Abstract
In this article, I present a sketch of a new proposition to guide organizational studies: the Cicle of Epistemic Matrices. Inspired by Thomas Kuhn and based on the thesis of paradigms' incommensurability, Gibson Burrell and Gareth Morgan drew the diagram of sociological paradigms, but its inclusion in the academy has encouraged a paradigms war. The Circle of Epistemic Matrices also provides an outline for the guidance of organizational studies, but it is based on Habermas and defends the thesis of cognitive incompleteness, suggesting that the sociological and organizational knowledge grows according to the thesis of epistemic reconstructions. To accomplish these propositions and elaborations, I present the debate about the paradigms' war in literature and I question the adequacy of sociological paradigms of Gibson Burrell and Gareth Morgan to organizational studies, with the issue of the influence that it suffered from Kuhnian paradigms and logic. In the following sections, there is an exhibition of alternative proposition - the of Circle of Epistemic Matrices - and, also, I support the thesis of cognitive incompleteness and the thesis of epistemic reconstructions in order to bring a new theory of knowledge development to the area. Finally, I present the findings and thoughts for future research.
Keywords:
Organization Theory; Circle of Epistemic Matrices; Paradigms; Critical Theory; Epistemology.
Resumo
Neste artigo, apresento um esboço de proposição para orientar os estudos organizacionais: o Círculo das Matrizes Epistêmicas. Inspirados por Thomas Kuhn e apoiando-se na tese da incomensurabilidade dos paradigmas, Gibson Burrell e Gareth Morgan elaboraram o diagrama dos paradigmas sociológicos, mas sua inserção na academia vem estimulando uma guerra paradigmática. O Círculo das Matrizes Epistêmicas também proporciona um esquema para orientação dos estudos organizacionais, mas baseia-se em Habermas e defende a tese da incompletude cognitiva, sugerindo que o conhecimento sociológico e organizacional se desenvolve de acordo com a tese das reconstruções epistêmicas. Para realizar essas proposições e elaborações, apresento o debate sobre a guerra paradigmática na literatura e questiono a adequação dos paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan para os estudos organizacionais, problematizando a influência que eles sofreram dos paradigmas e da lógica kuhniana. Nas seções seguintes, há uma exposição da proposição alternativa - o Círculo das Matrizes Epistêmicas - e, também, a defesa da tese da incompletude cognitiva e das reconstruções epistêmicas, a fim de trazer uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento para a área. Finalizando, apresento as conclusões e reflexões para futuras pesquisas.
Palavras-chave:
Estudos Organizacionais; Círculo das Matrizes Epistêmicas; Paradigmas; Teoria Crítica; Epistemologia.
Resumen
En este artículo presentamos un esquema propuesta para guiar los estudios organizacionales: el Círculo de matrices epistémicas. Inspirado por Thomas Kuhn y apoyándose en la tesis de la inconmensurabilidad de los paradigmas, Gibson Burrell y Gareth Morgan elaboraron el esquema de los paradigmas sociológicos, pero su inclusión en la academia ha estimulado una guerra paradigmática. El Círculo de la matrices epistémicas también proporciona un esquema para orientación de los estudios organizacionales, pero se basa en Habermas y defiende la tesis del incompletitud de la cognición, lo que sugiere que el conocimiento sociológico y organizativo se desarrolla de acuerdo con la tesis de las reconstrucciones epistémicas. Para llevar a cabo estas proposiciones y elaboraciones, presenta el debate sobre la guerra paradigmática en la literatura y cuestionar la adecuación de los paradigmas sociológicos de Gibson Burrell y Gareth Morgan a los estudios organizacionales, cuestionando la influencia que sufrieron de paradigmas y de la lógica de Kuhn. En las siguientes secciones, hay una propuesta alternativa de la exposición - el Círculo de matrices epistémicas - y también la defensa de la incompletitud de la cognición tesis y de las reconstrucciones epistémicas, con el fin de llevar una nueva teoría del desarrollo del conocimiento al campo. Por último, se presentan las conclusiones y reflexiones para la investigación futura.
Palabras clave:
Estudios Organizacionales. Círculo de matrices epistémicas; Paradigmas. Teoría Crítica. Epistemología.
Introdução
O diagrama de paradigmas sociológicos apresentados por Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.) tem sido objeto de inúmeros debates e controvérsias no campo dos estudos organizacionais. Críticas à proposição dos pesquisadores são comuns, embora a maior parte dos estudiosos ainda recorra com frequência às suas explicações epistemológicas e analíticas. Além disso, a inserção do diagrama em nossos domínios, se, por um lado, colocou em questão a hegemonia funcionalista ao trazer paradigmas alternativos, por outro, acirrou disputas acadêmicas em torno da tese da incomensurabilidade dos paradigmas.
O objetivo deste artigo é apresentar um esboço de proposta alternativa ao diagrama de paradigmas sociológicos para orientar os estudos organizacionais: o Círculo das Matrizes Epistêmicas. Com essa proposição teórico-analítica, busco sustentar uma nova lógica de pensamento para os estudos organizacionais a fim de superar a mentalidade paradigmática inserida por Burrell e Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.). O Círculo das Matrizes Epistêmicas é constituído das seguintes matrizes que se guiam pelos três interesses cognitivos discutidos por Jürgen Habermas (1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. ) em Conhecimento e Interesse: a matriz empírico-analítica (interesse técnico), a matriz hermenêutica (interesse prático) e a matriz crítica (interesse emancipatório).
Ao invés do quadrado que abriga os paradigmas do funcionalismo, interpretativismo, estruturalismo radical e humanismo radical (Figura 1), proponho um círculo dividido em três partes iguais e, em cada uma delas, uma matriz epistêmica (Figura 2). Não se trata, no entanto, de escolher uma única matriz para guiar as pesquisas, mas de mudar a maneira de pensar sobre isso, pois a chave para o avanço das pesquisas, do ponto da mudança social, seria conciliar os interesses cognitivos. Isto porque, para Jürgen Habermas (1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. ), os interesses cognitivos compõem a unidade do conhecimento e não podem ser tomados separadamente, uma vez que quando interpretamos os fenômenos sociais, é possível constatar que eles são interdependentes.
As matrizes epistêmicas são um referencial para os sistemas de produção de conhecimento, que denomino abordagens sociológicas. Em uma pesquisa realizada em 2012 sobre a produção da área de estudos organizacionais, identifiquei seis delas: funcionalista, interpretativista, humanista, estruturalista, pós-estruturalista e realista crítica. Cada uma das abordagens sociológicas produz suas próprias teorias e metodologias, e percorre o círculo em busca de suas identidades epistêmicas. O que constatei foi que algumas abordagens sociológicas são puras, pois preferem se situar em apenas uma das matrizes: é o caso da funcionalista (matriz empírico-analítica), da interpretativista (matriz hermenêutica) e da humanista (matriz crítica). No entanto, outras abordagens sociológicas são híbridas, pois transitam em mais de uma matriz epistêmica ao mesmo tempo: é o caso da estruturalista (matriz empírico-analítica e matriz hermenêutica), da pós-estruturalista (matriz hermenêutica e matriz crítica) e da realista crítica (matriz empírico-analítica, matriz hermenêutica e matriz crítica).
Nas abordagens híbridas, ao invés de se limitarem pelas incomensurabilidades, os pesquisadores percebem que estão experimentando uma incompletude cognitiva, pois poderiam abranger mais interesses cognitivos em suas investigações. Assim, realizam reconstruções epistêmicas: buscam as origens epistemológicas das teorias que trabalham e
descobrem caminhos para combinar as matrizes epistêmicas, criando uma nova abordagem sociológica. Isso também ocorre com os adeptos das abordagens puras que, do mesmo modo, veem-se diante de limitações cognitivas, pois estes criam teorias e metodologias de fronteira que se encontram nos limites da matriz em que se situam, mas não chegam propriamente a combinar matrizes epistêmicas. No primeiro caso, temos reconstruções epistêmicas avançadas e no segundo caso, reconstruções epistêmicas embrionárias.
O que é singular nessa proposta é que não há um limite quanto à criação de novas abordagens sociológicas; logo, novas combinações podem surgir e elas deveriam ser estimuladas, pois integram interesses cognitivos. Por outro lado, ao incentivar o diálogo entre matrizes epistemológicas, mitiga-se a guerra paradigmática, pois tal proposta coloca em questão o modelo de Gibson Burrell e Gareth Morgan, que se baseia na lógica e nas ideias kuhnianas. Thomas Kuhn defende em seu trabalho a existência de revoluções científicas que fazem surgir novos paradigmas quando são superadas incomensurabilidades. Na proposta que apresento, o conhecimento não se desenvolve porque paradigmas rivais geram incomensurabilidades e engendram essas revoluções, mas porque os pesquisadores constatam incompletudes cognitivas e realizam reconstruções epistêmicas, que geram novas teorias e metodologias e, por vezes, são capazes de abranger outras matrizes epistêmicas. Assim, no lugar dos paradigmas, temos matrizes epistêmicas; ao invés de incomensurabilidades, ocorrem incompletudes cognitivas e as revoluções científicas são substituídas por reconstruções epistêmicas. Esta é uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento para as ciências sociais e os estudos organizacionais, teoria esta que aponta para uma nova forma de pensar a própria ciência.
Para realizar essas proposições e elaborações, na primeira parte do artigo, situo a importância do debate sobre a tese da incomensurabilidade dos paradigmas introduzida por Gibson Burrell e Gareth Morgan, bem como a necessidade de tentar superar os impasses trazidos por ela, em especial, a rivalidade que se estabeleceu entre os pesquisadores. A partir do debate presente na literatura sobre a guerra paradigmática nos estudos organizacionais, constato a dificuldade de um consenso e do abandono da lógica kuhniana. Revelo, assim, que a guerra paradigmática é estéril porque tal lógica não se adequa às ciências sociais e aos estudos organizacionais, uma vez que as revoluções científicas não explicam como o conhecimento se desenvolve em nossa área.
Na segunda parte, apresento uma alternativa à teoria do desenvolvimento do conhecimento kuhniana, a partir de Jürgen Habermas, enfatizando a interpretação do filósofo de que o conhecimento se desenvolve devido a interesses cognitivos (técnico, prático e emancipatório) a serem considerados conjuntamente, constituindo uma unidade do conhecimento. Dessa forma, trago um novo referencial para os estudos organizacionais: o Círculo das Matrizes Epistêmicas. Na terceira parte, discuto a dinâmica que anima o círculo, apresentando uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento, sustentada pelas teses da incompletude cognitiva e das reconstruções epistêmicas, embrionárias e avançadas, que são apoiadas empiricamente pelas próprias características das abordagens sociológicas que analisei qualitativamente a partir da produção acadêmica da área. Finalizando, apresento as conclusões, articulando os conceitos discutidos e apontando algumas limitações do trabalho.
Questionando o uso dos paradigmas nos estudos organizacionais
Nesta seção, retomo a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, trazida para os estudos organizacionais pelos paradigmas sociológicos introduzidos por Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.). A intenção é revelar como esta desencadeou um debate longo e interminável na área, que até hoje não encontrou um consenso ou resolução. Para isso, em primeiro lugar, discuto brevemente a teoria kuhniana de desenvolvimento do conhecimento e em seguida, apresento e explico o diagrama dos paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan. Em seguida, evidencio como o debate sobre a guerra paradigmática se desenvolveu no campo dos estudos organizacionais, revelando as posições dos pesquisadores, bem como a esterilidade do debate sobre essas batalhas. Em seguida, faço uma crítica da teoria kuhniana do desenvolvimento para colocar em questão a ideia de que as revoluções científicas explicam como o conhecimento se desenvolve nos estudos organizacionais.
A tese da incomensurabilidade dos paradigmas é tomada de empréstimo pelos estudiosos das organizações do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn, publicado em 1962KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1962/1997. 264 p. . A teoria de desenvolvimento do conhecimento kuhniana é derivada da observação de uma sequência de períodos de ciência normal, que representa a adesão de uma comunidade de pesquisadores a um paradigma, que é interrompida por revoluções científicas, nas quais episódios extraordinários se apresentam a partir de anomalias e crises no paradigma dominante, culminando com sua ruptura. A ciência normal procura enquadrar os fenômenos nos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis de um paradigma, apontando novas soluções para problemas de acordo com modelos exemplares. Tal ciência é conservadora e até mesmo dogmática, mas considerada por Thomas Kuhn como necessária para o progresso científico.
Quando a ciência normal fracassa na produção de resultados, emergem as anomalias e instaura-se a crise de um paradigma. É o caso, por exemplo, do fracasso do paradigma newtoniano que abre espaço para o surgimento do paradigma relativístico na Física, o que representa uma revolução científica. O velho e o novo paradigma, então, competem pela preferência da comunidade científica. Os paradigmas rivais têm padrões científicos e definições diferentes, de modo que surge a incomensurabilidade dos paradigmas, o que gera um desentendimento na comunidade. Para que o novo paradigma se estabeleça, é necessário que seus defensores apresentem provas de sua validade e tentem persuadir os seus críticos. Além disso, a incomensurabilidade se estabelece porque as diferenças no modo de fazer ciência criam comunidades de linguagem distintas, de modo que é preciso que haja uma tradução para que um novo entendimento comum seja alcançado. Assim, as elaborações de Thomas Kuhn consolidam uma lógica explicativa para a forma como o conhecimento evolui.
No campo dos estudos organizacionais, as discussões epistemológicas são frequentemente realizadas a partir do livro "Sociological Paradigms and Organisational Analysis"de Gibson Burrell e Gareth Morgan, publicado em 1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p., texto no qual os autores realizam apropriações da lógica explicativa kuhniana. A despeito das críticas dirigidas a esse trabalho, dificilmente uma abordagem sobre epistemologia nos estudos organizacionais se isenta de citá-lo, pois sua influência diante dos pesquisadores da área foi significativa. Nos parágrafos seguintes, apresento e explico o diagrama dos paradigmas sociológicos dos autores para que os leitores e leitoras possam recuperar seus parâmetros e acompanharem a linha de raciocínio que desenvolvo nas próximas páginas.
O modelo proposto por Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.) recorre a duas dimensões: a sociologia da regulação e a sociologia da mudança radical, que são perpassadas pela oposição entre objetividade e subjetividade, resultando em um diagrama com quatro paradigmas: o funcionalismo, o interpretativismo, o estruturalismo radical e o humanismo radical.
Para constituir esse diagrama, os pesquisadores recorrem a quatro pressupostos sobre a natureza das ciências sociais, que afirmam se organizar nas seguintes vertentes de debate:
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Realismo versus Nominalismo (o debate ontológico): A posição realista defende que o mundo social externo e a cognição individual é um mundo real constituído de estruturas rígidas, tangíveis e relativamente imutáveis. A posição nominalista, por sua vez, tem como pressuposto que o mundo social externo e a cognição individual são constituídos por nomes, conceitos e rótulos utilizados para estruturar a realidade;
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Positivismo versus Antipositivismo (o debate epistemológico): A posição positivista é utilizada para caracterizar epistemologias que tentam explicar e predizer o que acontece no mundo social por meio de regularidades e relacionamentos causais entre os seus elementos constituintes. Além disso, o positivismo é essencialmente baseado em abordagens tradicionalmente utilizadas nas ciências naturais. A posição antipositivista se coloca contra a utilidade de buscar leis ou identificar regularidades no mundo social. Para os antipositivistas, o mundo social é essencialmente relativista e somente pode ser entendido a partir do ponto de vista dos indivíduos diretamente envolvidos nele: a posição do investigador como um observador, típica do positivismo, é rejeitada e a absoluta objetividade das ciências também;
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Determinismo versus Voluntarismo (o debate da natureza humana): A visão determinista afirma que o homem e suas atividades são completamente determinados pela situação ambiental na qual eles se inserem; já a visão voluntarista considera o homem completamente autônomo e autodeterminado;
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Teoria Nomotética versus Teoria Idiográfica (o debate metodológico): A abordagem nomotética prefere basear a pesquisa em um protocolo sistemático e técnico, valorizando métodos empregados nas ciências naturais como os testes de hipóteses, bem como a generalização e o rigor científico. A abordagem idiográfica da ciência social, por sua vez, é baseada na visão de que só é possível obter conhecimento de primeira-mão do sujeito sob investigação, de modo que valoriza o seu background e sua história de vida, além de enfatizar a análise das questões subjetivas e os seus insights.
Esses pressupostos são organizados pelos autores em torno das abordagens objetivistas e subjetivistas da ciência social da seguinte maneira:
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Abordagem objetivista: realista, positivista, determinista e nomotética;
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Abordagem subjetivista: nominalista, antipositivista, voluntarista e idiográfica.
Paralelamente, Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.) também levam em consideração alguns pressupostos sobre a natureza da sociedade, enfatizando o que eles nomeiam como debate entre ordem e conflito. Baseando-se nos conceitos de Talcott Parsons e Ralf Dahrendorf, eles apontam duas teorias de sociedade que se ligam às seguintes palavras-chave:
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Visão de sociedade da ordem (ou integração): estabilidade, integração, coordenação funcional e consenso;
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Visão de sociedade do conflito (ou coerção): mudança, conflito, desintegração e coerção.
Considerando tal categorização problemática, eles decidem substituí-la pelas noções de regulação e mudança radical; introduzem, assim, a sociologia da regulação, para se referir a teóricos preocupados em elaborar explicações sobre a sociedade em termos de unidade e coesão, uma vez que se interessam pelo entendimento de forças sociais que previnem a visão hobbesiana de "guerra de todos contra todos". A sociologia da mudança radical, em contraste, teria como preocupação básica encontrar explicações para a mudança radical, os conflitos estruturais, os modos de dominação e a contradição estrutural. Além disso, também se interessa pela emancipação humana em relação às estruturas que limitam seu potencial de desenvolvimento; focaliza a privação material e física dos homens e as alternativas à aceitação do status quo. Em síntese, os autores acreditam que a distância que separa a sociologia da regulação da sociologia da mudança radical é similar à que separa a sociologia de Émile Durkheim da sociologia de Karl Marx.
Em linhas gerais, Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.) categorizam as preocupações dessas sociologias da seguinte forma:
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Sociologia da Regulação: status quo, ordem social, consenso, integração e coesão social, solidariedade, satisfação de necessidades e realidade;
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Sociologia da Mudança Radical: mudança radical, conflito estrutural, modos de dominação, contradição, emancipação, privação e potencialidade.
Partindo dessas elaborações, os autores, então, passam a constituir o perfil de cada um dos paradigmas que integram o diagrama. O modelo que acabo de apresentar passou a fazer parte do cotidiano e imaginário dos pesquisadores das organizações e gerou intensos debates principalmente pelo fato de Gibson Burrell e Gareth Morgan sustentarem que os paradigmas, tal como sugere Thomas Kuhn, são incomensuráveis, ou seja, é necessário realizar uma escolha e se posicionar, pois não seria possível "servir a dois senhores". Com o passar do tempo, esse debate se radicalizou gerando diversas batalhas entre os pesquisadores, constituindo uma verdadeira guerra paradigmática.
No Brasil, alguns pesquisadores (CALDAS, 2005CALDAS, M. P. Paradigmas em Estudos Organizacionais: Uma Introdução à Série. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 1, p. 53-57, jan. 2005. ) afirmam que Sociological Paradigms and Organisational Analysisé um dos textos mais influentes da teoria organizacional, embora efetivamente tenha sido pouco lido. Além disso, o trabalho de Gibson Burrell e Gareth Morgan passou a ser criticado, principalmente porque o modelo de paradigmas simultâneos e concorrentes teria causado polarização e segregação entre os pesquisadores. O recurso à lógica explicativa kuhniana para o desenvolvimento da ciência acirrou a rivalidade entre os defensores de cada um dos paradigmas e a tradução que poderia reconciliar a comunidade raramente tem sido realizada. Recuperei essas críticas recorrendo à literatura internacional, pois, enquanto no Brasil essa discussão foi realizada principalmente nos bastidores na década de 1990, após dez anos de uso do modelo sugerido por Gibson Burrell e Gareth Morgan, o debate sobre a tese da incomensurabilidade dos paradigmas emergiu nas revistas Organization Studies e Organization, intensificando-se de tal forma que não há qualquer sinal de consenso entre os pesquisadores sobre a questão.
Analisando os textos de Donaldson (1985DONALDSON, L. In Defence of Organization Theory A Reply to the Critics. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 196 p.), Reed (1995)REED, M. Reflections on the "Realist Turn" in Organization and Management Studies. Journal of Management Studies, Oxford, v. 42, n. 8, p. 1621-1644, Dec. 2005a. , Jackson e Carter (1991JACKSON, N.; CARTER, P. In Defence of Paradigm Incommensurability. Organization Studies, London, v. 12, n. 1, p. 109-127, jan. 1991. ; 1993JACKSON, N.; CARTER, P. "Paradigms Wars": A Response to Hugh Willmott. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 727-730, Sept. 1993. ), Willmott (1993aWILLMOTT, H. Breaking the Paradigm Mentality. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 681-719, Sept. 1993a.; 1993bWILLMOTT, H. Paradigm Gridlock: A Reply. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 727-730, Sept. 1993b. ), Hassard (1991HASSARD, J. Multiple Paradigms and Organizational Analysis: A Case Study. Organization Studies, London, v. 12, n. 2, p. 275-299, Apr. 1991. ; 1993HASSARD, J. Sociology and Organization Theory. Positivism, Paradigms e Postmodernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 168 p. ), Parker e McHugh (1991PARKER, M.; MCHUGH, G. Five Texts in Search of an Author: A Response to John Hassard's "Multiple Paradigms and Organizational Analysis". Organization Studies, London, v. 12, n. 3, p. 451-456, July 1991. ), Weaver e Gioia (1994WEAVER, G. R.; GIOIA, D. A. Paradigms Lost: Incommensurability vs. Structurationist Inquiry. Organization Studies, London, v. 15, n. 4, p. 565-590, July 1994. ; 1995), Burrell (1996BURRELL, G. Ciência Normal, Paradigmas, Metáforas, Discursos e Genealogia da Análise. In: CLEGG, S. et al. (Org.). Handbook de Estudos Organizacionais. Modelos de Análise e Novas Questões em Estudos Organizacionais. v.1. São Paulo: Atlas, 1996/1998. 439-462 p.), Deetz (1996DEETZ, S. Describing Difference in Approaches to Organization Science: Rethinking Burrell and Morgan and Their Legacy. Organization Science, Hanover, v. 7, n. 2, p. 191-207, Apr. 1996. ), Scherer (1998SCHERER, A. G. Pluralism and Incommensurability in Strategic Management and Organization Theory: A Problem in Search of a Solution. Organization, London, v. 5, n. 2, p. 147-168, May 1998.), Lewis e Grimes (1999LEWIS, M. W.; GRIMES, A. J. Metatriangulation: Building Theory from Multiple Paradigms. Academy of Management Review, New York, v. 24, n. 4, p. 672-690, Oct. 1999. ), Scherer e Steinmann (1999)SCHERER, A. G.; STEINMANN, H. Some Remarks on the Problem of Incommensurability in Organization Studies. Organization Studies, London, v. 20, n. 3, p. 519-544, May 1999. , Hassard e Kelemen (2002)HASSARD, J.; KELEMEN, M. Production and Consumption in Organizational Knowledge: The Case of the "Paradigms" Debate. Organization, London, v. 9, n. 2, p. 331-355, May 2002. e Tadajewski (2009TADAJEWSKI, M. The Debate that won't Die? Values Incommensurability, Antagonism and Theory Choice. Organization, London, v. 16, n. 4, p. 467-485, July 2009. ) foi possível mapear o percurso da guerra paradigmática no campo. Scherer e Steinmann (1999) classificaram os autores que discutiram esta problemática segundo suas posições:
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Lex Donaldson (1985DONALDSON, L. In Defence of Organization Theory A Reply to the Critics. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 196 p.) segue uma estratégia integracionista, na medida que procura integrar os paradigmas sob o rótulo do funcionalismo negando a tese da incomensurabilidade, estabelecendo um hegemonismo;
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Norman Jackson e Pipa Carter (1991JACKSON, N.; CARTER, P. In Defence of Paradigm Incommensurability. Organization Studies, London, v. 12, n. 1, p. 109-127, jan. 1991. ; 1993) seguem uma estratégia isolacionista, pois buscam proteger o pluralismo da pesquisa social contra a hegemonia funcionalista, defendendo a tese da incomensurabilidade.
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Uma posição intermediária, entre este dogmatismo e relativismo, seria a estratégia multiparadigmática ou pluralista, defendida por autores como Dennis Gioia e Evelyn Pitre (1994; 1995), John Hassard (1991HASSARD, J. Multiple Paradigms and Organizational Analysis: A Case Study. Organization Studies, London, v. 12, n. 2, p. 275-299, Apr. 1991. ; 1993HASSARD, J. Sociology and Organization Theory. Positivism, Paradigms e Postmodernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 168 p. ) e Lewis e Grimes (1999LEWIS, M. W.; GRIMES, A. J. Metatriangulation: Building Theory from Multiple Paradigms. Academy of Management Review, New York, v. 24, n. 4, p. 672-690, Oct. 1999. ), entre outros, que embora tendam a aceitar a tese da incomensurabilidade, sustentam que um diálogo entre os paradigmas é possível.
Examinando as posições desses autores, conclui-se que o debate sobre a guerra paradigmática é estéril, pois não há possibilidade de consenso ou resolução acerca do problema mantendo-se no registro da lógica explicativa kuhniana para o desenvolvimento do conhecimento, uma vez que sustento que esta não se adequa às ciências sociais e aos estudos organizacionais. Em primeiro lugar, constato que qualquer proposta alternativa ao diagrama de paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan baseada na concorrência entre polarizações que justifiquem incomensurabilidades (como por exemplo, objetividade/subjetividade versus mudança/regulação), é incapaz de resolver nossos dilemas, pois na verdade só faz aprofundá-los. Logo, a insistência nos modelos inspirados pela lógica explicativa kuhniana não se parece frutífera para os estudos organizacionais.
Em seguida, realizo uma apreciação crítica da teoria kuhniana do desenvolvimento do conhecimento para revelar que: 1) não podemos dizer que os paradigmas sociológicos são kuhnianos e tampouco afirmar que são incomensuráveis; 2) as revoluções científicas não explicam como o conhecimento evolui em nossa área; 3) é preciso abandonar o modelo paradigmático de Gibson Burrell e Gareth Morgan, fundamentado na lógica explicativa kuhniana se quisermos avançar; e 4) é necessária uma outra noção de ciência para sustentar abordagens alternativas ao funcionalismo.
Assim como outros pesquisadores (ver DEETZ, 1996DEETZ, S. Describing Difference in Approaches to Organization Science: Rethinking Burrell and Morgan and Their Legacy. Organization Science, Hanover, v. 7, n. 2, p. 191-207, Apr. 1996. ), tentei fazer uma readequação do diagrama de paradigmas sociológicos com a utilização de outros pressupostos, mas nenhuma solução encontrada foi satisfatória, pois continuei refém das polarizações que sustentam incomensurabilidades. Por esse motivo, o meu olhar se direcionou para um outro pressuposto que orienta a construção do diagrama: cada um dos quadrantes (humanismo radical, estruturalismo radical, interpretativismo e funcionalismo) são categorizados como paradigmas em sentido semelhante ao apontado por Thomas Kuhn. Mas seriam eles realmente paradigmas? Como a lógica explicativa kuhniana foi assimilada nos estudos organizacionais? A tese da incomensurabilidade e as revoluções científicas fazem sentido para nós? Michael Reed (1985REED, M. Redirections in Organizational Analysis London: Tavistock, 1985. 180 p. ) é um dos primeiros autores a fazer esse questionamento, mas não avança no sentido de uma ruptura. Norman Jackson e Pipa Carter (1991JACKSON, N.; CARTER, P. In Defence of Paradigm Incommensurability. Organization Studies, London, v. 12, n. 1, p. 109-127, jan. 1991. ; 1993JACKSON, N.; CARTER, P. "Paradigms Wars": A Response to Hugh Willmott. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 727-730, Sept. 1993. ) fazem essa mesma consideração, mas na medida em que defendem a tese da incomensurabilidade, permanecem no registro da lógica explicativa kuhniana. Hugh Willmott (1993aWILLMOTT, H. Breaking the Paradigm Mentality. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 681-719, Sept. 1993a.; 1993bWILLMOTT, H. Paradigm Gridlock: A Reply. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 727-730, Sept. 1993b. ) também tenta quebrar a mentalidade paradigmática, mas segue utilizando conceitos kuhnianos, uma vez que defende a teoria do desenvolvimento do conhecimento de Thomas Kuhn nas suas elaborações. Stanley Deetz (1996DEETZ, S. Describing Difference in Approaches to Organization Science: Rethinking Burrell and Morgan and Their Legacy. Organization Science, Hanover, v. 7, n. 2, p. 191-207, Apr. 1996. ) rejeita os paradigmas, substituindo os mesmos por discursos, mas insiste no uso de um diagrama com eixos polarizados, herdando os problemas de enquadramento enfrentados por Gibson Burrell e Gareth Morgan.
O fato é que Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979BURRELL, G.; MORGAN, G Sociological Paradigms and Organisational Analysis. Elements of the Sociology of Corporate Life. Vermont: Ashgate, 1979. 432 p.) não se debruçaram detidamente sobre a questão dos paradigmas utilizados serem ou não kuhnianos em "Sociological Paradigms and Organisational Analysis", limitando-se a discutir a questão em uma nota no capítulo III do livro. Ainda que os autores afirmem que estão utilizando o termo paradigma em um sentido mais amplo do que Thomas Kuhn, a definição por eles apresentada coincide com o sentido sociológico de paradigma kuhniano, como veremos a seguir. Além disso, não faz sentido tomar a tese da incomensurabilidade, como fazem alguns representantes da comunidade científica nos campos dos estudos organizacionais, sem aceitar a definição kuhniana de paradigma, pois os conceitos estão inter-relacionados.
É importante salientar ainda que antes de toda a controvérsia se instalar na área de estudos organizacionais, alguns pesquisadores criticavam o uso dos paradigmas kuhnianos para as ciências sociais. É o caso de Douglas Eckberg e Lester Hill (1979ECKBERG, D. L.; HILL, L. The Paradigm Concept and Sociology: A Critical Review. American Sociological Review, Washington, v. 44, n. 6, p. 925-937, Dec. 1979. ), que admitem que as múltiplas interpretações possíveis para o conceito de paradigma kuhniano levaram diversos pesquisadores a adotá-lo, sem considerar seriamente as implicações dessa posição. A questão do que é um paradigma é tão problemática que Thomas Kuhn precisou responder aos seus críticos em 1969, em um posfácio para uma nova edição do livro "A Estrutura das Revoluções Científicas". Por exemplo, Margaret Masterman, em um artigo publicado em 1970MASTERMAN, H. The Nature of a Paradigm. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. 59-89 p., "The Nature of a Paradigm", elencou mais de vinte diferentes usos para a palavra paradigma no livro. Nesse posfácio, Thomas Kuhn afirma que utilizou o termo paradigma na maior parte do livro com dois sentidos diferentes:
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Em um sentido sociológico, como a constelação de crenças, valores e técnicas partilhadas pelos membros de uma determinada comunidade;
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Em um sentido científico, como realizações dotadas de uma natureza exemplar que se tornam modelos ou exemplos a serem empregados para resolução de problemas.
Os dois sentidos se encontram interligados e a tese da incomensurabilidade de paradigmas vem justamente comprovar isso. O que uma comunidade científica partilha (sentido sociológico) se deve à concordância em relação ao uso de modelos ou exemplos para solucionar problemas (sentido científico). Quando não há mais essa concordância, a comunidade científica deixa de compartilhá-los e surge a incomensurabilidade. Na percepção de Thomas Kuhn, desconsiderando questões ideológicas, uma vez resolvidas as discordâncias de natureza técnica e científica, e estabelecido um novo modelo ou exemplo, a comunidade reconhece a superioridade da nova teoria e os conflitos terminam. Assim, depois que o problema da incomensurabilidade é resolvido, surge um novo paradigma: o conhecimento se desenvolve, dessa maneira, por meio de revoluções científicas.
No posfácio, Thomas Kuhn diz que foi mal interpretado e inclusive acusado de irracionalidade, pois principalmente os filósofos se equivocaram seriamente quanto às suas elaborações, uma vez que reduziram a incomensurabilidade a um problema de posições linguisticamente defendidas. O que ele sustenta é que a incomensurabilidade não é uma mera questão linguística, pois não pode ser resolvida somente na base da argumentação. A persuasão seria um prelúdio da prova: quando há um desacordo sobre o sentido e a aplicação de regras previamente estipuladas, estamos diante de uma incomensurabilidade e os contestadores, enquanto não obtêm provas objetivas de que estão com a razão, recorrem à persuasão. O problema se reflete na linguagem, mas é anterior a ele, pois se baseia no fato de as premissas não sustentarem mais uma determinada teoria e serem necessárias novas premissas que comprovem outra teoria. Não se trata de uma argumentação conseguir derrotar outra, pois a questão é objetiva e não somente política ou ideológica.
O próprio conceito de comensurabilidade remete a questões objetivas. No Dicionário Aurélio, a palavra comensurável é um adjetivo que designa "o que se pode medir", enquanto a palavra incomensurável é definida da seguinte forma: "1. Imensurável. 2. Que não tem medida comum com outra grandeza". Trata-se da redução de várias dimensões de valor à mesma medida e não de questões discursivas. Não podemos nos esquecer que Thomas Kuhn estava aplicando a tese da incomensurabilidade às ciências naturais e físicas, nas quais os problemas são resolvidos por meio de medidas. Os conflitos colocados por Thomas Kuhn não se dão devido a diferenças de opinião, mas a uma questão material, pois envolvem as discordâncias quanto às premissas, ou seja, medidas que se obtêm na reprodução de experimentos, ou sobre as técnicas que se utilizam para realizar essas medidas, para estabelecer um modelo para a solução de um problema. Por outro lado, Amartya Sen (2011SEN, A. A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 492 p.), evidencia que quando se considera um conceito da ciência social, como o de capacidade, por exemplo, a característica da não comensurabilidade é um atributo natural da mesma, pois não é possível mensurá-lo, de modo que não faz nenhum sentido compará-lo com outro conceito para dizer que são comensuráveis ou incomensuráveis.
Quando Gibson Burrell e Gareth Morgan dizem que os seus quatro paradigmas são rivais e colocam em debate a tese da incomensurabilidade, estão trazendo lógica explicativa kuhniana para o campo de estudos organizacionais. Os autores usam o termo paradigma no sentido sociológico, mas para serem kuhnianos, os paradigmas deveriam ser também considerados no sentido científico, o que nem sempre é possível nas ciências sociais, devido à dificuldade de estabelecer modelos exemplares para solução de problemas. Os paradigmas de Thomas Kuhn requerem modelos e exemplos que podem ser utilizados amplamente pelos cientistas de uma área, mas nas ciências sociais estes são raros e quando existem, hipoteticamente (ECKBERG e HILL, 1979ECKBERG, D. L.; HILL, L. The Paradigm Concept and Sociology: A Critical Review. American Sociological Review, Washington, v. 44, n. 6, p. 925-937, Dec. 1979. ): não podem ser considerados válidos por todos os praticantes da disciplina; encontram-se em domínios em que as pesquisas estão mais aprofundadas; têm uma comunidade de praticantes que se unem em torno deles; devem ser utilizados para produzir e resolver problemas, gerando uma tradição de pesquisa.
O problema é que embora os paradigmas sociológicos não sejam kuhnianos, os autores emprestam de Thomas Kuhn a tese da incomensurabilidade e a teoria do desenvolvimento do conhecimento, que só faria sentido se os paradigmas fossem kuhnianos. Porém, ainda assim, a lógica explicativa paradigmática kuhniana se tornou uma referência fixa nos estudos organizacionais, da qual os pesquisadores do campo não conseguem se desvencilhar. No caso das ciências sociais, os paradigmas não podem ser considerados estritamente kuhnianos e a incomensurabilidade corre o risco de perder sua base material, pois como podemos averiguar, nos estudos organizacionais, os conflitos não se dão em torno de questões de premissas que envolvem medidas e técnicas, mas principalmente de posições ideológicas e políticas. O próprio diagrama de Gibson Burrell e Gareth Morgan coloca essa condição a priori quando estabelece a polaridade regulação-mudança, pois essa é imbuída de ideologia. Ocorre que, ao contrário do que sugere a lógica explicativa kuhniana no que se refere aos paradigmas sociológicos, não se chega a um acordo sobre a superioridade de uma nova teoria que encerre os conflitos e estabeleça um novo paradigma: os paradigmas sociológicos apontados por Gibson Burrell e Gareth Morgan convivem lado a lado, de modo que as "revoluções científicas" parecem insuficientes para explicar como esses novos paradigmas surgiram e se consolidaram.
Thomas Kuhn foi acusado de relativismo, pois, de acordo com seus críticos, haveria um paralelismo na tese da incomensurabilidade, na medida em que se considera que os defensores de paradigmas diferentes pertencem a comunidades de linguagem e cultura distintas. Isso possibilitaria afirmar que os paradigmas rivais estão certos, de modo que não seria possível provar qual estaria mais próximo da verdade. No entanto, Thomas Kuhn (1962/1997, p. 252-253) rechaça essa possibilidade:
As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos frequentemente diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição relativista e revela em que sou um crente convicto do progresso científico. {...} Em geral uma teoria científica é considerada superior a suas predecessoras não apenas porque é um instrumento mais adequado para descobrir e resolver quebra-cabeças, mas também porque, de algum modo, apresenta uma visão mais exata do que realmente é a natureza. {...} Embora a tentação de descrever essa posição como relativista seja compreensível, a descrição parece-me equivocada.
A necessidade que Thomas Kuhn tem de se defender das acusações de relativismo é compreensível, porque isso coloca em questão sua teoria de desenvolvimento do conhecimento, que é baseada em rupturas que estabelecem revoluções científicas e novos paradigmas. No entanto, no caso dos estudos organizacionais, tal relativismo é uma realidade, de modo que interrogo se essa teoria de desenvolvimento do conhecimento é adequada para descrever como a ciência social evolui. Se as revoluções científicas não fazem sentido para nós, por que insistir na tese da incomensurabilidade e na "guerra paradigmática"? O que sugiro é o abandono do uso do conceito de paradigma e da lógica explicativa kuhniana, na tentativa de alcançar outro nível de entendimento para o desenvolvimento do conhecimento no campo das organizações.
A resistência dos cientistas sociais em abandonar o conceito de paradigma está relacionado com o temor de que a mesma seja considerada uma ciência pré-paradigmática, de modo que, na base do uso do conceito, encontramos a necessidade de alguns pesquisadores afirmarem a ciência social enquanto ciência (ASSIS, 1993ASSIS, J. P. Kuhn e as Ciências Sociais. Estudos Avançados, São Paulo, v. 7, n. 19, p. 133-164, set. 1993. ). No entanto, as ciências sociais não podem ser equiparadas às ciências naturais por razões exaustivamente colocadas na literatura (URRY, 1973URRY, J. Thomas S. Kuhn as Sociologist of Knowledge. British Journal of Sociology London, v. 24, n. 4, p. 462-473, Dec. 1973.; ASSIS, 1993ASSIS, J. P. Kuhn e as Ciências Sociais. Estudos Avançados, São Paulo, v. 7, n. 19, p. 133-164, set. 1993. ): complexidade de seus objetos, autodecepção (os objetos das ciências sociais têm consciência dos que se passa com eles, de modo que podem frustrar as expectativas do pesquisador), dificuldade em determinar o que seja um experimento e impossibilidade de repetição rigorosa de experimentos. Logo, o debate em torno dos paradigmas e da tese da incomensurabilidade nos estudos organizacionais tem como pano de fundo a questão: o que é ciência?
Quando Gibson Burrell e Gareth Morgan trazem paradigmas alternativos que desafiam a hegemonia funcionalista, fazem a questão vir à tona. A posição integracionista de Lex Donaldson (1985DONALDSON, L. In Defence of Organization Theory A Reply to the Critics. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 196 p.) e Jeffrey Pfeffer (1993PFEFFER, J. Barriers to the Advance of Organizational Science: Paradigm Development as a Dependent Variable. Academy of Management Review, New York, v. 18, n. 4, p. 599-620, Oct. 1993. ) reflete que os autores não atribuem status científico para os outros paradigmas, estabelecendo que os conceitos kuhnianos são válidos apenas no domínio funcionalista e positivista. O irônico é que eles não deixam de ter alguma razão, pois os paradigmas kuhnianos não se aplicam a uma sociologia que descarte o positivismo, pois, em uma perspectiva antipositivista, é impossível atingir leis universais como sugere a lógica kuhniana (URRY, 1973URRY, J. Thomas S. Kuhn as Sociologist of Knowledge. British Journal of Sociology London, v. 24, n. 4, p. 462-473, Dec. 1973.). O que não é possível concordar é com a tentativa realizada por Lex Donaldson e Jeffrey Pfeffer de homogeneização dos estudos organizacionais em torno do funcionalismo. Assim, a insistência no uso de paradigmas não parece ser o melhor caminho para legitimar novas posições epistêmicas, pois o que está em jogo é estabelecer que existem outras formas de ciência para além das nomológicas.
Indo além dos paradigmas: O círculo das matrizes epistemológicas
O objetivo desta seção é apresentar uma alternativa à teoria kuhniana do desenvolvimento do conhecimento, que inspira os "paradigmas sociológicos" de Gibson Burrell e Gareth Morgan, bem como sugerir uma nova noção de ciência. Para realizar isso, busco em Jürgen Habermas, no livro "Conhecimento e Interesse", publicado em 1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. , parâmetros para justificar como o conhecimento nas ciências sociais e nos estudos organizacionais se desenvolve. As elaborações do filósofo nessa obra, em especial os conceitos de conhecimento e interesse, evidenciam que, ao longo da história, a filosofia perdeu espaço para a ciência e o trabalho se tornou a categoria central para explicar os fenômenos sociais. Nesse processo, o agir instrumental e o interesse técnico tornaram-se referências para a prática da ciência.
No entanto, Jürgen Habermas (1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982) afirma que, para além do trabalho, a interação também engendra a sociedade. Uma vez que a busca do conhecimento se orienta pela satisfação de interesses, se as ciências naturais inseriram o interesse técnico, as ciências do espírito trouxeram o interesse prático, ou seja, a práxis que fundamenta as interações e possibilita a compreensão mútua. Logo, o conhecimento se desenvolve pela mobilização de interesses cognitivos: a ciência empírico-analítica (ciências naturais) pelo interesse técnico e a ciência hermenêutica (ciências do espírito) pelo interesse prático. Porém, as ciências necessitam refletir sobre o conhecimento que produzem, ou seja, as ciências também deveriam ser críticas, de modo que é fundamental recuperar o papel da filosofia no processo epistêmico, sustentando o interesse emancipatório. Jürgen Habermas afirma que esses três interesses cognitivos (técnico, prático e emancipatório) são responsáveis pela dinâmica que gera o conhecimento.
Ocorre que essa dinâmica é animada pela dialética, ou seja, ainda que contraditórios, esses interesses deveriam constituir a unidade do conhecimento, pois os fenômenos sociais se apresentam de acordo com uma conjugação de interesses, uma vez que não há como separar o técnico, o prático e o emancipatório. Desse modo, tais interesses não deveriam ser tomados separadamente pelos pesquisadores, mas sim conjuntamente, caso contrário, teremos um conhecimento cada vez mais incompleto e afastado das necessidades sociais. Vale notar que as elaborações de Jürgen Habermas em Conhecimento e Interesse não estão deslocadas de suas intenções filosóficas no conjunto de sua obra: o próprio filósofo admite isso em um artigo em que revê o livro tendo passado trinta anos de sua publicação (HABERMAS, 2008HABERMAS, J. Depois de Trinta Anos: Notas acerca de Conhecimento e Interesse. Problemata. Revista Internacional de Filosofia, João Pessoa, v. 2, n. 2, p. 332-341, 2008/2011./2011).
Partindo das elaborações de Jürgen Habermas, foi explorada a possibilidade de uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento que fizesse um contraponto à proposta kuhniana, buscando na literatura subsídios que pudessem auxiliar a esboçar um novo referencial para as pesquisas no campo dos estudos organizacionais. Nesse percurso, o artigo de Michael Hill, "Epistemology, Axiology, and Ideology", publicado em 1984, foi de grande valia, pois sugere que, nas ciências sociais, não teríamos paradigmas, mas diferentes sistemas de produção de conhecimento, que envolvem questões epistêmicas, axiológicas e ideológicas, fazendo uma construção analítica que remeteu indiretamente à teoria do conhecimento e interesse de Habermas, ainda que o autor não cite o filósofo.
Em primeiro lugar, Michael Hill (1984)HILL, M. R. Epistemology, Axiology, and Ideology in Sociology. Mid-American Review of Sociology, Kansas, v. 9, n. 2, p. 59-77, Spring 1984. estabelece a noção de sistema de produção de conhecimento como referencial para discutir questões epistêmicas nas ciências sociais, apresentando os seguintes argumentos:
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As diversas perspectivas filosóficas, metodológicas e teóricas nas ciências sociais são sistemas de produção de conhecimento;
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Não há limite para o número de sistemas de produção de conhecimento que podem ser inventados ou propostos;
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Cada sistema de produção de conhecimento é composto pelos seguintes elementos: (1) visões de mundo metacientíficas, (2) metodologias e (3) teorias;
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Esses elementos de cada sistema de produção de conhecimento são interdependentes;
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Cada sistema de produção de conhecimento tenta manter a consistência entre seus elementos de acordo com as próprias regras de organização e lógica;
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Cada sistema de produção de conhecimento é epistemologicamente responsável pelas suas próprias regras de organização e lógica;
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A fidelidade da responsabilidade epistemológica para com o sistema de produção de conhecimento requer: (1) a completa articulação dos elementos de seu sistema; (2) a proposição de soluções para inconsistências quando elas são descobertas, e (3) a clara identificação e publicização de quaisquer inconsistências que resistam às soluções propostas;
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A investigação epistemológica frequentemente requer a escavação e reconstrução de elementos perdidos do sistema de produção de conhecimento.
Essas elaborações de Michael Hill (1984) estabelecem os parâmetros que definem um sistema de produção de conhecimento. Logo, um novo sistema de produção de conhecimento precisa conter os elementos apresentados e, principalmente, apresentar uma consistência e independência epistemológica que o singularize. E há muitas possibilidades de construção de novos sistemas de conhecimento, pois Michael Hill defende que não há limite quanto à quantidade deles que pode ser inventada ou proposta. Essa afirmação do pesquisador é provocativa, pois nos leva a pensar que insistimos em um repertório restrito de sistemas de produção de conhecimento, quando poderíamos exercitar nossa criatividade epistemológica e criar novos caminhos para o desenvolvimento do conhecimento sociológico e organizacional.
Michael Hill (1984) também sustenta que a radicalização do debate epistemológico em posições dicotômicas tende a esvaziar o conteúdo das proposições e cega os adversários para as possibilidades emancipatórias, que é exatamente o que ocorre com a guerra dos paradigmas. Para o autor, uma ciência social emancipatória, ou seja, uma ciência crítica, precisa colocar em primeiro lugar a responsabilidade ideológica; em segundo lugar, a responsabilidade axiológica; e em terceiro lugar, a responsabilidade epistemológica. Isso significa que o pesquisador deveria assumir que é responsável eticamente pelo conhecimento que produz, pois ele não é isento de ideologias, não é neutro em relação aos valores e precisa ser consistente do ponto de vista epistêmico. No entanto, como o pesquisador pode realizar essa tarefa no âmbito das ciências sociais e dos estudos organizacionais sem gerar novas batalhas de paradigmas?
Sustento que a chave para esse dilema está na crença de que não há limites em relação ao número de sistemas de produção de conhecimento que se pode desenvolver. O clima bélico suscitado pela "guerra paradigmática" tolhe a criatividade e oblitera o diálogo, dificultando a ampliação do nosso repertório de teorias e metodologias, bem como a unidade do conhecimento a partir dos interesses cognitivos. A seguir, revelo que o desenvolvimento do conhecimento nas ciências sociais não ocorre devido à rivalidade paradigmática, mas, principalmente, porque alguns pesquisadores ousam se aventurar em outros campos epistêmicos. Não se trata de sustentar incomensurabilidades e defender espaços políticos, mas de superar incompletudes e contemplar outros interesses cognitivos que desenvolvam o conhecimento.
Para isso, no entanto, é preciso descartar o diagrama de paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan, bem como a lógica de pensamento kuhniana por ele trazida. O primeiro passo é sugerir uma alternativa imagética que não nos aprisione em polarizações, mas abra espaço para a dinâmica e o diálogo. No lugar dos paradigmas sociológicos, apresento os sistemas de produção de conhecimento, que denomino como abordagens sociológicas, que procuram uma identidade epistêmica e agregam teorias e metodologias. Nesta busca de identidade, as abordagens sociológicas se orientam por três matrizes epistêmicas: a matriz empírico-analítica, a matriz hermenêutica e a matriz crítica. Utilizo a palavra matriz no sentido de origem, de manancial, de lugar onde as coisas são geradas. Cada uma dessas matrizes deriva de uma noção específica de ciência em Jürgen Habermas (1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982), referindo-se a um marco epistemológico, mas considerando que cada uma delas também envolve questões axiológicas e ideológicas, ou seja, se move em um domínio político, também se direciona para um tipo particular de interesse cognitivo:
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as ciências empírico-analíticas, também conhecidas como nomológicas, que são dirigidas pelo interesse técnico e geram conhecimento para possibilitar a predição e o controle dos fatos sociais;
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as ciências hermenêuticas, que são orientadas pelo interesse prático, que buscam a compreensão social por meio da comunicação e interpretação;
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as ciências críticas, que são motivadas pelo interesse emancipatório, voltando-se para a transformação social.
Para os estudos organizacionais, alternativamente ao diagrama de paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan, apresento o Círculo das Matrizes Epistêmicas, que faz referência aos tipos de ciências analisadas por Jürgen Habermas, apontando para três tipos de interesse cognitivo: técnico, prático e emancipatório. No espaço desse círculo, transitam diversas abordagens sociológicas constituídas por suas respectivas teorias e metodologias. Cada uma das abordagens sociológicas remete a um conjunto teórico-metodológico e não há limite para o número de abordagens sociológicas que é possível criar no domínio da produção do conhecimento, de modo que elas vão além dos quatro "paradigmas" identificados por Gibson Burrell e Gareth Morgan. A pesquisa que realizei na literatura, descrita mais adiante, revela que as principais abordagens sociológicas, atualmente referenciadas nos estudos organizacionais, são: a abordagem funcionalista, a abordagem interpretativista, a abordagem humanista, a abordagem estruturalista, a abordagem pós-estruturalista e a abordagem realista crítica.
A proposta que ora apresento, a partir do pensamento de Jürgen Habermas, recupera vinculações entre a filosofia e a ciência, mas sem absolutizar nem a filosofia, nem a ciência. Cada uma das matrizes epistêmicas se inspira em uma filosofia e lógica de pensamento particular: filosofia positiva e lógica formal (matriz empírico-analítica), filosofia hermenêutica e lógica interpretativa (matriz hermenêutica) e filosofia negativa e lógica dialética (matriz crítica). No entanto, a filosofia e lógica que instruem as matrizes do círculo das matrizes epistêmicas não são determinadoras das abordagens sociológicas, mas sim pontos de referência para reconstruções racionais possíveis de serem formuladas e também questionadas. Além disso, as matrizes epistêmicas podem ser compreendidas como as guardadoras de lugar do conhecimento e realizam o papel de intérprete-mediador da filosofia em relação à ciência, como sugere Habermas (1983/1989)HABERMAS, J. A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete. In: HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983a/1989. 17-35 p. . Em síntese, as abordagens sociológicas produzem suas teorias e metodologias, e se orientam de acordo com três matrizes epistêmicas, que se inspiram em uma filosofia e lógica de pensamento particulares. A figura a seguir ilustra a proposição realizada, apresentando a alternativa imagética sugerida:
A figura, no entanto, não faz justiça ao que se procura revelar, pois deveria ser, na verdade, uma animação, uma vez que há uma dinâmica entre os elementos que precisa ser observada para um melhor entendimento da proposição que ora realizo. O diagrama apresentado é um círculo composto de matrizes epistêmicas, no lugar de um quadrado dividido em quatro paradigmas e polarizado por posições antagônicas. Tal proposição sugere abandonar a lógica paradigmática, de modo que as matrizes devem ser utilizadas como referências orientadoras do conhecimento e não como domínios de atuação científica. A escolha do círculo foi intuitiva e partiu da intenção de colocar as matrizes como parte de um todo integrado do conhecimento, uma vez que os interesses cognitivos não deveriam ser compreendidos como concorrentes, mas complementares, pois o funcionamento da vida social depende de todos eles.
Coincidentemente, a simbologia nesse caso tem muito a nos dizer (LEXIKON, 1978LEXIKON, H. Dicionário de SímbolosSão Paulo: Cultrix, 1978/1994. 216 p./1994). O quadrado é comumente associado ao pensamento cartesiano, analítico e mecânico, indicando precisão, cálculo e perfeição matemática. Ele ainda simboliza a interrupção do movimento, pois os quatro ângulos indicam descontinuidade no fluxo, inércia e limitação. O quadrado ainda é uma forma construída que não se encontra na natureza, também remetendo à rigidez, estabilidade e ordem. O círculo, por sua vez, é associado ao pensamento orgânico, relacionando-se ao incalculável e ao natural. Ele simboliza a fluidez livre e sem interrupções. O círculo é uma forma abundante na natureza e faz referência à flexibilidade, ao infinito, ao ilimitado e à ideia de totalidade.
Os paradigmas sociológicos de Gibson Burrell e Gareth Morgan foram pensados dentro de um registro de rigidez, estabilidade e ordem, na medida em que se baseiam na tese da incomensurabilidade que questiona a comunicação entre os "paradigmas". Além disso, o modelo é analítico e mecânico: trata-se de uma construção que procura simplificar o entendimento das ciências sociais e que acaba resultando em um reducionismo. A proposição de um Círculo de Matrizes Epistêmicas pactua com um pensamento orgânico, que possibilita o movimento na construção do conhecimento, reforçando a ideia de flexibilidade e agregando, de forma natural, o potencial ilimitado do conhecimento humano em uma totalidade. Partindo de elementos epistêmicos que concatenam os tipos de filosofia e lógica, bem como os interesses cognitivos habermasianos, constituem as três matrizes que descrevo em seguida.
A matriz empírico-analítica caracteriza-se por três elementos: o alinhamento com a filosofia positiva, o uso da lógica formal e a preferência pelo interesse técnico. Segundo Arana (2007ARANA, H. G. Positivismo Reabrindo o Debate. Campinas: Autores Associados, 2007. 144 p.), a filosofia positiva procura indagar o sentido das proposições, buscando o máximo de rigor delas por meio da lógica formal. Sua epistemologia deriva, em grande parte, do movimento sociológico positivista, que é marcado pelo empirismo e pelo formalismo, enfatizando as explicações causais e a neutralidade axiológica, o que abre espaço para o interesse técnico e para a instrumentalidade. O postulado de uma ciência axiologicamente neutra vai além do quadro do positivismo (LÖWY, 1998LÖWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1998. 220 p.) e se manifesta, inclusive, em autores afastados dele como Max Weber e mesmo alguns marxistas. Logo, temos um primeiro sinal de que não é possível estabelecer posições estanques para os autores em relação às matrizes epistêmicas que estamos discutindo. Por outro lado, é impossível no mundo dos fenômenos separar o interesse técnico dos outros interesses envolvidos; de fato, há um viés conservador no positivismo, mas é preciso indagar se a defesa do interesse técnico em si é conservadora.
A matriz hermenêutica, por sua vez, caracteriza-se pelo alinhamento com a filosofia hermenêutica, pelo uso da lógica interpretativa e pela preferência pelo interesse prático. Sua epistemologia deriva de movimentos sociológicos de caráter hermenêutico e sua filosofia origina uma ciência hermenêutica, que é mediada pela lógica interpretativa. Por ser guiada pelo interesse prático, a matriz hermenêutica procura evitar uma ruptura da comunicação, preservando o conhecimento da autobiografia e da tradição coletiva pelos sujeitos, bem como a mediação entre os indivíduos, grupos e civilizações diferentes (HABERMAS, 1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982). O pensamento empírico-analítico se contrapõe à elucidação hermenêutica (HABERMAS, 1967): no primeiro caso, trata-se de proposições matemáticas ou teorias rigorosas, enquanto no segundo caso, temos a problemática da compreensão do sentido. Para Jürgen Habermas (1967HABERMAS, J. A Lógica das Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes, 1967/2009. 336 p. ), nas ciências hermenêuticas, temos três abordagens analíticas: fenomenológica, linguística e hermenêutica propriamente dita. Com essa última abordagem, efetivamente, chega-se ao nível da tradução para além da exposição dos fenômenos e da linguagem, fazendo uma fronteira entre o interesse prático e o interesse emancipatório.
A matriz crítica caracteriza-se pelo alinhamento com a filosofia negativa, pelo uso da lógica dialética e pela preferência pelo interesse emancipatório. A filosofia negativa é exatamente o oposto da filosofia positiva, pois essa não procura alcançar o máximo rigor no sentido das proposições recorrendo à lógica formal, mas atingir o conteúdo das proposições recorrendo à lógica dialética. Assim, ao invés de se ater ao que é dado ao conhecimento e ao certo, a filosofia negativa se interessa pelo que não está evidente e insere a dúvida: o que é positivo para os positivistas é justamente aquilo que deve ser criticado na visão dos dialéticos (ADORNO, 1974ADORNO, T. Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã. In: ADORNO, T. W. Textos Escolhidos Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Nova Cultural, 1974/1999. 117-161 p./1999). Os positivistas acreditam que as contradições são anátemas, ou seja, maldições lançadas sobre nós que precisam ser combatidas, enquanto para os dialéticos, elas são justamente a nossa oportunidade de reflexão para a superação da realidade, apontando para o interesse emancipatório. A crítica não pode ser separada de seu sentido emancipatório, mas essa também não pode prescindir da práxis, que é a sua promessa original (BRONNER, 1997aBRONNER, S. E. Introdução. In: BRONNER, S. E. Da Teoria Crítica e seus TeóricosCampinas: Papirus, 1997a. 9-20 p.; 1997bBRONNER, S. Pontos de Partida: Esboços para uma Teoria Crítica com Fins Públicos. In: BRONNER, S. E. Da Teoria Crítica e seus Teóricos, Campinas: Papirus 1997c. 387-424 p.), de modo que a emancipação deve ser tomada para além da sua face utópica, indo além da teoria e reconstruindo sua atuação nas questões públicas. Para isso, é fundamental reconstituir suas articulações com o interesse técnico e o interesse prático, ou seja, com a matriz empírico-analítica e a matriz hermenêutica, pois a matriz crítica não tem uma existência independente e está profundamente entrelaçada às demais, sendo que deveria transcender a teoria e explorar novos caminhos metodológicos.
Uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento: A tese da incompletude cognitiva e a tese das reconstruções epistêmicas
O Círculo das Matrizes Epistêmicas é um locus a partir do qual as abordagens sociológicas se orientam e as matrizes epistêmicas representam pontos de referência nesse locus. Assim, as matrizes apresentadas não devem ser tomadas como instâncias que aprisionam as abordagens sociológicas, mas sim como partes constituintes de um todo integrado da produção de conhecimento: elas são guardadoras de lugar do conhecimento e também mediadoras entre a filosofia e a ciência. Conforme já foi dito, quando indico que o círculo representa a unidade do conhecimento, quero dizer que as ciências sociais e os estudos organizacionais deveriam ser capazes de desenvolver pesquisas que abarquem o interesse técnico, o interesse prático e o interesse emancipatório.
O que me possibilita fazer essa afirmação são as considerações feitas por Jürgen Habermas em 1973, no posfácio de uma nova edição de Conhecimento e Interesse, pois o filósofo defende que os interesses orientadores do conhecimento são responsáveis por zelar pela unidade do sistema de ação e experiência, sendo que o interesse técnico e o interesse prático estão entrelaçados com os elementos constituintes do sistema social, enquanto que o interesse emancipatório garante o elo entre o saber teórico e a práxis de vida.
Essas considerações de Jürgen Habermas evidenciam que, na realidade, a separação das ciências entre empírico-analíticas, hermenêuticas e críticas, ou entre ciências da natureza e ciências do espírito, é uma divisão do trabalho que não faz muito sentido. O ideal seria pensar uma ciência social capaz de realizar uma unidade do conhecimento, em um sentido transdisciplinar, de modo que a crítica realizasse uma mediação entre o empírico-analítico e o hermenêutico. Os interesses cognitivos são interdependentes e não deveriam ser tomados separadamente na produção do conhecimento das ciências sociais, especialmente quando aplicadas. O interesse emancipatório sozinho torna-se crítica pela crítica, visto que depende dos interesses prático e técnico para se concretizar em ações; o interesse prático isolado tende a se transformar em pura compreensão e descrição, uma vez que precisa dos interesses técnicos e emancipatórios para ser capaz de interferir na realidade; e o interesse técnico apenas, converte-se em instrumentalismo, pois é necessário também contemplar as necessidades sociais de compreensão e emancipação.
Conforme já vimos, as matrizes epistêmicas apontam para preferências cognitivas e de lógica de pensamento. Cada uma delas tomadas separadamente representa um ponto cego em relação às outras duas, bem como uma potencial incomunicabilidade, uma vez que cada uma recorre a uma linguagem específica. No entanto, essa incapacidade de comunicação é índice da nossa incompetência cognitiva no tratamento da realidade social, uma vez que deveríamos zelar por uma unidade do conhecimento. Alguns objetos de pesquisa talvez requeiram um determinado viés cognitivo, mas fazer uma opção deveria significar que o pesquisador está ciente das limitações cognitivas a que está se submetendo, quando o que acontece em geral é tomar esse viés como se fosse a única verdade possível, pactuando com uma posição dogmática, que defende só um dos interesses cognitivos . É o caso, por exemplo, do funcionalismo, que tem uma tendência de absolutizar o interesse técnico.
A busca do cientista social e do estudioso das organizações deveria ser, dentro do seu domínio de atuação, ampliar seus horizontes de conhecimento, realizando trabalhos que procurem abranger os três tipos de interesse, mas sempre ciente de suas limitações cognitivas. Assim, ao invés de debater a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, seria mais frutífero deixar de lado a ideia de uma incomunicabilidade entre eles e admitir nossa impossibilidade de ter toda a verdade a partir de um determinado paradigma/abordagem sociológica, conscientizando-se de que é necessário dialogar com as outras matrizes epistêmicas, pois essas não são estritamente instâncias rivais, mas formas diversas de captar a realidade e explicá-la, contemplando outros interesses cognitivos. Na verdade, em cada uma das matrizes epistêmicas existe o reflexo da outra, pois a matriz empírico-analítica no limite busca o interesse prático, a matriz hermenêutica faz fronteira com o interesse emancipatório e a matriz crítica, em sua tentativa de atingir a práxis, procura se reconciliar com o interesse técnico.
Vale ressaltar que não advogo uma síntese das matrizes epistêmicas, pois a síntese é uma conclusão apressada a que chegamos quando queremos superar as contradições: Theodor Adorno dedica boa parte do livro "Dialética Negativa", publicado em 1967ADORNO, T. Dialética Negativa Rio de Janeiro: Zahar, 1967/2009. 352 p., para criticar esse nosso costume. Defendo que precisamos suportar as contradições, chamando atenção para o caráter parcial de cada uma das matrizes epistêmicas perante a realidade social e a sua complexidade. Não se trata de seguir perspectivas multiparadigmáticas como as que já foram apresentadas por outros autores (HASSARD, 1991HASSARD, J. Multiple Paradigms and Organizational Analysis: A Case Study. Organization Studies, London, v. 12, n. 2, p. 275-299, Apr. 1991. ; LEWIS e GRIMES, 1999LEWIS, M. W.; GRIMES, A. J. Metatriangulation: Building Theory from Multiple Paradigms. Academy of Management Review, New York, v. 24, n. 4, p. 672-690, Oct. 1999. ), pois a ideia não é tentar analisar um mesmo objeto empírico pela lente de cada um dos paradigmas/abordagens sociológicas. Sustento que ao considerar um objeto empírico, o investigador deveria levar em conta os três tipos de interesse cognitivos que o circundam, fazendo uma escolha consciente, que deixe claras as limitações cognitivas que sofrerá. Ou então, partir da perspectiva de que o interesse emancipatório guia a pesquisa a fim de mediar os interesses técnicos e práticos, o que aponta para uma nova forma de fazer ciência, levantada por Jürgen Habermas em "Conhecimento e Interesse". Logicamente, mesmo no caso em que este esforço de integração de interesses for realizado, as preferências cognitivas irão se apresentar e o grau em que cada interesse será contemplado tenderá a ser diferente, mas só o fato de se fazer uma pesquisa com esse tipo de consciência atribui um status crítico à produção do conhecimento.
Essa nova forma de fazer ciência parte do princípio de que a hermenêutica deveria ser, como Jürgen Habermas (1968HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Com um Novo Posfácio., Rio de Janeiro: Zahar 1968/1982. 367 p. /1982) reivindica, uma ciência universal, embora ele mesmo admita que, ainda que a sua proposta seja suficientemente precisa, não se pode afirmar que o programa dessa nova ciência esteja completamente estabelecido. Os estudos estão avançando, mas ainda permanecem incompletos, sendo que a questão principal é buscar estratégias cognitivas que produzam um saber utilizável de forma técnica, prática e emancipatória. Os interesses do conhecimento precisam deixar de ter um status transcendental para assumirem um status empírico, que contemple a vida sociocultural, mas isso também depende de reconstruções epistêmicas bem-sucedidas, como veremos a seguir.
A noção de unidade do conhecimento harbermasiana é congruente com o Círculo das Matrizes Epistêmicas, de modo que a teoria do desenvolvimento do conhecimento sugerida pelo filósofo é apropriada para a proposta que faço. O círculo, conforme foi dito, é um todo que congrega o conhecimento, na medida em que representa a integração dos interesses cognitivos. A partir dele, teorias e metodologias são desenvolvidas, orientando do ponto de vista epistêmico as abordagens sociológicas. O que constatei é que certas abordagens sociológicas são puras, pois se situam em apenas uma das matrizes: é o caso da funcionalista (matriz empírico-analítica), da interpretativista (matriz hermenêutica) e da humanista (matriz crítica). Outras abordagens sociológicas, no entanto, são híbridas, pois transitam em mais de uma matriz epistêmica: é o caso da estruturalista (matriz empírico-analítica e matriz hermenêutica), da pós-estruturalista (matriz hermenêutica e matriz crítica) e da realista crítica (matriz empírico-analítica, matriz hermenêutica e matriz crítica).
Por que as matrizes epistêmicas podem ser caracterizadas dessa forma e qual é a dinâmica que está por trás delas? No domínio das ciências naturais, temos uma concordância sobre o uso de um modelo ou exemplo a ser replicado para solução de problemas que, como propõe Thomas Kuhn, quando é perturbado, faz surgir uma incomensurabilidade a partir da qual pode ocorrer uma revolução científica e emergir um novo paradigma. Ora, o conhecimento nas ciências sociais e nos estudos organizacionais não se desenvolve devido a rivalidades paradigmáticas, incomensurabilidades e revoluções científicas, mas porque na investigação de fenômenos sociais, ocorrem incompletudes cognitivas que levam os pesquisadores a buscarem outras teorias, metodologias, abordagens sociológicas, ou mesmo outras matrizes epistêmicas. Não é o fato de "vencer o adversário paradigmático" com uma nova revolução científica que faz o conhecimento avançar, e sim a busca por contemplar outros interesses cognitivos, trazendo novas explicações dos fenômenos e novas soluções para os problemas sociais.
E como isso ocorre? Sustento, a partir de Michael Hill (1984), que os pesquisadores realizam reconstruções epistêmicas. No caso das ciências sociais na construção de um sistema de conhecimento, que denominei como abordagem sociológica, os fundadores e pioneiros nem sempre conseguem articular cuidadosamente todos os seus elementos. Alguns elementos se perdem e os pesquisadores, para superar incompletudes cognitivas, precisam realizar um trabalho de escavação para encontrá-los e recombiná-los. Nesse processo, caminhos abandonados pelos fundadores ou por seus seguidores, podem ser retomados e outros olhares são desenvolvidos. Assim, novas teorias e metodologias são criadas ou aprimoradas, o que evidencia o caráter processual e dinâmico da produção do conhecimento sociológico. Logo, no lugar da incomensurabilidade, considero a incompletude e no lugar de revoluções científicas, proponho as reconstruções epistêmicas.
Pesquisadores situados em abordagem sociológicas puras podem elaborar teorias e metodologias de fronteira, que se encontram nos limites de sua matriz epistêmica de origem, realizando reconstruções epistêmicas embrionárias, que redefinem o conjunto teórico-metodológico, mas não chegam a constituir uma nova abordagem sociológica. Por vezes, esse processo de reelaboração extrapola e ocorre uma reconstrução epistêmica avançada, que cria um sistema de conhecimento novo, que é consistente e independente do ponto de vista epistemológico. Surge, assim, uma abordagem sociológica híbrida, capaz de realizar interconexões entre as matrizes epistêmicas, contemplando mais de um interesse cognitivo.
Para chegar a essas conclusões, em 2012, realizei uma pesquisa e analisei as seis principais abordagens sociológicas utilizadas atualmente nos estudos organizacionais, estabelecendo suas linhas gerais, conceitos fundamentais e alguns autores representativos (principalmente os nacionais), bem como fazendo reparos de natureza teórica para a melhor compreensão das mesmas. Não será possível apresentar aqui detalhadamente os resultados, apenas uma síntese deles, mas essa pesquisa me possibilitou uma confirmação empírica das teses da incompletude cognitiva e das reconstruções epistêmicas, que sustentam a teoria de desenvolvimento do conhecimento sugerida. Essas abordagens foram escolhidas após uma pesquisa qualitativa nos principais periódicos e encontros da área, considerando o prestígio dos mesmos e o viés anglófilo presente nos estudos organizacionais nacionais alternativos. Foram consultados, a partir da década de 1990, os seguintes periódicos: Organization, Organization Studies, Journal of Management Studies, Revista de Administração de Empresas, Organização & Sociedade e Revista de Administração Contemporânea. Além disso, examinei os anais do ENANPAD, ENEO e do EGOS.
A sistemática realizada foi consultar cada número, separar os artigos que faziam uma discussão exclusivamente epistemológica e, depois, classificá-los segundo as abordagens sociológicas encontradas. Não foi minha intenção fazer um levantamento estatístico, de modo que não apresentarei números, pois o objetivo era fazer uma avaliação estritamente qualitativa. As abordagens sociológicas correntes é algo que se pode concluir quase que intuitivamente quando se participa ativamente da área de estudos organizacionais, consultando a literatura, frequentando encontros, realizando pareceres e ministrando aulas e conferências, de modo que a consulta aos periódicos e encontros teve como finalidade dar um embasamento para as escolhas a partir da produção acadêmica relevante. Vale ressaltar que a delimitação dessas abordagens sociológicas não significa que não existam outras, ou que não se possa criar novas abordagens, pois como frisei anteriormente, não há limites quanto ao número de sistemas de produção de conhecimento.
No exame dessas abordagens sociológicas, constatei como elas se posicionam no Círculo das Matrizes Epistêmicas. A abordagem funcionalista é pura, pois se mantém nos limites da matriz empírico-analítica, abrigando teorias como da contingência estrutural, da ecologia populacional, institucional, dos custos econômicos de transação, da dependência dos recursos e do agenciamento. No entanto, a teoria neoinstitucional das organizações, por exemplo, que a princípio pode ser categorizada como funcionalista, tem se desenvolvido para abranger elementos interpretativistas, reelaborando suas teorias e metodologias de modo a atingirem a fronteira com a matriz hermenêutica. É o caso do institucionalismo, derivado do livro "A Construção Social da Realidade", de Peter Berger e Thomas Luckmann, publicado em 1966BERGER, P.; LUCKMANN, T. A Construção Social da Realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 1966/2006. 247 p. , que aponta para reconstruções epistêmicas embrionárias, uma vez que se manifesta como uma teoria e metodologia de fronteira, pois ainda se circunscreve na abordagem funcionalista, ou se coloca como migrante para a abordagem interpretativista, não constituindo, ainda, uma nova abordagem sociológica.
A abordagem interpretativista também é pura, pois se circunscreve nos limites da matriz hermenêutica. É grande a diversidade de teorias e metodologias que se situam nesta abordagem: o construcionismo social, o método fenomenológico, o interacionismo simbólico, a perspectiva antropológica, a abordagem da cultura e do simbolismo são apenas alguns exemplos. Uma pesquisa recente realizada no Brasil (PAVÃO, SEHNEM e GODOI, 2010PAVÃO, Y. M. P.; SEHNEM, S.; GODOI, C. K. A Postura Hermenêutica nos Estudos Organizacionais Brasileiros. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 6, 2010. Florianópolis. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2010. 1 CD ROM.) revelou que a hermenêutica, embora presente em alguns trabalhos, é desenvolvida de forma incipiente, uma vez que a práxis, que é inerente a essa postura epistemológica, é muito pouco explorada pelos pesquisadores. Pavão, Sehnem e Godoi (2010)PAVÃO, Y. M. P.; SEHNEM, S.; GODOI, C. K. A Postura Hermenêutica nos Estudos Organizacionais Brasileiros. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 6, 2010. Florianópolis. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2010. 1 CD ROM. têm razão, pois algumas teorias apenas circundam a hermenêutica, mas nem sempre chegam a realmente praticá-la, uma vez que muitos trabalhos se atêm à descrição de fenômenos, permanecendo nos registros da abordagem fenomenológica e linguística, sem se preocupar com a tarefa de compreensão e tradução própria da hermenêutica, que se aproxima mais da fronteira com a matriz crítica. No entanto, há exceções, como o trabalho de Souza (2010)SOUZA, E. M.; SOUZA, S. P.; LEITE-DA-SILVA, A. R. O Pós-Estruturalismo e os ECG: Da Busca pela Emancipação à Constituição do Sujeito. In: Encontro Nacional de Pós-Graduação em Administração, 35, 2011. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2011. 1 CD ROM. , que, em sua pesquisa, aborda o processo de construção do conhecimento de forma construtiva-interpretativa, mas atende, ontologicamente, à matriz crítica, realizando uma combinação de matrizes epistêmicas, o que pode gerar uma teoria de fronteira, ou mesmo uma nova abordagem sociológica
A abordagem humanista também pode ser considerada pura, pois se encontra nos domínios da matriz crítica. No âmbito dessa abordagem transitam a teoria crítica frankfurtiana, o anarquismo, o existencialismo, a psicanálise e o marxismo. Essa abordagem não deveria, no entanto, prescindir da práxis, que é sua verdadeira vocação, uma vez que visa o interesse emancipatório. Nesse sentido, ela precisa fazer empréstimos da matriz hermenêutica e admitir que não é possível descartar a matriz empírico-analítica e o interesse técnico, realizando ressignificações que possam reelaborar a técnica na prática, baseada no interesse emancipatório. Alguns esforços vêm sendo feitos nessa direção, de modo que cito como exemplo a tecnologia social inspirada em Andrew Feenberg, que é discípulo de Marcuse e sofreu influências de Habermas, perspectiva que vem sendo explorada por pesquisadores como Renato Dagnino (2004DAGNINO, R. A Tecnologia Social e seus Desafios. In: DAGNINO, R. (Org.). Tecnologia Social, uma Estratégia para o Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. 187-210 p.; 2009DAGNINO, R. Em Direção a uma Teoria Crítica da Tecnologia. In: DAGNINO, R. (Org.). Tecnologia Social: Ferramenta para Construir uma Outra Sociedade. Campinas: EdUNICAMP, 2009. 73-112 p.) e Ricardo Neder (2010NEDER, R. T. (Org.). A Teoria Crítica de Andrew Feenberg. Racionalização Democrática, Tecnologia e Poder. Brasília: Kako, 2010. 341 p. ). A tecnologia social deriva de teorias e metodologias de fronteira, fruto de uma reconstrução epistêmica embrionária, que aproxima interesse técnico e interesse emancipatório, de modo que pode ser produtivo continuar explorando ainda mais essas possibilidades e, talvez, criar uma nova abordagem sociológica híbrida.
Já a abordagem estruturalista, que levou alguns pesquisadores a questionarem a incomensurabilidade por sofrer dificuldades de enquadramento nos paradigmas sociológicos (WILLMOTT, 1993aWILLMOTT, H. Breaking the Paradigm Mentality. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 681-719, Sept. 1993a.; 1993bWILLMOTT, H. Paradigm Gridlock: A Reply. Organization Studies, London, v. 14, n. 5, p. 727-730, Sept. 1993b. ; WEAVER e GIOIA, 1994WEAVER, G. R.; GIOIA, D. A. Paradigms Lost: Incommensurability vs. Structurationist Inquiry. Organization Studies, London, v. 15, n. 4, p. 565-590, July 1994. ), é uma abordagem sociológica híbrida, resultado de uma reconstrução epistêmica avançada, pois possui independência epistêmica e procura conciliar o interesse técnico e o interesse prático, conectando a matriz empírico-analítica e a matriz hermenêutica. Isso porque o estruturalismo foi um movimento por meio do qual a linguística, a sociologia, a antropologia e a psicanálise, que transitam no domínio da hermenêutica, apoiaram-se em um modelo científico. Em outras palavras, o estruturalismo vem reivindicar um status científico para as ciências sociais em meio à expansão de abordagens subjetivistas (como a fenomenologia e o existencialismo) comprometidas com a posição transcendentalista e em meio ao monopólio dos métodos empírico-analíticos pelo positivismo.
A abordagem pós-estruturalista, também denominada por alguns como abordagem pós-moderna, também é fruto de uma reconstrução epistêmica avançada, pois deriva tanto da abordagem estruturalista quanto do construcionismo social presente na abordagem interpretativista. Trata-se, do mesmo modo, de uma abordagem sociológica híbrida que transita entre as matrizes epistêmicas hermenêutica e crítica, ainda que haja controvérsias quanto a sua adesão ao interesse emancipatório. Alguns autores defendem que a emancipação não é o foco da abordagem pós-estruturalista (SOUZA, SOUZA e LEITE-DA-SILVA, 2011SOUZA, E. M.; SOUZA, S. P.; LEITE-DA-SILVA, A. R. O Pós-Estruturalismo e os ECG: Da Busca pela Emancipação à Constituição do Sujeito. In: Encontro Nacional de Pós-Graduação em Administração, 35, 2011. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2011. 1 CD ROM. ), mas, por outro lado, há manifestações claras de outros autores (WILLMOTT, 1995WILLMOTT, H. From Bravermania to Achizophrenia: The Dis(is/ec)cased Condition of Subjectivity in Labour Process Theory. In: INTERNATIONAL LABOUR PROCESS CONFERENCE, 13, 1995. Blackpool. Proceedings... Blackpool: LPC, 1995. 1 CD ROM.) de uma efetiva aproximação dessa abordagem da matriz crítica. Estes veem consistência entre o pós-estruturalismo e a dialética, pois acreditam ser essa uma via para resgatar a subjetividade e superar o "desaparecimento do sujeito", recorrendo, para isso, ao pós-estruturalismo dos neomarxistas Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que defendem essas posições.
A abordagem realista crítica também é fruto de uma reconstrução epistêmica avançada, pois emerge em oposição ao construcionismo social, fazendo um reparo aos excessos discursivos da "virada linguística", mas mantendo proposições do mesmo. Segundo Michael Reed (2005), o construcionismo social é "ontologicamente mudo" enquanto o realismo crítico é "epistemologicamente aberto e permissivo". No entanto, na sua visão, isso não significa que os recursos analíticos e explicativos utilizados podem simplesmente ignorar a ontologia, uma vez que o realismo crítico se fundamenta no real. Assim, o realismo crítico pressupõe uma ontologia na medida em que sustenta que o mundo não é constituído por meros eventos (empirismo), ou por construções mentais (idealismo), mas por estruturas reais que duram e operam independentemente de nosso conhecimento, experiência ou condições que facilitam nosso acesso a elas (PRADO, 2009PRADO, E. F. S. Economia, Complexidade e Dialética. São Paulo: Plêiade, 2009. 165 p. ). Por seu relativismo epistemológico, que implica em um uso mais aberto de teorias e metodologias, é possível dizer que o realismo crítico também é híbrido, pois concilia os três interesses cognitivos e transita entre as matrizes empírico-analítica, hermenêutica e crítica.
Conclusões
A análise das abordagens sociológicas confirma as teses da incompletude cognitiva e da reconstrução epistêmica, além de validar uma nova teoria de desenvolvimento do conhecimento que diverge da proposta kuhniana. Conforme vimos, a tese das reconstruções epistêmicas evidencia que o conhecimento sociológico se desenvolve por meio de reconstruções epistêmicas embrionárias ou avançadas. Não se tratam de rupturas paradigmáticas ou revoluções científicas, mas de criação de teorias e metodologias de fronteira, ou de abordagens sociológicas híbridas, que procuram superar a incompletude cognitiva, ainda que essa não seja uma tarefa totalmente possível, pois nenhuma reconstrução epistêmica é totalmente bem sucedida. No entanto, essa dinâmica comprova que é possível criar abordagens sociológicas que busquem conciliar os interesses cognitivos sustentados pelas matrizes epistêmicas. Em síntese:
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As matrizes epistêmicas representam espaços diferentes nos quais se utilizam linguagens específicas, uma vez que cada uma é orientada por um tipo diferente de filosofia, lógica e interesse cognitivo;
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Uma separação total dos interesses cognitivos não é possível e nem desejável na realidade social, de modo que essa delimitação dos espaços deve ser tomada como didática;
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As matrizes epistêmicas não são incomunicáveis, apenas requerem que sua linguagem seja traduzida para que haja possibilidade de diálogo e trânsito entre os espaços;
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Em cada uma das matrizes epistêmicas, há o reflexo da outra, pois na matriz empírico-analítica falta e, ao mesmo tempo, contém o interesse prático, na matriz hermenêutica, o interesse emancipatório e na matriz crítica, o interesse técnico;
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As matrizes epistêmicas constituem a unidade do conhecimento, integrando os três interesses cognitivos, de modo que não deveriam ser tomadas separadamente pelos pesquisadores;
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Para superar a incompletude cognitiva, as teorias e as metodologias transitam entre as matrizes epistêmicas e geram reconstruções epistêmicas;
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A dinâmica das abordagens sociológicas no Círculo das Matrizes Epistêmicas é animada pelas teses da incompletude cognitiva e das reconstruções epistêmicas;
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Algumas abordagens sociológicas são puras, pois se identificam com uma única matriz epistêmica e tendem a permanecer estacionárias. É o caso das abordagens funcionalista, interpretativista e humanista;
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Um exame mais minucioso evidencia que, devido à incompletude cognitiva, mesmo abordagens sociológicas puras podem gerar teorias e metodologias de fronteira, ou seja, que se encontram nos limites de sua matriz epistêmica de origem, sendo derivadas de reconstruções epistêmicas embrionárias;
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Algumas abordagem sociológicas são híbridas, uma vez que articulam elementos de mais de matriz epistêmica e contemplam mais de um interesse cognitivo, sendo geradas a partir de reconstruções epistêmicas avançadas;
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O Círculo das Matrizes Epistêmicas e a teses da incompletude cognitiva e das reconstruções epistêmicas constituem uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento.
O exame das abordagens sociológicas também evidenciou que estas não são precisas no que se refere a alcançar os interesses buscados por cada uma das matrizes epistêmicas, pois, na realidade, fazem apenas aproximações desses interesses, sustentando a tese da incompletude cognitiva. Tomando como exemplo as abordagens sociológicas puras, que tendem a permanecer no espaço de uma única matriz:
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A abordagem funcionalista transita no espaço da matriz empírico-analítica, mas suas teorias e metodologias não conseguem contemplar a totalidade do interesse técnico, pois na maior parte das vezes focalizam especificidades, sem alcançar o todo;
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A abordagem interpretativista circula no espaço da matriz hermenêutica, mas como vimos nem todas as teorias e metodologias geradas são capazes de alcançar a hermenêutica propriamente dita e o interesse prático;
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A abordagem humanista está situada no espaço da matriz crítica, mas constatamos que, frequentemente, falha em alcançar na prática o interesse emancipatório.
Dessa forma, as próprias abordagens sociológicas reforçam a tese da incompletude cognitiva, pois constatei que as mesmas procuram, cada uma de sua forma, dar sua explicação da realidade e atender a determinados interesses cognitivos, mas são apenas aproximações em relação a essa realidade e a esses interesses, na medida em que estão sujeitas à incompletude cognitiva. Tal incompletude ocorre tanto no âmbito de uma única matriz, quanto em relação às outras matrizes, pois quando permanecem em uma mesma matriz epistêmica, essas abordagens sociológicas deixam de contemplar os interesses das outras duas. Na busca de superar as limitações cognitivas e desenvolver o conhecimento, as teorias e metodologias das abordagens sociológicas puras realizam reconstruções epistêmicas embrionárias e caminham para fronteira de outras matrizes epistêmicas. A abordagem funcionalista, por exemplo, procura alcançar o interesse prático, gerando teorias e metodologias que fazem fronteira com a matriz hermenêutica. A abordagem interpretativista, por sua vez, movimenta-se da fenomenologia e da linguística na direção de teorias e metodologias próprias da hermenêutica, sendo que, ao se aproximar dela, torna-se fronteiriça à matriz crítica, pois passa a incluir o interesse emancipatório. Enquanto isso, o desafio da abordagem humanista é transcender seus limites teóricos e incluir nas suas teorias e metodologias o interesse técnico, caminhando para a fronteira da matriz empírico-analítica. A figura a seguir ilustra essa dinâmica, reforçando como "em cada matriz há o reflexo da outra":
Conclui-se, também, que o trânsito das teorias e metodologias pode levar a reconstruções epistêmicas avançadas que originam abordagens sociológicas híbridas, que têm a propriedade de transitar entre as matrizes epistêmicas e combiná-las. Esse trânsito é uma evidência de que as abordagens sociológicas híbridas buscam superar limites cognitivos, contemplando outros interesses e desenvolvendo o conhecimento. Conforme visto anteriormente, identifiquei três abordagens sociológicas que procuram integrar interesses cognitivos gerando interconexões entre matrizes epistêmicas: a abordagem estruturalista (matriz empírico-analítica e a matriz hermenêutica), a abordagem pós-estruturalista (matriz hermenêutica e matriz crítica) e a abordagem realista crítica (todas as matrizes).
As interconexões geradas pelas abordagens estruturalista, pós-estruturalista e realista crítica: abordagens sociológicas híbridas
É possível, ainda, afirmar que, ao permanecerem em uma única matriz epistêmica, as abordagens sociológicas puras, como o funcionalismo, o interpretativismo e o humanismo limitam seu potencial cognitivo, mas a busca por desenvolver o conhecimento, superando tais limitações, levam essas abordagens a criar teorias e metodologias que tentam transcender as fronteiras da matriz em que se encontram realizando reconstruções epistêmicas embrionárias. Já as reconstruções epistêmicas avançadas conseguem avançar mais nessa tarefa de desenvolver o conhecimento, pois articulam matrizes epistêmicas. Vale ressaltar que não estou afirmando que abordagens sociológicas híbridas são superiores às abordagens puras, mas que estas últimas emergem como uma base fundamental, que é mais próxima da essência de cada uma das respectivas matrizes epistêmicas, pois é a partir das puras que surgem as híbridas.
As reconstruções epistêmicas são uma comprovação de que a tese da incomensurabilidade dos paradigmas e as revoluções científicas estão deslocadas no âmbito das ciências sociais e dos estudos organizacionais. O fenômeno relevante que deveria circundar as abordagens sociológicas é a incompletude cognitiva e não a incomensurabilidade, ou seja, é a impossibilidade de sozinhas abrangerem todo o conhecimento e não a incomunicabilidade entre elas. Assim, ao invés de enfatizarmos que elas são incomunicáveis, deveríamos observar que elas são incompletas, pois é dessa forma que estaremos nos alinhando com o curso natural do desenvolvimento do conhecimento sociológico, uma vez que, como foi constatado, ele ocorre pela tentativa de transcender as limitações cognitivas. Consolida-se, assim, uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento.
Em outras palavras, as abordagens sociológicas podem e devem dialogar. Não estou advogando, no entanto, que o objetivo primordial no campo dos estudos organizacionais deve ser o consenso entre as abordagens, mas que debates e esforços analíticos em torno do que as teorias, metodologias e abordagens sociológicas têm em comum, e de como se constroem pontes entre elas para gerar novos conhecimentos parecem ser mais produtivos do que incentivar a rivalidade e as diferenças entre as mesmas. Dessa forma, o trabalho de reconstrução epistêmica, de escavação na busca do que está na origem das abordagens sociológicas, para uma compreensão mais abrangente de suas teorias e metodologias e uma exploração de suas fronteiras com outras epistemologias, é um caminho que pode ser tomado pelos pesquisadores que quiserem avançar na produção do conhecimento.
O objetivo do artigo foi apresentar esta nova proposta de orientação epistêmica, o que procurei fazer da forma mais clara possível, apesar da impossibilidade de aprofundar determinados aspectos, devido aos limites colocados para o escopo de um trabalho dessa natureza. Não é possível prever se o Círculo das Matrizes Epistêmicas será capaz de conter a "guerra paradigmática" provocada pela inserção das elaborações kuhnianas no domínio dos estudos organizacionais. No entanto, a proposição que realizei, em relação a outras que foram apresentadas por estudiosos da área, oferece uma lógica de pensamento alternativa, engendrada por uma nova teoria do desenvolvimento do conhecimento. Esta procura superar a lógica kuhniana, pois evidencia que os investigadores desenvolvem o conhecimento não quando rivalizam, mas sim quando buscam alcançar outros interesses cognitivos, realizando movimentos teóricos, analíticos e metodológicos incessantes. Como toda proposição teórico-analítica, ela também apresenta limitações, mas precisa ser testada para que estas fiquem mais evidentes, o que espero que seja realizado em futuras pesquisas.
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Ana Paula Paes de Paula, Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP; Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: appaula@face.ufmg.br
Publication Dates
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Publication in this collection
Mar 2016
History
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Received
09 Aug 2014 -
Accepted
23 Feb 2015