não apenas ser motivados pela vontade dos humanos de receber apoio das plantas para serem curados, mas também pelo desejo das plantas de curar e ajudar aos humanos como uma contribuição delas na perpetuação da vida das ‘gentes’ no território kukama, quer dizer, deles mesmos.

O argumento anterior se relaciona com o explicado por Limulja (2022, p. 14)Limulja, H. (2022). O desejo dos outros. Ubu Editora. para o caso dos Yanomami. Se durante a noite o mundo onírico permitirá que os diversos agentes (humanos e não humanos) se relacionem, transitem e viagem juntos, por outro lado, se deve tomar em conta uma ameaça sempre presente: “o desejo dos outros”. A diferença do olhar dos povos indígenas é levada a um ponto radical quando a autora explica as relações que os Yanomami estabelecem com as outras subjetividades: não são só as próprias afetações, mas principalmente os anseios dos outros agentes pelo estabelecimento de relações de predação com o povo indígena. Dessa maneira, o desejo dos outros existe e pode ter nos sonhos seu cenário predileto.

No mesmo sentido, mas a partir de relações de não predação, Rodrigues (2020, p. 165)Rodrigues, T. O. (2020). Outros modos de pensar e sonhar: a experiência onírica em Reinhart Koselleck, Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Revista de Teoria da História, 23(1), 152-177. https://doi.org/10.5216/rth.v23i1.62894
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argumenta que os sonhos fazem parte da memória dos povos indígenas, um espaço para a sabedoria em que “os aprendizados fundamentais são revelados”, de forma que os eventos oníricos são articulados como espaços-tempos que permitem a aparição de diversos recursos e linguagens que, além de preparar os sujeitos para a vida do cotidiano, “auxiliam os seres a lidar com os desafios que aparecem aos sonhadores”.

Um ponto fundamental está relacionado às interpretações sobre as incertezas, os medos e as preocupações derivados do processo da pandemia vivido pelos Kukama. As representações de seres grandes, sem uma forma específica, que utilizam outros animais para avisar sobre a sua chegada e que geram temor na população, permitem notar a importância de olhar os sonhos além dos agentes/sujeitos, que não deixam de ser importantes, para colocar o foco no acontecimento mesmo, no sentimento que o evento gera nas pessoas.

O anterior pode ser entendido também a partir do argumentado por Mannheim (2015, p. 11)Mannheim, B. (2015). La historicidad de imágenes oníricas quechuas sudperuanas. Letras, 86(123), 5-48. https://doi.org/10.30920/letras.86.123.1
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, segundo o qual os signos dos sonhos prefiguram uma cultura que muda constantemente em comparação com as narrativas ou os rituais, que têm uma “estabilidade histórica” maior do que os sonhos, de maneira que os próprios sonhos carregam seus marcos interpretativos que mudam conforme a renovação dos eventos.

Ao pensar primeiro nos processos, e não nos agentes que as produzem, a perspectiva interpretativa de cada sonho passa a ser considerada como uma experiência que tem valor próprio por si mesma, pela viagem e pelas emoções. Isso não quer dizer que se esquecem os intérpretes, mas que, em alguns casos, as sensações (relações, intercâmbios, conversações) produzidas são tão importantes como os sujeitos com quem se perpetuam relações.

O ponto relevante, como menciona Descola (2012)Descola, P. (2012). As lanças do crepúsculo. Cosac & Naify., não é pensar numa base estável de figuras e representações para cada evento onírico, sendo realmente importante ver mais as relações do que os objetos relacionados, de forma que é possível permutar, por homologação, inversão ou simetria e transferir nessas relações, os sentidos contrários:

. . . não há nenhuma necessidade de se recorrer a equivalências exaustivamente repertoriadas pela tradição numa chave dos sonhos, já que todas as interpretações de sonhos de caça tornam-se válidas se estiverem conforme essas leis de derivação que os Achuar não formulam explicitamente, mas que sabem explorar em benefício próprio

(Descola, 2012Descola, P. (2012). As lanças do crepúsculo. Cosac & Naify., p. 138).

Finalmente, para responder à última pergunta sobre como se comunicam os seres nos eventos oníricos, faz-se necessário refletir sobre o ponto de vista na cosmologia kukama. Nos sonhos, a possibilidade dos encontros dos sonhadores com os outros (os desaparecidos, os espíritos e outros não humanos) ocorre pela existência desses espaços-tempos-ontológicos que permitem as interações entre diversas gentes. Mas o que muda para que a comunicação aconteça?

Pelo exposto, o ponto de vista se faz relevante na medida em que, enquanto os corpos dos não humanos mudam no evento onírico, os pontos de vista dos humanos também se transformam. Assim, o lugar de onde os sonhadores observam as relações acontecendo permite que eles percebam os outros corpos das ‘gentes’, diferentes algumas vezes daqueles que utilizam na terra. No sonho, então, é plausível ver, sentir e conversar com as ‘gentes’ numa linguagem comum para todos e, dependendo do sonhador, perceber as outras formas corporais que as ‘gentes’ possuem.

Enquanto no tempo da vigília cada ser mantém seus corpos e é impossível a comunicação entre eles por conta de linguagens diferentes, nos sonhos a indistinção ontológica é plausível de acontecer, da mesma forma que a comunicação verbal entre eles (Morais Neto, 2019Morais Neto, O. R. (2019). Espíritos demais: notas sobre o xamanismo Akwẽ-Xerente. Revista de Antropologia da UFSCar, 11(2), 167-195. https://doi.org/10.52426/rau.v11i2.318
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). Reflexões similares foram apresentadas pelo Provensal (1989)Provensal, D. (1989). Antropología y experiencias del sueño, compilat per Michel Perrin. Arxiu d’Etnografia de Catalunya, (7), 257-259. https://doi.org/10.17345/aec7.257-259
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, que nos convida a pensar os eventos oníricos a partir de uma reciprocidade de perspectivas de pontos de vista, ou seja, a refletir além do ponto individual (sujeito único) para pensar no fato de compartilhar com os outros, nos intercâmbios de ontologias que acontecem nos sonhos. Assim, os sonhos, assim como os mitos, são partes estruturais das concepções do mundo e das pessoas, além de serem uma produção intelectual e social particular que tem como função outorgar as chaves para compreender o universo e as relações que os sujeitos estabelecem nesse espaço-tempo.

  • 1
    Todas as traduções são de minha autoria. O sentido de ‘fato social’ utilizado por El-Aswad (2010)El-Aswad, E. S. (2010). Dreams and the construction of reality: symbolic transformations of the seen and the unseen in the Egyptian imagination. Anthropos, 105(2), 441-453. http://dx.doi.org/10.5771/0257-9774-2010-2-441
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    está relacionado ao mesmo conceito proposto por Durkheim (1985)Durkheim, E. (1985). Las reglas del método sociológico. Ediciones Akal.. O autor argumenta que os fatos sociais podem ser definidos como “maneira de fazer, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo e que estão dotadas de um poder de coerção em virtude do qual impõem [maneras de hacer, de pensar y de sentir, exteriores al individuo y que están dotadas de un poder de coerción en virtud del cual se le imponen]” (Durkheim, 1985Durkheim, E. (1985). Las reglas del método sociológico. Ediciones Akal., p. 5). A partir dessa definição e da compreensão de que esses fatos sociais existem, segundo Durkheim (1985)Durkheim, E. (1985). Las reglas del método sociológico. Ediciones Akal., como realidades externas aos indivíduos, conferindo significado ao coletivo e exercendo um impacto significativo no comportamento e na estrutura social como um todo, é possível considerar algumas práticas culturais como fatos sociais. No caso mencionado por El-Aswad (2010)El-Aswad, E. S. (2010). Dreams and the construction of reality: symbolic transformations of the seen and the unseen in the Egyptian imagination. Anthropos, 105(2), 441-453. http://dx.doi.org/10.5771/0257-9774-2010-2-441
    https://doi.org/10.5771/0257-9774-2010-2...
    , os sonhos possuem um valor enquanto ‘fato social’, na medida em que o próprio ato de sonhar e todos os elementos sociais a ele associados (mitos, rituais, crenças, epistemologia etc.) são construídos como normas sociais e culturais que influenciam o comportamento, a organização social e as práticas dos membros do grupo. Assim, assimilando a perspectiva de Durkheim (1985)Durkheim, E. (1985). Las reglas del método sociológico. Ediciones Akal., os sonhos, a que se refere El-Aswad (1994)El-Aswad, E. S. (1994). The cosmological belief system of Egyptian peasants. Anthropos, 89(4/6), 359-377. https://www.jstor.org/stable/40463013
    https://www.jstor.org/stable/40463013...
    , podem ser entendidos como expressões concretas de fatos sociais que desempenham um papel na coesão social e na configuração da vida em sociedade de alguns grupos.
  • 2
    “. . . denso tejido social y cognitivo, constituido por todas las relaciones entre humanos y no humanos (animales, plantas, antepasados, espíritus de los muertos, espíritus tutelares, dueños o espíritus de los animales y las plantas, etc.)”.
  • 3
    “sentido definido de ‘etnicidad’”.
  • 4
    “personas con fuerza”, “gente de allá”.
  • 5
    “quien se amamenta de la chacra”.
  • 6
    “¿Qué sueña la gente? ¿Quiénes aparecen en sus sueños? ¿Cómo se comunican los seres en nuestros sueños?”.
  • 7
    “antes, cuando los animales eran gente”.
  • 8
    “Existen tres modalidades de ‘ser gente’: las personas som gente; los animales en la selva son gente; los espíritus son gente. La interconexión de personas, animales y espíritus tienen como base el ser gente y es frecuente traspasar las fronteras de unos y otros”.
  • 9
    “Somos una radio indígena situada a las orillas del río Marañón, en la Amazonía peruana”, “por la defensa de nuestro río y territorio, de nuestra memoria y sabiduria”.
  • 10
    “proyecto político comunicacional”, “diversas categorías de gentes que cohabitan en la Amazonía”.
  • 11
    “. . . aspects of an ethnographic research approach can be applied to content analysis to produce ethnographic content analysis (ECA), which may be defined as the reflexive analysis of documents”.
  • 12
    “Cuando la memoria pasa por la radio cobra fuerza, se visibiliza, se explicita, y debe ayudarnos a comprender lo que está pasando en nuestras poblaciones en la misma lógica del pensamiento indígena, situando estos discursos en otros espacios y permitiendo que sean pensados y comprendidos por otros actores políticos y sociales. En suma, buscando diálogo reivindicante”.
  • 13
    A coleta dos dados do Youtube foi feita entre os dias 01/12/2022 e 08/01/2023.
  • 14
    O governo peruano declarou estado de emergência nacional no dia 15 de março de 2020 e estabeleceu uma medida de isolamento social obrigatório, com um período de quarentena obrigatória para todo o território nacional.
  • 15
    “Yo me iba a lavar aquí en puerto, venían unos bufeos aquí en balsa. ¿Por qué será este bufeo que me persigue debajo de las balsas? Sacaba el lanzón de mi papá. Mi papá me dice: ‘esa es tu hermana, hijita, ella es, yo la he soñado’. Me dijo: ‘tremendo comercio tengo, papito’. En sus sueños se ha ido con mi papá. Viva está tu hermana, tu hermana no está muerta, está viva, viva dentro del lago”.
  • 16
    “espacio donde viven nuestros familiares”.
  • 17
    “Nosotros de manera directa tenemos contacto por medio de sueños con ellos, y ellos son los que indican que sí están viviendo en ese lugar, que allí es la ciudad donde están vivendo”.
  • 18
    As muyunas são redemoinhos que se formam nos rios e que permitem a comunicação entre os mundos embaixo dos rios e os que habitam a terra.
  • 19
    “Anoche tuve un sueño. Anoche, mi hijo que vive dentro del río vino a visitarme. No estaba feliz como siempre. Anoche se veía triste y preocupado. Anoche, algo interrumpió mi sueño. Me pregunto: ¿qué estará pasando con mi hijo? Anoche tuve un sueño. Desde anoche, no dejo de mirar el río”.
  • 20
    “. . . contar nuestros sueños nos vuelve sanador, contarlo en familia nos une, nos muestra caminhos”.
  • 21
    “En sueños las plantas se nos revelan. En sueños nos visitan los familiares que viven dentro del río. En sueños se aparece nuestra madre, nuestro abuelo, y nos previenen”.
  • 22
    “La gente le descubre por medio de sueños. Le sueñan cuando le comen, le piden a la hoja para medicina. Por medio de sueños le piden. Es una persona que les está indicando para que le maltraten. Uno le dice: yo te necesito para que me cures. . . . Toda planta medicinal tú tienes que pedirle. Tienes que hablar. Uno se le ve y le dice: me tienes que curar, estoy mal. . . . Tú duermes, te sueñas. Sí te va a sanar esta plantita”.
  • 23
    “Yo aprendí desde muy pequeña la medicina a la edad de 13 años. Las plantas me hacían soñar. . . . Primero empecé a curar manchari [sic] [En el pueblo kukama manchari [sic] se interpreta como la intranquilidad o que algún espíritu le robo su alma] eso es muy fácil de curar, es sencillo quitarle el susto del cuerpo de la criaturita, regresarle su almita, darle tranquilidad. A través de los sueños, las madres de las plantas me decían ¿qué [sic] remedio es?, y su nombre. Cada planta tiene su canción. Para coger una hoja o una rama tienes que pedirle permiso. Así nomás no puedes coger o arrancar una hoja. Por eso muchas veces no hace efecto cuando haces un remedio porque no le has pedido permiso, eso es sagrado”.
  • 24
    “. . . yo les digo que son mis amigos, o, también les llamamos los abuelos, porque son como de la familia; son muy cercanos y estamos comunicándonos con ellos”.
  • 25
    “El sueño comunica, avisa, adelanta. El sueño te conecta con el más allá, es conexión con los antepasados y con el futuro”.
  • 26
    “Anoche he soñado que un pájaro volaba sobre el techo de mi casa y se paraba en la cumba, allá arriba, y se iba riéndose jajaja, así volaba y se iba a otra casa. Mi mamá me decía en sueño que estaba llegando la muerte, que esa es la madre de la muerte, la enfermedad, que tenemos que cerrar todo para que no entre y que no hay que dejarle parar ni el techo, ni en la puerta, ni en el escalón de la casa. Así me decía mi mamá”.
  • 27
    “Anoche tuve un sueño. Anoche soñé que hablaba con mi hijo que aún no nace. Anoche en mi sueño, mi hijo me decía: cuídate, papito, porque aún no nazco y quien va a cuidar después mí. Desde entonces salgo a trabajar todos los días como reportero, me protejo mucho para no enfermarme, pensando en lo que mi hijo me dijo en sueños”.
  • 28
    “Yo he soñado que nos miraba puro pescadito chiquitito y después mis sobrinitos han venido a vivir a mi casa en esta cuarentena. . . Yo la he soñado a mi madre que me enseñaba como curarme, y así me sané”.
  • 29
    “El coronavirus tiene su madre. Yo lo digo así porque yo le soñé. Le soñé a un hombre envuelto, estaba con la mascarilla, pero no me contestaba. Yo gritaba en mis sueños, yo sé que me perseguía, pero yo me puse valiente en mi sueño y me desperté, y yo le seguía sintiendo a mi lado, pero me puse en mi sentido y no había nada. Para mí, es la madre del coronavirus”.
  • 30
    “He soñado que una charapa inmensa me perseguía por la playa, yo corría, pero ella avanzaba más rápido”.
  • 31
    “Las plantas nos hacen soñar, por medio de nuestros sueños se presentan y nos hablan para poder sanarnos”.
  • 32
    “. . . la sanidad, la curación a través de los sueños que recibimos muchas veces de los espíritus para hacer la curación de los pacientes. . .”.
  • 33
    “Las plantas me hacían soñar. Me decían para que es bueno y como preparar el remedio. En mis sueños, las plantas me enseñaban a cantar. Cuando despertaba me acordaba y cantaba. No [sic] me olvido hasta ahora”.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Brasil (CAPES) – código de financiamento 001. Agradeço à Radio Ucamara, a Leonardo Tello Imaina e ao povo indígena Kukama. Adicionalmente, à professora Ana Lúcia Liberato Tettamanzy e ao professor Enio Passiani, pelas primeiras revisões e comentários ao texto.

  • Angulo-Giraldo, M. A. (2024). “Anoche tuve un sueño, desde anoche, no dejo de mirar el río”: as relações cosmológicas nos sonhos do povo indígena Kukama (Peru). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(2), e20230023. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0023.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
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