Acessibilidade / Reportar erro

Estratégias, Representações e Flexibilidade na Resolução de Tarefas de Comparação Multiplicativa

Strategies, Representations, and Flexibility in Multiplicative Comparison Task Resolution

Resumo

Neste artigo analisamos, com base num quadro teórico sobre a comparação multiplicativa, a evolução conceituai de Bruno, aluno do 6.° ano (11 anos), focando-nos na articulação adaptativa e flexível de conceitos, estratégias, relações numéricas, propriedades das operações e representações. O modo como explora as cinco tarefas propostas no âmbito de uma experiência de ensino indica-nos que a construção conceitual da comparação multiplicativa de Bruno se situa na ligação entre fator multiplicativo e razão escalar. O seu conhecimento sobre os números e as suas relações permite-lhe usar diferentes representações dos racionais na tradução das estratégias que implementa. Estas variam entre aditivas e multiplicativas e, nas últimas, predomina a utilização da linha numérica dupla com apenas dois pontos. A análise da evolução de Bruno valida e amplia o quadro conceitual teórico adotado inicialmente.

Palavras-chave:
Comparação multiplicativa; Estratégias de resolução; Representações; Flexibilidade

Abstract

In this article we analyze, based on a theoretical framework on multiplicative comparison, Bruno's conceptual evolution, a student of the 6th grade (11 years), focusing on the adaptive and flexible articulation of concepts, strategies, numerical relations, properties of operations and representations. The way he explores the five tasks proposed in a teaching experiment indicates that the conceptual construction of Bruno's multiplicative comparison lies in the connection between the multiplicative factor and the scalar ratio. His knowledge of numbers and their relationships allows him to use different representations of rational ones in translating the strategies he implements. These vary between additive and multiplicative, and in the latter, the use of the double number line with only two points predominates. The analysis of Bruno's evolution validates and expands the theoretical conceptual framework adopted initially.

Keywords:
Multiplicative comparison; Resolution strategies; Representations; Flexibility

1 Introdução

A proporcionalidade engloba, sob o ponto de vista do ensino e da aprendizagem, muitas vertentes suscetíveis de serem aprofundadas. Uma delas diz respeito à compreensão da evolução conceitual da comparação multiplicativa.

A comparação multiplicativa é considerada um aspecto relevante da proporcionalidade e surge alicerçada na construção dos conceitos de fator multiplicativo, razão e proporção. As conexões entre compreensão de conceitos, especificamente de comparação multiplicativa, e estratégias de resolução e representações, suportadas nos números envolvidos e suas relações e nas operações e suas propriedades, foram, até o momento, pouco estudadas e assumem neste trabalho um papel relevante.

O objetivo deste artigo é caracterizar o modo como Bruno evolui na comparação multiplicativa, entendida como uma articulação adaptativa e flexível de conceitos, estratégias, relações numéricas, propriedades das operações e representações.

2 Comparação multiplicativa

As estruturas multiplicativas surgem como uma etapa posterior das estruturas aditivas e da necessidade de resolver problemas a que estas não dão resposta. São entendidas, além da operação multiplicação, como aquelas que incluem a divisão por números diferentes de zero. As relações entre estas duas operações permitem, segundo Long, Dunne e Craig (2010)LONG, C.; DUNNE T.; CRAIG, T. S. Proficiency in the multiplicative conceptual field: using Rasch measurement to identify levels of competence. African Journal of Research in MST Education, UK, v. 14, n. 3, p. 79-91, 2010., relacionar os conceitos de fração, razão, proporção, rate (taxa), decimal e percentagem. A multiplicidade de conceitos e as suas relações justificam, em parte, a complexidade do tema proporcionalidade no qual a comparação multiplicativa é considerada como um aspecto relevante da sua consolidação.

Ao referirmo-nos a fator multiplicativo, fazemo-lo na acepção de número racional (inteiro ou não inteiro) considerado como um operador que altera ou transforma um outro número ou quantidade, aumentando-o/a ou diminuindo-o/a (FREUDENTHAL, 2002FREUDENTHAL, H. Didactical Phenomenology of Mathematical Structures. New York: Kluwer Academic Publishers, 2002.; NCTM, 2010NCTM. Developing Essential Understanding of Ratios, Proportions, and Proportional Reasoning for Teaching Mathematics in Grades 6-8. Reston: NCTM, 2010.).

O conceito de razão é definido como uma relação de comparação multiplicativa entre duas grandezas ou dois sistemas de medida (KILPATRICK; SWAFFORD; FINDELL, 2001KILPATRICK, J.; SWAFFORD, J.; FINDELL, B. Adding it up: Helping children learn mathematics. Washington, DC: National Academy Press, 2001.) ou como o resultado de comparar multiplicativamente duas quantidades (THOMPSON, 1994THOMPSON, P. W. The development of the concept of speed and its relationship to concepts of rate. In: HAREL, G.; CONFREY, J. (Ed). The development of multiplicative reasoning in the learning of mathematics. Albany, NY: SUNY Press, 1994. p. 181-234.).

A razão classifica-se em: (i) interna ou escalar, ou razão “em”, se as grandezas (magnitudes, no original) que a constituem partilham o mesmo espaço ou sistema de medida; (ii) externa ou funcional, ou razão “entre”, quando é composta por grandezas de diferentes espaços de medida. No entanto, a razão pode ir além desta classificação e ser interpretada, num contexto fenomenológico, como um quociente em que a razão interna é um número (comparação multiplicativa) e a razão externa é uma grandeza diferente das iniciais (unidade composta) (FREUDENTHAL, 2002FREUDENTHAL, H. Didactical Phenomenology of Mathematical Structures. New York: Kluwer Academic Publishers, 2002.; NCTM, 2010NCTM. Developing Essential Understanding of Ratios, Proportions, and Proportional Reasoning for Teaching Mathematics in Grades 6-8. Reston: NCTM, 2010.).

A evidência de formação de uma unidade composta surge com frequência na ação de repeti-la ou de dividi-la em partes iguais e, se pensarmos em situações ligadas à vida real, surgem vários tipos de unidades compostas: a velocidade (razão entre as medidas das grandezas distância e tempo); o declive de uma rampa (razão entre as medidas de altura e comprimento da base da rampa); o sabor do refresco (razão entre as medidas de grandeza de concentrado de sumo e de água, por exemplo).

Considerar um determinado valor como uma razão evidencia, como defendem Thompson e Saldanha (2003)THOMPSON, P. W.; SALDANHA, L. A. Fractions and Multiplicative Reasoning. In: KILPATRICK, J.; MARTIN, G.; SCHIFTER, D. (Ed). Research Companion to the Principles and Standards for School Mathematics. Reston, VA: NCTM, 2003. p. 95-114., a ação de medir, uma vez que a medição de grandezas é ela própria um processo de comparação e, por isso, “a ideia de razão está no coração da medição” (p. 15).

A partir do conceito de razão surge o de proporção, considerada uma igualdade entre duas razões, ou seja, uma relação entre relações multiplicativas. Compreender que “quando duas quantidades se relacionam proporcionalmente, a razão de uma relativamente à outra é numericamente invariante quando ambas as quantidades mudam através de um mesmo fator” (NCTM, 2010NCTM. Developing Essential Understanding of Ratios, Proportions, and Proportional Reasoning for Teaching Mathematics in Grades 6-8. Reston: NCTM, 2010., p.11) permite efetuar conexões entre razão, proporção e raciocínio proporcional.

No desenvolvimento do raciocínio proporcional podemos considerar, entre outros, três importantes aspectos (KILPATRICK et al., 2001KILPATRICK, J.; SWAFFORD, J.; FINDELL, B. Adding it up: Helping children learn mathematics. Washington, DC: National Academy Press, 2001.; LAMON, 2007LAMON, S. Rational Numbers and Proportional Reasoning - Towards a Theoretical Framework for Research. In: LESTER, F. (Ed.). Second Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics (NCTM), 2007. p. 629-667.; NCTM, 2010NCTM. Developing Essential Understanding of Ratios, Proportions, and Proportional Reasoning for Teaching Mathematics in Grades 6-8. Reston: NCTM, 2010.): a consciência de que existe uma comparação relativa e não absoluta, ou seja, temos uma comparação multiplicativa e não aditiva; a ideia de que numa proporção os valores indicados nas razões podem ser alterados, mas a relação multiplicativa entre eles mantém-se; a construção de unidades compostas, expressas através de tantos destes para tantos daqueles, ou unidades de unidades, em que a partir daí é possível gerar um número infinito de razões iguais, basta para tal considerar as respectivas sequências de múltiplos das duas quantidades envolvidas.

Os aspectos conceituais do raciocínio proporcional, mesmo numa fase embrionária da aprendizagem, evidenciam-se também, de acordo com Cramer e Post (1993)CRAMER, K.; POST, T. Making connections: A case for proportionality. Arithmetic Teacher, Reston, v. 40, n. 6, p. 342-346, 1993., Kilpatrick et al. (2001)KILPATRICK, J.; SWAFFORD, J.; FINDELL, B. Adding it up: Helping children learn mathematics. Washington, DC: National Academy Press, 2001. e Lamon (2007)LAMON, S. Rational Numbers and Proportional Reasoning - Towards a Theoretical Framework for Research. In: LESTER, F. (Ed.). Second Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics (NCTM), 2007. p. 629-667., pelo tipo de problemas a resolver: problemas de comparação numérica (dadas duas razões averiguar qual delas é maior ou menor); problemas de valor omisso (são dados três dos valores de uma proporção e procura-se o outro) e problemas de comparação qualitativa (avaliar numa razão o efeito de uma mudança qualitativa em uma ou ambas as quantidades que a integram).

Os problemas devem surgir em contextos diversificados, com auxílio de representações físicas ou esquemáticas e fazer apelo a uma tradução simbólica em linguagem matemática. Seguindo estas ideias, Galen, Feijs, Figueiredo, Gravemeijer, Herpen e Keijzer (2008) propõem uma trajetória de ensino e aprendizagem das proporções alicerçada, entre outros, na exploração de tabelas de razões e de comparação proporcional, abordagem que adotamos, em parte, para este trabalho.

Na evolução conceitual da comparação multiplicativa começa-se por considerar apenas um campo de medida (razão interna ou escalar). Posteriormente, tem-se em conta dois campos de medida (razão externa ou funcional) e, por último, considera-se a comparação como uma função linear (Figura 1). Em simultâneo, o conceito de fator multiplicativo evolui para coeficiente de proporcionalidade que, na sua interpretação gráfica, representa o declive de uma reta.

Figura 1
Evolução conceitual da comparação multiplicativa

3 Flexibilidade: do uso à construção de estratégias

O modo como se entende flexibilidade não é unânime em várias investigações já efetuadas, principalmente no que se refere à flexibilidade de estratégias de resolução. Alguns autores distinguem flexibilidade de adaptabilidade, outros consideram-nas sinônimos. Em muitas das investigações, flexibilidade surge ligada a áreas relacionadas com cálculo aritmético ou algébrico e, em particular, com o cálculo mental. O corpo de conhecimento sobre as características da flexibilidade na utilização de estratégias baseia-se em estudos que analisam situações de cálculo desprovidas de contexto e que permitem, por isso, evidenciar o que se faz com os números e como se pensam os números nas relações entre si e no seu papel operativo.

A flexibilidade na utilização de estratégias relaciona-se com multiplicidade (múltiplos procedimentos na resolução de um conjunto de problemas) (BERK; TABER; GOROWARA; POETZL, 2009BERK, D. et al. Developing Prospective Elementary Teachers’ Flexibility in the domain of Proportional Reasoning. Mathematical Thinking and Learning, Philadelphia, v. 11, p. 113-135, 2009.; RITTLE-JOHNSON; STAR, 2007RITTLE-JOHNSON, B.; STAR, J. R. Does Comparing Solution Methods Facilitate Conceptual and Procedural Knowledge? An Experimental Study on Learning to Solve Equations. Journal of Educational Psychology, Washington, v. 99, n. 3, p. 561-574, 2007.; SELTER, 2009SELTER, C. Creativity, flexibility, adaptivity, and strategy use in mathematics. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 619-625, 2009.; SOWDER, 1992SOWDER, J. Estimation and Number Sense. In: GROUWS, D. A. (Ed). Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. New York: MacMillan, 1992. p. 371-389.), versatilidade (utilizar múltiplos processos de resolução de um dado problema) (BERK et al. 2009BERK, D. et al. Developing Prospective Elementary Teachers’ Flexibility in the domain of Proportional Reasoning. Mathematical Thinking and Learning, Philadelphia, v. 11, p. 113-135, 2009.) e eficiência (escolher um, de entre vários métodos, com base na competência relativa) (BLOTE et al., 2001 inBERK et al., 2009BERK, D. et al. Developing Prospective Elementary Teachers’ Flexibility in the domain of Proportional Reasoning. Mathematical Thinking and Learning, Philadelphia, v. 11, p. 113-135, 2009.; ROBINSON; LEFEVRE, 2012ROBINSON, K.; LEFEVRE, J-A. The inverse relation between multiplication and division: Concepts, procedures, and a cognitive framework. Educational Studies in Mathematics, NL, v. 79, n. 3, p. 409-428, 2012.; STAR; NEWTON, 2009STAR, J. R.; NEWTON, K. J. The nature and development of experts’ strategy flexibility for solving equations. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 557-567, 2009.)

Para esta coexistência entre multiplicidade e versatilidade, Verschaffel, Luwel, Torbeyns e Van Dooren (2009)VERSCHAFFEL, L. et al. Conceptualizing, investigating, and enhancing adaptive expertise in elementary mathematics education. European Journal of Psychology of Education, Lisboa, v. XXIV, n. 3, p. 335-359, 2009. defendem que é preciso considerar dois tipos de perícia bastante diferentes. Por um lado, possuir uma perícia de rotina (routine expertise, no original) permite resolver problemas rotineiros de forma rápida e eficiente, utilizando procedimentos que se automatizaram; por outro lado, ser detentor de uma perícia adaptativa (adaptive expertise, no original) permite compreender como e porque funcionam os procedimentos e ser capaz de modifica-los e adapta-los, à medida que as condições do problema se alteram. Possuir perícia adaptativa significa, por isso, não estar limitado a regras ou procedimentos e ter acesso a muitas formas de encontrar com sucesso uma solução.

Relativamente à flexibilidade de estratégias de resolução, mais especificamente de estratégias de cálculo mental, Threlfall (2009)THRELFALL, J. Strategies and flexibility in mental calculation. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 541-555, 2009. discorda que elas sejam utilizadas e defende que sejam construídas, no sentido que não são selecionadas de uma coleção e depois aplicadas, mas são sim de natureza emergente. Os números do problema não são considerados para influenciar a estratégia, mas sim para decidir o que fazer a seguir e, como ele refere, “a estratégia de cálculo não foi selecionada e aplicada, foi aparecendo” (p. 548), ou seja, o processo cognitivo de cálculo mental na flexibilidade de estratégias não considera os números do problema para decidir sobre a estratégia de cálculo a aplicar, pelo contrário, considera os números do problema e chega a uma estratégia de cálculo.

A estratégia não é o que foi feito considerado como um todo, embora possa ser reconstruída como tal, mas antes uma construção passo a passo. A este processo, Threlfall (2009)THRELFALL, J. Strategies and flexibility in mental calculation. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 541-555, 2009. designa como “zeroing-in” e define-o através do perceber aspectos dos números e das relações entre eles, de um modo de descoberta, quase não consciente. Esta caracterização permite afirmar que, quanto maior for o conhecimento dos números, das suas propriedades e relações (como os podemos decompor, aproximar, combinar, substituir, etc.), e do seu papel a nível operativo, mais opções dominamos e mais facilmente construímos a nossa estratégia.

À flexibilidade de cálculo mental, considerada como uma ação apropriada de agir perante um problema, Rathgeb-Schnierer e Green (2013)RATHGEB-SCHNIERER, E.; GREEN, M. Flexibility in mental calculation in elementary students from different math classes. In: UBUZ, B.; HASER, Ç.; MARIOTTI, M. A. (Ed.). CONGRESS OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 8., 2013, Ankara. Proceedings of the Eighth Congress of the European Society for Research in Mathematics Education. Ankara: Middle East Technical University, 2013. p. 353-362. acrescentam a ideia de que apenas uma combinação dinâmica entre meios estratégicos (composição e decomposição de números, uso de analogias entre as diferentes ordens na representação dos números, …), características dos problemas, padrões numéricos e suas relações a permite evidenciar. Neste trabalho aliamos as últimas propostas destes autores com as de Threlfall (2009)THRELFALL, J. Strategies and flexibility in mental calculation. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 541-555, 2009. para considerarmos que o uso flexível de estratégias (entendidas como procedimentos de cálculo) é visto como um processo dinâmico que vai progressivamente se definindo.

A discussão em torno da flexibilidade na construção de estratégias desenvolve-se ainda na relação entre conhecimento conceitual (compreender porque fazer) e de procedimentos (saber como fazer), na influência que cada um determina no outro e no quanto ambos são imprescindíveis para a compreensão matemática.

Sfard (1991)SFARD, A. On the dual nature of mathematical conceptions: reflections on processes and objects as different sides of the same coin. Educational Studies in Mathematics, NL, v. 22, n. 1, p. 1-36, 1991. defende que, na construção do conhecimento matemático, os termos estrutural (conceito) e operacional (processo) apresentam-se inseparáveis e são, como ela própria afirma, “facetas de uma mesma coisa” (p. 9). Alega que devemos lidar com esta dualidade e Gray e Tall (1994)GRAY, E. M.; TALL, D. O. Duality, Ambiguity and Flexibility: A Proceptual View of Simple Arithmetic. The Journal for Research in Mathematics Education, Reston, v. 26, n. 2, p. 115-141, 1994. reforçam-na e sugerem “pensamento proceptual” caracterizado como “a capacidade de manipular o simbolismo de forma flexível ou como processo ou como conceito, alternando livremente diferentes símbolos para o mesmo objeto” (p. 7).

4 Representações na comparação multiplicativa

Na aprendizagem e no ensino da Matemática as representações têm vindo a adquirir um papel de relevo e são tidas como elementos essenciais na compreensão de conceitos, de procedimentos e de relações entre ambos (NCTM, 2007NCTM. Princípios e Normas para a Matemática Escolar. Lisboa: APM (versão portuguesa), 2007.).

A um nível macro, Bruner (1964)BRUNER, J. S. The course of cognitive growth. American Psychologist, Washington, v. 19, p. 1-15, 1964. classifica as representações como: ativas, icônicas e simbólicas. Igualmente a este nível, Thomas, Mulligan e Goldin (2002)THOMAS, N. D.; MULLIGAN, J. T.; GOLDIN, G. A. Children's representation and structural development of the counting sequence 1-100. Journal of Mathematical Behaviour, UK, v. 21, p 117-133, 2002. consideram que existem três tipos fundamentais de sinais ou caracteres que surgem como componentes nas representações produzidas pelos alunos na resolução de tarefas: pictóricos, icônicos e simbólicos. Para estes investigadores, representações pictóricas são definidas como desenhos de objetos que podem, ou não, ser acompanhados por uma descrição oral. Representações icônicas são definidas de forma a englobarem registros de marcas, quadrados, círculos ou pontos numa tradução menos realista que as anteriores. Representações simbólicas são evidenciadas pelo uso predominante de numerais e outros símbolos matemáticos e podem surgir na reta numérica, numa matriz, numa régua ou numa coluna vertical.

Tendo em conta o foco deste trabalho, estas classificações globais não são, no entanto, suficientemente finas. Por exemplo, a representação simbólica tanto pode incluir a adição de parcelas iguais como a multiplicação, aspectos que revelam diferentes níveis de compreensão relativamente à evolução conceitual da comparação multiplicativa. Optamos, por isso, por adaptar as representações propostas por Greer (1992)GREER, B. Multiplication and Division as Models of Situations. In: GROUWS, D. A. (Ed.). Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. New York: MacMillan, 1992. p. 276-295., focando-nos nas que dizem respeito à comparação multiplicativa (adição de parcelas iguais, tabela de razões/linha numérica dupla (relações escalar e funcional) e gráfico).

5 Metodologia de investigação

Este artigo incide sobre parte de um estudo mais amplo, conduzido pela primeira autora, cujo objetivo é compreender o modo como alunos do 6.° ano desenvolvem a comparação multiplicativa, relacionando as representações e os procedimentos que utilizam com as características dos números envolvidos e com as propriedades das operações. O estudo insere- se numa metodologia de investigação baseada em design (GRAVEMEIJER; COBB, 2006GRAVEMEIJER, K.; COBB, P. Design research from a learning design perspective. In: AKKER, J. van den et al. (Ed.). Educational Design Research. London: Routledge, 2006. p. 17-51.), na modalidade de experiência de ensino e aprendizagem na sala de aula (COBB; CONFREY; DISESSA; LEHRER; SCHAUBLE, 2003COBB, P. et al. Design experiments in education research. Educational Researcher, Washington, v. 32, n. 1, p. 9-13, 2003.).

A preparação, primeira das três fases da experiência de ensino e aprendizagem, engloba a clarificação do que se pretende estudar e operacionaliza uma teoria local de ensino e aprendizagem (GRAVEMEIJER; COBB, 2006GRAVEMEIJER, K.; COBB, P. Design research from a learning design perspective. In: AKKER, J. van den et al. (Ed.). Educational Design Research. London: Routledge, 2006. p. 17-51.) que engloba a planificação de um conjunto de tarefas, organizadas numa sequência a explorar na sala de aula e uma hipotética antecipação no modo como os alunos poderão raciocinar e que conceitos e procedimentos poderão utilizar. No caso em questão, as tarefas podem ser genericamente consideradas fechadas, tipo problema (PONTE, 2005PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In GTI (Ed). O professor e o desenvolvimento curricular. Lisboa: APM, 2005. p. 11-34.), e foram propostas numa sequência pensada a partir de uma evolução dos conceitos / procedimentos de comparação multiplicativa, surgindo como introdução ao conteúdo curricular Proporcionalidade direta.

A segunda fase da experiência de ensino e aprendizagem decorreu em dois ciclos de experimentação, no início dos anos letivos 2015/16 e 2016/17, em duas turmas de duas escolas básicas, situadas em dois distritos do continente português. Por questões de natureza ética, as escolas não são identificadas e, quer as professoras, quer os alunos surgem com nomes fictícios, tendo em vista manter o seu anonimato e privacidade.

Este artigo reporta-se a uma parte da terceira fase, realização de análise retrospectiva do segundo ciclo de experimentação, que envolveu sete aulas de 90 min, nas quais as tarefas foram desenvolvidas de uma forma intercalada com a temática que estava a ser lecionada, uma vez que a professora entendeu não alterar a planificação anual do departamento para não criar muito desfasamento entre os alunos, tendo em atenção a opção pedagógica em vigor na própria escola.

Os dados foram recolhidos a partir das produções escritas dos alunos (entregues no final de cada aula e digitalizadas) e das transcrições integrais das gravações vídeo das aulas. Não houve da parte das autoras do artigo qualquer participação a nível da exploração das tarefas na sala de aula.

Neste artigo focamo-nos em um aluno, Bruno (11 anos), que participou no segundo ciclo de experimentação. Este aluno mostrou empenho, revelou-se o impulsionador do trabalho no grupo a que pertencia e as suas muitas intervenções orais, quando da discussão em grande grupo, permitem complementar os seus registros escritos da resolução das tarefas propostas.

A análise de dados incide na descrição pormenorizada dos registros escritos de Bruno e nas suas intervenções orais, identificadas nas transcrições das gravações em vídeo das aulas em que foram propostas as cinco tarefas da experiência de ensino e aprendizagem. Na análise da evolução conceitual de Bruno ao nível da comparação multiplicativa, usamos um conjunto de categorias, baseadas na literatura e numa primeira análise de dados, no qual articulamos (Quadro 1) as suas ideias de comparar multiplicativamente com: (i) estratégias de resolução; (ii) relações numéricas e propriedades das operações; (iii) representações.

Quadro 1
Estratégias de resolução, relações numéricas, propriedades das operações e representações associadas à evolução conceitual da comparação multiplicativa

A adaptabilidade/flexibilidade é assinalada pelas relações horizontais entre as colunas (i), (ii) e (iii), de sentido duplo, e pelas articulações verticais, de sentido de baixo para cima, que simbolizam o desenvolvimento conceitual de um nível a outro.

6 Comparação multiplicativa: as resoluções de Bruno

6.1 Tarefa 1: Misturas de chocolate1 1 Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).

Nesta tarefa (Figura 2), Bruno escolhe para a sua mistura 30 pastilhas de chocolate branco e 25 de chocolate de leite (Figura 3). Quando identifica o frasco de tamanho S, parece fazê-lo no pressuposto de que deve esgotar as pastilhas da sua mistura e de que todos os frascos devem ter a mesma quantidade. Como ambos os números (30 e 25) são múltiplos de 5, Bruno apresenta cinco frascos de tamanho S cuja composição é, pois, 6 pastilhas de chocolate branco e 5 de leite.

Figura 2
Tarefa 1: Misturas de chocolate
Figura 3
O frasco de tamanho S de Bruno (T1-P2)

Opera em dois campos de medida (pastilhas de chocolate branco e de leite) e as representações usadas são do tipo icônico (traços simples que representam frascos, pouco realistas) e simbólico (duas adições de parcelas iguais, registradas horizontalmente). As duas igualdades traduzem, por isso, o total de pastilhas de chocolate de cada tipo que foi escolhido para a sua mistura (Figura 3). No verso da folha, Bruno escreve 30:5=625:5=5 e confirma, mais uma vez de uma outra forma, as quantidades escolhidas para cada frasco.

Relativamente ao frasco de tamanho L (Figura 4), Bruno reúne todas as pastilhas num frasco, que assume como representando este tamanho, e indica ao lado a quantidade de cada tipo de pastilhas, separando-as por um traço.

Figura 4
O frasco de tamanho L de Bruno (T1-P3)

Embora esta representação esteja formalmente associada à simbologia de fração ou de razão, não parece ser entendida com tal. De fato, Bruno usa uma representação que resume os resultados das duas adições anteriores, sem evidência de comparar as componentes do frasco de tamanho L em termos de uma razão 30 pastilhas de chocolate branco para 25 pastilhas de chocolate de leite. Para obter a quantidade de pastilhas do frasco de tamanho XL, Bruno aplica o procedimento ×2 a ambos os números anteriores e expressa o conceito o dobro de, já do seu conhecimento. Esta interpretação é confirmada pela representação da Figura 5, em que para ele, os objetos a relacionar são apenas os números inteiros 30 e 60 (30 × 2 = 60) e 25 e 50 (25 × 2 = 50), e não a razão 3025. Não sente, por isso, necessidade de escrever 3025=6050.

Figura 5
A estratégia de Bruno para obter o frasco de tamanho XL (T1-P3)

A tabela de razões é introduzida pela professora, como súmula da discussão da resolução da tarefa 1, e Bruno constrói a sua corretamente, registrando as suas escolhas anteriores (Figura 6). Completa-a com arcos, não direcionados, de ligação da primeira coluna (a mistura que escolheu) com as restantes. Legenda dois deles com os procedimentos relativos apenas à quantidade de pastilhas de chocolate de um tipo, embora os valores referentes à quantidade do outro tipo de pastilhas estejam também corretos. Utiliza, como fatores multiplicativos, os números inteiros 5 e 2, no primeiro caso divide por 5 (:5) e, no segundo, multiplica por 2 (×2).

Figura 6
A tabela de razões de Bruno (T1)

Em síntese, inicialmente Bruno apresenta um raciocínio do tipo: se retirarmos repetidamente, o mesmo número de vezes, um certo número de pastilhas de chocolate branco e um certo número de pastilhas de chocolate de leite, vamos manter a mistura. Depois, esta maneira de raciocinar é substituída por: se multiplicarmos (ou dividirmos) a quantidade de cada tipo de pastilhas de chocolate por um mesmo número, obtemos um frasco com uma quantidade maior (ou menor) e mantemos a mistura (Autoria própria, 2018).

6.2 Tarefa 2: Redimensionar2 2 Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).

A tarefa 2 é explorada no contexto de um universo contínuo (desenho da Rita) que incide no uso do coeficiente de proporcionalidade que é a razão de semelhança de duas figuras. Na questão 1 pede-se para comparar o desenho ORIGINAL (O) com as reproduções A, B, C e D feitas por Rita3 3 Cada grupo tinha à sua disposição uma coleção de imagens identificadas por ORIGINAL, A, B, C e D. (Figura 7).

Figura 7
Tarefa 2: Redimensionar (quatro imagens do mesmo desenho)

Bruno não percebeu que deve analisar simultaneamente dois aspectos: (i) se o original é deformado, ou não (razão interna); (ii) se aumenta ou diminui (fator de ampliação ou de redução). Começa por tentar descobrir quantas vezes O cabe em B, preenchendo a figura B com a unidade O:

Bruno - Aqui na original e na B eu acho que … que a… a [pega em O] … aqui na original, cabe três vezes a original [coloca-a em cima da figura B] para fazer a B. Fazemos uma aqui [coloca O em cima de B, de forma a coincidirem os lados à esquerda e as bases, respetivamente]; depois, a segunda aqui [desliza O para a direita] e, depois eu pensei assim, dividimos isto ao meio [figura O] e pomos uma metade aqui [indica na figura B a parte que sobra por cima da O] e a outra metade aqui [indica na figura B a parte que sobra, ao lado do anterior].

(Diálogo 1 entre a professora e Bruno, 2016).

Alertado pela professora, Bruno foca-se depois na comparação dos elementos constituintes de cada imagem e na sua forma, que umas vezes se mantém e outras não. Justifica esta situação com o efetuar, ou não, um procedimento no programa Paint que identifica como “aumentar ou diminuir na diagonal”. Nas suas palavras, colocar o cursor num dos vértices da imagem e movimentá-lo permite que ela fique “toda direitinha” ou, caso contrário, “desformatada”, ou seja, respectivamente, semelhante a O ou não.

Nesta parte da tarefa, na janela do programa Paint, Bruno associa “redimensionar 150% na horizontal e na vertical, mantendo a proporção “, com “ampliar uma vez e meia” e usa 112 como fator.

Na última parte da tarefa (Figura 8) Bruno indica corretamente, na sua folha de resposta, que a maior ampliação possível do desenho da Rita, na folha de papel A4, é um quadrado (para “manter a forma”) com a medida de lado igual a 21 cm.

Figura 8
Comparar dimensões (T2)

Usa o lado de O como unidade de comprimento para medir o lado do quadrado (6 + 6 + 6 + 3 (metade de 6)) e traduz aditivamente esta medição usando um misto de representação icônica e simbólica (Figura 9).

Figura 9
Decomposição aditiva de 21 (T2-P4)

Em síntese, Bruno compreende que redimensionar uma figura não envolve, como pensou inicialmente, comparar áreas. Passa a trabalhar focando-se nas dimensões das figuras, percebendo que para obter uma figura não deformada deve multiplicar a largura e o comprimento de O por um mesmo número (Autoria própria, 2018) e usa fatores escritos sob a forma de numeral misto, decimal ou percentagem. Numa situação que envolve perceber como pode obter 21 a partir de 6, Bruno usa a adição e não a multiplicação.

6.3 Tarefa 3: Cálculos e mais cálculos…4 4 Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).

Na tarefa 3 (Figura 10), Bruno transforma 12 em 0,5, traduzindo a ideia de que ambos representam metade de, e utiliza este fator multiplicativo mentalmente. Transforma corretamente um numeral misto num decimal e decompõe-no aditivamente nas suas partes, inteira e decimal, usando novamente procedimentos multiplicativos baseados no conceito metade de. Utiliza a propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição, bem como mais à frente, a propriedade comutativa da multiplicação (Figura 11).

Figura 10
Tarefa 3: Cálculos e mais cálculos (parte 1)
Figura 11
Utilização de propriedades da multiplicação (T3-P1)

Numa outra coleção de expressões numéricas, Bruno utiliza preferencialmente o algoritmo para multiplicar frações, sem se preocupar em encontrar, de imediato, valores mais acessíveis. É disso exemplo o caso em que triplica 20 para depois dividir por quatro ou encontrar um quarto de 60 (Figura 12). Repete este procedimento também quando substitui 0,75 por 34.

Figura 12
Resolução apresentada por Bruno (T3-P1)

Na relação proporcional entre os termos de uma multiplicação, as expressões numéricas registradas por Bruno estão todas corretas, como se pode observar na Figura 13. Bruno indica o produto de dois fatores, inteiros ou não, e de seguida cada um dos fatores escrito à custa do produto e do inverso do outro fator, como interpretação do esquema respectivo.

Figura 13
As relações proporcionais indicadas por Bruno (T3-P2)

Em síntese, Bruno relaciona sem dificuldade números escritos sob a forma de numeral misto, decimal e fração (112e 1,5; 34e 0,75), mas ao efetuar os cálculos, começa por se basear nas regras algorítmicas que já conhece, sem mostrar preocupações em encontrar números mais acessíveis. Em alguns casos utiliza corretamente a propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição e também a propriedade comutativa da multiplicação. Parece compreender as relações proporcionais entre os termos de uma multiplicação de dois fatores e assinala o inverso de um número a, mesmo que a não seja um número inteiro positivo, mas sim um racional positivo escrito sob a forma decimal, através da expressão 1a. Não duvida que essa expressão representa também um número e afirma que “é sempre a mesma coisa “ (Autoria própria, 2018), ao contrário de outros alunos da turma que não consideram, por exemplo, correta a expressão 11,5. O conhecimento conceitual de inverso de um número está em construção e prevalece ligado a ações ilustradas com os operadores multiplicativos “o dobro de; o triplo de; …” por oposição “a metade de; a terça parte de; …”. Bruno revela compreender a relação entre multiplicação e divisão, como operações inversas, mas não relaciona multiplicativamente a e 1a(a0).

6.4 Tarefa 4 - Fazer limonadas5 5 Adaptado de Using Proportional Reasoning in Mathematics Assessment Project (2015). University of Nottingham & UC Berkeley.

Na tarefa 4, problema 1 (Figura 14), Bruno compara as duas limonadas de modo aditivo, ou seja, pensa que se adicionar a mesma quantidade a cada um dos ingredientes iniciais (1 chávena de concentrado de limão e 1 litro de água), as limonadas têm o mesmo sabor e, por isso, ao contrário do que se diz na história, para ele o sabor das limonadas, é igual na sexta-feira e no sábado (Figura 15).

Figura 14
Tarefa 4: Fazer limonadas (problema 1)
Figura 15
A resposta de Bruno à comparação do sabor de duas limonadas (T4-P1)

Na tarefa 4, problema 2 (Figura 16), Bruno altera a sua forma de pensar e não apresenta dificuldades em dividir pelo mesmo número, ambos os termos de uma dada razão. Auxilia-se da representação da linha numérica dupla com apenas dois pontos, na qual relaciona o número de chávenas de concentrado de limão com o número de litros de água, e na qual a resposta ao problema surge evidenciada pela linha que circunda o ponto correspondente a “1 chávena para 1,25 litros”, como se pode observar na Figura 17.

Figura 16
Tarefa 4: Fazer limonadas (problema 2)
Figura 17
Linha numérica dupla, com apenas dois pontos (T4-P2)

No problema 3 (Figura 18), Bruno repete a estratégia de resolução que utilizou antes e cria uma linha numérica dupla com dois pontos para resolve-lo. No entanto, não trabalha com os dados iniciais da tarefa, mas utiliza os valores obtidos no problema anterior “1 chávena de concentrado de limão para 1,25 litros de água” (Autoria própria, 2018), porque, como ele diz quando interpelado pela professora no quadro, “… era o mais fácil” (Autoria própria, 2018).

Professora - Partiu de onde?

Bruno [com o indicador direito, aponta na linha numérica dupla o 1 e depois o 1,25] – De … do resultado que nos tinha dado no exercício anterior.

Professora - Muito bem! Por quê? Porque é que foste pegar nesse?

Bruno - Então, porque eu achei que era o mais fácil. Pensei logo mentalmente um vezes nove era nove. [Com o indicador direito contorna o arco do 1 até ao 9.] E a nossa… aqui no problema pedia ahm … nove chávenas … que ela tinha que juntar nove chávenas.

(Diálogo 2 entre a professora e Bruno, 2017).

Figura 18
Tarefa 4: Fazer limonadas (problema 3)

Bruno representa (Figura 19) dois arcos orientados da esquerda para a direita, legendados com ×9, para indicar que cada termo da razão considerada, razão unitária, foi multiplicado por 9, mas não se sabe como os cálculos foram feitos. Adapta, portanto, o seu raciocínio/procedimento anterior às condições do novo problema, de maneira a facilitar o cálculo, e circunda o ponto correspondente a 9 chávenas para 11,25 litros para assinalar a sua resposta.

Figura 19
A estratégia de Bruno baseada na razão unitária (T4-P3)

Mantendo-se fiel à linha numérica dupla com apenas dois pontos, Bruno resolve o último problema da tarefa 4 através de duas linhas numéricas duplas (Figura 20).

Figura 20
As linhas numéricas duplas de Bruno (T4-P4)

A escolha dos números surge, mais uma vez, influenciada pela percepção que Bruno tem das relações numéricas, como se pode observar na sua justificação oral (diálogo 3).

Bruno [estica os dois braços no ar, prepara-se para falar e volta-se meio de lado para o quadro, com a resolução à sua direita] - Então, eu fui pegar neste número aqui [com o indicador direito aponta 4 na linha numérica dupla onde surgem os pontos correspondentes às razões 34 e 1,52] e fui dividir por dois porque eu pensei logo de cabeça que dois vezes nove era dezoito [aponta rapidamente para a linha numérica de baixo, onde surgem os pontos correspondentes às razões 1,52 e 13,518] e então fui achar uma equivalência para ser mais fácil para os meus cálculos. E depois, deu-me … eu fiz o três a dividir por dois deu-me um vírgula cinco e o quatro a dividir por dois deu-me dois. Depois…

Professora - Vamos parar! Vamos parar aí! Vamos parar aí! [Bruno afasta-se um pouco para a esquerda, de frente para a turma.] O que o Bruno fez foi … na cabeça dele … ele começou a pensar: Ora bem, eu tenho dezoito, ali tenho um quatro, quatro vezes não sei quê, nada dá dezoito, assim de repente … sei lá! Nós já vimos que dá.

Bruno - Sim. Sim, mas de repente…

Professora - É aquela coisa de pensarmos nos números inteiros, não é? Ok! Então ele pensou: Eh pá, mas o dois dava-me jeito. Então, o que é que ele fez? Foi encontrar ali uma quantidade… em termos de quantidade… de sumo total era menor, ele ali só juntava dois litros de água para um e meio de … concentrado … de chávenas.

Bruno - Sim.

Professora - Mas o sabor era o mesmo ou não era o mesmo?

Bruno - Era.

Professora - Era o mesmo. Eu mantenho sempre … proporcionalmente é o mesmo … com o mesmo sabor. E agora ele pegava então nesse valor, um e meio … uma chávena e meia para duas de água e depois…

Bruno - Multiplicava por nove.

(Diálogo 3 entre a professora e Bruno, 2017).

Em síntese, Bruno começa a resolução desta tarefa partindo do princípio que se adicionarmos o mesmo valor à quantidade de ambos os ingredientes da limonada, o seu sabor não se altera, mas evolui para outro, baseado na ideia de que se multiplicarmos ou dividirmos a quantidade de ambos os ingredientes da limonada pelo mesmo valor, o seu sabor não se altera (Autoria própria, 2018), ou seja, Bruno passou de um raciocínio aditivo para um multiplicativo, em que os fatores utilizados são sempre números inteiros. Baseia-se nos seus conhecimentos de múltiplos e divisores de um número natural. Sabe, por exemplo, que 4 não é divisor de 18, mas que 18 é múltiplo de 2 e, por isso, escolhe-o para construir a sua resolução, cujos procedimentos intermediários de cálculo são, no seu entender, mais acessíveis. Bruno utiliza também os resultados de problemas anteriores (razão unitária) como uma via mais acessível para encontrar a solução.

6.5 Tarefa 5: Qual devo comprar?!6 6 Adaptado de van Galen et al. (2008). Fractions, Percentages, Decimals and Proportions. Rotterdam: Sense Publishers.

A tarefa 5 (Figura 21) é um problema de contextualização da vida real em que se pretende que o aluno seja crítico perante a situação e, na dúvida sobre que opção tomar, perceba que escolher o mais barato pode ter diferentes interpretações.

Figura 21
Tarefa 5: Qual devo comprar?!

Bruno opta pela comparação relativa que não permite uma resposta imediata, mas à qual chega através de relações numéricas suas conhecidas e de estratégias de resolução multiplicativas. Opera em dois campos de medida (produto dos frascos e preço), as representações que utiliza são todas simbólicas (numerais e outros símbolos) e justifica a sua escolha pela comparação do preço para a mesma quantidade dos dois produtos (doce e compota).

Bruno escreve os números relacionados com a compota e com o doce tal como surgem na ilustração do enunciado (Figura 22). Depois, para descobrir um múltiplo comum a 400 e a 300 relaciona, sem explicitar, 400 com 4 e 300 com 3, e o seu registro 12 = 1200 g permite comprovar esta ideia. Considera os primeiros múltiplos naturais de 4 e de 3 e representa-os, incorretamente, sob a forma de dois conjuntos finitos (Figura 23), no qual o último elemento sublinhado em cada um é o mínimo múltiplo comum entre 4 e 3.

Figura 22
Os registros de Bruno na resolução e na resposta (T5-P1)
Figura 23
Conjuntos de múltiplos indicados por Bruno (T5-P1)

Para obter 1200 g de cada um dos produtos multiplica as quantidades iniciais por 3 e 4, respectivamente e, em simultâneo, o preço que estava indicado (1,96 € e 1,80 €). Representa o seu procedimento simbolicamente, com auxílio de arcos direcionados e legendados com ×3 e ×4. Desta forma, os preços obtidos referem-se à mesma quantidade dos dois produtos e, uma análise direta, permite a Bruno concluir qual é mais barato, tendo em conta a mesma quantidade e o pressuposto de que a qualidade é semelhante.

Em síntese, Bruno percebe que para escolher o mais barato, mesmo que sejam de qualidade semelhante, não basta comparar diretamente os preços indicados, uma vez que as quantidades dos dois produtos são diferentes. Para ultrapassar esta situação considera uma mesma quantidade dos dois produtos e compara os respectivos preços (Autoria própria, 2018). Utiliza relações numéricas que já conhece, como é o caso dos múltiplos de 3 e 4, que liga com os múltiplos de 300 e 400, respectivamente.

7 Conclusão

A sequência de tarefas apresentada permitiu uma primeira abordagem dos alunos, concretamente de Bruno, à comparação multiplicativa através dos conceitos de razão e de proporção. Consideradas como um recurso do processo de ensino e aprendizagem, as tarefas surgiram em contextos diversificados (grandezas discretas/contínuas; situações da vida real e situações meramente de cálculo) e proporcionaram a exploração de diversos tipos de representações: ativas (tiras de cartolina utilizadas como unidades, não padronizadas, de medida de comprimento), icônicas e simbólicas (tabelas de razões, linhas numéricas duplas, razões sob a forma de fração ou de quociente).

A análise das resoluções escritas e dos diálogos com a professora, evidencia que, ao longo das cinco tarefas propostas, Bruno altera o seu raciocínio, de aditivo para multiplicativo, e, como tal, as suas estratégias de resolução aditivas, baseadas na adição de parcelas iguais, são substituídas por estratégias multiplicativas, em que a ideia chave é utilizar as operações multiplicação ou a divisão de números maioritariamente inteiros.

No final, para Bruno as relações de comparação multiplicativa entre quantidades de dois campos de medida (ou grandezas) mantêm-se quando ambas são multiplicadas ou divididas por um mesmo fator (preferencialmente um número inteiro positivo), evidenciando uma fase referida por Freudenthal (2002)FREUDENTHAL, H. Didactical Phenomenology of Mathematical Structures. New York: Kluwer Academic Publishers, 2002.. Para além da aplicação algorítmica das operações (no início), Bruno evidencia conhecimento de relações numéricas básicas e o olhar de uma certa forma para os números, permite-lhe ir construindo e adaptando as suas estratégias de cálculo, aspecto mencionado por Threlfall (2009)THRELFALL, J. Strategies and flexibility in mental calculation. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 541-555, 2009..

Decompõe números não inteiros, representados sob a forma decimal, na sua parte inteira e decimal; relaciona números com os seus múltiplos e divisores; aplica propriedades das operações: comutativa da multiplicação e distributiva da multiplicação em relação à adição.

Bruno evidencia, deste modo, flexibilidade de cálculo tal como Rathgeb-Schnierer e Green (2013)RATHGEB-SCHNIERER, E.; GREEN, M. Flexibility in mental calculation in elementary students from different math classes. In: UBUZ, B.; HASER, Ç.; MARIOTTI, M. A. (Ed.). CONGRESS OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 8., 2013, Ankara. Proceedings of the Eighth Congress of the European Society for Research in Mathematics Education. Ankara: Middle East Technical University, 2013. p. 353-362. especificam para o cálculo mental. As representações utilizadas por Bruno são maioritariamente simbólicas e a linha numérica dupla com apenas dois pontos, vai-se tornando dominante como um recurso para a interpretação dos procedimentos. Este tipo de representação está de acordo com o que Greer (1992)GREER, B. Multiplication and Division as Models of Situations. In: GROUWS, D. A. (Ed.). Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning. New York: MacMillan, 1992. p. 276-295. indica como característica da comparação multiplicativa. Bruno escolhe a representação de um número racional (sob a forma de fração, de numeral decimal ou numeral misto) que, na sua opinião, mais se adapta ao cálculo a efetuar.

O quadro 2 resume a evolução conceitual de Bruno na exploração de tarefas que envolvem a comparação multiplicativa, colocando-o, nesta etapa do seu percurso de aprendizagem, na ligação entre fator multiplicativo e razão escalar. Evidencia a validação do quadro conceitual teórico adotado inicialmente, ampliando e/ou concretizando algumas relações de adaptabilidade/flexibilidade, ilustradas pelas setas verticais e horizontais (assinaladas com 1 no quadro anterior).

Quadro 2
Evolução conceptual da comparação multiplicativa, evidenciada por Bruno
  • 1
    Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).
  • 2
    Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).
  • 3
    Cada grupo tinha à sua disposição uma coleção de imagens identificadas por ORIGINAL, A, B, C e D.
  • 4
    Conceção da tarefa: Jean Marie Kraemer, 2015 (Projeto Pensamento numérico e cálculo flexível: Aspectos críticos).
  • 5
    Adaptado de Using Proportional Reasoning in Mathematics Assessment Project (2015). University of Nottingham & UC Berkeley.
  • 6
    Adaptado de van Galen et al. (2008)VAN GALEN, F. et al. Fractions, Percentages, Decimals and Proportions. Rotterdam: Sense Publishers, 2008.. Fractions, Percentages, Decimals and Proportions. Rotterdam: Sense Publishers.

Referências

  • BERK, D. et al. Developing Prospective Elementary Teachers’ Flexibility in the domain of Proportional Reasoning. Mathematical Thinking and Learning, Philadelphia, v. 11, p. 113-135, 2009.
  • BRUNER, J. S. The course of cognitive growth. American Psychologist, Washington, v. 19, p. 1-15, 1964.
  • COBB, P. et al. Design experiments in education research. Educational Researcher, Washington, v. 32, n. 1, p. 9-13, 2003.
  • CRAMER, K.; POST, T. Making connections: A case for proportionality. Arithmetic Teacher, Reston, v. 40, n. 6, p. 342-346, 1993.
  • FREUDENTHAL, H. Didactical Phenomenology of Mathematical Structures New York: Kluwer Academic Publishers, 2002.
  • GRAVEMEIJER, K.; COBB, P. Design research from a learning design perspective. In: AKKER, J. van den et al. (Ed.). Educational Design Research London: Routledge, 2006. p. 17-51.
  • GRAY, E. M.; TALL, D. O. Duality, Ambiguity and Flexibility: A Proceptual View of Simple Arithmetic. The Journal for Research in Mathematics Education, Reston, v. 26, n. 2, p. 115-141, 1994.
  • GREER, B. Multiplication and Division as Models of Situations. In: GROUWS, D. A. (Ed.). Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning New York: MacMillan, 1992. p. 276-295.
  • KILPATRICK, J.; SWAFFORD, J.; FINDELL, B. Adding it up: Helping children learn mathematics Washington, DC: National Academy Press, 2001.
  • LAMON, S. Rational Numbers and Proportional Reasoning - Towards a Theoretical Framework for Research. In: LESTER, F. (Ed.). Second Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics (NCTM), 2007. p. 629-667.
  • LONG, C.; DUNNE T.; CRAIG, T. S. Proficiency in the multiplicative conceptual field: using Rasch measurement to identify levels of competence. African Journal of Research in MST Education, UK, v. 14, n. 3, p. 79-91, 2010.
  • NCTM. Princípios e Normas para a Matemática Escolar Lisboa: APM (versão portuguesa), 2007.
  • NCTM. Developing Essential Understanding of Ratios, Proportions, and Proportional Reasoning for Teaching Mathematics in Grades 6-8 Reston: NCTM, 2010.
  • PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In GTI (Ed). O professor e o desenvolvimento curricular Lisboa: APM, 2005. p. 11-34.
  • RATHGEB-SCHNIERER, E.; GREEN, M. Flexibility in mental calculation in elementary students from different math classes. In: UBUZ, B.; HASER, Ç.; MARIOTTI, M. A. (Ed.). CONGRESS OF THE EUROPEAN SOCIETY FOR RESEARCH IN MATHEMATICS EDUCATION, 8., 2013, Ankara. Proceedings of the Eighth Congress of the European Society for Research in Mathematics Education Ankara: Middle East Technical University, 2013. p. 353-362.
  • RITTLE-JOHNSON, B.; STAR, J. R. Does Comparing Solution Methods Facilitate Conceptual and Procedural Knowledge? An Experimental Study on Learning to Solve Equations. Journal of Educational Psychology, Washington, v. 99, n. 3, p. 561-574, 2007.
  • ROBINSON, K.; LEFEVRE, J-A. The inverse relation between multiplication and division: Concepts, procedures, and a cognitive framework. Educational Studies in Mathematics, NL, v. 79, n. 3, p. 409-428, 2012.
  • SELTER, C. Creativity, flexibility, adaptivity, and strategy use in mathematics. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 619-625, 2009.
  • SFARD, A. On the dual nature of mathematical conceptions: reflections on processes and objects as different sides of the same coin. Educational Studies in Mathematics, NL, v. 22, n. 1, p. 1-36, 1991.
  • SOWDER, J. Estimation and Number Sense. In: GROUWS, D. A. (Ed). Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning New York: MacMillan, 1992. p. 371-389.
  • STAR, J. R.; NEWTON, K. J. The nature and development of experts’ strategy flexibility for solving equations. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 557-567, 2009.
  • THOMAS, N. D.; MULLIGAN, J. T.; GOLDIN, G. A. Children's representation and structural development of the counting sequence 1-100. Journal of Mathematical Behaviour, UK, v. 21, p 117-133, 2002.
  • THOMPSON, P. W. The development of the concept of speed and its relationship to concepts of rate. In: HAREL, G.; CONFREY, J. (Ed). The development of multiplicative reasoning in the learning of mathematics Albany, NY: SUNY Press, 1994. p. 181-234.
  • THOMPSON, P. W.; SALDANHA, L. A. Fractions and Multiplicative Reasoning. In: KILPATRICK, J.; MARTIN, G.; SCHIFTER, D. (Ed). Research Companion to the Principles and Standards for School Mathematics Reston, VA: NCTM, 2003. p. 95-114.
  • THRELFALL, J. Strategies and flexibility in mental calculation. ZDM Mathematics Education, Eggenstein-Leopoldshafen, v. 41, n. 5, p. 541-555, 2009.
  • VAN GALEN, F. et al. Fractions, Percentages, Decimals and Proportions Rotterdam: Sense Publishers, 2008.
  • VERSCHAFFEL, L. et al. Conceptualizing, investigating, and enhancing adaptive expertise in elementary mathematics education. European Journal of Psychology of Education, Lisboa, v. XXIV, n. 3, p. 335-359, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2018
  • Aceito
    17 Dez 2018
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com