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DESINFORMAÇÃO POLÍTICA E O ENIGMA DA TOLERÂNCIA NAS DISPUTAS ELEITORAIS

POLITICAL DISINFORMATION AND THE PUZZLE OF TOLERANCE IN ELECTORAL DISPUTES

DÉSINFORMATION POLITIQUE ET LE PUZZLE DE LA TOLÉRANCE DANS LES DIFFÉRENDS ÉLECTORAUX

Resumos

O presente artigo tem como objeto uma reflexão acerca da necessária ponderação entre a viabilização do combate à desinformação nas eleições e a ameaça, inerente a este processo, de supressão da liberdade de expressão e da livre circulação das ideias, fundamentais para a plena efetivação da democracia e do pluralismo político. Como viabilizar o combate à disseminação em massa de mentiras ou “fake news”, prejudiciais à manutenção de um ambiente político tolerante e saudável, em face da necessidade de garantia da liberdade e da tolerância próprias das sociedades democráticas e o do risco do autoritarismo estatal? Na busca da resposta a este dilema, foi realizada uma análise de situações concretas vivenciadas no processo eleitoral brasileiro nos últimos quinze anos à luz da filosofia política relativa à temática da liberdade de expressão e ao combate à intolerância, concluindo-se pela necessidade de priorização de medidas preventivas de combate à desinformação, de forma a evitar que a repressão judicial, eleita como método de salvaguarda democrática, violente as liberdades fundamentais e aniquile a própria democracia.

Desinformação; Eleições; Liberdade; Discurso; Tolerância


The purpose of this article is to reflect on the necessary balance between making it feasible to combat disinformation in elections and the threat inherent in this process of suppressing freedom of expression and the free circulation of ideas, which is fundamental to the full realisation of democracy and political pluralism. How can we combat the mass dissemination of lies or «fake news», which is detrimental to maintaining a tolerant and healthy political environment, given the need to guarantee the freedom and tolerance inherent in democratic societies and the risk of state authoritarianism? In the search for an answer to this dilemma, an analysis was made of concrete situations experienced in the Brazilian electoral process in recent years in the light of political philosophy relating to the issue of freedom of expression and the fight against intolerance, concluding that it is necessary to prioritise preventive measures to combat disinformation, in order to prevent judicial repression, chosen as a method of safeguarding democracy, from violating fundamental freedoms and annihilating democracy itself.

Disinformation; Elections; Freedom; Speech; Tolerance


L’objectif de cet article est de réfléchir à l’équilibre nécessaire entre la faisabilité de la lutte contre la désinformation lors des élections et la menace inhérente à ce processus de supprimer la liberté d’expression et la libre circulation des idées, qui est fondamentale pour la pleine réalisation de la démocratie et du pluralisme politique. Comment lutter contre la diffusion massive de mensonges ou «fake news», préjudiciable au maintien d’un environnement politique tolérant et sain, compte tenu de la nécessité de garantir la liberté et la tolérance inhérentes aux sociétés démocratiques et du risque d’autoritarisme étatique ? Dans la recherche d’une réponse à ce dilemme, une analyse a été faite des situations concrètes vécues dans le processus électoral brésilien ces dernières années à la lumière de la philosophie politique relative à la question de la liberté d’expression et de la lutte contre l’intolérance, concluant qu’il est nécessaire de donner la priorité aux mesures préventives de lutte contre la désinformation, afin d’éviter que la répression judiciaire, choisie comme méthode de sauvegarde de la démocratie, ne porte atteinte aux libertés fondamentales et n’anéantisse la démocratie elle-même.

Désinformation; Élections; Liberte; Discours; Tolérance


INTRODUÇÃO

Garantir a normalidade e a legitimidade do exercício do poder de sufrágio popular, de forma a preservar a integridade das eleições e fomentar a democracia: esta é a missão da Justiça Eleitoral desde a sua instituição, em 1932 (Barreiros Neto, 2023, p. 15).

Para que exista uma efetiva democracia pluralista (Dahl, 1997, p. 26-27), contudo, não basta a existência de eleições periódicas e a garantia de uma ampla participação política: é necessário que sejam garantidas, aos eleitores, condições para o livre debate de ideias que os habilite a uma formação madura das suas convicções. Todos os cidadãos deverão ser capazes de expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo, individualmente e coletivamente; e de ter suas preferências consideradas na conduta do governo, requisito que pressupõe a existência de eleições livres e de instituições aptas a responder aos anseios populares, por meio das políticas governamentais. Para tanto, é fundamental que uma ampla liberdade para a expressão e circulação de ideias seja incentivada, ao tempo em que também se apresenta como de grande relevância o combate a práticas de abuso de poder e disseminação de desinformações que possam retirar do eleitor a sua plena capacidade crítica e de discernimento.

No atual cenário político global, também vivenciado no Brasil, vislumbra-se, com grande preocupação, o avanço de novas técnicas de manipulação de opiniões e de difusão de mentiras, consubstanciadas por meio de novos aparatos tecnológicos. Da mesma forma, a intolerância em relação a discursos e pontos de vistas opostos tem prejudicado a livre circulação de ideias e o salutar debate público entre os divergentes, suscitando, por vezes, atuações estatais enérgicas e, eventualmente, desproporcionais e potencialmente ameaçadoras à liberdade.

Como viabilizar o combate à disseminação em massa de mentiras ou “fake news”, prejudiciais à manutenção de um ambiente político tolerante e saudável, em face da necessidade de garantia da liberdade e da tolerância próprias das sociedades democráticas e o do risco do autoritarismo estatal?

O presente trabalho, longe de encontrar uma solução definitiva para este dilema, busca apresentar reflexões sobre o atual estado de perigo que afeta as democracias contemporâneas (a brasileira, em especial), decorrente da profusão de estratégias de desinformação política, amparadas no uso das novas tecnologias, e das possibilidades de combate a esta nefasta realidade, a serem ponderadas ante ao risco, também evidente, de sufocamento, por parte do Estado, das liberdades fundamentais de expressão e livre circulação de ideias, em nome do combate à intolerância discursiva ou à profusão de “fake news”.

Para atingir tal objetivo, buscou-se realizar uma análise crítica da atuação da Justiça Eleitoral brasileira nas recentes ações empreendidas de combate às “fake news” e à desinformação nas eleições, à luz da filosofia política relativa à temática da liberdade de expressão e ao combate à intolerância, de forma a contribuir academicamente para o instigante debate acera dos limites da atuação estatal na defesa da democracia e da integridade das eleições.

Para atingir tal intento, foi realizada uma breve revisão da literatura relativa ao tema das liberdades de expressão e informação, bem como um estudo crítico de algumas decisões recentes da Justiça Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal em que, com o intuito de promoção da legitimidade do sufrágio objetivada pelo processo eleitoral na democracia brasileira, o tema dos limites das referidas liberdades fundamentais foi desafiado.

NORMALIDADE E LEGITIMIDADE DO SUFRÁGIO: BALIZAS ESTRUTURANTES DA DEMOCRACIA E OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA ELEITORAL

Não há verdadeira democracia sem a plena garantia de legitimidade de manifestação do sufrágio popular! Sem a possibilidade da livre manifestação política do cidadão, pautada em uma ampla garantia da expressão da sua capacidade de discernimento na formulação de escolhas, fundada na ausência ou, minimamente, na contenção de mecanismos de supressão da vontade consciente do cidadão no exercício das suas decisões políticas fundamentais, não existe uma efetiva democracia, regime político que, em sua essência, pressupõe não apenas uma ampla participação pública nas decisões, mas fundamentalmente, a garantia da liberdade para que essa participação ocorra de forma independente e consciente, dissociadas de qualquer forma de manipulação.

Fundada na busca, desta forma, da garantia de uma normalidade e legitimidade do exercício do poder de sufrágio popular, a Justiça Eleitoral tem como missão impedir qualquer tipo de fraude, tumulto ou manipulação que estabeleça uma deturpação ou mesmo uma quebra de confiança capaz de abalar a lisura e a integridade do processo democrático de formação da vontade geral, bem como garantir a plena e imaculada manifestação da vontade do cidadão, viabilizando, assim, o debate público e a formação amadurecida e respeitosa das decisões que impactarão a vida de todos os membros integrantes da sociedade política.

Por normalidade do sufrágio como primeiro objetivo fundamental da Justiça Eleitoral na democracia brasileira, pode-se compreender a garantia de um processo de manifestação popular livre de qualquer espécie de ardil que impossibilite que a vontade expressada pelo cidadão nas urnas corresponda integralmente àquela manifestação de vontade apurada por essa mesma Justiça Eleitoral. Ao longo de décadas, garantir a normalidade do processo eleitoral sempre foi um grande desafio no Brasil, país que conviveu, ao longo da sua história, com diversos episódios de fraudes que deturparam a apuração da verdadeira expressão da vontade popular manifestada nas urnas: voto de cabresto, contabilização de votos não sufragados como votos válidos ou simples alterações arbitrárias de boletins de urnas foram realidades vivenciadas e hoje já diagnosticadas em várias eleições ocorridas nos últimos dois séculos no país, realidade minimizada ou mesmo praticamente extirpada nas últimas três décadas, como consequência direta do aperfeiçoamento dos mecanismos de defesa da democracia implementados pela legislação eleitoral, com destaque para a informatização do cadastro de eleitores e a adoção da urna eletrônica, esta última prática observada a partir das eleições municipais de 1996 e hoje consagrada em todo o país como a mais importante e louvada característica do nosso processo eleitoral.

Por legitimidade do sufrágio como o segundo dos objetivos essenciais da atuação da Justiça Eleitoral do Brasil, por sua vez, deve-se compreender a necessária busca da valorização da livre manifestação soberana do povo, sem qualquer tipo de manipulação do seu senso de escolha, a partir da garantia de uma formação de vontade do eleitor pautada na mais ampla possibilidade de acesso à informação que lhe permita decidir de forma fundamentada e desprovida de qualquer forma de opressão ou ameaça, produto da sua ampla e plena capacidade de formação de ideias, opiniões e convicções. Combater o abuso de poder político, econômico ou dos meios de comunicação social, impedir propaganda abusivas ou mentirosas que afetem a capacidade de discernimento do eleitor, fazer cumprir a lei e a Constituição, de forma a viabilizar decisões amadurecidas e autônomas do cidadão eleitor, se consolidam como os grandes desafios da Justiça Eleitoral, criada há pouco mais de noventa anos com o intuito, justamente, de combater quaisquer formas de mácula ou ameaça à soberania popular manifestada nas urnas, em eleições ou em consultas populares (Barreiros Neto, 2023, p. 11-15).

Essencial para a consagração da cidadania e para a preservação do regime político democrático, portanto, é a garantia de existência de eleições livres e legitimadas pela preservação da normalidade e da supremacia do poder de sufrágio popular. As liberdades de expressão da imprensa, de candidatos, agentes políticos e institutos de pesquisa, neste sentido, são consideradas importantes garantias democráticas, ao mesmo tempo em que, de modo inverso, são apontadas, por muitos, como elementos de desequilíbrio do mesmo regime político, quando não sujeitas a limitações. Em tempos de profusão de mentiras e do uso cada vez mais decisivo e assustador de novas tecnologias e instrumentos de manipulação das vontades, a inexistência ou o enfraquecimento de óbices para a contenção de práticas violadoras da normalidade e da legitimidade do poder de sufrágio revela-se como prática cada vez mais ameaçadora, exigindo do Estado de Direito, soluções criativas e inteligentes, que desafiam o legislador e o poder judiciário no exercício das suas missões constitucionais

Por outro lado, ante o desafio da busca da contenção de abusos que possam ameaçar ou mesmo destruir o regime democrático de direito, reafirma-se a necessidade de valorização da liberdade de expressão e opinião como elementos constitutivos da própria noção essencial de democracia. Quando não há liberdade de expressão, o terreno da intolerância ante as críticas se pavimenta, dando margens a abusos de poder incomensuráveis. Como bem destaca Theóphilo Cavalcanti Filho (2011, p. 739), “o reconhecimento da liberdade de manifestação de pensamento se liga, diretamente, ao reconhecimento da personalidade individual, como centro de direitos próprios, independente do Estado”. No mesmo sentido, Nicholas Capaldi (1974CAPALDI, Nicholas. Introdução. In: CAPALDI, Nicholas (org.). Da liberdade de expressão: uma antologia de Stuart Mill a Marcuse. p. XII, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974., p. XII) lembra que o principal argumento em prol da liberdade de expressão se confunde com o maior pilar do regime democrático: “comunidade alguma terá pleno êxito em alcançar o interesse comum, muito menos em sobreviver indefinidamente, a não ser que possa conhecer deveras qual o interesse comum”. Para conhecer qual é este interesse comum, por sua vez, é necessário que haja diálogo, que haja debate, que haja liberdade de expressão.

A LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS COMO PRESSUPOSTO DEMOCRÁTICO: A IMPORTÂNCIA DAS LIBERDADES DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NAS ELEIÇÕES

A democracia pressupõe o direito de todos os indivíduos à participação na formação da vontade coletiva e na organização do Estado, viável, tão somente, a partir da garantia do mais amplo acesso á informação e à expressão das ideias, de forma a viabilizar a construção consciente das decisões políticas fundamentais, a partir do amadurecimento das ideias postas em discussão e julgamento coletivo por meio do contraditório (Sampaio, 1941SAMPAIO, Nelson de Sousa. As ideias-forças da democracia. 1.ed. p. 187-190. Bahia: Imprensa Regina, 1941., p. 187-190). Todos os cidadãos devem ser capazes de formular preferências, a partir do exercício da liberdade de expressão, da liberdade de associação, do direito de voto, e da liberdade de informação; de expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo, individualmente e coletivamente; e de ter suas preferências consideradas na conduta do governo (Dahl, 1997, p. 26-27).

A defesa histórica da liberdade de expressão, como fundamento basilar da organização social, começou a se desenvolver ainda nos primórdios da Idade Moderna, consagrando-se na Era Contemporânea como um dos pilares da democracia. Segundo Jônatas Machado (2002)MACHADO, Jônatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2002., a Reforma Protestante, ocorrida no início da Idade Moderna, exerceu um fundamental papel na construção e difusão do direito fundamental à liberdade de imprensa e opinião, ao defender o direito da livre interpretação das escrituras pelos crentes, rompendo a tradição cristã da verdade revelada imposta pelo catolicismo dominante no período medieval. Para Machado (2002MACHADO, Jônatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2002., p. 19), a transformação do Cristianismo em religião oficial, com o advento da Igreja Católica, “havia comprometido decisivamente a possibilidade de desenvolvimento de uma tradição de livre criação intelectual”. Os Tribunais de Inquisição e a rede de censura criada pelo clero seriam a maior prova deste fato.

A sociedade medieval, marcada pela hierarquia e estratificação, neste contexto, pouco contribuiu para o desenvolvimento da crítica e da liberdade de consciência. Com a Reforma Protestante e, pouco antes, em 1450, com a criação da imprensa, por Johann Gutemberg, teria sido despertada, de acordo com o citado autor português, a “consciência individual manifesta em seu vigor crítico e emancipatório” (Machado, 2002MACHADO, Jônatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2002., p. 22), com a desvalorização da verdade objetiva e a busca da verdade como objetivo.

Foi no século XVII, contudo, que, como bem destaca Castanho de Carvalho (2003CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003., p. 23), uma cultura de liberdade de imprensa passou a ser efetivamente cultuada, de forma pioneira na Inglaterra, especialmente após o ano de 1695, quando o Parlamento britânico tomou a paradigmática decisão de não renovar o “Licensing Act”, que previa a censura prévia aos escritos jornalísticos.

Antes desse fato, contudo, também na Inglaterra, John Milton publicou, em 1644, a obra “Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra”, considerada um marco histórico fundamental na história da conquista da liberdade de expressão como valor fundamental, quando ao questionar sobre “quem jamais ouviu dizer que a verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto?”, afirmou que a refutação dessa suposta verdade “é a melhor e mais eficaz das proibições” (Milton, 1999MILTON, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999., p. 173).

Ainda na Inglaterra, grande destaque merece a atuação de John Stuart Mill em favor da liberdade de expressão. Em “Sobre a Liberdade”, Mill defende que o silenciamento de uma opinião minoritária verdadeira tem como consequência a definitiva perda da oportunidade de substituição do erro pela verdade, fazendo com que heresias sejam perpetuadas. De acordo com Mill (2018), uma vez que não existe um critério externo apto a aferir a infalibilidade de qualquer autoridade humana, somente um procedimento dialógico livre e aberto tem o condão de proporcionar a justiça.

Na França, por sua vez, a partir da publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, consagra-se a ideia de que a liberdade de expressão e de imprensa é um direito de todos os homens, como se observa da leitura dos artigos 10º e 11 da Declaração, que assim dispõem:

Art. 10º. Ninguém pode ser incomodado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que não perturbem a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11. A livre manifestação de pensamento e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver de responder ao abuso dessa liberdade nos casos previstos pela lei.

Vale ressaltar que, apesar de consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a liberdade de expressão e de imprensa logo veio a sofrer fortes oposições e restrições no território francês, não tendo sido, portanto, tarefa fácil a sua consolidação. Neste sentido, em 08 de maio de 1793, meses antes da instalação, na França, do período conhecido como “Terror”, em que os girondinos são suplantados pelos jacobinos, tornando o processo revolucionário francês cada vez mais violento e sangrento, Maximiliano Robespierre, principal líder jacobino, incitando os “revolucionários” a continuarem no curso da revolução, expurgando todos os “inimigos do povo”, elege, em manifesto denominado “Revolução, povo e imprensa” os jornalistas como alvo, alegando que tal classe seria um “obstáculo” à instrução popular, ao divulgar, reiteradamente, “informações falsas e irresponsáveis”. Para Robespierre (1974, p. 105-108), os jornalistas seriam “os mais perigosos inimigos do país”, devendo, portanto, ser confinados, a fim de que sejam vinculadas amplamente as “corretas espécies de informação”, em um claro ataque à liberdade de imprensa e ode à censura.

Na Alemanha, por sua vez, a liberdade de expressão foi consagrada como direito fundamental em 1919, com a promulgação da Constituição de Weimar. Antes disso, porém, é válido destacar a luta empreendida por Karl Marx contra a censura e a favor da liberdade de imprensa. Sob o argumento de que ante a imperfeição humana não seria razoável exigir-se a perfeição da imprensa e a consequente censura ante ao risco da imperfeição, em célebre artigo escrito em 1842, para o jornal “Gazeta Renana” (Marx, 2000MARX, Karl. Liberdade de Imprensa. Porto Alegre: L&PM, 2000., p. 46). Em 07 de fevereiro de 1849, na cidade alemã de Colônia, Karl Marx, então editor do jornal “Neue Rheinische Zeitung”, foi julgado e absolvido pelo Tribunal de Justiça local por ter publicado críticas a funcionários públicos. Na sua defesa, Marx proferiu um importante discurso, publicado dias depois no mesmo jornal, intitulado “O papel da imprensa como crítica de funcionários governamentais”, no qual afirmou que “a função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Em defesa intransigente do papel da imprensa como crítica dos governos, sob fortes aplausos do tribunal, Marx encerrou o seu discurso afirmando que “o primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas as bases do sistema político existente” (Marx, 2000, p. 114).

Também na Alemanha, como mais um exemplo da luta travada pela liberdade de expressão por seu reconhecimento como liberdade humana, é de se destacar a publicação, durante a II Guerra Mundial, de manifesto intitulado “A conspiração da imprensa judaica internacional”, escrito por Adolf Hitler, em que o líder germânico, em uma suposta defesa da “verdadeira democracia”, defende que a liberdade de expressão deveria ser consubstanciada na presença de um líder, a quem incumbiria a responsabilidade pela condução do Estado, em substituição às grandes assembleias populares, as quais seriam facilmente manipuláveis, ante a falta de conhecimento e experiência da maioria diante das “mentiras jornalísticas”. Para Hitler, a liberdade de imprensa exercida pelos judeus, proprietários da maior parte dos veículos de comunicação e, na sua opinião, inimigos mortais, por princípio, de todos os Estados nacionais, teria sido o principal fator motivador da entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, bem como da deflagração do próprio conflito bélico global. Nas suas palavras, em forte ataque à liberdade de imprensa, “cada agência de propaganda e mentira”, liderada por judeus, “entrou brutalmente em ação contra o Estado dos últimos idealistas, os alemães”, minando, assim, a democrática República Alemã de Weimar, instalada em 1919, uma “falsa democracia”, na sua visão, em virtude do “controle da opinião pública” exercido pela imprensa “dominada pelos judeus” (Hitler, 1974HITLER, Adolf. A conspiração da imprensa judaica internacional. In: CAPALDI, Nicholas (org.). Da liberdade de expressão: uma antologia de Stuart Mill a Marcuse. P. 109-113, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974., p. 109-113). A plena liberdade de imprensa, dessa forma, seria um mal à estabilidade política da sociedade alemã, que deveria ser combatido.

Depois da II Guerra Mundial, ainda na Alemanha, destaque merece a paradigmática decisão tomada pelo Tribunal Constitucional, em 1958, no famoso “Caso Lüth”, marco histórico do advento da técnica de ponderação como método de solução de conflitos jurídicos de maior complexidade, envolvendo direitos fundamentais, bem como da reverêmcia à liberdade de expressão como valor fundamental.

Erich Lüth, em conferência realizada entre produtores e distribuidores de filmes para cinema, convocou todos os alemães a boicotarem os filmes produzidos por Veit Harlan, diretor de cinema fortemente identificado com o passado recente nazista e antissemita. Em resposta à ação de Lüth, o Tribunal Distrital de Hamburgo, fundamentado no art. 826 do Código Civil alemão, decidiu que o boicote promovido deveria ser imediatamente encerrado. Em resposta à decisão do Tribunal Distrital de Hamburgo, Lüth recorreu à Corte Constitucional Federal Alemã, que então considerou que a incitação contra os filmes de Harlan, promovidas por Lüth, estava protegida pelo princípio da liberdade de expressão, garantido no artigo 5º da Constituição da Alemanha Ocidental (Lei Fundamental de Bonn, de 1949).

A partir do julgamento do caso Lüth, a Corte Constitucional da Alemanha desenvolveu as diretrizes do direito alemão para a ponderação de interesses. São elas: a) quanto maior for a intensidade da restrição, mais significativo devem ser os valores comunitários que a justificam; b) quanto maior for o peso e a premência de realização do interesse comunitário que justifica a restrição, mais intensa ela poderá ser; c) quanto mais diretamente forem afetadas manifestações elementares da liberdade individual, mais exigentes devem ser as razões comunitárias que fundamentam a restrição; d) os direitos fundamentais aplicam-se não apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, estendendo-se a todas as áreas do direito, inclusive nas relações privadas; e) a força normativa da Constituição gera um efeito irradiante dos direitos fundamentais sobre todo o sistema jurídico, tornando-os onipresentes; f) o balanceamento entre princípios constitucionais colidentes representa uma forma indispensável do discurso racional, meio necessário para a garantia da proteção dos direitos fundamentais, uma vez que não existem direitos fundamentais absolutos, tampouco hierarquia entre os princípios (Barcelos, 2005, p. 85).

Nos Estados Unidos, por sua vez, a partir da Declaração de Virgínia, de 1776, e, especialmente, da Primeira Emenda à Constituição, de 1791, a liberdade de imprensa também passou a gozar de um status fundamental, firmando historicamente o direito americano como paradigma histórico de constitucionalização das liberdades fundamentais, muito embora muitos percalços à plena realização de tais prerrogativas tenham desafiado a jurisprudência da Suprema Corte desde então, em um longo caminho, ainda em construção, de afirmação da liberdade de expressão, em suas mais diversas facetas e dimensões. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, ao consagrar a liberdade de imprensa, revelou uma preocupação com o combate à censura, prática observada à época da colonização inglesa, vivenciada, em especial, no período anterior à Revolução Gloriosa, de 1688. Ainda em 1787, quatro anos antes da publicação da Primeira Emenda, Thomas Jefferson (1964JEFFERSON, Thomas Escritos políticos. p. 89, São Paulo: IBRASA, 1964., p. 19), opinando sobre a importância da liberdade de imprensa e da educação para a construção de uma sociedade democrática, já afirmava que: “fosse deixado a mim decidir se deveriam ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir este último. Mas insistiria em que todo homem recebesse esses jornais e os soubesse ler”. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, ao dispor que o Congresso tem o dever de não aprovar qualquer lei que restrinja a liberdade de palavra ou de imprensa, almejou firmar o entendimento segundo o qual não conceder liberdade de expressão a alguém de quem se discorda significa negar a liberdade de todos.

Apesar da veneração das liberdades de expressão e informação na Primeira Emenda, publicada em 1791, poucos anos depois, ainda na última década do século XVIII, fortes ataques a estas liberdades fundamentais foram verificados nos Estados Unidos. Como bem destaca Andrew Weinberger (1965WEINBERGER. Andrew. Liberdade e garantias: a declaração de direitos. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965., p. 98-99), em 1798 o Partido Federalista, composto, fundamentalmente por componentes da aristocracia fundiária e por comerciantes ricos, tendo a maioria parlamentar a seu favor, aprovou a “Lei de Sedição”, a qual considerava crime “excitar contra o governo federal, o presidente da república ou o Congresso, o ódio das pessoas de bem dos Estados Unidos”, em um claro ataque à liberdade de expressão, firmado a partir de uma tentativa de imposição de silêncio ao Partido Republicano, liderado por Thomas Jefferson. Com base na referida lei, um número considerável de pessoas veio a responder processos criminais, algumas delas, inclusive, tendo, contra si, declarações de prisão.

A Lei de Sedição, segundo Edward Gerard Hudon (1965HUDON, Edward Gerard. Imprensa e liberdade. 1. ed., São Paulo: Lidador, 1965., p. 217), representou uma reminiscência cultural do estatuto inglês denominado De Scandalis Magnatum, oriunda do século XIII, o qual tinha como pressuposto a supremacia do direito e da soberania da coroa inglesa sobre a palavra e a imprensa, de forma a evitar qualquer espécie de crítica ao governo. A negação da liberdade de expressão, mesmo que temporária (o prazo de validade da Lei da Sedição seria de cerca de três anos), gerou grandes tumultos, os quais, no final das contas, terminaram por conduzir Jefferson à presidência dos Estados Unidos, em lugar dos conservadores federalistas.

A falta de uma “filosofia básica que servisse como influência estabilizadora da Primeira Emenda” é apontada por Hudon (1965HUDON, Edward Gerard. Imprensa e liberdade. 1. ed., São Paulo: Lidador, 1965., p. 220) como a principal razão para a instabilidade histórica relativa à interpretação da abrangência jurídica do princípio da liberdade de expressão nos Estados Unidos. Durante a I Guerra Mundial, em 1918, nova Lei de Sedição viria a ser aprovada, vigendo até ser revogada, três anos depois. Como bem destaca Weinberger (1965WEINBERGER. Andrew. Liberdade e garantias: a declaração de direitos. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965., p. 99-100), neste curto período trienal, centenas de processos foram instalados, tendo como mote, principalmente, o combate à manifestação de opiniões contrárias à participação dos Estados Unidos na guerra. Foi justamente em virtude desta nova Lei de Sedição que veio ao lume o famoso caso Schenck, oportunidade para o desenvolvimento, pela Suprema Corte Americana, da “Teoria do Perigo Atual e Evidente”, desenvolvida a partir de um famoso voto do juiz Oliver Holmes.

O caso Schenck versus Estados Unidos, julgado em 1919 pela Suprema Corte Americana, tendo como relator o juiz Oliver Wendell Holmes, envolveu uma discussão em torno dos limites da liberdade de expressão, a partir de um episódio em que Charles T. Schenck, secretário geral do Partido Socialista da Filadélfia, enviou pelo correio mais de quinze mil cartas a cidadãos convocados pelas Forças Armadas a servir na I Guerra Mundial com o intuito de convencê-los a não se submeter ao recrutamento promovido, no que foi considerado, pelo governo, um ato subversivo e conspiratório. Assim, instalou-se um conflito jurídico entre Schenck e o governo dos Estados Unidos, no qual de um lado se argumentava a liberdade de expressão de Schenck como fundamento da sua inocência, e, de outro, a natureza subversiva e contrário ao interesse público da qual seu ato, supostamente, se revestiria.

Responsável por relatar o caso na Suprema Corte, o juiz Holmes, então, desenvolveu a “Teoria do Perigo Atual e Evidente”, para votar pela condenação de Schenck, alegando, como fundamento da sua decisão, que a liberdade de expressão encontra, excepcionalmente, limites ante a possibilidade de geração de um “perigo atual e evidente” ao interesse público, que possa vir a ocasionar males concretos à sociedade. Nas palavras de Holmes, “a mais escrupulosa proteção da liberdade de expressar-se não caberia a um homem que falsamente bradasse ‘fogo’ num teatro, causando pânico. Nem mesmo resguardaria um homem de uma injunção contra palavras extremadas que podem ter todo o efeito de força”. Para o juiz americano, em tempos de guerra, enquanto homens lutam, coisas que poderiam ser ditas em tempos de paz “constituem tão grande obstáculo a seu esforço que não se tolerará sua expressão” (Holmes, 1974, p. 52).

Comentando sobre a “Teoria do Perigo Atual e Evidente”, Nelson de Sousa Sampaio (1969)SAMPAIO, Nelson de Sousa. A propaganda e o direito. Rio de Janeiro: [s.n.], 1969. destaca que a referida tese serviu, historicamente, de parâmetro para a imposição de limitações à liberdade de propaganda, ante à possibilidade de subversão. Segundo Sampaio, a partir desta doutrina passou-se, de forma mais clara, a se distinguir três momentos diferentes na trajetória firmada entre uma ideia subversiva e o crime de subversão: o enunciado, exposição ou mesmo a apologia, em termos abstratos, da ideia; a propaganda, ou o trabalho de doutrinação de terceiros, na ideia subversiva; e, finalmente, a incitação à ação subversiva concreta. Para Holmes, como observa Sampaio (1969, p. 63), os dois primeiros momentos estariam situados no campo do lícito, como exercício das liberdades de pensamento e manifestação, enquanto que o terceiro já “ingressaria no reino do ilícito”, desde que fosse comprovado “um perigo claro e iminente”, uma vez que “o simples incitamento portador de uma ameaça imprecisa, remota ou distante não bastaria para torna-lo delituoso”.

Destaca, por sua vez, Nicholas Capaldi (1974CAPALDI, Nicholas. Introdução. In: CAPALDI, Nicholas (org.). Da liberdade de expressão: uma antologia de Stuart Mill a Marcuse. p. XII, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974., p. XVII), que a “Teoria do Perigo Atual e Evidente” terminou por suscitar, historicamente, a defesa de abusos no poder de contenção à liberdade de expressão, distorcendo a interpretação do que, de fato, guardaria em si uma urgente e relevante necessidade de proteção contra a publicidade. É neste sentido que “radicais” da esquerda e da direita, na visão crítica de Capaldi, passaram a reivindicar atos de censura à liberdade de expressão, ameaçando a democracia, sob o pretexto de estarem defendendo o interesse geral. A partir da ascensão política das ideias totalitárias, que vieram a culminar no desencadeamento da II Guerra Mundial, a perspectiva firmada na teoria do “Perigo Atual e Evidente”, dessa forma, passou a sofrer oposição, uma vez que restou comprovado que, por meios democráticos, seria possível pôr fim à democracia. Tal fato, segundo Nelson de Sousa Sampaio (1969SAMPAIO, Nelson de Sousa. A propaganda e o direito. Rio de Janeiro: [s.n.], 1969., p. 65), possibilitou uma paulatina substituição da perspectiva de uma democracia neutra de valores por uma ideia de “democracia militante”, “vigilante”, “na defesa dos valores que formam a sua essência”, conforme observa Sampaio.

Observa Castanho de Carvalho (2003CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003., p. 26) que, curiosamente, a partir da segunda metade do século XIX, mesmo após a ocorrência da constitucionalização da liberdade de expressão em países como a Suíça, em 1809, a Noruega, em 1814, a Holanda, em 1815, e a Bélgica, em 1831, verificou-se uma tendência de retração do avanço de tal processo, observada a partir do surgimento de cartas constitucionais na Grécia, em 1911, na Alemanha, em 1919, em Portugal, em 1933, na Irlanda, em 1937, na Espanha, em 1945, e na Itália, em 1947, que, de forma geral, admitiam práticas de censura, em nome da preservação da ordem pública, da moralidade e da autoridade do Estado, em uma clara demonstração das dificuldades históricas enfrentadas, em todo o mundo, relativas ao reconhecimento das liberdades de imprensa, informação, opinião e reunião.

A partir da publicação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, por outro lado, a tendência mundial, ao menos nos chamados “países democráticos” passou a ser a do reconhecimento da liberdade de expressão, em suas mais variadas consequências, como pressuposto fundamental da democracia, a ser preservado e incentivado na convivência entre todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares, como algo inerente à própria condição humana.

A liberdade de expressão, em suas mais diversas dimensões (liberdade de reunião, liberdade de pensamento, liberdade de informação, liberdade de associação, liberdade de imprensa) se constitui como uma das bases constitutivas do regime político democrático. Como leciona Marcello Caetano (2009CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. 6. ed. Tomo I. Lisboa: Almedina, 2009., p. 383-384), a opinião pública cumpre três fundamentais funções políticas: a função motora, ao reclamar iniciativas ou exigir reformas; a função refreadora, traduzida na fiscalização da vida pública, a qual obriga governantes e funcionários públicos a pesar e ponderar seus atos e resoluções; e a função sancionadora, ao aprovar ou condenar atitudes, decisões e personalidades. Não se pode olvidar, neste sentido, o ensinamento de John Stuart Mill (1974MILL, John Stuart. Liberdade de pensamento e discussão.. In: CAPALDI, Nicholas (org.). Da liberdade de expressão: uma antologia de Stuart Mill a Marcuse. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974., p. 25), para quem “na ausência de discussão, não apenas se esquecem os fundamentos da opinião, mas, com demasiada frequência, o significado da própria opinião”.

Não existem, contudo, princípios absolutos em uma ordem jurídica. Estabelecer os limites à liberdade de expressão em uma democracia, neste sentido, se torna um desafio constante, vivenciado no âmbito dos tribunais e também do Poder Legislativo. Este desafio, nos últimos anos, foi fortemente potencializado, em face da crescente escalada de difusão das chamadas “fake news” e de práticas sistematizadas e reiteradas de desinformação que ameaçam a integridade eleitoral em todo o mundo democrático. Como reagir a esse fenômeno cada vez mais evidente, preservando, ao mesmo tempo, as liberdades fundamentais da democracia? Esta é uma questão que se impõe como inerente aos objetivos propostos neste trabalho! Afinal, como já questionado, como garantir um efetivo combate à disseminação em massa de mentiras e desinformações prejudiciais à existência de um ambiente político tolerante e saudável ante ao risco do autoritarismo estatal na definição do que pode e do que não pode ser pronunciado?

A DESINFORMAÇÃO COMO AMEAÇA À INTEGRIDADE ELEITORAL

Ante à premissa já aventada neste trabalho de necessidade de valorização e garantia de uma ampla liberdade de expressão como fundamento do debate democrático, especialmente durante o processo eleitoral, amplamente defendida em diversos ordenamentos jurídicos, uma realidade cada vez mais devastadora para a integridade das eleições tem se imposto nos mais diversos países, desafiando a Justiça Eleitoral e o legislador brasileiro com grande ênfase, na última década: a crescente escalada da desinformação no debate político, alimentada, especialmente, pelo desenvolvimento de novas tecnologias de difusão em massa de mentiras e estratégias de manipulação da vontade dos cidadãos. Como garantir a necessária liberdade de expressão e informação ante a tal fenômeno, sem ameaçar a própria vitalidade da democracia e sem permitir a formação de um Estado “Leviatã”?

Mentiras e manipulações de opinião sempre fizeram parte das estratégias eleitorais e políticas. Notórios historicamente foram os escritos de Quintus Tullius Cícero, irmão de Cícero, grande orador e político romano da antiguidade que, no século I a.C. já aconselhava o irmão acerca de estratégias de manipulação de discurso visando à conquista de vitórias eleitorais (Cícero, 2020); o uso da propaganda estatal como ferramenta política pelo ministro nazista Joseph Goebbels, no século XX; ou mesmo a profusão de panfletos apócrifos em campanhas eleitorais nos mais diversos municípios brasileiros, durante todo o período da República.

Se a mentira e a manipulação das mentes sempre fizeram parte do cotidiano eleitoral, por outro lado, nos últimos anos, intensificou-se uma verdadeira guerra de desinformação, patrocinada, especialmente, com o uso sistemático das novas tecnologias. De posse de um microcomputador ou mesmo de um simples smartphone, qualquer um pode se tornar, no mundo de hoje, um produtor de conteúdo, verdadeiro ou falso, capaz de influenciar dezenas, centenas, milhares ou até mesmo milhões de outras pessoas.

Ao mesmo tempo, os “engenheiros do caos”, expressão popularizada por Guiliano da Empoli (2019)EMPOLI, Giuliano da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. Belo Horizonte: Vestígio Editora, 2019. que agrupa físicos, engenheiros de computação e publicitários, trabalham para explorar, da forma mais eficaz possível, as possibilidades de disseminação em massa de conteúdos possibilitada por essas novas tecnologias, assumindo o protagonismo das campanhas políticas e eleitorais e conduzindo os rumos do debate público a partir da manipulação da informação, cada vez mais segmentada em um processo de leitura comportamental de cada eleitor estabelecida a partir da captura dos hábitos e gostos de cada indivíduo possibilitada pelo uso das novas tecnologias que interpretam costumes e tendências de cada sujeito no mundo digital.

O direito á informação é um desdobramento da liberdade de expressão, fundamental ao exercício do livre discurso em uma democracia. Desta forma, questiona-se: deve o Estado coibir manifestações políticas que possam confundir ou iludir cidadãos? Qual deve ser o limite da atuação do Estado brasileiro, e do seu braço jurídico, a Justiça Eleitoral, no combate à desinformação nas campanhas eleitorais?

Nos últimos anos, a Justiça Eleitoral brasileira, bem como o Supremo Tribunal Federal, têm sido constantemente desafiados com esses questionamentos. Um dos mais polêmicos e controversos desses desafios ocorreu no ano de 2010, quando o Supremo Tribunal Federal foi instado a decidir sobre os limites aceitáveis para a sátira e as piadas praticadas e difundidas em programas humorísticos envolvendo candidatos, partidos políticos e agentes públicos em períodos de campanhas eleitorais.

Segundo o artigo 45 da Lei nº. 9.504/97 (Lei das Eleições): “é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito”. A referida norma, embora prevista desde 1997, foi, nas eleições de 2010, pela primeira vez efetivamente posta em prática pelo Tribunal Superior Eleitoral, o que gerou protestos das mais diversas ordens, a exemplo de uma grande passeata na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, realizada na manhã do dia 22 de agosto, um domingo. Ante as supostas violações à liberdade de imprensa promovidas pela referida lei, a ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), promoveu, junto ao Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.451 (ADI 4451), questionando a compatibilidade da norma legal que proibia o humor nas eleições em face da Constituição de 1988.

Em julgamento de medida cautelar relativa à referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, suspendeu a eficácia dos incisos II e III do artigo 45 da Lei das Eleições, os quais vedavam o uso de trucagem e montagem que viessem a degradar ou ridicularizar partido, candidato ou coligação, bem como a veiculação ou difusão de opinião acerca de candidato, partido, coligação, seus órgãos ou representantes, liberando, assim, o humor nas eleições e, ao mesmo tempo, permitindo uma maior liberdade no exercício da cobertura jornalística das mesmas por parte de emissoras de rádio e TV. Para o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.451, a liberdade de imprensa deve ser plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias, tanto no período não eleitoral como também em período de eleições, devendo, portanto, ser assegurado, em qualquer ocasião, o direito das emissoras de rádio e TV de “produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos, pré-candidatos e autoridades em geral”.

Relatada pelo Ministro Carlos Ayres Britto, a decisão tomada pelo STF, em 2010, fundamentou-se na concepção segundo a qual “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”, devendo, em virtude de tal fato, ser respeito um “dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu”.

Mesmo após o julgamento da ADI 4.451 pelo STF, a polêmica acerca dos limites aceitáveis para o humor e a sátira nas campanhas eleitorais se manteve. Durante as eleições de 2014, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro determinou a retirada de dois vídeos do grupo humorístico “Porta dos Fundos”, veiculados no YouTube, que indiretamente satirizavam o então candidato a governador do estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Os vídeos, divulgados a poucos dias do pleito, chegaram a ser retirados do ar, porém, ainda antes do julgamento de um Mandado de Segurança impetrado pela Google Brasil Internet Ltda., responsável pelo YouTube, em que a decisão da Coordenadoria de Fiscalização da Propaganda Eleitoral do TRE-RJ foi questionada, os vídeos voltaram ao ar, uma vez que o candidato Garotinho foi derrotado no pleito, fazendo com que a decisão tomada pelo Tribunal perdesse o seu objeto, uma vez constatada a perda da suposta potencialidade lesiva dos vídeos para o equilíbrio do pleito. O mérito da decisão tomada pela Coordenadoria de Fiscalização da Propaganda Eleitoral do TRE-RJ, contudo, não chegou de fato a ser definitivamente apreciado.

Com o incremento das estratégias de divulgação em massa de notícias falsas ou informações manipuladas, novas preocupações passaram a ser objeto das ações propostas perante a Justiça Eleitoral ou mesmo das resoluções publicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral para as eleições gerais e/ou municipais. O combate às mais diversas estratégias de desinformação, utilizadas em escala cada vez maior por candidatos e seus apoiadores, com o auxílio decisivo da internet e de outras novas tecnologias, passou a ser o alvo principal da ação das instituições que têm como objetivo a busca da garantia da normalidade e da legitimidade do exercício do poder de sufrágio popular.

Diante de ataques sistematizados à lisura do processo eletrônico de votação e à independência do Poder Judiciário na condução das eleições, decisões controversas, muitas delas ampliando o escopo de conceitos jurídicos indeterminados como “abuso de poder político”, “meios de comunicação social”, dentre outros, passaram a ser tomadas pela Justiça Eleitoral.

Um dos casos mais polêmicos e controversos envolveu o julgamento, pelo Tribunal Superior Eleitoral, do Recurso Ordinário Eleitoral nº. 0603975-98.2018.6.16.0000, no qual o deputado estadual paranaense Fernando Francischini foi declarado inelegível por prática de abuso de poder dos meios de comunicação social durante as eleições gerais de 2018.

Francischini foi, naquele pleito, eleito como o deputado estadual mais votado do estado do Paraná. Ocorre que, no dia em que foi realizado o primeiro turno das eleições, o então candidato à reeleição Franscischini realizou uma live em suas redes sociais, com público estimado em dezenas de milhares de espectadores, levantando suspeitas sobre a lisura do processo de votação, afirmando, sem demonstrar, que teria em sua posse elementos comprobatórios de fraudes em urnas eletrônicas supostamente ocorridas durante a votação daquele dia (fato nunca comprovado).

A live realizada por Franscischini, caracterizadora, a princípio, de prática de propaganda irregular no dia da eleição sujeita a multa, em conformidade com a Lei das Eleições, foi interpretada, ante um contexto mais amplo de desinformação vislumbrado naquele pleito, como uma prática de abuso dos meios de comunicação social, cuja consequência em eventual condenação é a perda do mandato eletivo e a inelegibilidade por 08 anos, em conformidade com a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10). Ressalte-se que, até então, não havia consenso acerca da dimensão da expressão “meios de comunicação social”, se esta expressão abrangeria ou não o uso da internet. Além disso, vale destacar, a legislação em vigor, para caracterizar um ato abusivo capaz de gerar inelegibilidade, exige a presença de uma “gravidade de circunstâncias” no ato sob julgamento, conceito jurídico indeterminado e controverso. Para ser grave o suficiente para levar um candidato campeão de votos à inelegibilidade, o ato deve ter contribuído efetivamente para a manipulação da vontade do eleitor (quebra da legitimidade do sufrágio)? Ou basta que o ato seja tumultuador do processo eleitoral, gerando uma suposta “quebra da normalidade eleitoral”?

Mais recentemente, o ex-presidente Jair Bolsonaro, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022, foi declarado inelegível por prática de abuso de poder nas eleições, em virtude de ato ocorrido ainda durante o período pré-eleitoral, na chamada pré-campanha, quando, na condição de presidente da República, reuniu embaixadores estrangeiros em Brasília e proferiu ataques á credibilidade da Justiça Eleitoral e ao processo eletrônico de votação vigente no país.

O Tribunal Superior Eleitoral, seguindo em parte do precedente da sua decisão no caso Francischini, e alegando que a atitude de Bolsonaro faria parte de um amplo e sistematizado processo de desinformação eleitoral que estaria colocando em risco a normalidade das eleições e a legitimidade do sufrágio, condenou, por maioria, o ex-presidente à inelegibilidade por oito anos, por prática de abuso de poder nas eleições de 2022.

É de se destacar ainda que, durante o processo eleitoral de 2022, sem que tenha se observado a anualidade eleitoral, prevista no artigo 16 da Constituição Federal, segundo a qual alterações nas regras eleitorais só podem ser aplicadas em pleitos que venham a ocorrer após um ano da sua vigência, o TSE, em 20 de outubro de 2022 (dez dias antes do segundo turno das eleições gerais), publicou a Resolução nº 23.714/22, dispondo sobre o enfrentamento à desinformação atentatória à integridade do processo eleitoral e alterando, assim, regras concernentes ao poder de polícia nas eleições.

De acordo com a referida resolução, é vedada, nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos. Verificada tal hipótese, Tribunal Superior Eleitoral, em decisão fundamentada, determinará às plataformas a imediata remoção da URL, URI ou URN, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) a R$ 150.000,00 (cem e cinquenta mil reais) por hora de descumprimento, a contar do término da segunda hora após o recebimento da notificação.

Entre a antevéspera e os três dias seguintes à realização do pleito, esta multa incidirá a partir do término da primeira hora após o recebimento da notificação, podendo a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral determinar a extensão de decisão colegiada proferida pelo Plenário do Tribunal sobre desinformação, para outras situações com idênticos conteúdos, sob pena de aplicação da multa prevista, inclusive nos casos de sucessivas replicações pelo provedor de conteúdo ou de aplicações.

Além disso, prevê a resolução que produção sistemática de desinformação, caracterizada pela publicação contumaz de informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral, autoriza a determinação de suspensão temporária de perfis, contas ou canais mantidos em mídias sociais. Havendo descumprimento reiterado de determinações baseadas na resolução, o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral poderá determinar a suspensão do acesso aos serviços da plataforma implicada, em número de horas proporcional à gravidade da infração, observado o limite máximo de vinte e quatro horas.

Em face da Resolução 23.714/22, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7162, alegando que as regras questionadas estabelecem vedação e sanções não previstas em lei, amplia o poder de polícia do presidente do TSE, em prejuízo da colegialidade, e afasta do Ministério Público a iniciativa de ações ou de medidas voltadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições. Na ação, o procurador-geral sustentou que, apesar do relevante propósito de coibir a desinformação e resguardar a integridade do processo eleitoral, dispositivos da resolução violam diversas regras constitucionais. Entre elas, citou a competência legislativa sobre direito eleitoral, e a liberdade de expressão, independentemente de censura prévia.

Inobstante os argumentos suscitados pelo Procurador Geral da República, a referida ADI 7162 foi julgada improcedente pelo STF, validando-se, portanto, o conteúdo da Resolução TSE nº. 23.714/22.

O COMBATE ÀS “FAKE NEWS” E O ENIGMA DA TOLERÂNCIA NAS DISPUTAS ELEITORAIS NO BRASIL

Qual o limite entre a verdade e a mentira em um discurso político? Devemos ser intolerantes com os intolerantes em um processo eleitoral? Qual o limite dessa tolerância? Qual deve ser o papel do Estado, e em especial da Justiça Eleitoral, na contenção da difusão de mentiras e “fake news” em uma eleição? A Justiça Eleitoral deve ter um papel criativo na produção de mecanismos de combate a novas formas e práticas de abuso de poder nas eleições, especialmente no que se refere ao combate à desinformação?

Definir o que é verdade ou mentira em um debate público é o primeiro dos grandes desafios impostos a qualquer interprete de qualquer discurso. Muitas vezes, fatos interpretados como mentirosos, ao longo da história da humanidade, foram comprovados como verdadeiros, tempos depois. O inverso também já aconteceu. A coibição estatal, portanto, de presumíveis mentiras, em determinadas situações, pode ser um instrumento de repressão à busca da verdade (se é que é possível a conquista definitiva dessa verdade).

A própria ambiguidade linguística pode gerar interpretações variadas sobre um mesmo discurso, revelando o risco inerente à expansão dos meios de repressão estatal à divulgação de “mentiras” em um debate político-eleitoral. Neste sentido, Gustavo Maultasch (Maultasch, p. 46-47) oferece importante reflexões: “é impossível regular a expressão de maneira justa dado o fato de que a linguagem – seja oral, escrita ou simbólica – é sempre ambígua, incerta, iridescente, refletindo cores distintas a depender do ângulo que se olha”.

De forma reiterada, alega-se como instrumento justificador de decisões judiciais mais restritivas ao livre discurso, pautadas no argumento da necessidade de combate ao discurso de ódio e à profusão de mentiras no debate público eleitoral, que devemos ser intolerantes com os intolerantes, máxima atribuída a Karl Popper como um parâmetro supostamente seguro de atuação estatal na busca da preservação da democracia e de um debate efetivamente livre. Mas, afinal de contas, o que significa “ser intolerante com os intolerantes”? Como reconhecer o limite entre o que é tolerável e o que é intolerável sem flertar com a censura e o autoritarismo?

O famoso “paradoxo da tolerância” é apresentado no tomo I da obra “A sociedade aberta e seus inimigos”, de Karl Popper, escrita em 1945, nos primórdios do pós-guerra, em duas notas de rodapé ao capítulo VII, no qual é discutido o “princípio da liderança” em Platão. Caracteriza-se a tolerância pela disposição à aceitação de pontos de vista e atitudes das quais se discorda, pelo respeito ao pluralismo de escolha e de ideias.

Defensor de uma sociedade aberta, fundada na liberdade humana, Popper estabelece, nos dois volumes de “A sociedade aberta e seus inimigos”, uma crítica feroz às perspectivas de mundo voltadas ao “tribalismo”, à imobilidade e ao coletivismo, as chamadas “sociedades fechadas”, fundadas em uma defesa incondicional de um historicismo fatalista. Neste sentido, como bem destaca Mário Vargas Llosa (2019)LLOSA, Mário Vargas. O chamado da tribo: grandes pensadores para o nosso tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019., Popper “autopsia e desqualifica com uma dureza incomum para ele”, aquele que considera como grande vilão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ícone do historicismo moderno, além de fazer críticas contumazes a Platão, a quem dedica praticamente toda a análise do primeiro volume da sua obra, e também a Karl Marx, por compreender que o fatalismo historicista das suas teses contrariava os ideais de liberdade individual, inerentes a uma sociedade aberta.

Fiel entusiasta da liberdade, Popper guardou, nas suas reflexões, uma análise complexa dos limites desta mesma liberdade, buscando sempre preservar o ideal de uma sociedade aberta. É no sentido de vislumbrar os paradoxos inerentes ao próprio exercício da liberdade que Popper discorre então sobre o “paradoxo da tolerância”, segundo o qual “a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância”. Segundo Popper (1987):

Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.

Ao contrário do que alguns imaginam, no entanto, Popper, atuando em prol da defesa de uma sociedade aberta, alerta que:

Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia.

Destaca Popper, portanto, a sua aversão à defesa da censura de ideias, filiando-se, assim, a uma tradição de pensamento que remonta à era moderna e ao início da era contemporânea, a partir de nomes como o de John Milton (Milton, 1999), autor, em 1644, da obra “Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra”, considerada um marco histórico fundamental na história da conquista da liberdade de expressão como valor fundamental, que ao questionar sobre “quem jamais ouviu dizer que a verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto?”, afirmou que a refutação dessa suposta verdade “é a melhor e mais eficaz das proibições”, e o de John Stuart Mill (2018)MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Campinas: Vide Editorial, 2018., que ao escrever “Sobre a Liberdade” defende que o silenciamento de uma opinião minoritária verdadeira tem como consequência a definitiva perda da oportunidade de substituição do erro pela verdade, fazendo com que heresias sejam perpetuadas, uma vez que, na sua visão, não existiria um critério externo apto a aferir a infalibilidade de qualquer autoridade humana, salvo um procedimento dialógico livre e aberto.

Ressalta Popper, contudo, a necessidade de combater aqueles que, com armas e violência, “por meio de punhos e pistolas” tentam impor suas vontades e opiniões, suprimindo o pluralismo e o conflito democrático de ideias, próprios de uma sociedade aberta.

Se, por um lado, a supressão, por si só, de manifestações de filosofias intolerantes, às quais podem ser contrapostas a partir de uma argumentação racional, de forma a serem controladas pela opinião pública, seria ofensiva ao ideal de uma sociedade livre e, portanto, “pouquíssimo sábia”, o direito de suprimir tais condutas pode ser excepcionalmente proclamado, caso os intolerantes se recusem a atuar no campo da argumentação racional e da interpretação da opinião pública, respondendo às críticas a partir do uso de “punhos e pistolas”. Neste caso, conclui Popper (1987)POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.:

Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à tolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos.

Tzvetan Todorov (2012)TODOROV, Tzvetan. Os inimigos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., criticando, ao mesmo tempo, aqueles que defendem o “messianismo político”, revelado na supervalorização do Estado, tornado onipotente, e os defensores do ultraliberalismo, que, ao contrário, defendem uma supremacia absoluta do indivíduo, destaca, por sua vez, que, através de leis e normas, é possível e necessária a restrição da liberdade, a fim de esta não se torne uma ameaça. O caminho da moderação, assim, se revelaria como o mais seguro, ao buscar repelir, ao mesmo tempo, a tirania dos indivíduos e a tirania das instituições. Para Todorov, a democracia se define menos pelas instituições e mais pela maneira como o poder é exercido. A forma ideal de exercício do poder democrático, na perspectiva de Todorov, revela-se no pluralismo, uma vez que nenhum poder, por mais legítimo que seja, deve ser confiado às mesmas pessoas ou confiados às mesmas instituições. É fundamental para uma democracia, segundo Todorov, que o Poder Judiciário não seja submetido ao poder político; que o poder midiático seja plural e independente do governo; que o poder econômico e o poder político sejam independentes entre si; e que a vontade do povo seja limitada pelos “grandes princípios definidos após uma reflexão madura e inscritos na Constituição do país, ou simplesmente herdados da sabedoria dos povos” (Todorov, 2012, p. 18).

Observa-se, portanto, das palavras de Todorov, em contraste com as observações formulados por Popper, uma predisposição à defesa da possibilidade de uma maior ação estatal na moderação do discurso, com possibilidades de restrição á liberdade de expressão em favor de uma ponderação entre uma tendência de tirania das instituições em face de uma outra tendência de tirania de um individualismo anticomunitário.

CONCLUSÕES

É inegável que, no atual estágio da civilização, o risco gerado pela manipulação da informação e sua disseminação em massa, por meio das novas tecnologias, tem se revelado como uma ameaça concreta à democracia e à legitimidade do poder soberano dos povos. Por outro lado, o remédio para a contenção desta ameaça, a ser manipulado pelas instituições judiciárias, não pode ser dosado ao ponto de gerar a morte do paciente, sufocando o livre mercado de ideias e a possibilidade de crítica e oposição na arena política, incluída neste contexto a própria crítica democrática às instituições do Estado.

O Direito Público tem como princípio basilar, construído a partir da evolução democrática, o princípio da legalidade, firmado com o intuito de limitar o poder estatal em face dos indivíduos justamente para garantir a liberdade e combater o arbítrio, em detrimento de um modelo “leviatã” de Estado. É importante que a Justiça Eleitoral atue com firmeza em face da disseminação em massa de desinformações que ameacem a integridade democrática. Tal atuação, contudo, deve se circunscrever os limites da legalidade e da constitucionalidade, de forma a evitar o messianismo judiciário que pode terminar por sufocar a democracia e a liberdade. Não existe democracia verdadeira sem a liberdade de crítica e a possibilidade de uma ampla circulação de ideias.

O combate à desinformação nas eleições e no processo democrático como um todo precisa se estabelecer a partir de um modelo multifatorial, em que o exercício da jurisdição repressiva do Estado se apresente como a solução final e excepcional e não como a salvaguarda definitiva da normalidade e da legitimidade democrática. É preciso o investimento da boa informação como contraponto à desinformação. É preciso o investimento em educação, a fim de que o cidadão possa ser habilitado a melhor distinguir uma informação verdadeira de uma informação falsificada.

O desafio é grande! Veículos da imprensa, agências de checagem de dados, pesquisadores, especialistas em comunicação digital, partidos políticos, movimentos sociais, universidades e Justiça Eleitoral precisam cada vez mais se unir na busca por soluções criativas e mais eficazes no combate às ameaças crescentes à democracia decorrentes da disseminação em massa de desinformação eleitoral e “fake news”, atentando sempre para a complexidade do fenômeno e para a necessidade premente de preservação das balizas estruturantes da sociedade democrática, dentre as quais a liberdade para a circulação de ideias em conflito deve ser ao máximo alargada e incentivada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Aceito
    30 Dez 2023
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