Open-access Uma Leitura Utilizando a Lente da Teoria Antropológica do Didático acerca de uma Aula sobre Expressões Numéricas

A Reading Using the Lens of the Anthropological Teaching Theory about a Lesson on Numerical Expressions

Resumo

Esta investigação encontra-se imersa em uma pesquisa de maior magnitude, na qual a Teoria Antropológica do Didático - TAD e sua estrutura organizacional constituem o cerne do estudo. Neste texto, apresentamos um recorte da pesquisa mencionada, com ênfase na transcrição de um protocolo descritivo da filmagem de uma aula em uma turma do 6° ano do Ensino Fundamental II, que versou sobre expressões numéricas. Empreendemos algumas interpretações por meio de uma leitura, utilizando a lente de apreciação da referida teoria, na qual ficaram evidenciados aspectos ligados às organizações matemáticas e didáticas. Nessa perspectiva, nesta análise será colocado em emersão, a partir dos registros do protocolo descritivo da aula, o modo como a TAD pode contribuir para desenhar uma estrutura organizacional de um objeto matemático, assim como revelar lacunas vinculadas à ausência da razão de ser desse conteúdo institucionalmente presente na matriz curricular desse nível de ensino. A análise documental, numa abordagem qualitativa, foi utilizada neste estudo, que seguiu uma configuração e trânsito por alguns registros da transcrição da aula, permitindo tecer interligações com o que postula a TAD. O escopo do artigo se apresenta, em um primeiro momento, com exposição da sustentação institucional das expressões numéricas e soma-se ao trajeto evolutivo da TAD, expondo em sua génese o estudo das condições e restrições sofridas pelos objetos matemáticos. Culminamos revelando a estrutura primeira da TAD e alguns elementos que darão suporte à caracterização da aula e do problema matemático que, concomitantemente, transforma-se em um problema didático.

Palavras-chave: Expressões Numéricas; Transposição Didática; Teoria Antropológica do Didático; Problema Matemático e Didático

Abstract

This research is immersed in a research of greater magnitude, in which the Anthropological Theory of Didactics - TAD and its organizational structure constitute the core of the study. In this text, we present a clipping, with emphasis on the transcription of a descriptive protocol of the filming of a 6th grade class of Elementary School II, which dealt with numerical expressions. We undertake some interpretations through a reading using the theoretical lens of said theory in which aspects related to mathematical and didactic organizations were evidenced. In this perspective, our analysis will be based on the descriptive protocol of the class and demonstrate how the TAD can contribute to design an organizational structure of a mathematical object, as well as to reveal gaps linked to the absence of the raison d’être of this content institutionally present in the curricular matrix of this educational level. The documentary analysis, in a qualitative approach was used in this study that followed a configuration and transit through some records of the class transcription and allowed us to weave interconnections with what the TAD postulates. The scope of the article presents, in a first moment, the exposition of the institutional sustentation of the numerical expressions and sums up to the evolutionary path of the TAD exposing in its genesis the study of the conditions and restrictions undergone by the mathematical objects. We culminate revealing the first structure and some elements that will support the class characterization and the mathematical problem that concomitantly turns into a didactic problem.

Keywords: Number Expressions; Didactic Transposition; Anthropological Theory of Didactics; Mathematical and Didactic Problem

1 Introdução

O objeto de estudo de que se ocupa a pesquisa dos autores deste texto são as expressões numéricas imersas em aulas e no currículo do sexto ano do Ensino Fundamental II brasileiro. Preliminarmente, podemos afirmar que o assunto mencionado constitui uma das partes da formação básica do cidadão, considerando-se o que foi exposto no artigo 32 da Lei que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/1996), no âmbito do ensino fundamental, que instituiu no parágrafo I: “o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo” (grifos dos autores).

No campo da Matemática, as expressões numéricas encontram-se situadas na área da Aritmética. De forma mais específica, no contexto deste nível de ensino, este objeto matemático, plenamente justificado do ponto de vista dos significados matemáticos, assume uma configuração que possibilita expressar, traduzir ou descrever matematicamente uma situação-problema que contemple as operações fundamentais.

Aditado a isso, se olharmos para o domínio dos números e das operações vinculadas às atividades cotidianas, nota-se que os cidadãos são conduzidos e recorrem às quatro operações fundamentais (adição, subtração, multiplicação e divisão) para solucionar situações ou problemas de natureza prática. Neste sentido, muitas vezes, estes cálculos envolvem uma sequência de operações que podem constituir, implicitamente, um exemplo do emprego das expressões numéricas.

Contudo, os graus de complexidade das expressões numéricas revelam-segradualmente, ao serem inseridos os sinais de associação (parênteses, colchetes e chaves) e, além das quatro operações, envolver-se a potenciação e a radiciação. Assim os requisitos passam a ser: efetuar seguindo uma determinada ordem operacional interligada e condicionada aos sinais de associação. O verbo efetuar, em destaque, exprime uma ação, e para clarificar a sua completude faz-se necessário um complemento nominal. Sem embargo, na concepção de Chevallard (2006), uma estrutura de ação constitui, no seio das Organizações Matemáticas -OM, um tipo de tarefa peculiar às atividades humanas.

Arrais (2006) pontuou que, desde o início do século passado, as expressões numéricas ou expressões aritméticas, como eram denominadas no período, vêm constituindo conteúdos obrigatórios nas aulas de Matemática. No entanto, hodiernamente, os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (BRASIL, 1998) não abordam especificamente o tema expressões numéricas. Em contrapartida, o conteúdo é exposto nas salas de aula e também está presente em cinco das onze coleções aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2017) das séries finais do Ensino Fundamental II. Fato este que se soma ao desdobramento das expressões numéricas como parte integrante das expressões algébricas, presentes no PCN (BRASIL, 1998), o que justifica sua manutenção nas propostas curriculares do 6° ano do Ensino Fundamental II.

A partir deste escopo preliminar, objetiva-se proceder uma leitura de uma aula sobre expressões numéricas utilizando-se a lente teórica da Teoria Antropológica do Didático - TAD (CHEVALLARD, 1996; 1998; 1999; 2001; 2006). Desta forma, na análise aqui empreendida busca-se desvendar, a partir dos registros de um protocolo descritivo que versa sobre uma aula cujo assunto são as expressões numéricas, como a TAD pode contribuir para desenhar a estrutura organizacional desse objeto matemático. Nesse diapasão, direciona-se para como as expressões numéricas se configuram em forma de tarefas, técnicas, tecnologias e teoria por meio do postulado de base da TAD, o qual foi denominado por Chevallard (1999) de praxeologia.

O texto está estruturado através de um percurso que apresentará aspectos da Transposição Didática, teoria que integra as raízes da TAD e atualmente está inserida na mesma por meio do estudo da ecologia dos saberes. Nessa perspectiva, situaremos também o Problema Didático - PD, como recomendado por Gascón (2011) e Farras, Bosch e Gascón (2013), e suas interligações com a Organização Matemática - OM e a Organização Didática – OD (CHEVALLARD, 1999).

Em síntese, podemos considerar que uma OM faz alusão à realidade matemática, isto é, a noções ou conceitos inerentes à própria Matemática que podem ser trabalhados e construídos em ambiente escolar; enquanto que as OD se referem à maneira como se faz essas construções (ALMOULOUD, 2007, p. 123). Em outras palavras, significa afirmar que as OD são respostas às questões que permeiam o estudo do objeto matemático em questão. Contudo, para serem desenvolvidas em uma sala de aula, deve-se admitir como condição primeira que estas organizações encontram-se no âmago de um Sistema Didático – SD, conforme sublinha Chevallard (2011, não paginado): “o Sistema Didático encontra-se no coração da TAD”. Vale frisar que estes elementos serão melhor explicitados na análise de trechos da aula em pauta.

2 Teoria da Transposição Didática (TTD)

O conceito de transposição didática foi introduzido por Michel Verret (1975), em seu trabalho O tempo dos estudos1, e posteriormente assumido por Yves Chevallard, no âmbito da didática da Matemática, conforme evidenciou ao declarar que: “eu introduzi o tema da transposição didática na comunidade francesa da didática matemática no início dos anos 80” (CHEVALLARD, 1994, p. 1, tradução nossa) 2 Os pilares teóricos da transposição didática assentam-se no estudo das transformações que um determinado saber sofre para que possa ser ensinado. Nestes termos, Chevallard (1994, p. 4) pontua a existência de lacunas entre a Matemática ensinada e a Matemática apreendida:

O conceito de transposição didática, somente por isso, refere-se à passagem do saber acadêmico para o saber ensinado, portanto, a eventual distância obrigatória que os separa testemunha a necessidade de questionamento, enquanto que ao mesmo tempo é a primeira ferramenta. Para o didático, é uma ferramenta que lhe permite dar um passo atrás, questionar as evidências, erodir ideias simples, retirar-se da familiaridade enganosa de seu objeto de estudo, em suma, exercer sua vigilância epistemológica (CHEVALLARD, 1982, p. 3, tradução nossa)3.

Questionar o distanciamento do conjunto de transformações adaptativas entre o saber científico e o saber ensinado é o mesmo que questionar as deformações que este saber sofreu ao longo de uma cadeia transpositiva, aspecto este que rompe com a nuance inquestionável da Matemática, o que evidencia a necessidade de acompanhamentos (vinculados ao âmbito teórico no qual reside a razão de ser dos objetos matemáticos) e de uma análise epistemológica, das hipóteses de aprendizagem e do contexto social. Brousseau (1996, p. 36) também revelou sua concepção acerca da transposição didática ao afirmar que:

Ela mascara o verdadeiro funcionamento da ciência, impossível de comunicar e de descrever fielmente a partir de fora, para colocar no seu lugar uma génese (sic) fictícia. Para tomar mais fácil o seu ensino, isola determinadas noções e propriedades do tecido de atividades em que elas tiveram a sua origem, o seu sentido, a sua motivação e a sua utilização transpondo-as para o contexto escolar.

A crítica empreendida por Brousseau (1996) nos leva a inquirir sobre a forma fragmentada com que o saber é difundido e decomposto com o intuito de tomá-lo acessível aos membros do contexto escolar. Diante do exposto, ao concentrarmos a atenção no saber na esfera institucional das salas de aula, nos deparamos com as inferências e interpretações do professor diante do saber que está institucionalmente posto sob a vigilância da noosfera4, conforme ressaltou Almouloud (2011, p. 196):

O professor não transforma por iniciativa própria o saber sábio em objeto de ensino. A escolha dos objetos a ensinar é definida institucionalmente por meio de propostas curriculares, e é controlada de alguma forma pela sociedade (autoridades locais, pais de alunos, autoridades administrativas da educação).

Nestes termos, Chevallard (1982, p. 3, tradução nossa)5 destacou que “para o professor, as coisas são diferentes. Em primeiro lugar, pelo menos, o reconhecimento da transposição didática prejudica sua feliz participação no trabalho didático”. Assim, deve-se ficar claro que há existência de diferenças entre o saber designado para ser ensinado e o que efetivamente é ensinado, o que significa inferir que a cada esfera institucional o saber se adequa e se molda aos condicionantes da instituição em foco. Frisa-se, nesse contexto, que não se deve perder de vista a legitimidade e consistência do conhecimento em questão.

Bosch e Gascón (2006, p. 55, tradução nossa)6 enfatizam que “[…] não é possível interpretar adequadamente a matemática escolar sem levar em conta os fenômenos relacionados à reconstrução escolar da matemática, cuja origem deve ser encontrada nas instituições que produzem conhecimento matemático”.

Num direcionamento semelhante, Chacón (2008, p. 51, tradução nossa)7 ressalta que “o processo de transposição didática sublinha, portanto, a relatividade institucional do conhecimento”, dando origem às submissões ou aos assujeitamentos institucionais, a exemplo do uso regular de um livro didático para o ensino de uma Organização Matemática (OM). A figura abaixo sintetiza o processo transpositivo:

Figura 1
Processo da Transposição Didática

O nível do saber ensinado sofre intervenções do professor, que empreende suas interpretações tomando como referencial o livro didático, suas práticas, dentre outros, o que pode ser resumido nas considerações de Almouloud (2011, p. 197): “O texto do saber a ensinar não está completamente escrito em lugar algum. É indispensável examinar se a distância, a deformação entre o objeto de saber e o objeto de ensino não é, na pior das hipóteses, uma linguagem pseudocientífica”. Aspecto este que dialoga com o que declaram Farras, Bosch e Gascón (2013, p. 2), quando situam o problema didático e a modelização matemática no âmbito da TAD, considerando que o problema docente é pré-científico.

Denominamos “problemas docentes” a los que se plantea el profesor como tal profesor cuando tiene que enseñar un tema matemático a sus alumnos. Los problemas docentes se formulan utilizando las nociones disponibles en la cultura escolar importadas habitualmente de los documentos curriculares (como, por ejemplo, las nociones de motivación, aprendizaje significativo, individualización de la enseñanza, adquisición de un concepto, abstracción, competencia, etc.). Los problemas docentes se formulan, normalmente, asumiendo y sin cuestionar no sólo las nociones sino también las ideas dominantes en la citada cultura escolar. En particular, en la formulación de un problema docente se suele asumir de manera acrítica la forma como se interpreta en la cultura escolar la matemática involucrada en el problema en cuestión (FARRAS; BOSCH; GASCÓN, 2013, p. 3).

A partir desses entendimentos, emerge a relevância da vigilância epistemológica no processo transpositivo, pois, segundo Chevallard e Joshua (1991, p. 43), existe uma distância, muitas vezes imensa, entre o conhecimento científico, o conhecimento a ensinar e, consequentemente, o conhecimento ensinado.

Os estudos de Chevallard (1991; 1994) seguiram em direção ao aumento e à generalização da TTD, como assevera o autor: “Nesta perspectiva, a primeira teoria da transposição didática não serve apenas como ponto de partida, mas como ponto de apoio e orientação. Ou seja, um conhecimento sobre o qual um certo número de instituições reconhece que ele mora dentro deles” (CHEVALLARD, 1994, p. 22, tradução nossa)8. Atualmente, os pressupostos da transposição didática encontram-se inseridos no estudo da ecologia dos saberes – que se interessa pelas condições e restrições sob as quais um determinado saber vive em determinada instituição –, que é parte constituinte da Teoria Antropológica do Didático (TAD) e sobre a qual discorreremos a seguir acerca de alguns pontos.

Diante destas ponderações, inferimos que, possivelmente, existem lacunas que precisam ser analisadas através de um arcabouço teórico que contemple a estrutura organizacional do saber em pauta. No caso do estudo em questão, a estrutura organizacional concentra-se no seio da TAD, em como as funções (nicho)9 das expressões numéricas foram tratadas no desenvolvimento de uma aula direcionada para alunos do 6° ano do Ensino Fundamental II.

3 Alguns elementos da Teoria Antropológica do Didático

Por se tratar de uma teoria densa, trataremos apenas de alguns elementos, a saber, aqueles que servirão de aporte para fundamentar e modelar a leitura da aula sobre expressões numéricas, que abordaremos neste artigo. Como mencionado anteriormente, a Teoria Antropológica do Didático – TAD surgiu como um alargamento da Teoria da Transposição Didática - TTD, propiciando uma ampliação dos ecossistemas10 e das inter-relações entre objetos de ensino e indivíduos membros de uma determinada instituição. A partir desta estrutura primeira, Chevallard (1999) admitiu três conceitos como primitivos: os objetos O, as pessoas X e as instituições I, sublinhando a condição de existência de que tudo é objeto; consequentemente, os objetos O passam a ocupar uma posição privilegiada em detrimento dos outros conceitos, constituindo o material de base desta construção teórica.

Contudo, a condição de existência de todo objeto estará condicionada ao reconhecimento deste, ou seja, ele passará a existir no momento em que for reconhecido por uma pessoa X ou instituição I. Com isso, aparecerão as relações “pessoal” e “institucional” denotadas por R(X,O) e R(I,O), respectivamente, o que torna perceptivos os aspectos de interdependência entre esses elementos.

Do ponto de vista da «semântica» da teoria, qualquer coisa pode ser um objeto. Um objeto existe a partir do momento em que uma pessoa X ou uma instituição I o reconhece como existente (para ela). Mais precisamente, podemos dizer que o objeto O existe para X (respectivamente, para I) se existir um objeto, que denotarei por R (X, O) (resp. R1(O)), a que chamarei de relação pessoal de X com O (resp. relação institucional de I com O) (CHEVALLARD, 1998, p. 93, grifos nossos).

O autor referido prosseguiu, a cada trabalho, detalhando os elementos que ainda se apresentavam um tanto obscuros para os estudiosos e interessados no arcabouço teórico aludido. Chevallard (2006) acrescentou que a TAD tem como sustentação e pressuposto as atividades humanas, que podem ser apreciadas sob estruturas de ação, denominadas pelo teórico de tarefas desenvolvidas dentro de instituições (CHEVALLARD, 2006, p. 2). Já havia também apresentado como premissa básica desta teoria a afirmação de que qualquer atividade humana regularmente realizada pode ser integrada a um único modelo, que é sintetizado pela palavra praxeologia (CHEVALLARD, 1998, p. 1). Segundo esse mesmo direcionamento, estruturou a organização praxeológica:

[…] em torno de um tipo de tarefas T, que encontramos em princípio, um tripleto formado de uma técnica (pelo menos), τ, de uma tecnologia de τ, θ e uma teoria de θ, Θ. O conjunto, denotado [T / τ / θ / Θ], constitui uma praxeologia específica, este qualificador significa que se trata de uma praxeologia relacionada a um único tipo de tarefas, T. Essa praxeologia - ou organização praxeológica - portanto, consiste em um bloco técnico prático, [T / τ], e um bloco tecnológico-teórico, [θ / Θ] (CHEVALLARD, 1998, p. 5, tradução nossa).11

A partir deste olhar praxeológico e de suas múltiplas interligações, infere-se que devemos aprender ou ensinar Matemática enquanto ações humanas, admitindo-se que toda atividade humana pode ser modelada praxeologicamente, ou seja, em termos mais simplórios: consiste em realizar uma tarefa t de um determinado tipo T, cumprida por uma determinada técnica τ, fundamentada por uma tecnologia θ, legitimada por meio de uma teoria Θ. Essa estrutura é simbolicamente representada por =[T,τ,θ,Θ] e significa um conjunto de técnicas no seio de uma tecnologia e de uma teoria organizadas para um tipo de tarefa, cuja denominação é Organização Praxeológica (OP) pontual, por envolver apenas um tipo de tarefa T. Ressalta-se que a OP preza pela inseparabilidade entre os blocos práticos [T, τ] e teóricos [θ, Θ], intrínsecos às atividades matemáticas.

Vale evidenciar que se abrirmos o bloco prático constituído por um tipo de tarefa T, subsidiado e manipulado por técnicas τ, constata-se a preeminência dos usos de objetos ostensivos, designados por Bosch e Chevallard (1999) como objetos que possuem uma natureza sensível, uma certa materialidade, isto é, que têm para o sujeito uma realidade perceptível e que assumem um caráter relativamente concreto. Nestes termos, emerge um aspecto dual entre a natureza dos objetos matemáticos. No entanto, sublinhamos que neste texto não faremos alusão, de forma explícita, às dimensões ostensivas e não ostensivas vinculadas às expressões numéricas, porém consideramos pertinente sinalizar a necessidade de estudos que contemplem, em seu cerne, tal abordagem.

Diante desses elementos teóricos, apresentamos algumas questões que nortearão neste estudo a leitura interpretativa acerca do protocolo da aula que versou sobre expressões numéricas: Quais lacunas foram evidenciadas por meio de nuances transpositivas? Que organização foi posta em prática na aula cujo objeto de ensino foram as expressões numéricas? Quais foram as condições e restrições no âmbito praxeológico observadas nesta aula? Como se desenhou o Problema Didático? Tentaremos contemplar alguns dos questionamentos apresentados acima no decorrer deste artigo. Contudo, as questões que não forem respondidas plenamente servirão de direcionamento para estudos futuros.

4 Caracterização da aula e identificação do Problema Didático entre Organizações Didáticas e Matemáticas

A aula ocorreu em uma Escola Municipal de Caldeirão, pequeno município baiano. A turma possuía 20 alunos. Nesta aula, porém, estavam presentes apenas 14. As experiências profissionais do professor são de aproximadamente 15 anos de ensino e o tema de trabalho da aula foram as expressões numéricas.

É relevante destacar a presença de um observador externo, vinculado à instituição12 de formação do professor, o que o coloca numa situação de duplo vínculo institucional ou duplo assujeitamento institucional. Explicado doutra maneira, significa apontar que, em termos da TAD (CHEVALLARD, 1996, 1998, 1999, 2011), o docente tentará ser um bom sujeito institucional remodelando suas ações e intenções didáticas.

O professor adentra a sala de aula e cumprimenta os estudantes:

Professor: - Boa tarde!

Estudantes: - Boa tarde! (Em forma de coro).

Professor: - Para começar, eu trouxe um cartaz com um problema e a partir desse problema vamos iniciar a aula. Viu, grupo?

Professor: - Vamos iniciar a partir desse problema! (De forma enfática).

Professor: - Vou expor no quadro, vocês vão ler e cada um vai dar a sua resposta (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

O professor fixou no quadro uma folha de papel metro pardo que continha a seguinte questão: um aluno foi a essa papelaria e comprou três cartolinas, uma cola, uma tesoura, quatro lápis, uma régua e oito folhas de ofício. Sabendo que esse aluno pagou a conta com uma nota de 20 reais, quanto ele recebeu de troco? O valor de cada item foi especificado em uma tabela:

Tabela 1
Valores dos materiais escolares

O problema matemático, inserido num contexto do cotidiano, apresentado aos estudantes, envolve as operações de adição, subtração e multiplicação. Em termos da TAD, identificamos três tipos de tarefas, o que fica denotado na organização praxeológica por T, expressas pelos verbos: comprar, pagar e receber associados aos seus respectivos complementos, que explicitam melhor cada ação. Contudo, os verbos comprar e pagar se inter- relacionam em uma só ação. Explanado de outra forma, significa obter algo mediante pagamento, aspecto este que nos remete às construções culturais ou idiossincrasias sociais institucionalizadas.13

Todos nós, enquanto sujeitos sociais, compramos, pagamos e recebemos trocos, ou seja, trata-se de uma atividade cotidiana que, de forma subentendida, geralmente remete aos verbos somar, subtrair e multiplicar. Numa abordagem sintetizada, temos: T1 - Efetuar o pagamento de uma compra de materiais escolares, utilizando uma cédula de R$ 20,00 e T2 - receber o troco.

Nesse intuito, cabe aos alunos empreenderem uma leitura interpretativa do problema, extraindo um caminho para seguir a fim de se obter o resultado. Fato este que revelará várias técnicas (inclusive o emprego de expressões numéricas) induzidas pelo professor. O desenvolvimento da aula prossegue e após 6 minutos, aproximadamente, o professor pergunta se alguém já concluiu a questão. Um aluno sinaliza, levantando a mão, que já finalizou e fala: “quatro reais e vinte e cinco” (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011). O professor informa que o resultado não precisa ser dito, pois os cálculos serão socializados no quadro para toda a turma.

Destacamos que existe uma intenção didática envolvida no ato de resolver a questão que foi apresentada para a classe. Como destaca Chevallard (1996, p. 133):

a intenção didática se manifesta através da formação de instituições a que chamo, genericamente, sistemas didáticos. Um sistema didático (SD) comporta um ou vários sujeitos de I, que nele ocupam uma posição de professor P, um ou vários sujeitos de I que nele ocupam uma posição de aluno a, e finalmente um objeto O, pertencente a PI (a), que é o conjunto de investimentos didáticos para I.

O que foi descrito, até o momento, sobre alguns aspectos da aula, caracteriza um sistema didático - SD, que nunca existe sozinho e explicita dependências entre professor, alunos e investimentos didáticos, designado por Brousseau (1996) como uma espécie de sistema de ação concreto, ou seja, o direcionamento empreendido pelo professor define, dá sentido e gera condições para que o aluno interaja com o conhecimento. Entretanto, Chevallard (1996) também salienta que não basta existir, é fundamental que o SD funcione. Para que o sistema referido opere, é minimamente necessário que exista, ou que se construa, um meio que possa ser modificado através de provocações e desestabilizações de alguns de seus elementos. Assim, o foco de interesse passa a ser os estímulos e instabilidades que surgirão no desenvolvimento dos discursos.

Nesta perspectiva, Chevallard (2013) ressalta que o SD encontra-se no âmago da TAD e é o requisito primeiro para proceder análises acerca das condições e restrições associadas aos níveis de codeterminação didática.14 Neste artigo, o SD é modelado por S(X; y; QEN) → REN e denominado Sistema Herbartiano15 Reduzido (CHEVALLARD, 2011). Assim, descrevemos seus elementos como: X - Classe de alunos do 6° ano do Ensino Fundamental II; y - Um professor de Matemática em formação continuada; QEN - Questão proposta para o trabalho com expressões numéricas; REN - Resposta da QEN. Constataremos, porém, que y impõe a X sua resposta, então podemos supor que REN = Ry (resposta do professor). Neste esquema, identificamos também que alguns estudantes não assumem uma postura protagonista, pois são “podados”, em suas respostas, pelo professor além de não terem participado da escolha da questão.

É relevante destacar, com vistas à clareza, que trataremos os alunos por meio da letra E, acrescida do índice numérico, para identificar as falas e preservar o anonimato dos estudantes, enquanto que o professor será referenciado pela palavra Professor. O desenvolvimento da aula prossegue:

E2: - Eu já terminei, professor!

Professor: - Você pode me dar seu cálculo, E3?

E3: - Ainda falta completar.

Professor: - E4 já fez. Vou transferir os cálculos para o quadro. Você quer fazer ou posso escrever para você no quadro? Ela fez assim… começa a transcrever o cálculo de E4 para a lousa (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Alguns alunos demonstram envolvimento com a aula e solicitam a atenção do professor, como exemplificado na fala do estudante E5, transcrita a seguir:

E5: - Eu também vou, professor. Fiz igual a E4 - fala outro aluno enquanto o professor escreve no quadro.

Professor: - Isso aqui foi o que E4 colocou. Estão vendo? Tem alguém que fez… você já fez?

E6: - Eu fiz diferente.

Professor: - Fez diferente?

E6: - O meu resultado deu diferente.

Professor: - O segundo eu não vou colocar porque E6 disse que E4 colocou e… colocou igual. Esse aqui?

Professor: - Vou colocar o de E3 aqui.

Professor: - Esses dois aqui valem por enquanto e vocês vão analisar, aí vai ter a igualdade, se já teve um que teve a igualdade aí não precisa fazer de novo (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Neste trecho, nota-se a intenção de participação de E5, acompanhado de um questionamento empreendido pelo professor direcionado ao estudante E6. Contudo, o professor prefere prosseguir com a transcrição e análise da resolução de E4 e em seguida retorna à resolução de E3 que, anteriormente, estava incompleta. Entretanto, se olharmos para o domínio da TAD, as técnicas utilizadas pelos alunos na resolução do problema foram:

Professor: - Os cálculos colocados aqui, eu imagino que E4 tenha… colocado aqui é 55 + 55 + 55 é referente a … hein, E4? 3 cartolinas, não é?

E4: – É.

Professor: – Depois E4 colocou aqui estas 3 cartolinas, mas não colocou sinal, eu vou colocar em preto, é uma adição… aqui de preto. Eu vou colocar deve ser mais, adição. Mas, ela fez aqui deve ser adição.

Professor: – 5 + 5 + 5, 15 vai 1. 5 + 5 + 5 e 1, 16, aí ela lançou uma vírgula aqui, não sei como, querendo dizer que as 3 cartolinas vale 1 e 65.

Professor: - Aqui E4 realizou nova soma, também vou colocar o sinal de mais. 5 +, E4 colocou zero, 10 vai 1.

Professor: – …com 1 que foi mais seis, sete mais 2 nove. 5, 14 com mais 4, dezoito, com mais 4, 22 vai 2 … não foi, E4?

Professor: - 1 + 1 dois e 3 cinco e dois 7, com mais 2 que foi, nove. Mostra que… a compra que o aluno fez foi quanto?

Professor: – E aqui, E4 fez o que? Uma subtração não foi, E4?

Professor: – E4 fez a subtração dos 20 (vinte) e tirou nove e vinte e ficou com quanto?

E4: - Dez e oitenta (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

O trecho acima apresenta elementos que necessitam de uma análise mais densa. Na primeira fala do professor, procede uma interpretação dos cálculos de E4, envolvendo o custo unitário da cartolina - R$ 0,55 (número racional), que aparece nos cálculos de E4 como as parcelas 55 (número natural) adicionado 3 vezes, perspectiva do aspecto multiplicativo, por fazer referência à compra de 3 cartolinas. Outro aspecto que merece destaque é a expressão vai um, recitada sempre que a soma ultrapassa dez unidades, ocorrendo uma transição entre ordens, fundamentação esta que se encontra implicitamente na decomposição do Sistema de Numeração Decimal - SND, pontuado por Silva (2017, p. 84):

O não entendimento do SND como um sistema decimal e posicional, pode ser considerado um dos maiores entraves no tocante à resolução de situações didáticas envolvendo as operações fundamentais com números naturais; isto decorre da falta de entendimento dos agrupamentos e trocas, podendo provocar problemas na compreensão de recursos muito utilizados para realizar as operações, sendo estes o “vai um” e “pede um emprestado”.

A este aspecto soma-se o que explicitou Ramos (2009):

Na adição não vai 1 para lugar nenhum. O que fazemos são agrupamentos ou trocas, dependendo do material que estamos usando. Na subtração nenhum número empresta nada para nenhum outro, mas desmanchamos grupos quando precisamos ou fazemos trocas dentro da estrutura lógica do sistema de numeração decimal, que agrupa e reagrupa as quantidades de 10 em 10 (RAMOS, 2009, p. 125).

Nestes termos, percebemos que o ensino das operações é marcado pelo método, empregado muitas vezes como única opção para solucionar problemas com as operações, utilizada também de maneira mecânica e sem significado, de modo que um dos seus principais objetivos é a repetição em detrimento da captação de cada procedimento. Desse modo, questionamos: qual significado o termo vai um tem para os alunos? Não temos a intenção de responder esse questionamento. Este texto, todavia, pode ser um ponto de partida para outros estudos.

Ao analisarmos a situação utilizando a lente teórica da TAD, a interpretação é de que o bloco prático [T,τ] encontra-se desvinculado do bloco teórico [θ,Θ], pois a expressão vai um se instaurou mecanicamente e foi institucionalizada em salas de aulas de Matemática, desprovida da falta de entendimento dos agrupamentos e trocas vinculadas ao SND, como um modo de fazer, que conduz ao resultado pretendido. Na maioria das vezes, essas ações são aplicadas sem que se saiba seu significado, o porquê de cada etapa; sem se conhecer a que tecnologia se vincula e qual teoria proporciona sustentação ao processo para obtenção do resultado correto. Em outras palavras, significa afirmar que a expressão vai um pertence a uma “maneira de fazer” particular, desprovida de fundamentação teórica, o que, consequentemente, pode apresentar lacunas, rupturas ou fragmentações, culminando, muitas vezes, em ausências de sentido e razão de ser; diferentemente de um procedimento estruturado e algoritmo -característicos de uma técnica.

Nesse contexto, não podemos esquecer que a relação entre práxis e logos é estreita, e como pontua Chevallard et al (2001, p. 251), “[…] não há práxis sem logos, mas também não há logos sem práxis. As duas estão unidas como dois lados de uma folha de papel. Quando juntamos as palavras gregas práxis e logos, encontramos a palavra praxeologia”.

A aula prossegue. Um estudante, que denominamos por E6, foi questionado pelo professor acerca de seus cálculos:

Professor: - Pelos cálculos de E6… esse um e vinte é de que, E6?

E7: - Tem caneta aqui.

Professor: - É isso mesmo (dirigindo-se para o cartaz).

Professor: - Um aluno leva para a faculdade 3 canetas… não é assim não? Fale aí.

Professor: - O que você fez errado?

E6: - Eu coloquei 3 (três) canetas no lugar de 3 (três) cartolinas.

Professor: - Ah! Então aqui pode apagar, não é assim. Será que não existe outra maneira… Professor : - Mas será que a única maneira de fazer esse cálculo é assim como E4 fez?

E7: - Não.

Professor: - Será que não tem uma maneira mais simples? (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

O professor refere-se às expressões numéricas como uma maneira mais simples e económica de resolver o Problema Matemático - PM que está imbricado e se configura também como um Problema Didático - PD, visto que, o professor objetiva convencer os alunos que, ao optarem por uma resolução baseada em técnicas (modos de fazer) específicas das expressões numéricas, os cálculos se tornarão mais inteligíveis e simplórios, fato este que nesta aula ainda não foi exposto aos alunos. O professor continua sua fala:

Professor: - Nós poderíamos escrever dessa forma aqui também…

Professor: - Olha… vamos colocar logo o dinheiro que ele pagou a conta. Foi quanto?

E2: - Vinte reais.

Professor: - Desse… dinheiro, dos vinte reais… nós vamos fazer o que com ele? Tirar ou colocar?

E2: - Tirar.

E3: - Tirar.

Professor: - Quando eu quero tirar, que sinal eu uso para tirar?

E2: - De menos.

Professor: - Vamos tirar as coisas que ele comprou.

Professor: - E vamos separar o dinheiro que ele levou, com o dinheiro que ele comprou, por um símbolo.

Professor: - Que eu já mostrei para vocês. Lembram desse símbolo?

E3: - Lembro.

Professor: - Que símbolo é esse?

E4: - Chaves.

Professor: - Isso é chaves?

E2: - Parênteses.

Professor: - Parênteses. Não é?

Professor: - Parêntese aqui. Parêntese, vamos colocar as coisas que ele… as coisas que ele comprou, vamos lá ver o que ele… (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Fica aparente uma perspectiva de incertezas por parte dos estudantes, ao não identificarem e diferenciarem os sinais de associação (parênteses, colchetes e chaves), mesmo ficando evidente que não era o primeiro contato dos alunos com esses símbolos, pois, como denotado pelo professor, já teriam sido apresentados em outro momento. Ao estabelecermos um comparativo entre as duas últimas transcrições da aula, nota-se um aspecto controverso, visto que uma maneira mais simples de resolver o problema, como declarado pelo professor, provocou silenciamentos por parte dos alunos, gerando restrições no processo de aprendizagem. O que no âmbito da TAD refere-se à ecologia das tarefas, isto é, às condições e entraves que permitem sua produção e utilização nas instituições, a exemplo das salas de aulas. De acordo com Bosch e Chevallard (1999, p. 85-86):

[…] a ecologia das tarefas e técnicas são as condições e necessidades que permitem a produção e utilização destas nas instituições e a gente supõe que, para poder existir em uma instituição, uma técnica deve ser compreensível, legível e justificada […] essa necessidade ecológica implica na existência de um discurso descritivo e justificado das tarefas e técnicas que a gente chama de tecnologia da técnica. O postulado anunciado implica também que toda tecnologia tem necessidade de uma justificativa que a gente chama teoria da técnica e que constitui o fundamento último.

Assim, é possível inferir que existem lacunas na Organização Didática - OD, regulada pelas Praxeologias Didáticas ou Organizações Didáticas reveladas na modelação idealizada como resposta pelo professor, já que, no âmbito da TAD, a OD constitui uma configuração para o ensino que pode ser explicada por meio de articulações e integrações de praxeologias que permitam facilitar a compreensão dos temas estudados no currículo de Matemática, de modo a dar sentido à atividade.

No entanto, constata-se uma ausência da razão de ser16 do objeto matemático, pois segundo Chevallard (2010) a funcionalidade do saber responde as razões de ser, dando sentido ao estudo do objeto. O autor também ressalta que, quando um objeto do saber é abordado como um monumento que se mantém por conta própria, aos alunos, resta admirar e desfrutar, ainda que não saibam quase nada sobre suas razões de ser, de agora ou do passado. Assim, cumpre aos alunos assumir a posição de meros espectadores. No transcorrer da aula, outros elementos emergem:

Professor: - Uma cartolina lá na tabela está marcando quantos reais?

E3: - Cinquenta e cinco.

Professor: - Tem necessidade de colocar 55 + 55 + 55? Que outra forma eu poderia colocar?

Estudantes: - 55 vezes 3 (Em coro).

Professor: - Então eu poderia colocar 3 vezes 55 centavos.

Professor : - Vamos pegar isso e adicionar a algo que ele comprou a mais.

O que ele comprou a mais? (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Os demais itens da compra foram elencados, e as somas compostas por mais de um item transformadas em multiplicações.

Professor: - Já poderia colocar quarenta centavos, vamos colocar assim. E aí quando temos algo desse tipo aqui vamos conservar tudo o que está aqui fora, o vinte, e resolver o que está dentro do parêntese.

Professor: - Vamos resolver o que está no parêntese então, vamos iniciar com as multiplicações: três vezes cinquenta e cinco, que foi o que E4 colocou naquela conta bem grande. Vamos me ajudar: o que está aqui, três vezes cinco? (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Neste momento da aula, os alunos são induzidos a utilizar o algoritmo formal da multiplicação para resolver a questão proposta, caracterizada na forma de uma expressão numérica. A seguir, o professor defende o uso da expressão numérica como uma maneira simplificada de resolução do problema.

Professor: - Vocês sabem como é que se chama esse tipo de cálculo aqui em que eu vou resolvendo aos poucos?

E7: - É…

Professor: - Eu posso realizar dessa maneira… não fica mais organizado assim? Do que fazer aquela conta enorme cheia de parcelas uma após a outra?

Professor: - E alguém sabe como é que eu posso? E alguém sabe como é que eu chamo, esse tipo de cálculo aqui… dos números naturais?

Professor: - E a partir desses conhecimentos que vocês tão adquirindo.

Professor: - Resolver problemas do dia a dia de vocês, enfatizando as quatro operações: adição, multiplicação, subtração e divisão.

Professor: - E também a potenciação que envolve cálculo de potências. E a radiciação com o cálculo das raízes quadradas.

Professor: - E nessas expressões, além dos parênteses, estaremos usando também outros símbolos.

Professor: - Como os colchetes e as chaves que acho muito importante também no cálculo das expressões numéricas.

Professor: - E eu espero que no final dessa unidade, vocês sejam capazes de resolver problemas do cotidiano de vocês (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

O professor tenta evocar nos alunos a relevância das expressões numéricas, o que suscita implicitamente um aspecto que desmerece os cálculos realizados pelos alunos preliminarmente, em que demonstraram bastante envolvimento com a resolução tradicional das contas. O professor provoca desestabilizações, porém não foi gerado um cenário discursivo que direcionasse os estudantes a expor suas concepções acerca das expressões numéricas como um mecanismo facilitador na resolução de problemas matemáticos.

É importante salientar que alguns elementos e concepções próprios da Teoria das Situações Didáticas - TSD (BROUSSEAU, 2002) emergem e fazem parte do nosso discurso, ao procedermos nossas inferências acerca do trabalho do professor. Nessa perspectiva, Brousseau (1996, p. 38, grifos do autor) destaca que,

o professor tem, pois, de simular na sua aula uma microsociedade científica, se quer que os conhecimentos sejam meios econômicos para colocar boas questões e resolver debates, se quer que as linguagens sejam meios para dominar situações de formulação e que as demonstrações sejam provas. Mas tem também de dar aos seus alunos meios para descobrirem, nessa história particular que os fez viver, aquilo que é o saber cultural e comunicável que se pretendeu ensinar-lhes. Por sua vez, os alunos têm de redescontextualizar e redespersonalizar o seu saber, e têm de fazê-lo de forma a identificarem a sua produção com o saber em curso na comunidade científica e cultural da sua época.

A aproximação das atividades desenvolvidas em sala de aula com as atividades científicas solicita que o professor trabalhe no sentido inverso ao do investigador, uma vez que ele deverá produzir uma recontextualização dos conhecimentos em que se almeja apresentar boas questões para resolver debates. Contudo, o que foi observado no desenvolvimento da aula interliga-se à ausência de argumentações fundamentadas no bloco teórico [θ, Θ], que revelaria uma sustentação para as expressões numéricas, apresentadas aos alunos de maneira súbita, como uma forma simplista de resolução do problema previamente apresentado.

Nestes termos, Brousseau (1996, p. 51) também assevera que “o professor tem, pois, de efetuar, não a comunicação de um conhecimento, mas a devolução do problema adequado. Se a devolução se opera, o aluno entra no jogo e, se ele acaba por ganhar, a aprendizagem teve lugar”. Momento este em que o aluno assume para si a responsabilidade de obter uma resposta para a situação proposta, ou seja, o professor delega aos alunos a incumbência de obter uma solução adequada. Nota-se que, preliminarmente, o professor outorga aos alunos a resolução da questão, porém esta ambiência se perde no desenvolvimento da aula. Em consequência, as respostas reconduzidas pelos alunos refletem ausência da razão que justificaria o emprego das expressões numéricas na referida aula.

O professor continua sua argumentação em prol das expressões numéricas, ao ressaltar que a situação apresentada na questão matemática pode constituir uma circunstância vivenciada por qualquer um dos alunos. E prossegue sua fala:

Professor: - Olha, olha só a expressão que eu trouxe para vocês (ele pega o caderno e vai até o quadro escrever a expressão numérica, enquanto os alunos conversam entre si).

Professor: - Gostaria que vocês me ajudassem a resolver […] essa expressão.

Professor: - A primeira coisa que nós vamos resolver nessa expressão aqui…

Professor: - … será que é divisão?

E3: - Potências.

Professor: - As potências e as raízes quadradas. Então, ou seja, Expressões que aparecem entre parênteses, colchetes…

E7: - E chaves.

Professor: - Olha só. O nosso objetivo é resolver aqui. Você está vendo, E8?

E8: - As chaves, os colchetes.

Professor: - Resolver primeiro o que está dentro dos parênteses. O primeiro objetivo é eliminar os parênteses. Vamos tentar com isso aí eliminar os parênteses. Se a nossa intenção é eliminar os parênteses, o que está fora vamos repetir (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Diante do exposto, percebe-se que a aula se centra no bloco prático [T, τ] sem apresentar vínculos com a razão de ser da sequência estabelecida na resolução das expressões. Questionamentos do tipo: por que se deve resolver primeiro os termos que se encontram dentro dos parênteses? não são justificados na aula observada, pois esta se encontra situada no método que se mostra de forma pronta e inquestionável, fortalecendo o que Chevallard (2012) denominou de “aclamar e estudar autoridades ou obras-primas”, o que gradualmente foi transformado em um paradigma escolar - metaforicamente17, equivale a uma visita às obras ou aos monumentos referentes às ramificações do conhecimento. Ao se conceber o ensino deste modo, suprime-se a razão de ser do objeto de estudo, como por exemplo:

[…] a fórmula de Herons para o cálculo da área de um triângulo é abordada como um monumento que se mantém por conta própria, que os alunos devem admirar e desfrutar, mesmo quando não sabem quase nada sobre as razões de ser, de hoje ou do passado (CHEVALLARD, 2012, p. 3).

Outro fator que merece destaque refere-se à ruptura do contrato didático, que, segundo Bessot (2003, p. 3, tradução nossa), “representa os direitos e deveres implícitos dos estudantes e do professor sobre os objetos e conhecimento matemático ensinado”.18 O contrato didático surge quando ocorre a relação professor-aluno-saber, interligado diretamente com o conteúdo específico a ser estudado, o objeto de ensino e a aprendizagem em uma aula. De acordo com Brousseau (1986, p. 51):

Chama-se contrato didático o conjunto de comportamentos do professor que são esperados pelos alunos e o conjunto de comportamentos do aluno que são esperados pelo professor. […] esse contrato é o conjunto de regras que determinam uma pequena parte explícitamente, do que cada parceiro da relação didática deverá gerir e daquilo, que, de uma maneira ou de outra, ele terá de prestar conta perante o outro.

Características do contrato didático manifestam-se, principalmente quando este é transgredido por um dos parceiros da relação didática. Em muitos casos, é preciso que haja a ruptura e a renegociação deste contrato para o avanço do aprendizado. Este é um aspecto caracterizado no momento em que o professor apresenta um exemplo de expressão numérica desvinculada de um problema prático.

Este fator fica retratado diversas vezes no discurso do professor em que os interesses passam a transitar exclusivamente pelas regras utilizadas na resolução de uma expressão numérica. Nessa toada, admitimos a existência da ruptura do contrato didático proposto e instaurado no início da aula, regulado preliminarmente pela instituição na qual o professor está sendo formado, momento em que ele apresenta para os alunos um problema matemático contextualizado, o qual, no sequenciamento da aula, é dissolvido e imediatamente substituído pelo que geralmente é convencionado, ao apresentar uma expressão numérica privada de contexto.

Em termos da teoria de base que fundamenta este artigo, consideramos que a relação pessoal do professor com o objeto expressões numéricas, denotada por R(y,QEN), associadas a problemas práticos, ainda é insípida. Tal aspecto leva o educador a retomar a técnica de resolução das expressões numéricas de maneira descontextualizada.

Na finalização da aula, o professor enfocou a parte técnica das regras utilizadas na resolução das expressões numéricas e concluiu afirmando:

Professor: - Com essa fórmula vocês conseguirão resolver qualquer expressão numérica… o objetivo dessa aula foi explicar expressões numéricas para que vocês apliquem no dia a dia… vou colocar uma expressão numérica no quadro para vocês responderem em casa e socializarem a resposta na próxima aula. (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Diante do que foi transcrito, consideramos pertinente apresentar, de maneira esquemática, o desenho do modelo praxeológico observado por meio das transcrições da aula, conforme figura 3, denotado por Sistema Herbartiano Reduzido (CHEVALLARD, 2011), o que sintetiza a leitura e as interpretações realizadas.

Figura 3
Desenho Esquemático da Aula

Percebe-se uma tentativa de vincular as expressões numéricas ao caráter prático e cotidiano da Matemática. Contudo, o esboço da aula apresenta oscilações e variações sem intersecções entre a Matemática utilizada para resolver o problema proposto pelo professor aos alunos e a forma abrupta com que as expressões numéricas são demonstradas, a saber, como um método simplório, econômico e inteligível de resolução de problemas. O silêncio dos alunos frente à transição dos cálculos – em que se recorre às quatro operações fundamentais (adição, subtração, multiplicação e divisão), utilizadas separadamente para solucionar o problema proposto, e a junção das operações fundamentais acrescidas da potenciação, radiciação e sinais de associação (parênteses, colchetes e chaves), sem vinculação com o aspecto prático da Matemática - exibe uma característica controversa da aula, que poderia ter sido modelada nos termos praxeológicos.

5 Algumas considerações

O mapeamento da aula em questão revelou elementos que possuem significados na Teoria Antropológica do Didático – TAD, e que, desta forma, podem ser modelados seguindo-se o direcionamento desta teoria. A ausência de uma razão de ser institucional para as expressões numéricas está relacionada ao comprometimento do bloco tecnológico-teórico [θ, Θ], o qual fundamenta e justifica a existência do bloco prático [T,τ], no qual residem as técnicas, maneiras e formas de resolução das expressões, acompanhadas de cálculos matemáticos.

No que se refere à análise da prática do professor, foi possível identificar como modelizar, em termos das Organizações Matemáticas - OM e Organizações Didáticas - OD, alguns dos conhecimentos produzidos pelos sujeitos em ação e interação com os objetos, em particular, as expressões numéricas. A partir de tal apreciação, identificamos rupturas do contrato didático que se construiu no limiar da aula e se dissolveu no transcorrer dessa mesma aula.

Contrato este, imerso na esfera do implícito, que se configura como os desdobramentos destes rompimentos e vincula-se às submissões institucionais vivenciadas pelo professor (sujeito em formação no PAFOR e docente de uma escola municipal do estado da Bahia), refletindo diretamente em sua prática em sala de aula. Como exemplo nessa conjuntura, tem-se a apresentação de um problema matemático contextualizado com um subsequente abandono, como pode ser observado a seguir:

Professor: - Olha, olha só a expressão que eu trouxe para vocês (ele pega o caderno e vai até o quadro escrever a expressão numérica, enquanto os alunos conversam entre si).

Professor: - Gostaria que vocês me ajudassem a resolver […] essa expressão.

Professor: - A primeira coisa que nós vamos resolver nessa expressão aqui…

Professor: - … será que é divisão? (Gravação de diálogo entre professor e alunos, 2011).

Este caráter deixa evidente o abandono do cenário contextualizado criado pelo docente ao retomar sua prática imersa no ensino tradicional, desprovida de contexto, destinada às expressões numéricas.

Outro aspecto que merece destaque são os números decimais trabalhados pelos estudantes como números naturais, o que nos conduz a pensar em outro nicho neste ecossistema da sala de aula. Nota-se uma fuga aos números decimais, ao se efetuar com as frações do real –os centavos –, e um retorno abrupto ao tema, com a reintrodução da vírgula ao finalizar-se o cálculo, fato este que poderia ser melhor abordado pelo professor. Consequentemente, perde-se um momento de discussão acerca desta maneira de fazer.

O silêncio dos alunos no momento da aula em que as expressões numéricas são apresentadas pelo professor, como uma forma sucinta e mais organizada de resolver o problema, aflora elementos que nos levaram a inferir que os alunos não apresentavam domínio quanto ao assunto tratado na aula, mesmo ficando evidente que esse tema tinha sido apresentado em outra ocasião.

Os termos vai um, dois, … são empregados com bastante naturalidade tanto pelo professor quanto pelos alunos; ressalta-se ainda que os princípios, métodos e regras empregadas sem questionamentos descaracterizam, como destacado por Brousseau (1996), a simulação da sala de aula como uma micro sociedade científica. Assim, condições, restrições e impedimentos transitam e pesam sobre o estudo das expressões, no qual se abrem diversas questões e pistas que fomentam investigações mais densas no âmbito da TAD.

Agrega-se ao que foi elencado até o momento que, a partir da análise de uma aula que versou sobre expressões numéricas e empregou aportes da TAD, foi possível apresentar caminhos que servirão de suporte para futuros estudos no campo da Didática da Matemática. Dentre estes, salientamos a necessidade de estudos que contemplem as dimensões ostensivas e não ostensivas vinculadas às expressões numéricas, pois identificamos um aspecto parcimonioso no que tange ao tema proposto.

  • 1
    Le temps des études.
  • 2
    “J'ai introduit le thème de la transposition didactique dans la communauté française des didacticiens des mathématiques au tout début des années 1980”.
  • 3
    “Le concept de transposition didactique, par cela seulement qu'il renvoie au passage du savoir savant au savoir enseigné, donc à l’éventuelle, à l'obligatoire distance qui les sépare, témoigne de ce questionnement nécessaire, en même temps qu'il en est l'outil premier. Pour le didacticien, c'est un outil qui permet de prendre du recul, d'interroger les évidences, d’éroder les idées simples, de se déprendre de la familiarité trompeuse de son objet d’étude, bref, d'exercer sa vigilance épistémologique”.
  • 4
    A noosfera viabilizaria a manutenção da compatibilidade entre o sistema didático e o seu entorno social, no “plano do saber” (CHEVALLARD, 1999, p. 26).
  • 5
    “Mais pour l'enscignant. les choses vont autrement. En un premier temps au moins, la reconnaissance de la transposition didactique vient ébranler sa participation heureuse au fonctionnement didactique”.
  • 6
    “[…] it is not possible to interpret school mathematics properly without taking into account the phenomena related to the school reconstruction of mathematics, whose origin has to be found in the institutions that produce mathematical knowledge”.
  • 7
    “Le processus de transposition didactique souligne donc la relativité institutionnelle des savoirs”.
  • 8
    “Dans cette perspective, la premiere theorie de la transposition didactique sert, non seulement de point de depart, mais de point d'appui et de guide. Soit un savoir S dont un certain nombre d'institutions reconnaissent qu'il vit en leur sein”.
  • 9
    Termo vinculado à ecologia dos saberes que indica as funções que o objeto de saber exerce em interação com outros objetos (CHEVALLARD, 1996).
  • 10
    Entendemos ecossistema como sendo o local onde se desenvolve um determinado sistema que possui uma ecologia própria, no caso em estudo, o sistema didático (ARTAUD, 1998).
  • 11
    “Autour d'un type de tâches T, on trouve ainsi, en principe, un triplet formé d'une technique (au moins), τ, d'une technologie de τ, θ, et d'une théorie de θ, Θ. Le tout, noté [T/t/θ/Θ], constitue une praxéologie ponctuelle, ce qualificatif signifiant qu'il s'agit d'une praxéologie relative á un unique type de tâches, T. Une telle praxéologie – ou organisation praxéologique – est donc constituée d'un bloc pratico-technique, [T/τ], et d'un bloc technologico-théorique, [θ/Θ]”.
  • 12
    Estamos nos referindo ao Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - PAFOR, em vigor desde 2009 (SOUZA, 2014).
  • 13
    Ver Chevallard (2011) ao referenciar Marcel Mauss acerca da sua obra intitulada As Técnicas do Corpo.
  • 14
    Definido por Chevallard (2002) como a relação entre as Organizações Matemáticas e Didáticas.
  • 15
    Termo oriundo do sobrenome do filósofo e educador Johann Friedrich Herbart (FREITAS, 2013).
  • 16
    Verifica se a razão de ser dos tipos de tarefas está sustentada pelo discurso didático tecnológico-teórico capaz de descrever, justificar, interpretar e desenvolver a práxis.
  • 17
    Estabelece um comparativo com uma visita a um museu, onde os alunos admiram obras de arte que já estão prontas, finalizadas, sem vivenciar a produção da obra. Fato este que se assemelha às aulas de Matemática, pois os estudantes, na maioria das situações, não vivenciam a construção do conhecimento, tudo está pronto e acabado.
  • 18
    “Le contrat didactique représente 2 les droits et les devoirs implicites des élèves et de l'enseignant à propos d'objets, de savoir mathématique, enseignés”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2019
  • Aceito
    27 Mar 2019
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