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Um Percurso de Estudo e Pesquisa para o Ensino de Cônicas no Ensino Médio: condições e restrições que incidem sobre sua implementação

A Study and Research Path to Teach Conics in High School: conditions and constraints that affect its implementation

Resumo

Neste trabalho apresentamos um estudo das condições e restrições que incidem sobre um percurso de estudo e pesquisa (PEP) ao utilizá-lo para o ensino de cônicas (parábola, elipse e hipérbole) a um grupo de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio de Itabaiana/Sergipe/Brasil. A pesquisa seguiu a metodologia da teoria antropológica do didático que é baseada em princípios da Engenharia Didática e que possui quatro fases. Na primeira foram desenvolvidos os estudos epistemológico e econômico, na segunda realizamos a análise a priori e o planejamento do PEP, que foi experimentado na terceira fase e, por fim, na quarta, realizamos a análise a posteriori do experimento vivido. O planejamento, a construção e a gestão do PEP em sala de aula tiveram como base um modelo epistemológico de referência (MER) a respeito de cônicas, que mostra o estudo desse objeto em três modelos de geometria: sintética, analítica e linear. Os resultados apontam para um conjunto de condições e restrições, originadas do modelo de ensino atual, em que a instituição cobra do professor o cumprimento do conteúdo em determinado prazo; em que os alunos, não habituados com um dispositivo didático baseado em uma investigação, apresentam dificuldades no processo de elaboração de questões, no uso de fontes confiáveis de pesquisa na Internet, na falta de critérios para validar os conteúdos encontrados e no trabalho com elementos da geometria sintética.

Percurso de estudo e pesquisa; Estudo ecológico; TAD; Cônicas

Abstract

In this work, we present a study of the conditions and constraints that affect a study and research path (SRP) when using it to teach conics (parabola, ellipse, and hyperbola) with a group of third-year High School students of Itabaiana/Sergipe/Brazil. The research followed the anthropological didactic theory methodology, which is based on the principles of didactical engineering and has four steps. In the first one, we developed epistemological and economic studies, in the second one we carried out the a priori analysis and the design of the SRP, which was implemented in the third step and, finally, the last one corresponds to the a posteriori analysis of the implementation. The design and management of the SRP were based on a reference epistemological model (REM), that shows conics present in three geometry models: synthetic, analytical, and linear. The results point to a set of conditions and constraints originated from the current teaching paradigm, in which the institution requires the teacher to comply with the content within a certain period; in which students, who are not used to classes based on inquiries, present difficulties in the process of elaborating questions, the use of reliable research sources, finding criteria to validate contents found on the internet, and when they work with synthetic geometry.

Palabras clave: Study and research path; Ecological study; ATD; Conics

1 Introdução

Este trabalho é um recorte de uma tese de doutorado desenvolvida sob o marco teórico da Teoria Antropológica do Didático (TAD) e tem como principal objetivo apresentar as condições e restrições manifestadas com o uso de um percurso de estudo e pesquisa (PEP), durante um experimento com um grupo de seis alunos do terceiro ano do Ensino Médio (17 ou 18 anos), que teve duração de seis horas divididas em três encontros. O experimento ocorreu em uma escola pública na cidade de Itabaiana, estado de Sergipe, Brasil.

Esse tipo de questionamento (quais condições e restrições para a implementação de determinado dispositivo ou que interferem na evolução de um sistema didático ) tem sido utilizado em inúmeras pesquisas com a TAD. Estas pesquisas são denominadas estudos ecológicos e buscam, além de identificar condições e restrições, desenvolver dispositivos para estudar a transição do paradigma de visita às obras para o paradigma de questionamento do mundo. Mais informações sobre esse tipo de investigação e sobre o paradigma de questionamento do mundo podem ser encontradas em Barquero, Bosch e Gascón (2013)BARQUERO, B.; BOSCH, M.; GASCÓN, J. The ecological dimension in the teaching of mathematical modelling at university. Recherches en Didactiques des Mathématiques, Grenoble, v. 33, n. 3, p. 307-338, 2013. , Licera (2017)LICERA, R. M. Economía y ecología de los números reales en la Enseñanza Secundaria y la Formación del profesorado. 2017. Tese (Doutorado em Didática da Matemática) – Facultad de Ciencias, Instituto de Matemáticas, Pontificia Universidad Católica de Valparaiso, Valparaiso, 2017. , Bosch (2018)BOSCH, M. Study and Research Paths: a model for inquiry. En B. Sirakov, P. N. De Souza & M. Viana (Eds.), International Congress of Mathematicians, v. 3, p. 4001-4022. Rio de Janeiro: World Scientific Publishing Co, 2018 , Barquero, Bosch e Romo (2018)BARQUERO, B.; BOSCH, M. A Engenharia Didática como metodologia de pesquisa: de situações fundamentais a percursos de estudos e pesquisas. In: . Saddo Ag Almouloud, Luiz Marcio Santos Farias, Afonso Henriques (org.). A Teoria Antropológica do Didático: princípios e fundamentos. 1.ed., Curitiba, PR: CRV, 2018. p. 275-304. , Benito (2019)BENITO, R. N. Construção de um Percurso de Estudo e Pesquisa para Formação de Professores: o ensino de cônicas. 2019. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22544.
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/225...
, Santos Júnior, Dias e Bosch (2019)SANTOS JÚNIOR, V. B.; DIAS, M. A.; BOSCH, M. Um percurso de estudo e pesquisa para o estudo das noções de juros simples e compostos. Bolema, Rio Claro, v. 33, p. 327-347, 2019. , entre outros.

Logo após esta introdução, apresentamos as noções da TAD utilizadas nesta pesquisa, de que forma foram aplicadas em nosso contexto e a problematização que iremos tratar. Depois descrevemos a metodologia de investigação seguida das análises do experimento. Por último formulamos as considerações finais e algumas propostas para superar as restrições encontradas.

2 Referencial teórico e problematização

Na TAD, tanto as atividades humanas, quanto o conhecimento que elas transmitem e produzem são descritos em termos de praxeologias ( CHEVALLARD, 1999CHEVALLARD, Y. El análisis de las prácticas docentes en la teoría antropológica de lo didáctico. Recherches en Dicactique des Mathématiques, Grenoble: La Pensée Sauvage, v. 19, n. 2, p. 221-266, 1999. ). As praxeologias são compostas de tipos de tarefas e técnicas que compõem a praxis , e de tecnologias e teorias que compõem seus logos . Segundo Chevallard (2013)CHEVALLARD, Y. Enseñar Matemáticas en la Sociedad de Mañana: Alegato a favor de un Contraparadigma Emergente. Journal of Research in Mathematics Education, Danvers, v. 2, n. 2, p. 161-182, 2013. , um sistema didático 𝑆(𝑋; 𝑌; ℘) é formado por um conjunto 𝑋 de pessoas interessadas em estudar uma determinada praxeologia ℘ auxiliadas por um conjunto 𝑌 de pessoas (professores, instrutores etc.). Essa notação de sistema didático nos possibilita representar diversas situações em que há o estudo de um tema, obra, tarefa ou de uma técnica. Por exemplo, usamos 𝑆(𝑥, 𝑦, {℘𝑖}) quando um aluno 𝑥 ∈ 𝑋 tem ajuda de um professor 𝑦 ∈ 𝑌 para o estudo de um conjunto de praxeologias {℘𝑖}; outro caso pode ser 𝑆(𝑥1, 𝑥2, 𝜏) em que um estudante 𝑥1 estuda com outro estudante 𝑥2 uma determinada técnica 𝜏 para resolver alguma tarefa.

A TAD, por meio de estudos que buscam identificar as relações das instituições (escolas, universidades etc.) ou sujeitos (professores, alunos etc.) com o saber, tem afirmado que vivemos em um paradigma de ensino em que o objetivo das instituições é ensinar obras – praxeologias – que estão bem definidas e delimitadas, isto é, as escolas se preocupam em trabalhar conteúdos (funções, logaritmos, pronomes, capitanias hereditárias, matrizes etc.) conhecidos e legitimados pelas instituições de ensino. Entretanto nem os professores e até mesmo a sociedade questionam por quais motivos esses conteúdos estão no currículo escolar ou porque devem ser ensinados. Por outro lado, o papel do estudante, neste modelo de ensino, fica restrito a responder questões elaboradas pelo professor ou pelo livro didático/livro texto, com poucas chances de concentrar seus esforços para elaborar e responder suas próprias questões. Estas são algumas características do paradigma de ensino vigente que é denominado pela TAD como paradigma de visita às obras (PVO) .

O papel desenvolvido pelo professor, durante uma aula no PVO, pode ser comparado a um guia turístico, que apresenta uma obra já feita e acabada aos seus turistas (alunos) que, por sua vez, só apreciam sua importância sem necessidade de questionar para que serve aquele monumento ou o que ele pode acrescentar à sua vida, tampouco por qual razão devem estudar aquele tema. A esse fenômeno didático a TAD denomina monumentalismo .

Chevallard (2013)CHEVALLARD, Y. Enseñar Matemáticas en la Sociedad de Mañana: Alegato a favor de un Contraparadigma Emergente. Journal of Research in Mathematics Education, Danvers, v. 2, n. 2, p. 161-182, 2013. afirma que o paradigma de visita às obras está com seus dias contados e propõe um modelo mais amplo em que as obras (ou praxeologias) continuem sendo visitadas, sem o papel de “protagonistas” do sistema didático 𝑆(𝑋; 𝑌; ℘), mas que sejam usadas como ferramentas necessárias para o estudo de questões elaboradas pelos estudantes. Nessa mudança de foco não estudamos obras somente pelas obras, mas para responder uma questão; o currículo organizado por questões e não por obras/temas é a principal característica do paradigma de questionamento do mundo (PQM) , que passa a ter os sistemas didáticos representados como 𝑆(𝑋, 𝑌, 𝑄): 𝑋: um grupo de estudantes, 𝑌 um grupo de professores e 𝑄 uma questão.

Para estudar as condições que possibilitam fazer viver o PQM nas instituições, a TAD criou um dispositivo didático chamado percurso de estudo e pesquisa (PEP), que se caracteriza por ser uma estratégia de ensino baseada em um processo de investigação ( inquiry-based learning ). Em uma aula com o dispositivo do PEP, professor e estudantes jogam o papel de investigadores de uma questão de pesquisa ou questão inicial/questão geratriz 𝑄0. No caso deste trabalho, foi o investigador/professor que propôs discutir as cônicas (parábola, elipse e hipérbole) considerando como questão inicial 𝑄0: como construir um fogão solar utilizando uma antena parabólica?

A ideia de construir um fogão solar surgiu da possibilidade de investigarmos o aproveitamento de uma antena parabólica para captar os raios do sol e esquentar uma panela, localizada no foco do paraboloide, que apesar de ser uma quádrica, pode ser visto como a união de infinitas parábolas de mesmo vértice e mesma reta diretriz. Esse problema foi bem aceito pelos alunos, a princípio, por curiosidade e foi inspirado no trabalho de Otero, Llanos e Parra (2018)OTERO, M. R; LLANOS, V. C.; PARRA, V. Training in-service teachers: study of questions and the organization of teaching. In: congrès international sur la Théorie Anthropologique du Didactique, 6., 2018, Grenoble, 2018. p. 118-130 , que discutiram a questão “Como funciona uma antena parabólica?” durante um curso de formação inicial para professores de Matemática na Argentina. Além disso, no desdobramento dessa questão inicial encontramos a possibilidade de estudar o contexto da geometria sintética e trabalhar com elementos presentes no estudo das cônicas como lugar geométrico, distância entre ponto e reta, retas paralelas, retas perpendiculares etc., além de fornecer condições favoráveis para introduzir o contexto da geometria analítica com uma razão de ser, para suprir a insuficiência da geometria sintética em resolver determinados problemas ( GASCÓN, 2002GASCÓN, J. Geometría sintética em la ESO y analítica en el Bachillerato. ¿Dos mundos completamente separados? SUMA, Barcelona, v. 39, p. 13-25, 2002. ).

No ensino com o uso do PEP, após o entendimento de uma questão inicial, 𝑄0, os estudantes com a ajuda do professor elaboram questões derivadas 𝑄1, 𝑄2, ⋯ , 𝑄𝑘, que necessitam de conhecimentos, muitas vezes encontrados em obras 𝑂𝑗 - em que o símbolo ◇ representa uma etiqueta com o nome da obra (matrizes, função quadrática, logaritmos...) -, que devem ser visitadas, estudadas e entendidas para elaboração das respostas 𝑅1, 𝑅2, ⋯ , 𝑅𝑘 a essas questões. Durante esse processo os alunos já constroem conhecimentos, que podem conduzi-los a elaborar novas questões derivadas 𝑄11, 𝑄12, 𝑄21, ⋯ , 𝑄𝑘𝑛 que, por sua vez, requerem visitas a outras obras. Este processo de estudo segue até a construção da resposta final, 𝑅, para 𝑄0 – o coração indica que essa resposta é o principal objetivo dos estudos – que deve ser apresentada, discutida e validada por todos os participantes do PEP. O processo seguido desde a consideração de uma questão inicial 𝑄0 até a produção de uma resposta final é conhecido como esquema hebartiano e representado por [𝑆(𝑋; 𝑌; 𝑄0) ↷ 𝑀] ↪ 𝑅 Neste processo, M é o meio do sistema didático 𝑆(𝑋, 𝑌, 𝑄0) que contém todos os elementos disponíveis para 𝑋 e 𝑌 elaborarem a resposta 𝑅, bem como aqueles que vão se integrando durante o processo de estudo e pesquisa.

Pesquisadores de diversos países que trabalham com a TAD, em instituições de ensino de todos os níveis, têm experimentado diversos tipos de PEP para investigar a ecologia deste dispositivo, isto é, encontrar as condições que devem ser aceitas e as restrições que incidem sobre essa evolução nessas instituições.

Diante do que foi apresentado, enunciamos a questão de pesquisa que buscamos responder neste artigo: quais as condições e restrições que incidem sobre o uso do dispositivo do percurso de estudo e pesquisa para o ensino de cônicas (parábola, elipse e hipérbole) para um grupo de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio? A resposta para essa questão será encontrada analisando a evolução do sistema 𝑆(𝑋, 𝑌, 𝑄0) baseada no esquema hebartiano desenvolvido por Chevallard.

Para que um sistema didático 𝑆(𝑋, 𝑌, 𝑄0) construa uma resposta 𝑅 para essa 𝑄0, um meio didático M é criado na medida em que o PEP se desenvolve baseado em questões derivadas 𝑄𝑘 e suas respectivas respostas 𝑅𝑛, em obras que são visitadas durante o estudo e dados empíricos 𝐷𝑚 a respeito da questão inicial. Esse processo é representado pelo esquema hebartiano estendido representado por [(𝑋; 𝑌; 𝑄0) ↷ {𝑄𝑘, 𝑅𝑛 , 𝑂𝑗, 𝐷𝑚 }] ↪ 𝑅.

Para descrever, entender e analisar a evolução do meio M , durante as aulas em que é aplicado o PEP, e analisar sua ecologia, a TAD utiliza algumas dialéticas, em nosso caso utilizamos a cronogênese , a mesogênese e a topogênese , noções desenvolvidas por Chevallard que podem ser encontradas em Barquero e Bosch (2018)BARQUERO, B.; BOSCH, M. A Engenharia Didática como metodologia de pesquisa: de situações fundamentais a percursos de estudos e pesquisas. In: . Saddo Ag Almouloud, Luiz Marcio Santos Farias, Afonso Henriques (org.). A Teoria Antropológica do Didático: princípios e fundamentos. 1.ed., Curitiba, PR: CRV, 2018. p. 275-304. , Benito (2019)BENITO, R. N. Construção de um Percurso de Estudo e Pesquisa para Formação de Professores: o ensino de cônicas. 2019. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22544.
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, Benito e Bosch (2021)BENITO, R. N.; BOSCH, M. Descripción y análisis de un recorrido de estudio e investigación en geometría. Caminhos da Educação Matemática em Revista, v. 11, n. 1, p. 78-104, 2021. , Bosch (2018)BOSCH, M. Study and Research Paths: a model for inquiry. En B. Sirakov, P. N. De Souza & M. Viana (Eds.), International Congress of Mathematicians, v. 3, p. 4001-4022. Rio de Janeiro: World Scientific Publishing Co, 2018 , Llanos e Otero (2017)LLANOS, V. C.; OTERO, M. R. Caractérisation des fonctions didactiques Topogenèse, Mésogenèse et Chronogènese dans um Parcours d’Étude et Recherche (PER) monodisciplinaire dans l’École Secondarie. JIEEM, São Paulo, v. 10, n. 3, p. 220-227, 2017. .

Na cronogênese ou dialética questão-resposta busca-se apresentar as questões e respostas desenvolvidas durante o experimento e de que forma se relacionam. A cronogênese é a primeira descrição do PEP, representada por um grafo de questões e respostas , com o objetivo de destacar determinados marcos dos caminhos percorridos pelos investigadores (𝑋 e 𝑌). Por meio deste grafo conseguimos visualizar, por exemplo, diferentes maneiras de organizar/agrupar o conteúdo estudado.

A dialética mesogênese cuida do avanço do milieu ou meio, da interação entre as mídias usadas para buscar respostas/novos conhecimentos e o meio M . Chamada também de mídia-meio , permite analisar quais mídias são usadas pelos estudantes; quais critérios usam para considerar tanto a mídia, quanto as informações confiáveis e de que forma validam os conhecimentos encontrados ou as respostas produzidas pelo grupo. É também pela mesogênese que acompanhamos o processo de desconstrução e reconstrução de conhecimentos, durante a utilização, pelos estudantes, de conhecimentos disponíveis no meio, que podem ser manejados com certa segurança, para estudar, avaliar e construir novos conceitos.

Por último utilizamos a topogênese, a dialética coletivo-individual , que controla a divisão das responsabilidades de cada participante da aula para mostrar o que fazem os estudantes e o professor; quem formula e quem valida as questões; quem valida as respostas e as funções de cada estudante em seu grupo.

As últimas noções da TAD que apresentamos neste trabalho são as análises epistemológica e econômica ( GASCÓN, 2011GASCÓN, J. Las tres dimensiones fundamentales de un problema didáctico. El caso del álgebra elemental. Revista latinoamericana de investigación en matemática educativa, Cidade do México, v. 14, n. 2, p. 203-231, 2011. ). A primeira se centra no conteúdo matemático que se toma como objeto de estudo e propõe uma definição própria na forma de Modelo Epistemológico de Referência – MER ( BOSCH e GASCÓN, 2006BOSCH, M., GASCÓN, J. Twenty-five years of the didactic transposition. ICMI bulletin, 58(58), p. 51-65, 2006. ). Para isso, o investigador observa o objeto de um ponto de vista mais global, para distanciar-se das concepções dominantes que está acostumado a encontrar em livros didáticos, no currículo ou na Matemática sábia. O objetivo é explicitar uma perspectiva específica a respeito do conteúdo em questão que permita encontrar motivos para seu ensino, assim como as principais problemáticas em que pode estar inscrito e evidenciar funcionalidades ou razões de ser.

O MER deve ser construído para responder a perguntas como: o que é o conteúdo matemático considerado? Como está delimitado e como se define, tanto na instituição escolar como no saber sábio e nas instituições onde são utilizados? Por que ensiná-lo? Quais problemas matemáticos não poderiam ser resolvidos sem esse conteúdo? Com quais conteúdos se relaciona ou poderia se relacionar?

Cabe indicar que um MER é um modelo para a investigação, que se explicita para poder ser discutido, confrontado com os problemas que se abordam e, claro, modificado, desenvolvido ou adaptado às realidades que se propõe estudar. É, pois, um modelo em permanente estado de revisão.

A análise econômica, por sua vez, se ocupa das questões relacionadas com a gestão dos processos de ensino e de aprendizagem do conteúdo considerado. Requer, neste caso, situar-se em uma instituição concreta de ensino para estudar as condições que se propõe para seu ensino e aprendizagem, a forma de gerir tal conteúdo. A análise econômica requer um modelo epistemológico de referência para funcionar como ferramenta principal para a descrição da forma como o conteúdo “vive” ou “é tratado” na instituição de ensino considerada, assim como as formas alternativas que se poderiam implementar.

No caso deste trabalho foram feitas análises praxeológicas de como se trabalham as cônicas nos livros didáticos nos estados de São Paulo e Sergipe, o que nos permitiu identificar a geometria analítica como modelo predominante nestas instituições, assim como na instituição sábia.

Na próxima seção descrevemos a metodologia de investigação utilizada.

3 Metodologia de investigação

A metodologia de investigação deste trabalho foi baseada em princípios da Engenharia Didática, composta por quatro fases, segundo Barquero e Bosch (2018)BARQUERO, B.; BOSCH, M. A Engenharia Didática como metodologia de pesquisa: de situações fundamentais a percursos de estudos e pesquisas. In: . Saddo Ag Almouloud, Luiz Marcio Santos Farias, Afonso Henriques (org.). A Teoria Antropológica do Didático: princípios e fundamentos. 1.ed., Curitiba, PR: CRV, 2018. p. 275-304. . Na primeira, chamada de análise praxeológica, são desenvolvidos estudos a respeito do objeto matemático em jogo que, em nosso caso, foram o estudo epistemológico e o estudo econômico de cônicas.

Na segunda fase, foi realizada a análise a priori da proposta de ensino, isto é, um planejamento matemático e didático do PEP considerando os resultados obtidos com os estudos da primeira fase. Esta análise inclui a escolha da questão geratriz 𝑄0, o desenho do grafo de questões e respostas (cronogênese), descrição das mídias, das possíveis obras visitadas pelos estudantes (mesogênese), um planejamento das ações tomadas pelo professor/pesquisador e pelos alunos durante o experimento (topogênese).

O experimento e a análise in vivo ocorreram na terceira fase da metodologia, momento em que os dados da pesquisa foram recolhidos por meio de vídeos, gravação de áudio e anotações feitas pelos estudantes. Todo material recolhido foi transcrito e usado para análise.

Na última fase tivemos a análise a posteriori, quando confrontamos os dados recolhidos, durante o experimento, com aqueles desenvolvidos na análise a priori, utilizando as três dialéticas citadas. Esse confronto nos permitiu analisar a dinâmica da evolução do meio M do esquema hebartiano e identificar as condições e as restrições que afetam a evolução de um sistema didático, isto é, que incidem sobre a vida do PEP na instituição de ensino (estudo ecológico). A Figura 1 apresenta um esquema para a metodologia de pesquisa do trabalho.

Figura 1
– Metodologia de pesquisa

Baseados no exposto apresentamos, no que segue as análises do PEP experimentado.

4 Análises do PEP

O experimento foi realizado com um grupo de seis estudantes do terceiro ano do Ensino Médio (17 e 18 anos) do Colégio Estadual Murilo Braga, na cidade de Itabaiana, Sergipe Brasil, durante três encontros de 2 horas cada, que ocorreram na sala de informática do colégio, em dias alternados e no contraturno das aulas dos participantes. Os alunos foram informados do problema que iriam resolver e aceitaram participar da pesquisa como voluntários. O único professor presente nos três encontros foi um dos autores deste trabalho e o desempenho dos estudantes não foi avaliado pelo professor do colégio, tampouco foi oferecida alguma nota extra aos alunos que participaram.

Como resultado dos estudos da primeira fase foi construído um modelo epistemológico de referência (MER) para as cônicas, que nos serviu como “lente” para avaliarmos as organizações matemáticas presentes nos livros didáticos usados na instituição de ensino em que o PEP foi aplicado. O MER construído nos mostrou que as cônicas estão presentes em três modelos de geometria denominados modelo da geometria sintética (MS), modelo da geometria analítica (MA) e modelo da geometria linear (ML), cujos detalhes de construção podem ser encontrados em Benito (2019)BENITO, R. N. Construção de um Percurso de Estudo e Pesquisa para Formação de Professores: o ensino de cônicas. 2019. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22544.
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.

No modelo da geometria sintética as cônicas são estudadas, tanto no espaço, por meio dos cortes no cone (conhecidos como cortes de Apolônio); como no plano, baseadas na noção de lugar geométrico, sem utilização de um sistema referencial.

Para o modelo da geometria analítica, considerando um sistema referencial, as cônicas são definidas como curvas geradas a partir de pontos do plano que satisfazem uma equação do tipo ax2+bxy+cy2+dx+ey+f=0 , com ax2+cy20 . Por último, no modelo da geometria linear, as cônicas surgem como formas quadráticas no plano, isto é, um polinômio homogêneo do 2o grau em duas variáveis, p(x,y)=ax2+by2+2cxy , com a2+b20 , que pode ser associado à uma matriz simétrica do tipo a cc b como, por exemplo, o polinômio ax2+by2+2cxy que pode ser representado, nesse modelo, por x ya cc bxy .

O principal resultado do estudo econômico mostrou que a geometria analítica é o contexto predominante nos livros didáticos analisados, que usam a geometria sintética apenas para introduzir as cônicas, por meio de figuras que mostram os cortes de Apolônio, mas que são rapidamente substituídas pelas construções das equações reduzidas da parábola, da elipse e da hipérbole. Ao final da primeira fase, esses estudos preliminares indicaram a necessidade de uma atividade que abordasse as cônicas partindo do contexto da geometria sintética para mostrar uma razão para a passagem à geometria analítica.

Na segunda fase elaboramos a 𝑄0: como construir um fogão solar utilizando uma antena parabólica? Fizemos então sua análise a priori com base nas três dialéticas. Na dialética da cronogênese construímos um grafo, com possíveis questões e respostas que poderiam ser abordadas durante o experimento, que foram divididas em seis temas: forma do fogão; tempo de cozimento ou alimentos; posição da panela no fogão; materiais para construção; uso do fogão e posição de instalação do fogão. Na Figura 2 apresentamos as possíveis questões e seus respectivos estudos relacionados aos temas “forma (do fogão)”, “tempo de cozimento ou alimentos” e “posição da panela”. Pela figura, notamos que esses temas se relacionam pela propriedade reflexiva das cônicas e pela possibilidade de um fogão solar com duas bocas, o que exigiria uma quádrica com dois focos que conduz ao estudo das cônicas elipse e hipérbole. O caso do fogão em forma de uma caixa não foi aprofundado pelos alunos.

Figura 2
– Primeiro grafo de questão-resposta – análise a priori

Já na Figura 3 mostramos os desdobramentos para as questões relacionadas aos temas “materiais para construção”, “uso” e “posição de instalação do fogão” em que se destacou o último tema por impulsionar questões que permitem abordar a necessidade de rotacionar a antena parabólica, utilizada na construção do fogão, a fim de aproveitar a energia solar durante o maior tempo possível. Essas questões podem favorecer um estudo de translações e rotações da cônica e discussões a respeito de elementos matemáticos como forma quadrática, equação característica, autovalor e autovetor que, normalmente, são trabalhados em cursos de formação inicial de professores de Matemática, mas não no ensino básico brasileiro.

Figura 3
– Segundo mapa de questão-resposta – análise a priori

Para a dialética da cronogênese, olhando para o grafo de questões e respostas produzido pelos estudantes, buscamos responder as seguintes perguntas: quais questões estavam previstas por nossa análise a priori ? Quais não estavam? Por qual razão não foram enunciadas? As não previstas permitiram trabalhar algum conteúdo matemático? Qual? Quais questões previstas não surgiram durante o experimento? Por quê? Quais questões não foram respondidas? Por quê? Quais questões foram elaboradas pelo professor de uma forma monumentalista ? Para responder essas perguntas analisamos as questões coletadas agrupadas pelos temas já definidos. As questões e respostas, escritas pelos estudantes, para este trabalho receberam apenas correções ortográficas. Para o tema “forma do fogão” a turma elaborou três questões ( Quadro 1 ), nenhuma prevista em nossa análise a priori , que estão identificadas pela letra Q acompanhada de sua respectiva numeração e da letra F para indicar que pertence ao tema “forma do fogão”. Da mesma maneira identificamos as respostas R e os demais temas.

Quadro 1
Questões do 1º PEP referentes à forma do fogão

Nenhuma das três questões estava prevista em nossas análises e tampouco provocaram discussões a respeito de algum conteúdo matemático. Não houve resposta para 𝑄2𝐹, , fato que acreditamos estar relacionado às pouquíssimas pesquisas encontradas capazes de fornecer informações técnicas a respeito das variáveis envolvidas, que é uma consequência da dialética mídia-meio.

Já o Quadro 2 mostra que o tema “posição da panela no fogão” proporcionou estudos a respeito da definição de parábola por lugar geométrico e seus elementos como foco, reta diretriz e eixo de simetria, além de uma discussão para a possibilidade de se construir um paraboloide sem ter inicialmente a posição de seu foco. O destaque foi a questão 𝑄3𝑃𝑃 que mostra, explicitamente, a predominância da geometria analítica na formação desses estudantes, quando buscam por uma equação da parábola em que, supostamente, encontrariam os dados para a localização de seu foco. Essa questão foi enunciada no final do último dia de experimento e por isso não foi possível explorar e avançar nos estudos da parábola na geometria analítica com esse grupo de alunos.

Quadro 2
Questões do 1º PEP relacionadas à posição da panela no fogão.

Apesar dos estudos relacionados ao tema “posição da panela no fogão”, a turma não elaborou questões que tratassem da possibilidade de um fogão solar com duas bocas, o que viabilizaria um estudo para as cônicas com dois focos: elipse e hipérbole. O professor poderia implementar questionamentos nessa direção para explorar os estudos dessas cônicas, mas não foram feitos também por conta do pouco tempo disponível.

Para o tema “posição de instalação do fogão” (ver Quadro 3 ) foram elaboradas três questões em que duas 𝑄2𝑃𝐹 e 𝑄3𝑃𝐹 não estavam previstas por nossa análise a priori, mas que contribuíram para o estudo e a demonstração da propriedade reflexiva da parábola.

Quadro 3
Questões do 1º PEP relacionadas à posição de instalação do fogão

Destacamos o enunciado da terceira questão que mostra uma certa confusão entre plano e plano cartesiano, uma vez que não trabalhávamos com nenhum sistema referencial, além disso os alunos usaram a palavra “raiz”, um termo associado ao estudo de função e equação, o que nos remete ao trabalho de Silva (2011)SILVA, M. B. Secções cônicas: atividades com geometria dinâmica com base no currículo do Estado de São Paulo. 2011. 155f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. , quando a autora observa que livros didáticos tratam a parábola, predominantemente, como representação gráfica de funções quadráticas, fato que pode contribuir para lacunas na formação epistemológica deste objeto matemático por parte dos estudantes.

A questão 𝑄1𝑃𝐹, apesar de não respondida, tem potencial para estudos a respeito da movimentação da antena de forma a acompanhar o movimento da Terra em relação ao Sol que, por sua vez, permitiria trabalhar com rotação e/ou translação de cônicas de forma que os estudos avançassem na direção da geometria linear, como definida em nosso MER.

A turma elaborou três questões para o tema “materiais para construção”, com uma delas não prevista em nossas análises anteriores, que tratava das possíveis formas de potencializar o rendimento energético do fogão. Já as questões previstas abordaram a possibilidade de utilizar materiais recicláveis para a construção do fogão solar e as ferramentas utilizadas em sua construção que não possibilitaram qualquer estudo de conteúdos matemáticos. Por último, os temas “uso” e “tempo de cozimento e alimentos” não trouxeram questões previstas em nossa análise e tampouco favoreceram o desenvolvimento de estudos relacionadas às cônicas, o que é natural no paradigma de questionamento do mundo.

Houve questões previstas em nossa análise a priori que não foram elaboradas pelos estudantes, fato que acreditamos ser decorrente do pouco tempo disponível para o experimento, entretanto sentimos que o maior responsável pela dificuldade dos alunos em elaborar questões foi o paradigma de visita às obras. Efetivamente, no modelo de ensino vigente é normal os estudantes passarem toda sua vida escolar sem desenvolver o hábito de questionar o motivo de visitar uma obra ou de estudar determinado conteúdo, tampouco o de expor suas dúvidas sobre a Matemática apresentada durante as aulas e, no caso particular dos estudantes participantes, este experimento foi o primeiro contato com uma estratégia de ensino baseada em investigação.

Na dialética mesogênese, a priori , consideramos que as diferentes fontes de pesquisa, durante o PEP, seriam a biblioteca da escola, os colegas de classe (que podem ser consultados durante o experimento), os cadernos de anotações e o próprio professor. Quanto às obras que poderiam ser estudadas, durante a elaboração de questões derivadas da 𝑄0, previmos que estariam inseridas em temas como geometria sintética (plana ou espacial), geometria analítica plana e espacial, cônicas, quádricas, condução térmica, meio ambiente, resistência dos materiais etc.

A posteriori , para a dialética da mesogênese, todas as mídias utilizadas pelos estudantes estavam previstas em nossas análises, com destaque para a Internet que foi a principal fonte de pesquisa, embora tenham mostrado falta de critérios para selecionar arquivos que fossem confiáveis, trazendo textos aleatórios com informações duvidosas ou parcialmente equivocadas para as discussões do grupo. As obras visitadas permitiram os estudos de conteúdos inseridos em temas da geometria sintética plana e da parábola.

Na dialética topogênese esperávamos, a priori , que o professor/investigador, após dividir os estudantes em grupos, apresentasse a questão geratriz e os dados iniciais, explicasse a dinâmica das aulas durante o experimento, gerenciasse as questões elaboradas pelos estudantes, verificasse a confiabilidade das fontes usadas pelos estudantes e ajudasse na validação das respostas encontradas. Por parte dos estudantes, esperávamos que respondessem à questão geratriz e, para isso, elaborassem novas questões, buscassem suas respostas, participassem da validação das respostas encontradas e compartilhassem esses dados entre todos os colegas de sala.

A posteriori , nessa dialética do coletivo-individual, observamos que os estudantes, trabalhando em grupo, cumpriram o previsto, enquanto o professor, além do previsto, orientou os alunos a buscarem a confiabilidade das fontes utilizadas, incentivou o compartilhamento das informações entre todos os grupos e enunciou uma única questão para possibilitar a demonstração da propriedade reflexiva da parábola. A restrição diagnosticada nessas ações foi a má divisão das tarefas entre os integrantes dos grupos e a falta de objetivo no processo de elaboração das questões que resultou na produção de questões que pouco colaboraram na busca pela resposta 𝑅.

Por tratar-se de um experimento não-institucional, isto é, não desenvolvido sob orientações da escola, em que o professor não precisasse cumprir certo conteúdo durante determinado tempo, nossa pesquisa não encontrou nenhuma condição institucional que afetasse o desenvolvimento do PEP. Entretanto, podemos afirmar que, em geral, o tempo disponível para trabalhar o conteúdo de cônicas no modelo de ensino tradicional não seria suficiente para visitar todas as obras necessárias para responder às questões que surgiram após o enunciado de 𝑄0, considerando que teríamos questões inseridas nos três modelos de geometria citados em nosso MER.

Além disso, quando olhamos para os alunos identificamos falta de conhecimentos de geometria sintética, o que pode ser visto como uma dificuldade para a elaboração de respostas a determinadas questões (vide o caso de 𝑄3𝐹𝑃) e até mesmo para o estudo de obras inseridas nesse contexto. No entanto, entendemos que os três modelos não podem ter suas obras visitadas apenas neste PEP, pois os alunos poderiam apresentar como conhecimentos mobilizáveis os referentes à geometria sintética e matrizes cujas obras seriam visitadas em anos escolares anteriores, o que resolveria a questão do tempo para o PEP aqui apresentado.

O fato de encontrarmos condições e restrições a esse dispositivo didático nos conduz a apresentar nossas considerações finais, apresentando algumas sugestões que acreditamos permitam superá-las, no que segue.

5 Considerações finais

Para o desenvolvimento do percurso de estudo e pesquisa (PEP) que teve como objetivo responder a questão 𝑄0: como construir um fogão solar utilizando uma antena parabólica, e de toda investigação nos baseamos na TAD para nos fornecer os elementos teóricos e metodológicos necessários para identificar condições e restrições que podem incidir no funcionamento deste dispositivo em instituições de ensino, ou seja, estudar sua ecologia.

A estratégia de ensino baseada em uma questão geratriz cuja resposta deve ser investigada permitiu aos alunos determinar um percurso de estudo por meio de questões elaboradas por eles, que trouxeram razão para o estudo dos conteúdos matemáticos trabalhados durante a produção de suas respostas. De fato, em uma aula convencional, em geral, os professores apresentam respostas para quem não elaborou perguntas, o que não deve ocorrer nesta proposta de ensino baseada no paradigma de questionamento do mundo.

Identificamos que alguns cuidados devem ser tomados para a elaboração da questão geratriz 𝑄0, pois deve ser clara, direta, alinhada com o MER e que, minimamente, possa estimular a curiosidade dos alunos. Em nosso caso, a 𝑄0 proporcionou um estudo da parábola no contexto da geometria sintética, mas também mostrou potencial para que fossem exploradas as demais cônicas, além do trabalho com alguns elementos da geometria plana como a definição de parábola por lugar geométrico, perpendicularidade e paralelismo de retas, propriedade reflexiva da parábola; reta diretriz, foco e eixo de simetria da parábola, entre outros. Trata-se de componentes de um contexto bastante esquecido pelos livros didáticos e que, quando encontrado, aparece de forma muito superficial rapidamente substituído pelo contexto da geometria analítica. Os reflexos deste fenômeno puderam ser vistos, com clareza, pela confusão e falta de percepção, dos participantes, quando buscavam por equações e por “raízes” para resolver determinadas questões elaboradas no contexto da geometria sintética. A questão geratriz também mostrou potencialidade para explorar o modelo da geometria analítica e o modelo da geometria linear, mas que não foram estudados devido à curta duração do experimento.

Essa pesquisa colaborou para que concordássemos com Benito e Bosch (2021)BENITO, R. N.; BOSCH, M. Descripción y análisis de un recorrido de estudio e investigación en geometría. Caminhos da Educação Matemática em Revista, v. 11, n. 1, p. 78-104, 2021. quanto à importância dos distintos papéis desempenhados pelas dialéticas, tanto no processo de pesquisa, como também no gerenciamento da aula. No primeiro caso, elas foram usadas para o desenho da atividade (análise a priori) , a coleta de dados e a análise a posteriori ; por outro lado, durante o experimento, foram ferramentas para a gestão das questões e respostas que surgiram, para o acompanhamento da evolução do meio e das ações tomadas pelo professor para a condução das aulas baseada no PQM.

A cronogênese nos mostrou que certas questões, por mais que tratem do mesmo tema, podem demandar discussões a respeito de assuntos diversos que não colaboram diretamente para o estudo do objeto matemático a ser ensinado, além de afetar a otimização do tempo que o professor dispõe para trabalhar o conteúdo e, consequentemente, criar uma restrição institucional para a vida do PEP no paradigma de ensino vigente.

Considerando que todo o trabalho de elaboração de questões, discussões, pesquisas e apresentação de respostas foram feitos durante os encontros, pois não foram previstas atividades extraclasse, algumas questões se mostraram demasiadamente complexas para serem respondidas em classe que, embora tenham sido discutidas, foram desconsideradas pelos estudantes sem que fossem escritas.

Para contornar essa restrição sugerimos que as questões sejam classificadas e gerenciadas antes e durante o experimento, como indica Benito (2019)BENITO, R. N. Construção de um Percurso de Estudo e Pesquisa para Formação de Professores: o ensino de cônicas. 2019. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22544.
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/225...
com a classificação exposta na Figura 4 . Nessa figura vemos que a questão geratriz conduz a questões implícitas e explícitas . No primeiro caso agrupamos as perguntas pensadas e até mesmo discutidas pelo grupo, mas não apresentadas para o professor ou para os demais grupos que compõem a turma, que, em nossa pesquisa, foram identificadas quando ouvimos as gravações das discussões realizadas pelos grupos, o que normalmente não é feito em uma aula que não se trata de uma investigação. No caso das questões explícitas agrupamos as que são escritas ou apresentadas oralmente para validação pelo grupo e pelo professor que, por sua vez, são divididas em dois subgrupos denominados questões diretas e questões indiretas . As diretas devem ser respondidas para se alcançar a resposta final 𝑅, como o caso da questão “onde deve ficar a panela no fogão solar?”. Já as indiretas , não necessárias para a solução do problema inicial, podem ser trabalhadas ao final do percurso a depender de sua importância, ficando a cargo do professor essa decisão. O autor ainda apresenta as questões chave , relacionadas ao conteúdo matemático em jogo, que podem ser diretas ou indiretas, e que, quando não são elaboradas pelos estudantes, devem ser sugeridas pelo professor. Como exemplo de questões indiretas-chave temos: “por que a panela deve ficar na posição do foco? Por que o raio (solar) paralelo ao eixo de simetria (da parábola) tem que obrigatoriamente encontrar o foco?”.

Figura 4
Classificação das questões para um PEP

Outro aspecto importante a ser destacado é a restrição disciplinar do estudo, pois é evidente que o estudo da questão geratriz considera muitas outras obras além das cônicas, em sua versão sintética ou analítica, como apontou o estudo a priori . No caso que nos ocupa, deveriam aparecer questões relacionadas com a energia solar, a sustentabilidade, as antenas, o material para encapar a antena, sua capacidade de reflexão e preço etc., além da eficiência deste tipo de sistema de cozinhar e suas consequências para a saúde. No PEP experimentado, a restrição temporal levou o professor a centrar sua atenção na questão da posição da panela, em lugar de outras questões elaboradas pelos alunos. Porém, um dos “perigos” da análise a priori , baseada no MER, é a tendência em forçar uma direção do PEP para as questões mais vinculadas a ele, o que implica em se correr o risco de cair em uma forma “monumentalista” para a pesquisa, muito própria do paradigma de visita às obras. Isto ocorre quando o estudo de 𝑄0 não tem como objetivo principal respondê-la, mas sim “visitar” uma determinada praxeologia 𝑅 predeterminada. O caso aqui apresentado corresponde um pouco a esta situação, dado que se elegeu 𝑄0 com a intenção de que os estudantes utilizassem (ou visitassem) as parábolas em sua versão sintética o que se configura em uma forma transitória entre os dois paradigmas, imposta pelos currículos atuais definidos como conjuntos de praxeologias a serem estudadas e não por questões a serem respondidas.

Quanto à mesogênese, a principal restrição destacada foi a falta de critérios dos estudantes para selecionar documentos confiáveis encontrados na rede, que levou o professor a sugerir, que em geral, são considerados confiáveis na web , trabalhos acadêmicos, artigos, com intuito que não se debruçassem sobre trabalhos de origem duvidosa. Para o caso de documentos não acadêmicos, os estudantes deveriam verificar se o mesmo conteúdo podia ser encontrado em três ou mais websites distintos ou apresentar o arquivo para a verificação do professor.

Já a topogênese nos permitiu observar que a má distribuição das funções, entre os participantes de um grupo, pode contribuir negativamente para o processo de elaboração de questões, crucial para o desenvolvimento do PEP em sala de aula. Para superar essa restrição, Benito (2019)BENITO, R. N. Construção de um Percurso de Estudo e Pesquisa para Formação de Professores: o ensino de cônicas. 2019. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22544.
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define as atribuições de redator, investigador e orador que, inicialmente, devem ser distribuídas entre os integrantes de um grupo e revezadas durante todo o experimento de forma que todos participem de todas as funções. Segundo o autor, o redator é responsável por escrever tudo que for produzido pelo grupo: questões, respostas prévias e finais, fontes de pesquisa utilizadas, anotações gerais produzidas pelas discussões do grupo etc.; o investigador deve trazer conteúdos já estudados, pesquisar novas mídias e coletar novas informações para responder às questões; por último, o orador é o responsável em compartilhar todas as informações com o professor e demais colegas de sala.

Segundo a TAD, restrições podem surgir do monumentalismo presente no paradigma de visita às obras que, há algum tempo, afeta a ecologia escolar matemática nas instituições de ensino, seja por meio do contrato didático, imperante em sala de aula, ou pela maneira que se interpreta os conteúdos nos livros didáticos ou documentos curriculares e, por sua importância requerem mais estudos. Necessitamos aprofundar os estudos a respeito da ecologia dos PEP, para testar outras questões iniciais e dispositivos didáticos que se propõem para auxiliar na gestão da cronogênese, mesogênese e topogênese tendo em vista que a diversificação empírica é necessária para se conhecer melhor as condições que possibilitam a evolução dos sistemas didáticos escolares, assim como as restrições que impedem seu desenvolvimento.

Agradecimentos

Agradecemos à CAPES pelo financiamento, em particular pela bolsa de doutorado sanduíche, que ajudou para o desenvolvimento da pesquisa e, consequentemente, no resultado deste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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