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Apresentação

Transbordante é a imagem que venho carregando por um bom tempo referida à personagem Marian Fancourt, de Henry James, que me ficou grudada na mente. Libertar essa imagem em um texto ou em uma conversa pode ser o modo de tentar produzir a significação que se encontra nela.

Marian é jovem, possuidora de rara beleza. Alta, cabelos ruivos, olhos acinzentados. Mas não é a beleza física que a torna singular. Educada na Ásia, onde passou parte da infância e da adolescência em companhia do pai, o narrador a apanha em ação no sofisticado meio social/intelectual londrino do fim do século passado. Sua interioridade vai sendo mostrada junto à rede de falas que se estabelece entre os três personagens centrais da história: Marian, um jovem escritor encantado pelo bem-sucedido St. George, este um escritor maduro reconhecido no meio literário e muito lido pelo público.

Nesse breve conto, correm questões acerca da perfeição almejada pela arte, associada ao artificialismo que movimenta a vida social. Marian aparece aí como um elemento que provoca suspensão no encadeamento natural dos fatos. Sua presença forte, fresca, espontânea, natural, sincera, liberal e intensa adjetiva-se tanto, acabando por marcar seu caráter destoante com a regra social. A imagem da personagem condensa-se com maior precisão numa das falas a seu respeito: "É um espanto que ela tenha permanecido como é; dando-se tanto... com tanto para dar. (...) Ela se dá porque é transbordante." Aqui, no transbordante de Marian, coloco o ponto.

Aquilo que transborda, transborda porque está cheio demais. Tem de se esparramar porque tem muito. Sem causa. Sem cálculo. Sem efeito. É o que é. E o seu sendo se espalha engrandecendo o redor. Parece que esse é o sonho da arte ou de toda produção verdadeira.

Penso não ser preciso justificar o porquê de toda essa conversa num texto que deve apresentar uma coletânea de artigos/pesquisas que tematizam educação, etnia, política, memória social, memória pessoal, família. Pois o movimento da educação vai na busca desse transbordamento do ser. Onde não caberiam os gestos artificiais do orgulho, da arrogância, do esnobismo, da vaidade, que são os conteúdos do seco espremido.

O Caderno Cedes Família, Escola e Sociedade colabora nessa perspectiva educacional, quando junta textos que olham a educação em perspectiva, como se estivesse no alto do Himalaia, lugar de onde pode-se presenciar a vida e a morte das coisas. E o movimento entre uma e outra experiência.

De fato, somos uma civilização da imagem e os trabalhos de Gabrielle Balazs/Jean-Pierre Faguer e Letícia Bicalho Canêdo falam da interferência da mídia televisiva e outras, na pesquisa científica, mostrando os laços da linguagem das palavras e da linguagem das imagens. A imagem visual, lidando com a oralidade, pode captar sutilezas que nenhum questionário ou entrevista, por mais minucioso, conseguiria. Um termo da teoria literária — metáfora — pode bem encaixar-se para tentar elucidar a análise de questões concernentes à história, à sociologia e à ciência política. Uma coisa passa a significar outra, quando nomes do universo familiar, por exemplo, são utilizados pelo poder político. Aí, a fusão de imagens do privado sobre a "coisa pública" transforma em legítimos comportamentos desta última, o que era definido como procedimentos familiares.

Memória pessoal, cidadania, memória social são temas que se tocam nos textos de Agueda Bernadete Bittencourt Uhle, Julieta Beatriz Ramos Desaulniers e Neusa Maria Mendes de Gusmão.

Memória, experiência e oralidade, no sentido em que aparecem nos textos, criam chão para que nos vejamos espaço-temporalmente, nessa sociedade oral na qual vivemos.

O mundo moderno, diz Benjamin, assiste à morte da arte de narrar como troca de experiência coletiva, comunicável de geração a geração, de boca em boca: uma arte oral-artesanal. A informação passada através da sensação aponta um tipo de sociedade oral. Hoje, também vivemos a presentificação da informação — uma nova oralidade em que a informação não mais se passa de boca em boca, mas por meio de sofisticados recursos audiovisuais. O narrador, o homem épico que conhecia os segredos do campo e/ou do mar, sempre foi figura de autoridade. Ao mergulhar em sua própria memória e na de outrem, transformando essas lembranças em experiências ao ouvinte, atuava como um educador. Um homem que detinha um saber e podia dar conselhos. Nossa sociedade vive, de outra forma, experiências de oralidade.

A coletânea de textos aqui reunidos aponta esse saber perceber, como se reveste essa função educadora em nossos tempos. Por isso, precisam ser lidos não só individualmente, mas percebidos na pluralidade de suas idéias — esta é uma forma de eles poderem transbordar.

Rosalia de Angelo Scorsi

Pesquisadora do Laboratório OLHO — Unicamp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 1999
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
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