Acessibilidade / Reportar erro

Desenvolvimento de prótese auditiva digital para atendimento da Portaria nº 587 (APAC) do Ministério da Saúde: Health Department

Resumos

O tratamento das disacusias sensório-neurais está balizado no uso de próteses auditivas, conhecidas como aparelhos auditivos ou aparelhos de amplificação sonora individuais. As próteses auditivas adquiridas pelo Governo Brasileiro para a condução de políticas públicas têm como uma de suas características a utilização de componentes dedicados, o que traz benefícios, mas que encarece a aquisição e pode inviabilizar os serviços de reparo após o término da garantia do fabricante. OBJETIVO: Desenvolver próteses auditivas digitais no desenho retroauricular, construídas a partir de componentes padronizados oriundos da própria cadeia de suprimentos dos fabricantes de próteses auditivas. FORMA DE ESTUDO: Experimental. MATERIAL E MÉTODO: Identificar a cadeia de suprimentos destes fabricantes, solicitar amostras e montar próteses auditivas em laboratório. RESULTADOS: As próteses auditivas desenvolvidas apresentaram recursos eletroacústicos não inferiores àquelas adquiridas pelo Governo, sendo adicionalmente atestadas pela mesma norma técnica internacional de referência. CONCLUSÃO: É possível desenvolver próteses auditivas digitais no desenho retroauricular montados a partir de componentes padronizados da cadeia de suprimentos dos fabricantes de próteses auditivas. Suas vantagens residem no baixo custo operacional - aquisição (com vantagens para o Governo) e de manutenção (com vantagens para o paciente).

perda auditiva; políticas públicas de saúde; próteses e implantes; tecnologia de baixo custo


The treatment of sensorineural hearing loss is based on hearing aids, also known as individual sound amplification devices. The hearing aids purchased by the Brazilian Government, aiming at fulfilling public policies, are based on dedicated components, which bring about benefits, but also render them expensive and may impair repair services after manufacture's warranty expires. AIM: to design digital behind-the-ear hearing aids built from standardized components coming from the very supply chain of these manufacturers. STUDY DESIGN: experimental. MATERIALS AND METHODS: to identify the supply chain of these manufacturers, request samples and set up hearing aids in the laboratory. RESULTS: The developed hearing aids did not show lesser electroacoustic characteristics when compared to those acquired by the Government, also being tested by the same reference international technical standard. CONCLUSION: It is possible to develop digital behind-the-ear hearing aids based on off-the-shelf components from hearing aid manufacturers' supply chain. Their advantages include low operational costs - for acquisition (with clear advantages for the Government) and service (advantage for the patient).

hearing loss; low cost technology; prostheses and implants; public policies


ORIGINAL ARTICLE

Desenvolvimento de prótese auditiva digital para atendimento da Portaria nº 587 (APAC) do Ministério da Saúde

Silvio Pires PenteadoI; Ricardo Ferreira BentoII

IEngenheiro Eletrônico. Aluno do Curso de Doutorado em Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

IIProf. Titular de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Chefe do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

RESUMO

O tratamento das disacusias sensório-neurais está balizado no uso de próteses auditivas, conhecidas como aparelhos auditivos ou aparelhos de amplificação sonora individuais. As próteses auditivas adquiridas pelo Governo Brasileiro para a condução de políticas públicas têm como uma de suas características a utilização de componentes dedicados, o que traz benefícios, mas que encarece a aquisição e pode inviabilizar os serviços de reparo após o término da garantia do fabricante.

OBJETIVO: Desenvolver próteses auditivas digitais no desenho retroauricular, construídas a partir de componentes padronizados oriundos da própria cadeia de suprimentos dos fabricantes de próteses auditivas.

FORMA DE ESTUDO: Experimental.

MATERIAL E MÉTODO: Identificar a cadeia de suprimentos destes fabricantes, solicitar amostras e montar próteses auditivas em laboratório.

RESULTADOS: As próteses auditivas desenvolvidas apresentaram recursos eletroacústicos não inferiores àquelas adquiridas pelo Governo, sendo adicionalmente atestadas pela mesma norma técnica internacional de referência.

CONCLUSÃO: É possível desenvolver próteses auditivas digitais no desenho retroauricular montados a partir de componentes padronizados da cadeia de suprimentos dos fabricantes de próteses auditivas. Suas vantagens residem no baixo custo operacional - aquisição (com vantagens para o Governo) e de manutenção (com vantagens para o paciente).

Palavras-chave: perda auditiva, políticas públicas de saúde, próteses e implantes, tecnologia de baixo custo.

INTRODUÇÃO

Apesar de ser previsível, a presbiacusia é uma das disfunções sensório-neurais mais difíceis de serem aceitas1 e uma das três condições crônicas de maior incidência entre idosos ao lado da artrite e da hipertensão2. De acordo com o grau, duração e etiologia associada, as perdas auditivas em crianças podem resultar em distúrbios que invariavelmente as levam a apresentar baixos níveis de aproveitamentos escolares, tornando-se um desafio adicional para os educadores e familiares, mesmo quando se tratam de perdas moderadas unilaterais3.

A recuperação biológica da audição encontra-se no campo da pesquisa, o que torna as próteses auditivas - conhecidas como aparelhos auditivos ou de aparelhos de amplificação sonora individual (AASI) - as principais ferramentas de habilitação ou da reabilitação auditiva sensorioneural. Apesar da relativa simplicidade em sua arquitetura eletrônica e dos poucos componentes utilizados em sua construção, recai sobre os AASI a reclamação contundente acerca dos preços finais para os pacientes4-6.

Um estudo7 destacou que um dos fatores isolados que mais prejudicam a satisfação do uso de AASI é o seu custo de aquisição. Outros pesquisadores8 apontam "que o preço dos aparelhos auditivos não é aceitável (...) e que constituem a maior barreira quanto ao seu uso". Kochkin9 concluiu que a importância relativa que os deficientes auditivos dão aos custos de aquisição e de manutenção, isoladamente, é maior que os fatores combinados da motivação, estigma quanto ao uso, somados com a percepção de ser portador de deficiência auditiva.

Numa pesquisa com 214 participantes Boymans et al.10 concluíram que 93% deles preferem adaptação binaural. Um número semelhante (90%) havia sido identificado por Erdman e Sedge11 o que confirma que melhores resultados com adaptações binaurais em relação às adaptações unilaterais. No entanto, a aquisição de dois AASIs demanda um esforço financeiro significativo para a maioria dos pacientes de varejo12.

Um relatório da Sociedade Britânica de Audiologistas13 destaca os diferentes modos que alguns governos europeus doam AASI. Na Dinamarca, por exemplo, 90% de todos os AASI são adaptados em hospitais públicos, ou para aqueles pacientes que preferem clínicas particulares o governo subsidia em € 700 por AASI. Na Suíça, onde o subsídio governamental pode atingir € 1.960 por AASI, há três categorias de tecnologias de AASI (simples, complexa e muito complexa) definidas por pontos norteados pelos efeitos socioeconômicos decorrentes das perdas auditivas; por exemplo, uma garçonete acumula mais pontos que um idoso com vida sedentária. A política na Alemanha aplica um critério de reabilitar deficientes auditivos de modo "necessário e adequado" com subsídios que variam de € 470 a € 530 por AASI. Na Suécia o setor público subsidia valores entre € 200 e € 400 por AASI enquanto que na Inglaterra o governo doa AASI limitados ao desenho BTE ("behind-the-ear"- retroauricular), assim como as baterias, moldes e serviços de reparos dos AASI. Relato de 1982 dava conta que na Austrália metade da população de deficientes auditivos estava elegível para receber doações governamentais de AASI, assim como baterias e serviços de assistência técnica14. Nos Estados Unidos não há doações governamentais de AASI, havendo em trâmite no Congresso desde maio de 2007 o "Hearing Aid Assistance Tax Credit Act -HR2329/S.1410", cujo objetivo é ofertar U$ 1.000 como crédito para a aquisição de dois AASI.

Batista e Sampaio15 destacam que foi a partir da publicação da Portaria nº 3.764 de outubro de 1998 que o Ministério da Saúde propôs a política de doação de AASI aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2002 o Ministério da Saúde investiu R$ 47.081.886,75 no programa de fornecimento de 35.297 próteses auditivas, por intermédio de 84 Unidades Prestadoras de Serviço (UPS). Em 2003 os gastos com a saúde auditiva atingiram R$ 103.371.561,75 e em 2004 tais gastos atingiram R$ 162.705.737,00. Tais cifras não incluem os serviços relacionados à adaptação de AASI: diagnóstico, seleção e indicação de prótese auditiva, acompanhamento e terapia fonoaudiológica. Em 2004 cerca de 10% dos gastos com a saúde auditiva foram direcionados a estes serviços, sendo o restante direcionado para aquisição de AASI.

Destacam-se as Portarias nº 587 e Portaria nº 589 (ambas de outubro de 2004) que permitiram a implantação e a operacionalização das redes estaduais em âmbito nacional. A Portaria nº 587 passou a ser referenciada como APAC (Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade). Com uma pseudo-semelhança com o que ocorre na Suíça, a Portaria nº587 classifica os AASI em três categorias: Tecnologia A, Tecnologia B e Tecnologia C, onde a primeira é dotada de recursos básicos (por exemplo, não programável e monocanal), a terceira com recursos avançados (por exemplo, algoritmo para redução de ruído e para redução de realimentação acústica) e a segunda com recursos intermediários. Segundo esta mesma Portaria, o percentual de prescrição seria computado como 50% da Tecnologia A, 35% da Tecnologia B e 15% da Tecnologia C.

Um AASI é um sistema de amplificação individual e portátil que se baseia em três componentes eletrônicos - microfone, processador digital de sinais (DSP) e receptor16. Os demais componentes de um AASI são elétricos ou plásticos ou a base de silicone, os quais possuem baixo valor agregado. Os componentes eletrônicos - os de maior valor - não são produzidos pelos próprios fabricantes de AASI, mas pela sua cadeia de suprimentos17. Alguns DSP são manufaturados para um fabricante de modo a atender a um projeto específico18, o que é conhecido como circuito integrado dedicado (conhecido como "application-specific integrated circuit"), enquanto que outros DSP são padronizados ou genéricos, sendo personalizados para cada projeto de interesse. De um modo geral todos os transdutores são componentes padronizados.

A utilização de componentes padronizados foi proposta pela OMS19 quando ela definiu um conjunto de diretrizes de modo a expandir o uso de AASI a preços acessíveis às populações de países em desenvolvimento. Nesta oportunidade foi enfatizada a preocupação com os serviços de manutenção, o qual ela sugere que pode ser executado por oficinas descentralizadas do fabricante.

As vantagens de se projetar produtos com o maior número de componentes residem em obter economias de escopo e em economia de escala, a qual ocorre quando as negociações de grandes volumes apresentam quedas nos custos de aquisição e de produção20,21 que podem representar custos menores de aquisição pelo Governo ou para clientes de varejo.

Os AASI doados pelo Governo seguem uma política de preços que é proporcional aos tipos de Tecnologia: Tecnologia A no valor de R$525,00, Tecnologia B no valor de R$ 700,00 e Tecnologia C no valor de R$ 1.100,00, conforme Portaria nº 308 de 2007. Alguns AASI de Tecnologia C chegam a custar unitariamente no mercado de varejo mais de R$ 5.000,00 o que pode tornar os reparos fora de garantia inacessíveis os pacientes que receberam as doações, uma vez que findada a garantia do AASI os pacientes estarão sujeitos à mesma política de preços de reparos de clientes de varejo. Neste sentido, a utilização de componentes padronizados pode tornar os serviços de assistência técnica acessíveis aos pacientes depois de findada a garantia do fabricante, uma vez que passam a serem os proprietários definitivos e com interesse na manutenção dos produtos.

Um AASI possui um ciclo de vida reduzido: entre três e cinco anos22,23 o que pode indicar que altos investimentos em sua aquisição e em sua manutenção venha a representar falta de eficiência nos recursos destinados a saúde, sejam eles recursos públicos ou particulares.

Justifica-se a escolha do tema por acreditar ser possível o desenvolvimento de AASI digitais a partir de componentes padronizados na indústria e que podem se tornar uma referência ao Governo Federal na condução de políticas públicas da saúde auditiva, principalmente com o atrativo de baixo custo operacional: aquisição e manutenção. Será abordada a cadeia de suprimentos dos fabricantes internacionais de AASI e solicitadas amostras de componentes padronizados para o desenvolvimento de um BTE digital.

O objetivo deste trabalho é o desenvolver, a partir de componentes padronizados na indústria, AASI no desenho BTE que atendam as especificações do Governo Federal por intermédio da Portaria nº 587.

MATERIAL E MÉTODO

Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Departamento para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) sob o protocolo nº 1044/66, ainda que nenhum teste tenha sido realizado com humanos. Foram utilizados serviços técnicos terceirizados para a montagem e para fins de certificação de controle de qualidade (norma IEC60.118-7). A escolha do desenho BTE permite uma comparação direta com os demais BTE dos fabricantes internacionais, além de não necessitarem de alteração física para fins de adaptação em pacientes, bastando apenas o molde para que sejam iniciados os ajustes eletroacústicos o AASI. A norma IEC 60.118-7 é uma das mais utilizadas na indústria de AASI para fins de certificação de AASI.

Definido o desenho do AASI como um BTE, procurou-se identificar os componentes que permitissem seu desenvolvimento. Foram divididos em três grupos:

1. Componentes eletrônicos: DSP e os transdutores (microfone e receptor);

2. Componentes elétricos: soquete de programação, controle de volume, botão de programação, bobina telefônica ("telecoil");

3. Componentes diversos: caixa do BTE ("case"), estojo de apresentação e consumíveis (por exemplo, as suspensões dos transdutores e tubos de silicone).

Os componentes eletrônicos são os mais importantes e os que possuem o maior valor agregado. Foram utilizados DSP dos seguintes fornecedores: Texas Instruments Inc., (Houston, Texas, USA), Etymotic Research Inc., (Elk Grove Village, Illinois, EUA) e Gennum Corp., (Burlington, Ontario, Canadá). Os transdutores foram fornecidos pelas empresas Knowles Electronics LLC (Itasca, Illinois, EUA), Sonion A/S (Roskilde, Dinamarca) e Tibbetts Industries Inc. (Camden, Maine, EUA). Todos os componentes elétricos foram fornecidos pela Deltek, divisão da Knowles. A caixa do BTE foi fornecida pela Int'Tech Industries Inc. (Ramsey, Minnesota, EUA) e o estojo de apresentação foi adquirido localmente, assim como os materiais consumíveis.

Foram utilizadas as especificações da Portaria nº 587 para o desenvolvimento do BTE deste projeto.

Os aplicativos (programas dedicados no desenvolvimento do produto) seguem na Tabela 1.

O fluxo de desenvolvimento do BTE seguiu por sete fases (Figura 1).


Na Fase 1 - Estudo do mercado - foram estudadas as características do mercado brasileiro (ANVISA, legislação aduaneira, formatação dos preços finais com os impostos agregados, entendimento da rede de distribuição de AASI no mercado de varejo, estimativa de potencial do mercado brasileiro de varejo, compreensão do perfil dos produtos comercializados no mercado nacional, entendimento das normas técnicas internacionais de certificação de AASI e determinação das especificações do produto).

Na Fase 2 - Relacionamento com fornecedores do exterior - foram solicitadas e recebidas amostras de componentes diversos do AASI, o que permitiu montar e ensaiar testes diversos nas estruturas funcionais. Esta fase foi importante para que se pudessem conhecer os produtos da cadeia de suprimentos dos fabricantes de AASI, e deste modo, entender se seria possível atender aos requisitos do projeto.

Na Fase 3 - Ensaios específicos com DSP da Gennum - foi definido que o DSP a ser utilizado seria o GA3216 da Gennum por representar melhor algumas das especificações do projeto: possui um DSP padronizado (conhecido como "off-the-shelf", de uso genérico) que se mostrou flexível em atender às especificações do projeto, por apresentar um conjunto de ferramentas de desenvolvimento de baixo custo - logo acessível aos nossos custos de desenvolvimento - e por disponibilizar um software de adaptação ("fitting") simples e rápido que pode ser traduzido para o português.

Apesar do envio de amostras por parte dos fabricantes internacionais, foi necessária a aquisição de outros componentes importados junto ao mercado nacional para fins de condução de ensaios diversos em laboratório, de modo a testar o maior número de opções em termos de combinações de componentes. Dentre estes, os transdutores foram os componentes que mais passaram por ensaios. Por conta dos resultados positivos deu-se início a confecção do Manual de Serviço do BTE, a registrar quais seriam os procedimentos de montagem, quais os componentes utilizados, quais os critérios de controle de qualidade, entre outros. Esta foi a Fase 4 (Aquisição de componentes no mercado nacional).

De modo informal foi solicitada a fonoaudióloga Dra. Maria Helena Untura Caetano que testasse o BTE e que nos abastecesse com seus comentários sobre o nosso produto, fundamentais nesta fase de desenvolvimento. Esta foi a Fase 5 (Testes de um protótipo com fonoaudióloga independente).

Na fase seguinte - Fase 6 (Ensaios com duas amostras do GA3226) - foi dado início a ensaios diversos com um DSP recém-lançado pela Sound Design (a Gennum foi adquirida pela Sound Design em 2007) - o GA3226 - gentilmente nos enviado para testes. Dois protótipos funcionais foram montados com resultados positivos, a ponto que os resultados registrados com este DSP nos impulsionaram em utilizá-lo em definitivo em nosso projeto.

Na Fase 7 - (Projeto completo - BTE e programa de adaptação) - foram montados, ensaiados e certificados dois AASI de acordo com a norma internacional IEC60.118-7. Foram ainda finalizados o "fitting" e o Manual de Serviço.

Um dos motivos que selou a escolha do DSP da Sound Design foi o fato de ela disponibilizar um conjunto de aplicativos dedicados que permitem o contínuo desenvolvimento de produtos sem a necessidade de investimentos em dispositivos periféricos, uma vez que o seu servidor pode ser contatado na fase de desenvolvimento, de um modo relativamente simples e a baixo custo. A este conjunto de aplicativos a Sound Design denomina como "Application Resource Kit" (ARK). O DSP deve ser personalizado para cada projeto, pois é fornecido numa forma que se eletricamente conectado aos demais componentes não apresentará um funcionamento previsível. O ARK é utilizado exatamente para criar um fluxo ordenado de tarefas que culminarão com dois eventos principais: permitirá a gravação no interior do DSP ("firmware") dos recursos definidos no projeto, além de permitir seu reconhecimento e sua programação pelo "fitting". Seguem os passos do desenvolvimento do BTE com base nos recursos do ARK:

Passo 1. Executar o "login" no servidor da Sound Design

De posse de um computador pessoal (PC) foi executado o "login" no servidor da Sound Design. O ARK iniciará um tutorial para a condução dos passos seguintes. Nestes três primeiros passos foi utilizado um aplicativo específico: "ARK online".

Passo 2. Definição do mapa ("map")

Neste passo definiram-se os recursos eletroacústicos do AASI, como os limites dos filtros "crossover", valores das taxas de compressão e quais valores dos passos do equalizador de frequência. Neste e nos dois passos seguintes deve-se estar conectado ao servidor da Sound Design.

Passo 3. Definição da biblioteca ("library")

Neste ponto foram anexados os recursos definidos no mapa aos transdutores definidos no projeto. A Figura 2 mostra a tela da biblioteca definida para este projeto, com destaque para a o ganho e a saídas esperadas com base nesta configuração.


Passo 4. Descarregar a biblioteca para o PC

Descarregou-se esta biblioteca do servidor da Sound Design para um diretório específico do PC: C:\\Windows\ARK. A biblioteca é constituída por dois arquivos: uma biblioteca dinâmica (extensão .dll) e outra com os recursos (extensão .src). Neste passo utilizou-se o aplicativo "ARK Component Manager".

Passo 5. Soldar os componentes

Até este passo temos que as especificações do projeto foram definidas no mapa e na biblioteca, e que estes arquivos encontram-se no PC. Seguindo as instruções dos fabricantes executou-se a montagem elétrica dos componentes elétricos e eletrônicos.

Passo 6. Verificar a conectividade

O aplicativo "Controller Toolbox" permite verificar se há conectividade elétrica entre o PC e o GA3226. Este passo tem sua importância por impedir que se continue a montagem de um AASI com algum componente eletroeletrônico inoperante ou com falhas. Entre o PC e o circuito eletroeletrônico deverá haver o programador de AASI - neste projeto foi definido o programador padronizado HI-PRO (GN ReSound A/S, Taastrup, Dinamarca) - e entre o HI-PRO e o AASI deverá haver o cabo de programação, definido como o cabo padronizado CS44, da Knowles. Na Figura 3 pode-se verificar, de modo simplificado, como foi feita a conexão entre o PC e o BTE. Para verificar a conectividade seguiram-se os passos apresentados na tela deste aplicativo. Neste e no passo seguinte não há a necessidade de estar conectado ao servidor da Sound Design.


Passo 7. Personalização de outros recursos do AASI

Alguns recursos faltam ser definidos antes de executar o processo de gravação do "firmware" do GA3226: qual o tipo de botão de mudança de programa de conforto (contato temporário ou contínuo), quais as frequências e as intensidades do indicador sonoro de mudança de programa de conforto ("beep"), quais as taxas de compressão iniciais de cada canal, entre outros. Utilizamos o "Interactive Data Sheet" para esta personalização, ainda sob o esquema de ligação apresentada na Figura 3. Neste passo, foram gravadas no "firmware" do GA3226 todas as especificações definidas no nosso projeto.

Passo 8. Obtenção do "fitting" da Sound Design

Descarregou-se o "fitting" padronizado SOUNDFITT do servidor para o PC. Para este e para o passo seguinte deve-se estar conectado ao servidor da Sound Design.

Passo 9. Personalização do "fitting"

O "SOUNDFIT" está em inglês e necessitou ser traduzido para o português de modo a atender a legislação brasileira. Foram inseridas figuras, trocadas algumas cores das telas e executadas outras alterações estéticas de modo a deixá-lo agradável ao uso. Utilizou-se o aplicativo "SOUNDFIT® Customization Tool" para definir o "fitting" em português, batizado de AdaptEASY. Para a execução deste passo não é necessário estar conectado ao servidor.

Passo 10. Finalização do processo de montagem do AASI

Uma vez que o GA3226 está definido para as especificações e que foi testado sua conectividade com o AdaptEASY, finalizou-se sua montagem do BTE inserindo os componentes eletroeletrônicos (doravante definidos como arquitetura eletrônica) no interior da caixa. Tomou-se o cuidado de não dobrar os fios, além de propiciar condições de acesso rápido ao interior do BTE para fins de futuros serviços de reparo.

Passo 11. Teste do BTE com estetoscópio

A execução de testes com estetoscópio permite a identificação de qualidades subjetivas (volume, qualidade sonora e microfonia), além de ajudar no processo de identificação de falhas que podem implicar em remontagem ou troca de peças. Nesta fase foi possível identificar que o controle de volume demorava em atuar, disparando a partir de uma determinada posição angular, o que nos direcionou em substituir o valor deste componente - de 200 kΩ para 100 kΩ. Deste modo, o controle de volume passou a ser ter uma atuação perceptível em todo o curso de controle.

Passo 11. Conexão do BTE no "fitting" personalizado

Neste ponto foi executado os testes de conexão do AdapEASY com o BTE, em situação semelhante com o que o fonoaudiólogo encontra em sua rotina com pacientes. De modo intenso simulou-se adaptações hipotéticas em pacientes, sem identificar nenhuma falha no software ou problemas no hardware.

Passo 12. Certificação do AASI segundo norma internacional

Executou-se testes de controle de qualidade (CQ) em equipamentos de investigação acústica, sob a norma técnica de referência IEC60.118-7. A legislação vigente demanda que um laudo impresso com os registros dos parâmetros, suas curvas dinâmicas e a norma técnica aplicada devem ser armazenadas para fins de rastreabilidade de funcionamento e de futuros serviços de reparo. As especificações técnicas do BTE assim como as tolerâncias aceitáveis estão disponíveis no respectivo Manual de Serviço.

RESULTADO

Nestas curvas podem ser contatadas (Figura 4) que o BTE desenvolvido possui resposta em frequência desde 250 a 7.500 Hz, ganho estável de 62 dB, saída de 134 dB, baixos índices de distorção harmônica - (abaixo de 4% no pior caso) - o que lhe permite atender até as perdas moderadas-severas, segundo a classificação de referência24.


Por conta de seu baixo consumo de corrente o BTE tem como característica uma autonomia de 440 horas com uma bateria tamanho 675. Apresenta recursos dos mais contemporâneos dos AASI do mercado: gerenciador de microfonia adaptativo, equalizador gráfico de doze bandas, quatro programas de conforto, estratégia de processamento de sinais WDRC (compressão dinâmica) de um, dois ou de quatro canais, controle AGC-O, indicador sonoro ("beep") de mudança de programa de conforto e para indicação de bateria fraca. As especificações do BTE desenvolvido encontram-se na Tabela 2.

O custo final do BTE desenvolvido foi de U$140,13 - computados a aquisição de componentes avulsos e unitários, além dos serviços terceirizados de montagem.

DISCUSSÃO

Christensen25 concluiu que as organizações industriais procuram lucros cada vez maiores por ofertarem ao consumidor produtos ou serviços cada vez sofisticados - segmentos de reta (s1) e (s2) - cuja densidade de tecnologia progride mais rapidamente que a demanda de mercado - segmentos de reta (d1) e (d2) do modelo da Figura 5. Por conta de que a Portaria nº 587 desconsidera produtos com tecnologias inferiores ao mesmo tempo de limita o conjunto de tecnologias superiores, pode ser verificado que AASI de especificações mínimas estão situados no polígono ABCD.


Neste contexto, Shih26 destaca que a inovação tecnológica que a indústria insere no mercado ("technology-push") varia de grau e de intensidade em relação à inovação que o mercado demanda ("demand-pull"), e que ambas definem de modo preciso todo ciclo de vida de inovação tecnológica que ocorre em toda a sociedade.

Segundo Romero27, a utilização de medicamentos genéricos foi proposta como estratégia para que houvesse um aumento racional no consumo de medicamentos, de modo a atuar como mecanismo de regulação de preços. Um estudo brasileiro28 de 2003 enfatizou o impacto positivo das políticas governamentais, a qual "está alterando a estrutura industrial do setor" e que os medicamentos genéricos têm sido uma fonte importante para o acesso da população e que têm ajudado na redução dos gastos públicos. Analogamente, AASI construídos sob uma mesma plataforma eletro-eletrônica (ou genérica) podem ajudar não apenas na redução de gastos públicos, como o de influenciar os preços praticados no mercado de varejo.

Por se tratar de apenas um modelo e por atender plenamente as especificações de Tecnologias A e B da Portaria nº 587, o único AASI no desenho BTE desenvolvido atende 85% das especificações da Portaria nº 587, podendo atingir plenamente todas as especificações se for inserido mais um microfone (deste modo a integrar a direcionalidade adaptativa) e o recurso de expansão, sem mudar nenhum outro componente, pois o "case" está apto a receber outro microfone. Basta alterar o mapa, a biblioteca e o "fitting".

Verifica-se deste modo que é possível projetar AASI para o atendimento das especificações do Governo. Podem ser desenvolvidos BTE para as perdas auditivas inferiores às definidas neste projeto, bastando alterar os mapas e as bibliotecas, sempre com base na mesma arquitetura eletro-eletrônica. Adicionalmente, a mesma configuração eletro-eletrônica definida permite atender as perdas severas, haja vista que o GA3226 permite ganhos estáveis de até 84 dB29, confirmados pela biblioteca definida no projeto (Figura 2). De modo análogo, com a mesma configuração eletro-eletrônica é possível o desenvolvimento de AASI nos desenhos ITC ("in-the-canal" - intracanal) e ITE ("in-the-ear" - auriculares), bastando alterar mapas e bibliotecas. Para o desenvolvimento de CIC ("completly-in-the-canal" - microcanal) é necessária a troca do receptor, por conta das dimensões reduzidas típicas do desenho CIC.

AASI são isentos integralmente de pagamentos de impostos como IPI e ICM, e de parte do ISS. Consulta eletrônica realizada junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior30 destacou que os valores médios declarados pelos importadores foram de US$166,38 (2005), US$177,96 (2006), US$159,35 (2007) e US$152,14 (2008), valores acima do valor final encontrado para o BTE desenvolvido (US$ 140,13).

Pelo prisma da audiologia o AdapEASY permite a adaptação em apenas três passos: informação do paciente e audiograma, seleção do AASI e ajustes no programa. Este "fitting" pode ser instalado em PC com configurações modestas: sistema operacional XPT (ou VistaT), HD com quatro GB e um GB de RAM, com cabo padronizado e programador padronizado, com vantagens no baixo custo operacional e facilidades nas atualizações.

A Portaria nº 587 não pode ser confundida com a Lei nº 8.666, pois esta última estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, tendo como fundamento o menor preço.

Depois da produção de duas unidades deu-se início a produção de 25 BTE, os quais estão em fase de testes com humanos sem resultados publicados até o momento.

CONCLUSÃO

Foi possível o desenvolvimento de BTE digital a partir de componentes padronizados na cadeia de suprimentos dos fabricantes internacionais de AASI. O BTE desenvolvido atende as especificações de Tecnologias A e B, o que corresponde a 85% dos produtos comercializados ao Governo Brasileiro pelos fabricantes internacionais, tendo sido certificado pela norma técnica IEC 60.118-7.

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 15 de junho de 2009. cod. 6450

Artigo aceito em 1 de setembro de 2009.

  • 1. Howarth A, Shone GR. Ageing and the auditory system. Postgrad Med J. 2006;82:166-71.
  • 2. Fook L, Morgan R. Hearing impairment inolder people: a review. Postgrad Med J. 2000;76:537-41.
  • 3. Lieu, J.E. Speech-language and eduacational consequences of unilateral hearing loss in chidren. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2004;130(5):524-30.
  • 4. Chao, TK, Chen, THH. Cost-effectiveness of hearing aids in the hearing-impaired elderly: a probabilistic approach. Otol Neurotol. 2008;29;776-83.
  • 5. Helvik, AS, Jacobsen G, Wennberg S, Arnesen H, Ringdahl A, Hallberg LR. Activity limitation and participation restriction in adults seeking hearing aid fitting and rehabilitation. Disabil Rehabil. 2006;28(5);281-8.
  • 6. Vuorialho A, Karinen P, Sorri M. Counselling of hearing aid users is highly cost-effective. Eur Arch Otorhinolaryngol. 2006;263(11);988-95.
  • 7. Newman CW, Hug GA, Whartin JA, Jacobson GP. The influence of hearing aid on perceived benefit in older adults. Ear Hear. 1993;14(4):285-9.
  • 8. Franks JR, Beckmann NJ. Rejection of hearing aids: attitudes of a geriatric sample. Ear Hear. 1985;6(3);161-6.
  • 9. Kochkin S. MarkeTrak III identifies key factors in determining consumer satisfaction. Hear J. 1992;45(8);1-4.
  • 10. Boymans M, Goverts T, Kramer S, Festen J, Dreschler W. A prospective multi-centre study of the benefits of bilateral hearing aids. Ear Hear. 2008;29(6);930-41.
  • 11. Erdman AS, Sedge RK. Subjective comparisons of binaural versus monaural amplification. Ear Hear. 1981;2(5);225-9.
  • 12. Cox RM, Alexander GC, Gray GA. Who wants a hearing aid? Personality profiles of hearing aid seekers. Ear Hear. 2005;26(1)12-26.
  • 13. The British Society of Hearing Aids Audiologists. Audiological provision in Europe: a public-private partnership? BSHAA. 2005;5-20.
  • 14. Upfold LJ, Wilson DA. Hearing-aid use and available aid ranges. Br J Audiol.1982;16;195-201.
  • 15. Batista ACM, Sampaio FM. Nível de satisfação dos idosos usuários de próteses auditivas doadas pela APAC-NAMI-UNIFOR. Revista Brasileira de Saúde. 2005;18(1)7-10.
  • 16. Schaub A. Digital hearing aids. 1st ed. New York (NY):Thieme; 2008.
  • 17. Lybarger SF. A historical overview. In: Sandlin RE. Handbook of hearing amplification. 2nd ed. v.1. San Diego (CA): Singular Publishing Group; 1988.p.17-20.
  • 18. Blamey PJ. Adaptative dynamic range optimization (ADRO): a digital amplification strategy for hearing aids and cochlear implants. Trends Amplif. 2005a; 9(2):77-98.
  • 19
    World Health Organization (WHO) Prevention of blindness and deafness. Guideliness for hearing aids and services for developing countries. Geneva, Switzerland; 2004.p. 10-15.
  • 20. Ghemawat P. Strategy and the business landscape. 2nd ed. Upper Saddle River (NJ): Pearson Prentice Hall;2006. p. 93-5.
  • 21. Porter M. Estratégia competitiva - técnicas para análise da indústria e da concorrência. 2a ed. São Paulo (SP): Campus;1998. p. 22-48.
  • 22. Smedley TC, Schow RL. Problem-solving and extending the life of your hearing aids. In: Carmen R. The consumer handbook on hearing loss and hearing aids. 2Ş ed. Sedona (AR): Auricle Ink Publishers;2004.p. 151-8
  • 23. Sweetow RW. Application and fitting strategies for programmable hearing instruments. In: Sandlin RE. Handbook of hearing amplification. 2Ş ed, v. 1. San Diego (CA): Singular Publishing Group;1988.p. 171-6.
  • 24. Bento RF, Miniti A, Marone SAM. Tratado de otologia. 1Ş ed. São Paulo (SP): EDUSP;1998. p. 84-9.
  • 25. Christensen CM. O dilema da inovação. 1Ş ed. São Paulo (SP): Makron Books; 2001. XIV-XXX.
  • 26. Shih HP. Technology-push and communication-pull forces driving message-based coordination performance. J Strategy Inform Syst. 2006;15:105-23.
  • 27. Romero LC. A política de incentivos aos medicamentos genéricos no Brasil. Estudo 376 da consultoria legislativa do Senado Federal. 2003;01-04.
  • 28. Gadelha CAG, Quental C, Fialho BC. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cad Saúde Públic.a 2003;19(1):47-59.
  • 29
    GA3226 preliminary data sheet. Gennum Corp., Burlington, Canada;2007.
  • 30. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Análise das Informações de Comércio Exterior. Disponível em: http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br>. Acessado em 30 de janeiro 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2009
  • Aceito
    01 Set 2009
Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial. Sede da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial, Av. Indianópolia, 1287, 04063-002 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (0xx11) 5053-7500, Fax: (0xx11) 5053-7512 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@aborlccf.org.br