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Economia solidária e seu estágio de institucionalização: a contribuição das políticas públicas

La economía solidaria y su fase de institucionalización: la contribución de las políticas públicas

Resumo

O objetivo do estudo é descrever a contribuição das políticas públicas para o processo de institucionalização do campo da economia solidária. A análise se deu com base em 4 políticas públicas estaduais de economia solidária, identificadas por meio de pesquisa documental. Para a coleta de dados, foram usadas pesquisa documental em todos os estados da federação e entrevistas com 22 pesquisados em 4 estados. Para o tratamento desses dados, utilizou-se a análise de conteúdo. O processo de institucionalização foi analisado à luz do modelo de Tolbert e Zucker. O texto examinou a implementação dos instrumentos instituídos pelas políticas públicas selecionadas e como elas têm contribuído para fomentar e apoiar empreendimentos econômicos solidários. Para isso, foram identificadas e analisadas ações desenvolvidas nas áreas de comercialização, apoio técnico, formalização dos empreendimentos, acesso ao crédito e ações intragovernamentais, com a sociedade civil organizada e instituições de ensino. Verificou-se que as políticas públicas de 2 estados estão no estágio de total institucionalização por proporcionarem, por meio de suas ações, reconhecimento social e legitimidade à economia solidária.

Palavras-chave:
Economia solidária; Políticas públicas; Processo de institucionalização

Resumen

El objetivo de este trabajo es describir la contribución de las políticas públicas al proceso de institucionalización del campo de la economía solidaria. El objeto de análisis fueron cuatro políticas públicas de economía solidaria. Para la recolección de datos, se utilizaron investigaciones documentales y entrevistas. Para el tratamiento de esas informaciones, el método elegido fue el análisis de contenido. La investigación examinó la implementación de los instrumentos instituidos por las políticas públicas seleccionadas y cómo contribuyen a fomentar y apoyar emprendimientos económicos solidarios. Para ello, se identificaron y analizaron acciones desarrolladas en las áreas comerciales, de apoyo técnico, formalización de los emprendimientos, acceso al crédito y acciones intergubernamentales, con la sociedad civil organizada y universidades. Se analizó el proceso de institucionalización con base en el modelo de Tolbert y Zucker y se verificó que las políticas públicas de dos unidades federativas están en fase de total institucionalización por proporcionar, por medio de sus acciones, reconocimiento social y legitimidad a la economía solidaria.

Palabras clave:
Economía solidaria; Políticas públicas; Proceso de institucionalización

Abstract

This study aimed to describe how public policies have contributed to the institutionalization process of the solidarity economy field. The study focused on four state public policies related to the solidarity economy. The data was collected through documentary research and interviews, and content analysis was conducted. The study examined the implementation of the instruments the selected public policies established and their contribution to fostering and supporting solidarity economic enterprises. The study identified actions related to commercialization, technical support, formalization, access to credit, and intra-governmental actions. The Tolbert and Zucker model was used to analyze the institutionalization process. The study concluded that two cases were in total institutionalization because they provided social recognition and legitimation to the solidarity economy through their actions.

Keywords:
Solidarity economy; Public policies; Institutionalization process

INTRODUÇÃO

A economia solidária é tema de grande importância para as pesquisas e a sociedade em geral graças às suas dimensões social, política e econômica. Utting (2016Utting, P. (2016). Promoting social and solidarity economy through public policy. In United Nations Research Institute for Social Development(Ed.), Policy innovations transformative change. United Nations Publications.) afirma que o interesse dos acadêmicos, dos ativistas e dos formuladores de políticas públicas pela economia solidária aumentou de forma acentuada nos últimos anos e que isso se deu em razão das consequências da crise financeira global, quando se buscam alternativas para a geração de empregos. No âmbito acadêmico, o campo dispõe de grande relevância, estando presente como tema em cursos de graduação e de pós-graduação, bem como em projetos de extensão, como as incubadoras tecnológicas de empreendimentos econômicos solidários.

Essa atenção também é percebida na sociedade civil com a articulação das organizações vinculadas ao campo, com os movimentos populares e com as diversas políticas públicas implementadas nos âmbitos federal, estaduais e municipais (França, 2007França, G. C. de Filho. (2007). Teoria e prática em economia solidária: problemática, desafios e vocação. Civitas. Revista de Ciências Sociais, 7(1), 155-174. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2007.1.2041
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). O grande marco institucional foi a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), em 2003, dentro da estrutura institucional do Ministério do Trabalho. No entanto, em 2016, a Senaes perdeu o status de secretaria, passando a ser uma subsecretaria ligada ao Ministério da Economia, com uma redução expressiva na dotação orçamentária, o que tem comprometido a capacidade de execução de suas políticas e ações (S. P. Silva, 2018Silva, S. P. (2018). Crise de paradigma? A Política Nacional de Economia Solidária no PPPA 2016-2019. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 64, 163-172. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8393
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). Com a nova mudança de governo, espera-se que a economia solidária volte a ter prioridade e protagonismo nas políticas públicas.

A literatura aponta que a economia solidária é descrita como um campo em construção, que surge nos anos 1980 e 1990, em resposta às transformações sociais, como a crise do trabalho assalariado, o desemprego, a incapacidade do mercado de trabalho formal em absorver todos os indivíduos e a exclusão daqueles que não conseguem se adequar às demandas do sistema vigente e vivem na informalidade. Diante dessas dificuldades, pessoas se organizaram e formaram cooperativas, associações, clubes de troca, movimentos sociais rurais e urbanos, assentamentos agrários, bancos populares e empresas autogeridas nas quais o trabalho é baseado em autogestão, solidariedade e coletividade, práticas reconhecidas pelo nome de “economia solidária” (Gaiger, 2013Gaiger, L. I. (2013). A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28(82), 211-228. https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000200013
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; Lechat, 2002Lechat, N. M. P. (2002). Economia social, economia solidária, terceiro setor: do que se trata ? Civitas. Revista de Ciências Sociais, 2(1), 123-140. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.1.91
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; Leite, 2009Leite, M. de P. (2009). A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24(69), 31-51. https://doi.org/10.1590/S0102-69092009000100003
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; Pochmann, 2004Pochmann, M. (2004). Economia solidária no brasil: possibilidades e limites. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 24, 23-34. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4895
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).

A economia solidária, por meio de seus empreendimentos, pode proporcionar grandes contribuições ao ambiente social, econômico e político no Brasil, pois promove desenvolvimento local, articula-se e interage com o Estado, gera coesão social e empregos, além de influenciar a economia por meio das ações de suas organizações (Andion, 1998Andion, C. (1998). Gestão em organizações da economia solidária: contornos de uma problemática. Revista de Administração Pública, 32(1), 7-25. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/7680
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). S. P. Nagem e Silva (2013Nagem, F. A., & Silva, S. P. (2013). Institucionalização e execução das políticas públicas de economia solidária no Brasil. Revista de Sociologia e Política, 21(46), 159-175. https://doi.org/10.1590/S0104-44782013000200010
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), no entanto, indicam como desafio ao campo a necessidade de um ambiente institucional em que a economia solidária tenha apoio e reconhecimento, de modo que, dessa forma, seus empreendimentos possam ser formalizados e reconhecidos.

No Brasil, poucos estudos focam na institucionalização do campo da economia solidária por meio das políticas públicas, mas algumas investigações nesse sentido podem ser destacadas. Um ensaio desenvolvido por Schiochet (2009Schiochet, V. (2009). Institucionalização das políticas públicas de economia solidária: breve trajetória e desafios. In V. Schiochet(Ed.), Mercado de Trabalho. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.) mostrou a trajetória do movimento, os desafios superados e os que ainda necessitam ser enfrentados. Nele, o autor afirma que a economia solidária se estabelece como uma estratégia de promoção de desenvolvimento territorial e sustentável. S. P. Nagem e Silva (2013Nagem, F. A., & Silva, S. P. (2013). Institucionalização e execução das políticas públicas de economia solidária no Brasil. Revista de Sociologia e Política, 21(46), 159-175. https://doi.org/10.1590/S0104-44782013000200010
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) estudaram a política de economia solidária no governo federal em 2003, implementada pela Senaes, com o objetivo de entender a forma como o tema foi adotado pela agenda governamental e os mecanismos usados para converter a economia solidária em política pública.

Singer et al. (2014Singer, P., Silva, R. M. A. da, & Schiochet, V. (2014). Economia solidária e os desafios da superação da pobreza extrema no Plano Brasil Sem Miséria. In T. Campello, T. Falcão, & P. V. da Costa (Orgs.), O Brasil Sem Miséria(pp. 425-445). Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome.) demonstraram como a economia solidária se consolida como uma estratégia de desenvolvimento, mas ainda necessita de apoio das políticas públicas, tendo como maiores demandas a assessoria técnica, a formação profissional, a abertura de crédito, a assessoria para a constituição de bancos comunitários, os fundos rotativos solidários e as cooperativas de crédito. Não foram identificados, no entanto, dados consolidados sobre o estágio de institucionalização do campo no âmbito dos estados brasileiros.

Dessa forma, este estudo procura identificar e descrever a contribuição das políticas públicas para o processo de institucionalização do campo da economia solidária. Para alcançar o objetivo geral, foram elaborados os seguintes objetivos específicos: verificar, por meio de análise documental, a existência de legislação que regulamente o apoio e o fomento à economia solidária nos estados brasileiros; identificar na literatura fatores políticos, sociais e econômicos que impactam os empreendimentos econômicos solidários; caracterizar a economia solidária no Brasil, com base em dados de 4 estados brasileiros; e analisar o nível de institucionalização das políticas públicas de economia solidária estudadas.

A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO CONTEXTO BRASILEIRO

Pesquisadores do campo de economia solidária no Brasil identificaram seu surgimento a partir dos anos de 1980, quando uma crise no sistema assalariado de trabalho atingiu o país, acarretando grandes impactos negativos, como desemprego e instabilidade econômica, desencadeando, assim, a busca por alternativas de emprego e renda (Gaiger, 2013Gaiger, L. I. (2013). A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28(82), 211-228. https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000200013
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; Leite, 2009Leite, M. de P. (2009). A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24(69), 31-51. https://doi.org/10.1590/S0102-69092009000100003
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; Pochmann, 2004Pochmann, M. (2004). Economia solidária no brasil: possibilidades e limites. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 24, 23-34. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4895
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). Pochmann (2004Portaria nº 1.780, de 19 de novembro de 2014. (2014). Diário Oficial da União. https://www.fiepr.org.br/para-sindicatos/assistencia-sindical/uploadAddress/IN_01_-_2014[59116].pdf
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) afirma ainda que o impulso inicial da economia solidária está relacionada com 2 movimentos específicos no Brasil: o surgimento de um expressivo excedente de mão de obra e a eclosão de um movimento formado por militantes sociais e críticos comprometidos com a busca por alternativas de organização social e laboral, objetivando geração de trabalho, renda e mudança no modo de vida para as pessoas excluídas da sociedade.

Na perspectiva de Singer et al. (2014Singer, P., Silva, R. M. A. da, & Schiochet, V. (2014). Economia solidária e os desafios da superação da pobreza extrema no Plano Brasil Sem Miséria. In T. Campello, T. Falcão, & P. V. da Costa (Orgs.), O Brasil Sem Miséria(pp. 425-445). Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome.), a economia solidária é um modo de produção coletivo em que todos os membros se esforçam conjuntamente, beneficiando-se da mesma forma, e que, por resgatar uma parcela da população de situação de extrema pobreza, se constitui numa estratégia de promoção de desenvolvimento territorial e sustentável.

Sobre a relação da economia solidária e a tentativa de superação da exclusão social, Singer (2008Singer, P. (2008). Economia solidária. Entrevista com Paul Singer. Estudos Avançados, 22(62), 289-314. https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000100020
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) afirma que, de fato, acolher as pessoas excluídas do mercado de trabalho foi e continua sendo a função da economia solidária no Brasil, ou seja, ela tem uma função social, pois, ao mesmo tempo, insere as pessoas na produção e na vida social. A economia solidária, no entanto, não se limita a essa função; ela busca estabelecer outra economia, que, diferentemente da de mercado, é desalienante, ao passo que proporciona às pessoas um ambiente de trabalho democrático e igualitário.

Apesar de a economia solidária ter surgido no Brasil como resposta a uma crise no sistema assalariado de trabalho e ser reconhecida como uma alternativa de geração de trabalho e renda, o movimento pode ser visto para além do preenchimento dessa lacuna. Sobre esse debate, Andion (1998Andion, C. (1998). Gestão em organizações da economia solidária: contornos de uma problemática. Revista de Administração Pública, 32(1), 7-25. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/7680
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) expõe os diversos papéis da economia solidária e identifica o impacto de suas práticas nas dimensões social, econômica e política. Dessa forma, a autora apresenta a economia solidária em 3 eixos principais: primeiro, como meio de promoção de desenvolvimento local e interação dessas organizações com o Estado; segundo, como capacidade de geração de coesão social e de empregos; por último, como influência das práticas de economia solidária na economia.

Para se estabelecer como estratégia concreta de enfrentamento de problemas locais, a economia solidária necessita ainda de um marco legal ou regulatório para suas práticas, pois, sem uma legislação adequada, que leve em consideração a singularidade e a realidade do movimento, não há como os empreendimentos alcançarem todo o potencial de mudança (França, 2008França, G. C. de Filho. (2008). A via sustentavel solidária no desenvolvimento local. Organizações & Sociedade, 15(45), 219-232. https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/10961
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). A falta de uma legislação que regule o modo de organização dos empreendimentos e os aspectos trabalhistas acaba por restringir o avanço dessas práticas e seu potencial de mudança. Nesse ponto, surge uma discussão sobre a importância da legitimação das práticas e da institucionalização da economia solidária. A seguir, são apresentadas algumas reflexões e questionamentos a esse respeito.

POLÍTICAS PÚBLICAS E A ECONOMIA SOLIDÁRIA

No que tange à economia solidária, as políticas públicas exercem um papel fundamental, pois é por meio delas que se dá a institucionalização de seu campo. Assim, Natividade et al. (2011Natividade, E. A., Pereira, J. R., & Oliveira, V. A. R. de. (2011). Gestão social de políticas públicas de geração de trabalho e renda: uma reflexão por meio das ações da Secretaria Nacional de Economia Solidária. Administração Pública e Gestão Social, 3(1), 1-22. https://doi.org/10.21118/apgs.v3i1.4036
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) ressaltam que ela vinha se desenvolvendo no Brasil e está inserida na agenda do Estado como uma preocupação das políticas públicas governamentais, ainda que não seja de forma ideal.

A ampliação da economia solidária e seu potencial transformador exigem uma ampla gama de políticas públicas de apoio em diferentes níveis, participação efetiva, formas inovadoras de financiamento, bem como aprender e realizar experiências de implementação com base em pesquisa, monitoramento e avaliação. Embora o apoio do governo possa desempenhar um papel expressivo na ampliação do campo, também pode diluir seu potencial transformador, caso os processos não sejam construídos em conjunto e o Estado não esteja em sintonia com os demais atores do campo da economia solidária (Utting, 2016Utting, P. (2016). Promoting social and solidarity economy through public policy. In United Nations Research Institute for Social Development(Ed.), Policy innovations transformative change. United Nations Publications.). No entanto, as políticas públicas de economia solidária muitas vezes não consideram as premissas e os valores desse campo.

Segundo Alcântara (2005Alcântara, F. H. C. (2005). Economia solidária: o dilema da institucionalização. Livraria Arte & Ciência.), a ação do Estado por meio de projetos não é suficiente para solucionar a institucionalização dessa prática, de modo que é preciso um contexto socioinstitucional no qual os empreendimentos econômicos solidários possam atuar e se consolidar. Para que esse patamar seja alcançado, o ambiente precisa ser socialmente construído com apoio de políticas públicas e campanhas institucionais por parte do Estado. A autora afirma ainda que existe uma ausência de dados sobre as iniciativas do governo para a institucionalização da economia solidária e que, portanto, não há como afirmar em que nível estaria esse processo.

A ausência de um marco regulatório adequado para a economia solidária no Brasil é apontada por R. F. Silva e S. P. Silva (2015Silva, R. F. da, & Silva, S. P.(2015). Em busca de um marco legal para a economia solidária no Brasil: análise da trajetória do PL no 4.685/2012. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 58, 91-100. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10745
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) como um gargalo e um assunto bastante discutido nas conferências nacionais de economia solidária entre 2006 e 2010. Esse marco seria importante para estabelecer a política pública de economia solidária como uma política de Estado, e, na opinião dos autores, os eixos de atuação deveriam concentrar suas ações na formação, no assessoramento técnico, no acesso a crédito e nas finanças solidárias, bem como nos mercados, a para comercialização solidária e práticas de comércio justo.

Uma questão relevante que deve ser considerada na construção e na implementação de uma política pública de economia solidária é a interação entre os diversos atores sociais do movimento, que são empreendimentos econômicos solidários, entidades de apoio e fomento, redes e fóruns de economia solidária, além de grupos da nova institucionalidade pública de Estado, como a Senaes e outras estruturas políticas do Estado - por exemplo, secretarias, diretorias e superintendências (França, 2007França, G. C. de Filho. (2007). Teoria e prática em economia solidária: problemática, desafios e vocação. Civitas. Revista de Ciências Sociais, 7(1), 155-174. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2007.1.2041
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). Essas interações contribuem para o alcance de maior democratização das políticas públicas de economia solidária, além de impulsionar a participação e o controle social (França, 2007; Praxedes, 2009Praxedes, S. F. (2009). Políticas públicas de economia solidária: novas práticas, novas metodologias. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 39, 57-62. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4069
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).

Diante desses fatores, identifica-se que o ambiente institucional em que a economia solidária está inserida impõe às organizações regras, normas e exigências, às quais elas devem se adequar para obter legitimidade, reconhecimento social e apoio, tanto para si quanto para seus adeptos. Dessa forma, a economia solidária parece ser vista como uma alternativa atenuante ao problema do desemprego, e não como uma nova proposta de desenvolvimento, limitando seu potencial econômico, político e social.

A TEORIA INSTITUCIONAL E O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

A teoria institucional é uma abordagem que ganha força nos anos 1970, com o intuito de contribuir para o entendimento sobre as mudanças nos arranjos estruturais das organizações (Tolbert & Zucker, 1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.). Entretanto, ela não se restringe especificamente à análise organizacional, à medida que é resultado de um conjunto de suposições teóricas originadas da ciência política, da sociologia e da economia, reunindo conceitos sobre instituições, padrões de comportamento, normas, valores e crenças para o estudo de indivíduos, grupos e organizações (Machado-da-Silva & Gonçalves, 1997Machado-da-Silva, C. L., & Gonçalves, S. A. (1997). Nota técnica: a teoria institucional. In C. L. Machado-da-Silva, & S. A. Gonçalves(Eds.), Handbook of organization studies(pp. 218-225). Sage Publications.).

O precursor da abordagem institucional, segundo Carvalho et al. (2001Carvalho, C. A., Vieira, M. M. F., & Lopes, F. D. (2001). The structuring of the organizational field of theaters and museums in the South of Brazil. In Proceedings of the 17º EGOS Colloquium, Lyon, France.), é Philip Selznick, que conceitua organizações como uma expressão estrutural da ação racional que, ao longo do tempo, está sujeita às pressões do ambiente social e se transforma-se em sistemas orgânicos. O autor também pontua que as organizações passam por um processo de institucionalização por meio do qual “os valores substituem os fatores técnicos na determinação das tarefas organizativas” (Carvalho et al., 2001Carvalho, C. A., Vieira, M. M. F., & Lopes, F. D. (2001). The structuring of the organizational field of theaters and museums in the South of Brazil. In Proceedings of the 17º EGOS Colloquium, Lyon, France.).

Desse modo, Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.) desenvolveram uma contribuição para a teoria institucional por meio de uma revisão de literatura que discute uma lacuna: a ausência do estabelecimento de variáveis centrais, metodologia padronizada e métodos específicos. Assim, as autoras desenvolvem um modelo geral sobre processos de institucionalização em organizações formais, com base na adaptação do trabalho de Berger e Luckmann (1967Berger, P., & Luchmann, T. (1967). Social construction of reality. Anchor Books.), que também apresentaram um modelo, porém voltado a atores individuais.

Para Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.), a institucionalização é o processo de surgimento e de conservação de grupos sociais duradouros, do qual a instituição é o resultado. O modelo de processo de institucionalização desenvolvido pelas autoras passa por 3 estágios: pré, semi e completa institucionalização, os quais são nomeados, respectivamente, de habitualização, objetificação e sedimentação.

A primeira fase, conhecida como habitualização ou estágio pré-institucional, se refere à criação de arranjos estruturais em resposta a problemas organizacionais e à formalização destes em políticas ou procedimentos. Essa fase contempla inovações ou mudanças para o enfrentamento de problemas organizacionais, impulsionadas por fatores como mudanças tecnológicas, legislação e/ou forças do mercado. Todavia, os arranjos organizacionais desenvolvidos nessa fase são pouco permanentes.

Objetificação, ou semi-institucionalização, é a segunda fase, em que se confere à organização um status mais permanente. Nela, ocorre o desenvolvimento de um grau de consenso social entre os decisores sobre o valor da organização em função de 2 mecanismos diferentes: monitoramento interorganizacional e teorização. O primeiro diz respeito ao processo de monitoramento dos concorrentes em busca de informações para a obtenção de vantagens em relação à concorrência, enquanto a teorização é o fator que confere à estrutura organizacional legitimidade cognitiva e normativa geral.

Por fim, a sedimentação, ou estágio de total institucionalização, se caracteriza pela propagação das estruturas por grupo de atores e a perpetuação por um longo período, em função de 3 fatores: baixa resistência de grupos de oposição, promoção e apoio contínuo de grupos defensores e correlação positiva com os resultados.

Figura 1
Fases do processo de institucionalização

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa realizada é de enfoque qualitativo e de finalidade exploratória e descritiva, com a utilização de estudo de caso (Saunders et al., 2009Saunders, M., Lewis, P., & Thornhill, A. (2009). Research methods for business students. (5a ed.). Pearson Education.; Yin, 2015Yin, R. K. (2015). Estudo de caso: planejamento e métodos(5a ed.). Bookman.) para identificar e descrever a contribuição de políticas públicas para o processo de institucionalização do campo da economia solidária. O objeto escolhido foram as políticas públicas de economia solidária de 4 estados e que estavam em implementação em 2018. As unidades de investigação foram as políticas públicas estaduais que destacam a economia solidária no interior das estruturas de governo e as ações governamentais de implementação dessas políticas. Essa estratégia metodológica se justifica pelo fato de que o que se procurou investigar e conhecer foram o ambiente institucional local, o reconhecimento social e o apoio que a economia solidária pudesse ou não ter em determinado estado.

Os dados foram coletados de fontes primárias e secundárias, em forma de entrevistas e de pesquisa documental. Para a escolha das políticas estudadas, foi necessário um primeiro passo, que também corresponde ao primeiro objetivo específico da pesquisa: verificar quais estados tinham uma legislação que regulamentasse o apoio e o fomento à economia solidária. Nessa fase, foi realizada uma pesquisa documental para mapear tais políticas estaduais. Como resultado, observou-se que, das 27 unidades federativas, 18 tinham uma política pública de fomento e apoio à economia solidária: Acre, Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, São Paulo e Tocantins. Verificou-se ainda que o Rio de Janeiro tinha uma lei que aprovava apenas um programa de fomento, e não a política estadual de economia solidária.

Com base nesse panorama nacional de políticas estaduais de economia solidária, foram escolhidos 4 casos: os de Distrito Federal, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Eisenhardt (1989Eisenhardt, M. K. (1989). Building theories from case study research. Academy of Management Review, 14(4), 532-550. https://doi.org/10.5465/AMR.1989.4308385
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) considera que não existe um número ideal de casos a serem investigados; em geral, entre 4 a 10 é suficiente, sobretudo considerando a quantidade de unidades federativas e que nem todas contavam com essas políticas até aquele momento. Com base nesse argumento, com a triangulação dos dados e com o atingimento da saturação teórica, entendeu-se que o número de casos alcançados foi suficiente para realizar as análises e atingir os objetivos propostos. Outro fato que valida essa afirmação é que nem todas as unidades da federação têm políticas estabelecidas, como já demonstrado, além do tempo e dos custos para o levantamento de dados em todas as unidades da federação.

Na segunda etapa da coleta de dados, foi realizada a pesquisa de campo nas unidades de análise, por meio da aplicação de entrevistas, que são fundamentais para o estudo de caso, pois os entrevistados podem fornecer insights relevantes sobre o tema (Yin, 2015Yin, R. K. (2015). Estudo de caso: planejamento e métodos(5a ed.). Bookman.). As entrevistas foram aplicadas aos servidores públicos, comissionados e efetivos, responsáveis pela implementação da política pública de economia solidária em cada estado e pelo desenvolvimento das demais ações governamentais. A seleção dos sujeitos entrevistados se deu por negociação com a autoridade responsável pela área de economia solidária ou correlata em cada estado. O número de entrevistas foram 4 no Distrito Federal, 5 em Minas Gerais, 10 na Bahia e 3 em Pernambuco, totalizando 22 entrevistas.

Figura 2
Caminho metodológico para a coleta de dados

Após as entrevistas, outra pesquisa documental foi realizada para respaldar as respostas obtidas na fase anterior. Foi feita uma busca por notícias relacionadas com ações, programas e eventos de economia solidária pelo órgão responsável naquele estado. A busca por esses documentos também se justificou pelo fato de que essas ações caracterizam o ambiente institucional e contribuem para a legitimação do campo. Os dados foram acessados nos sites do órgão implementador, bem como foram usados os resultados referentes diretamente ao tema. Essa estratégia é uma forma de triangular e validar os dados obtidos durante as entrevistas. De acordo com Yin (2015Yin, R. K. (2015). Estudo de caso: planejamento e métodos(5a ed.). Bookman.), fontes múltiplas de evidência permitem a triangulação dos dados, que é definida pelo autor como informações coletadas de várias fontes, mas que respaldam o mesmo fenômeno ou fato. A triangulação está ligada à qualidade da pesquisa qualitativa ao ampliar as possibilidades do pesquisador e possibilitar maior alcance para compreender o objeto de estudo (Flick, 2009Flick, U. (2009). Qualidade na pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed.).

A organização e a análise dos dados foram feitas com auxílio do software NVivo®. Codificaram-se em categorias de análise as transcrições na íntegra das entrevistas, as notícias coletadas nos sites dos governos, a legislação estadual que aprovou a política de economia solidária nos estados pesquisados, os decretos de regulamentação, as portarias e os planos estaduais de economia solidária. Os dados coletados de várias fontes têm o intuito de possibilitar a triangulação e verificar se havia consonância entre o que estabelecia a legislação (primeira etapa), a mensagem dos entrevistados (segunda etapa), e o que era desenvolvido e divulgado pelo estado (terceira etapa).

As categorias de análise consistem na resposta ao segundo objetivo específico desta pesquisa: identificar na literatura fatores políticos, sociais e econômicos que impactam os empreendimentos econômicos solidários, pois foram fundamentadas na revisão teórica e consistem, de forma geral, nos fatores políticos, sociais e econômicos que impactam os empreendimentos econômicos solidários. Com base na revisão teórica, chegou-se à definição a priori de 5 categorias de análise: comercialização, apoio técnico, formalização, acesso a crédito e ações intragovernamentais com a sociedade civil organizada e universidades.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Nesta seção, são apresentados os resultados da análise de conteúdo dos casos pesquisados, em que as categorias analíticas foram utilizadas para o estabelecimento de relações entre os temas investigados. Para atestar as evidências que levaram aos resultados apresentados, foram transcritos trechos selecionados dos materiais coletados no trabalho de campo e na pesquisa documental.

Instrumentos de apoio à comercialização dos empreendimentos econômicos solidários

Um dos principais pontos de vulnerabilidade dos empreendimentos econômicos solidários é a dificuldade de acesso aos mercados e a políticas de comercialização (Leite, 2009Leite, M. de P. (2009). A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24(69), 31-51. https://doi.org/10.1590/S0102-69092009000100003
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; R. F. Silva & S. P. Silva, 2015Silva, R. F. da, & Silva, S. P.(2015). Em busca de um marco legal para a economia solidária no Brasil: análise da trajetória do PL no 4.685/2012. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 58, 91-100. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10745
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). O apoio a atividades comerciais dos empreendimentos é um dos temas das políticas de fomento implementadas pela antiga Senaes, que buscava apoiar as feiras de economia solidária em todo o país com aporte de recursos materiais necessários (Singer, 2009Singer, P. (2009). Políticas públicas da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 39, 43-48. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4788
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).

Em todos os estados analisados, foi instituído em suas políticas o apoio à comercialização dos empreendimentos. No Distrito Federal, uma das ações executadas, no momento da pesquisa, era o chamado Circuito Ecosol, que consistia numa feira itinerante mensal, a qual ocorre em vários pontos da cidade, como shoppings e o pátio do centro público.

Em Minas Gerais, era realizada uma feira anual em cada um dos territórios do fórum mineiro de economia solidária, num total de 11 por ano. Essas feiras eram levadas a cabo com recursos previstos no Plano Plurianual de Ação Governamental de Minas Gerais, para uma ação chamada “Estruturação e manutenção de espaços para comercialização dos produtos” (Entrevista 1, Minas Gerais).

Na Bahia, umas das principais formas de apoiar a comercialização dos empreendimentos são os centros públicos. Nesses espaços multifuncionais, cria-se a chamada loja solidária, um local de comercialização onde os empreendimentos da região expõem seus produtos para venda e selecionam pessoas, entre os membros do grupo, para trabalhar num sistema de rodízio. Alguns desses espaços solidários conseguiram sair do âmbito do centro público e se instalaram em outros centros comerciais, como shoppings (Entrevista 5, Bahia).

As ações de comercialização na Bahia têm foco na estruturação dos empreendimentos em rede. Editais para formação de redes começaram a ser lançados, e o segundo teve ao redor de 12 milhões de reais em recursos, incluindo tanto o fomento a redes que já existiam quanto a formação de novas (Entrevista 9, Bahia). Outro avanço importante da política baiana é a aprovação da isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) na saída dos produtos produzidos pelos empreendimentos econômicos solidários (Decreto no 15.661, 2014Decreto nº 15.661, de 18 de novembro de 2014. (2014). Altera o Decreto nº 13.780, de 16 de março de 2012, que regulamenta o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações - ICMS, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado da Bahia.), além de haver em tramitação uma lei que regulamenta o acesso às compras públicas por esses grupos (Entrevista 10, Bahia).

Em Pernambuco, para implementar ações de apoio à comercialização, a gerência de economia solidária executa um projeto chamado Integra, que apoia feiras, redes de comercialização e espaços culturais multifuncionais. O Integra, além de permitir a venda de produtos, também conta com apresentações culturais, feiras de troca e divulgação do movimento da economia solidária para a população local (Entrevista 2, Pernambuco).

Diante desses resultados, pode-se perceber que, no Distrito Federal, ainda não há estímulo à criação de redes e que os espaços públicos criados para essa função são poucos. Em Pernambuco, as ações nesse sentido são mais numerosas. Minas Gerais também promove expressivas ações de comercialização, realizando feiras em diversos territórios e parceria com prefeituras para a utilização de espaço físico. No entanto, de todos os casos analisados, a Bahia está à frente no número e na abrangência das ações, tendo em vista que, além de realizar as ações já feitas pelos outros estados, promove também o fomento, a criação e o desenvolvimento de redes por meio de editais. No estado, também se realizam feiras e circuitos promovidos diretamente pela superintendência e, por meio dos centros públicos, se estabeleceram parcerias com entidades privadas, como shopping, para angariar mais espaços de comercialização.

Ações de apoio técnico

A necessidade de assessoramento técnico se traduz num dos maiores problemas enfrentados pelos empreendimentos econômicos solidários, e o apoio a essa demanda deve ser um dos objetivos dos eixos temáticos de atuação das políticas públicas de fomento à economia solidária (Nagem & S. P. Silva, 2013Nagem, F. A., & Silva, S. P. (2013). Institucionalização e execução das políticas públicas de economia solidária no Brasil. Revista de Sociologia e Política, 21(46), 159-175. https://doi.org/10.1590/S0104-44782013000200010
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; Pochmann, 2004Pochmann, M. (2004). Economia solidária no brasil: possibilidades e limites. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 24, 23-34. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4895
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; S. P. Silva, 2017Silva, S. P. (2017). Análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos de economia solidária no Brasil(Texto para discussão, nº 2271). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/7424
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; R. F. Silva & S. P. Silva, 2015Silva, R. F. da, & Silva, S. P.(2015). Em busca de um marco legal para a economia solidária no Brasil: análise da trajetória do PL no 4.685/2012. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 58, 91-100. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10745
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). Ações públicas de investimento dessa natureza contribuem para o desenvolvimento da capacidade de auto-organização e autogestão desses empreendimentos e se justificam pelo fato de os empreendimentos terem como caraterística a vulnerabilidade social. Recebendo esse tipo de apoio e à medida que vão agregando os conhecimentos necessários, os empreendimentos passam a depender cada vez menos de ajuda do governo (Singer et al., 2014Singer, P., Silva, R. M. A. da, & Schiochet, V. (2014). Economia solidária e os desafios da superação da pobreza extrema no Plano Brasil Sem Miséria. In T. Campello, T. Falcão, & P. V. da Costa (Orgs.), O Brasil Sem Miséria(pp. 425-445). Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome.).

As 4 políticas públicas analisadas neste trabalho instituíram ações dessa natureza. A Bahia se destaca nessa categoria e apresenta ações de apoio técnico que estão distribuídas nas 4 coordenações da superintendência de economia solidária, cada uma executando as atividades de assessoria referentes aos seus temas. A coordenação de formação e divulgação de economia solidária e cooperativismo executa o projeto de “combate ao racismo institucional: a contribuição da economia solidária para sensibilização de gestores públicos” e o programa dos centros vocacionais tecnológicos (CVT), que têm o papel de realizar formação por meio de cursos e oficinas de diversos temas, além de difusão tecnológica, para aprimorar os processos produtivos e aumentar a produtividade do trabalho (Entrevista 7, Bahia).

A coordenação de microcrédito e finanças solidárias também exerce papel de apoio técnico voltado às suas atribuições. Pelo programa de crédito chamado CrediBahia, são disponibilizados um espaço com estrutura física necessária e o agente de crédito para orientar e esclarecer dúvidas. A coordenação de inovação e fomento à economia solidária estrutura fisicamente as feiras e as requalifica quando necessário, apoia os catadores de material reciclável e fomenta a criação de redes de empreendimentos. A coordenação de assistência técnica e inclusão socioprodutiva tem como principal instrumento de execução de suas atividades os Centros Públicos de Economia Solidária (Cesol), espaços multifuncionais geridos por organizações sociais, por meio de contrato de gestão, e que oferecem formação continuada aos empreendimentos que estão na região do centro público (Entrevista 6, Bahia).

Com relação ao objetivo previsto em lei de proporcionar apoio técnico aos empreendimentos econômicos solidários, no Distrito Federal a meta foi cumprida parcialmente, pois, apesar da criação do centro público, as ações ainda são muito tímidas. Em Minas Gerais, as ações são mais robustas, destacando o diferencial de valorização dos conselhos municipais de economia solidária, impulsionando a criação desses espaços e capacitando os conselheiros. A Bahia se sobressai em número de ações, público alcançado, articulação com outros órgãos do governo e até com a publicação de editais e convênios para suprir a demanda de assistência técnica dos empreendimentos. Outro fator que faz com que esse estado se destaque é a quantidade de centros públicos e centros vocacionais tecnológicos instalados nos territórios. Pernambuco também tem ações de apoio técnico sólidas, destacando-se o apoio aos artesãos e aos empreendimentos no interior do estado.

Incentivo à formalização dos empreendimentos econômicos solidários

A informalidade é um dos grandes obstáculos aos empreendimentos econômicos solidários em âmbito nacional (S. P. Silva, 2017Silva, S. P. (2017). Análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos de economia solidária no Brasil(Texto para discussão, nº 2271). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/7424
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; R. F. Silva & S. P. Silva, 2015Silva, R. F. da, & Silva, S. P.(2015). Em busca de um marco legal para a economia solidária no Brasil: análise da trajetória do PL no 4.685/2012. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 58, 91-100. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10745
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). Um mapeamento realizado pela Senaes em 2013 apontou que, dos 19.708 empreendimentos identificados de 2010 a 2012, 30,5% estavam constituídos como grupos informais (Sistema de Insumos Estratégicos, 2013Sistema de Insumos Estratégicos. (2013). Boletim informativo , nº 6. http://sies.saude.gov.br
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). Singer (2009Singer, P. (2009). Políticas públicas da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 39, 43-48. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4788
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) considera que esse número é bastante expressivo e decorre do fato de os empreendimentos não terem recursos para o registro nos órgãos competentes, pois isso exige dinheiro, esforços e paciência, em função das exigências das juntas comerciais, cujos protocolos não são adaptáveis à realidade desse tipo de organização.

Buscando dar visibilidade e reconhecimento público aos empreendimentos econômicos solidários formais e informais, o governo federal criou, por meio da Portaria nº 1.780, de 19 de novembro de 2014, do Ministério do Trabalho, o Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários (Cadsol). Além desse objetivo, com o banco de dados do Cadsol, esperava-se obter informações para subsidiar a formulação de políticas públicas e a elaboração de marco jurídico adequado à economia solidária (Portaria no 1.780, 2014Portaria nº 1.780, de 19 de novembro de 2014. (2014). Diário Oficial da União. https://www.fiepr.org.br/para-sindicatos/assistencia-sindical/uploadAddress/IN_01_-_2014[59116].pdf
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).

No Distrito Federal, em Minas Gerais e em Pernambuco, a preocupação dos implementadores é o registro no Cadsol. Na Bahia, a superintendência de economia solidária também tem a diretriz de orientar, por meio do centro público, o cadastro no Cadsol. Existe uma equipe que faz a divulgação desse registro, enquanto as demais orientações ficam a cargo do centro público. Pode-se destacar também a articulação que a superintendência faz com a junta comercial do estado e com o conselho de cooperativismo, a fim de que o atendimento a esses empreendimentos seja adequado à sua realidade. Apesar da variedade e da amplitude de estratégias para efetivar o apoio à formalização e ao registro dos empreendimentos, há resistência por parte deles por conta da quantidade de exigências burocráticas que ainda existem nos 3 âmbitos de governo (Entrevistas 10 e 9, Bahia).

Quanto às ações implementadas nas 4 unidades de análise para apoiar a formalização e o registro dos empreendimentos, foi constatado, portanto, que o entendimento geral é o de orientação para registro no Cadsol, por ser este o cadastro próprio para a economia solidária e que leva em consideração as características, os princípios e a realidade dos empreendimentos. As legislações têm basicamente o mesmo objetivo para esse tema, mas não esclarecem da forma mais adequada como alcançá-lo. A profundidade das ações de formalização nos estados analisados é a mesma, em suma, exceto a Bahia, que criou e executa um cadastro estadual, fornece assistência técnica para orientar e efetivar o registro dos empreendimentos em todas as instâncias necessárias e realiza parceria com a junta comercial do estado para tentar adequar as exigências burocráticas desse órgão à realidade dos empreendimentos, fomentando o registro.

Programas de acesso ao crédito

O acesso ao crédito se refere aos programas que concedem crédito aos empreendimentos econômicos solidários, os quais fomentam os bancos comunitários e os fundos rotativos solidários. Para Singer (2008Singer, P. (2008). Economia solidária. Entrevista com Paul Singer. Estudos Avançados, 22(62), 289-314. https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000100020
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), o maior obstáculo da economia solidária é o crédito, porque os empreendimentos são pobres e não se constituem com base no capital de acionistas ou proprietários, formando-se da junção de força de trabalho coletiva. O sistema financeiro formal é voltado a empresas e governos, não abrangendo empreendimentos dessa natureza; portanto, identifica-se o que o autor denomina de “exclusão financeira”, bem como que a economia solidária busca superar esse cenário usando alguns instrumentos, como bancos comunitários, fundos rotativos e programas de microcrédito.

No Distrito Federal, não há um programa específico para atender demandas de investimento e capital dos empreendimentos de economia solidária (Entrevista 1, Distrito Federal). Na Bahia, o previsto em lei são as linhas de crédito especiais, porém as ações implementadas são mais abrangentes. Dentro da estrutura da superintendência de economia solidária, criou-se uma área específica chamada coordenação de microcrédito e finanças solidárias, para a implementação das ações no crédito. Foi lançado um edital de finanças solidárias com recursos de 3,5 milhões de reais voltados ao fomento de bancos comunitários, cooperativas de crédito e fundos rotativos. A superintendência também oferta crédito de forma direta por meio do programa de microcrédito chamado CrediBahia (Entrevista 6, Bahia).

Em Pernambuco, por meio do projeto Integra, a gerência de economia solidária desenvolve ações para estimular a criação de um banco comunitário, uma associação de crédito popular e um fundo solidário. A gerência conta com um fundo próprio destinado à concessão de crédito aos empreendimentos, o qual é proveniente da Agência de Fomento do Estado de Pernambuco (Agefepe) (Entrevista 1, Pernambuco).

O objetivo de fornecer crédito está descrito de forma muito sintética na legislação de apoio à economia solidária, e alguns estados foram além do que prevê a sucinta regulamentação. O Distrito Federal não dispõe de ações diretas de acesso a crédito para empreendimentos de economia solidária. O que se fez foi a inclusão de artesãos vinculados à economia solidária na lista de destinatários do programa de microcrédito do governo do Distrito Federal - Prospera (Entrevista 2, Distrito Federal).

Os outros 3 casos concentram o apoio mediante crédito a bancos comunitários, fundos rotativos solidários, cooperativas de crédito, demais cooperativas e associações. A Bahia se destaca por ter diversas formas de crédito, por meio de editais, parceria com prefeituras e programas específicos próprios. As ações nesse estado são mais numerosas, abrangentes, e tem um volume maior de recursos.

Ações intragovernamentais com a sociedade civil organizada e universidades

Nessa categoria temática, buscou-se verificar se as políticas públicas analisadas estabelecem como um dos objetivos a interação com os demais atores do campo da economia solidária e como isso ocorre. Para França (2007França, G. C. de Filho. (2007). Teoria e prática em economia solidária: problemática, desafios e vocação. Civitas. Revista de Ciências Sociais, 7(1), 155-174. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2007.1.2041
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), a economia solidária é um movimento social singular que ocorre graças às caraterísticas dos atores sociais que a compõem. Em função dessa dinâmica de atores em movimento, as expressões do campo passaram de formas de auto-organização socioeconômicas para formas de auto-organização sociopolítica, ao passo que, com a participação dos poderes públicos, esse processo se desenvolveu e se tornou mais complexo.

Todos os estados analisados têm ações de integração com órgãos governamentais e demais atores do campo. O que se pode inferir a respeito dessa categoria temática é que, no Distrito Federal, esse relacionamento entre atores ocorre de maneira muito embrionária, restringindo-se apenas a redes e fóruns de economia solidária. A realidade dos estados de Pernambuco e Minas Gerais é mais ampla, pois existe interação entre redes, fóruns, entidades de apoio e fomento, além de órgãos das 3 esferas de governo.

A Bahia se destaca em relação aos outros casos em função do número maior de interações, de sua abrangência e do volume de recursos financeiros envolvidos, mesmo com a divulgação de editais para projetos em parceria. Podem ser identificadas no estado parcerias e ações com outras superintendências, secretarias estaduais e prefeituras; com instituições de ensino superior, para a criação e a manutenção de centros públicos e centros vocacionais tecnológicos (CVT); com empresas privadas, a exemplo da parceria com os dois maiores shopping centers da capital, para o estabelecimento de espaços solidários; com deputados estaduais, federais, e a superintendência de economia solidária. Por fim, há um diálogo consolidado com deputados para a disponibilização de emendas com a finalidade de destinar ativos aos empreendimentos econômicos solidários (Entrevistas 6, 8, 9 e 10, Bahia).

Avaliação da institucionalização das políticas públicas analisadas

Nesta seção, por meio de uma adaptação do modelo para o processo de institucionalização de Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.), faz-se uma análise das políticas públicas estaduais de economia solidária. As autoras citam diferentes implicações do modelo do processo de institucionalização para pesquisas empíricas, entre elas os procedimentos para coleta de dados e análise desse processo, recomendando o uso da análise de conteúdo para obter indicadores para mensurar o estado cultural das estruturas. Dessa forma, o Quadro 1 apresenta uma síntese das seções anteriores, sistematizando as categorias de análise, suas respetivas dimensões e elementos de análise. Essa sistematização fundamenta a análise do nível de adesão de cada estado e, consequentemente, indica o nível de institucionalização de cada política, segundo o processo de estágios de institucionalização desenvolvido pelas autoras.

Quadro 1
Resumo das categorias de análise

Quadro 1

Os estágios de institucionalização foram analisados de acordo com Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.), contudo foram adaptados para a análise da política pública de economia solidária. Dessa forma, os fatores de análise das 3 fases do processo de institucionalização são: 1) a habitualização, que se refere à adoção dessa nova estrutura em resposta a problemas, podendo ser essa a aprovação de legislação ou mesmo ações isoladas de enfretamento do problema público, sem necessariamente a aprovação de lei; 2) a objetificação, que se refere à regulamentação por meio de legislação e espaço consolidado, para coordenar as ações de economia solidária, na estrutura de governo - fatores que concederão legitimidade cognitiva e normativa geral à implementação da política pública -; 3) a sedimentação, que envolve volume de recursos, abrangência das ações, parceria e apoio de atores do campo, além da promoção da cultura da economia solidária.

Esses determinantes de análise vão ao encontro do argumento de Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.), que indicam que um dos fatores que devem ter impacto na institucionalização é a correlação entre as ações, os incentivos para manter a estrutura e os resultados desejados. Uma correlação positiva indica alto grau de institucionalização. A análise do processo de institucionalização está resumida no Quadro 2, em que os fatores identificados em cada estado analisado foram descritos como presente (P), médio (M) e insatisfatório (I).

Quadro 2
Fatores determinantes do processo de institucionalização

Na análise do processo de institucionalização, pode-se identificar que o Distrito Federal está na fase de habitualização, pois a institucionalização ainda é muito embrionária. A economia solidária está em apenas uma gerência dentro da Secretaria de Estado do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), sem recursos financeiros próprios. Não há, portanto, um espaço consolidado, e, apesar das ações implementadas, a abrangência é pequena.

A política pública de economia solidária em Pernambuco está na fase de objetificação. A semi-institucionalização se deve ao fato de que, apesar de a economia solidária estar na estrutura do estado no contexto de trabalho e empreendedorismo, sendo uma gerência dentro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Trabalho e Qualificação (SEMPTQ), o volume de recursos não é satisfatório, além de a dependência por eles ser grande. Os recursos advêm de um fundo que é disponibilizado pela Agefepe.

Bahia e Minas Gerais estão na fase de sedimentação, haja vista que ambos instituíram na estrutura de governo uma superintendência de economia solidária, a qual dispõe de recursos próprios e satisfatória abrangência das ações. Na Bahia, entretanto, a política pública atingiu o estágio de total institucionalização em função da propagação das ações e da perpetuação por um período longo.

Na Bahia, a economia solidária está inserida no contexto de trabalho e renda, por meio de uma superintendência estruturada em torno de eixos estratégicos de ação que se desdobram em 5 coordenações temáticas, que contava com 51 servidores no período analisado, com recursos orçamentários próprios provenientes do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza do Estado da Bahia (Funcep). A superintendência conseguiu, mediante editais, desenvolver ações para a implementação e a manutenção de centros públicos em todo o estado, tornando a abrangência ampla, além de conceder crédito a todos os empreendimentos de economia solidária, incentivando e fomentando a estrutura de crédito próprio do movimento por meio de editais para bancos comunitários e fundos rotativos. Todos esses fatores indicam que há no estado uma forte cultura de economia solidária, o que denota maior nível de institucionalização, de acordo com a proposta de Tolbert e Zucker (1999Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer(Eds.), Handbook de estudos organizacionais (p. 196-219). Atlas.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, foi analisado como políticas públicas de 3 estados brasileiros e o Distrito Federal têm contribuído para a institucionalização do campo da economia solidária. Com a identificação de 18 políticas públicas estaduais de economia solidária e a análise de seus objetivos e instrumentos, foi observado que a estrutura básica das leis e os regulamentos do marco normativo da economia solidária são bastante semelhantes. Isso demonstra que, de modo geral, há, no âmbito dos governos estaduais, uma convergência de entendimento do que são a economia solidária, seus princípios e valores, e as demandas dos empreendimentos, assim como a forma com que o poder público pode agir para apoiar e fomentar o movimento.

Com relação ao processo de institucionalização considerado nesta pesquisa, o Distrito Federal está na fase de pré-institucionalização, enquanto Pernambuco está na de semi-institucionalização, em função do espaço que a economia solidária tem na estrutura de governo e da dependência de recursos. Bahia e Minas Gerais estão na fase de total institucionalização, em função do alcance e do volume de suas ações. Contudo, numa análise mais atenta desses dois casos, é possível afirmar que a Bahia tem alto nível de institucionalização e se estabelece como referencial nacional para políticas, pesquisas e boas práticas de economia solidária. Suas ações cumprem o que está previsto em lei, bem como cria um ambiente institucional e difunde a cultura da economia solidária na sociedade, quando propõe ações em diversos espaços físicos, como shopping centers, feiras, secretarias de governo e centros públicos, propagando o movimento como instrumento em outras esferas da vida pública, como o combate ao racismo institucional e o fomento ao empreendedorismo negro.

Este estudo pode contribuir para proposições de novas políticas públicas de fomento à economia solidária e servir de norte para que sejam implementadas aquelas aprovadas e não regulamentas. Segundo Alcântara (2005Alcântara, F. H. C. (2005). Economia solidária: o dilema da institucionalização. Livraria Arte & Ciência.), existe uma ausência de dados sobre as iniciativas do governo para a institucionalização da economia solidária, portanto não haveria como afirmar em que nível estaria esse processo. No entanto, nesta pesquisa, com base nos achados empíricos, mostrou-se em que nível de implementação estão essas políticas, assim como o processo de institucionalização nos casos analisados. Um banco de dados nacional ainda se faz necessário para que haja condições de avaliar, com dados quantitativos, o tamanho do setor da economia solidária no Brasil.

Sugerem-se, em estudos futuros, análises sobre a percepção dos beneficiários dessas políticas, assim como suas expectativas em relação às políticas públicas de apoio à economia solidária. Isso daria subsídios importantes para o governo federal e governos estaduais reorientarem suas ações de apoio ao setor. Outra sugestão seria analisar a interpretação dos outros atores sociais do campo, como organizações da sociedade civil, fóruns, conselhos e rede nacional de gestores, fundamentais para a construção de uma grande rede de suporte à formulação de políticas públicas de economia solidária. Pesquisas futuras também podem aprofundar a proposta deste trabalho de analisar os níveis de institucionalização das políticas ou verificar se as políticas implementadas foram mantidas com a mudança do governo federal em 2019 e 2023. Cabe acrescentar que, após a coleta de dados para esta pesquisa, houve a aprovação de mais 4 políticas estaduais de fomento à economia solidária: no Paraná, em dezembro de 2018; em Santa Catarina e na Paraíba, em 2019; e no Ceará, em 2022.

Por fim, a economia solidária é um campo em construção, de modo que não há como se restringir a um quadro de análise nesta pesquisa, mas pode dar novas perspectivas quanto à sua institucionalização no Brasil. O grande desafio é a aprovação de um marco regulatório federal que oriente a formulação de políticas públicas de economia solidária e das políticas transversais que impactam suas ações, como as legislações tributária e trabalhista, pois um ambiente legal comum também afeta o alcance da legitimação. Sem as práticas e a institucionalização da economia solidária, o movimento perde força, como aconteceu com o rebaixamento da Senaes a uma subsecretaria.

Ainda que tenha permanecido o uso da sigla, houve perda expressiva de orçamento e capacidade de execução, criando-se um cenário de incertezas que, segundo S. P. Silva (2018Silva, S. P. (2018). Crise de paradigma? A Política Nacional de Economia Solidária no PPPA 2016-2019. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, 64, 163-172. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8393
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), coloca em dúvida até a continuidade da política pública de economia solidária na agenda governamental. Essa incerteza se tornou realidade com a exclusão da Senaes, em 1º de janeiro de 2019, e a retirada da economia solidária da pauta orçamentária do governo federal (Chiariello, 2020Chiariello, C. L. (2020). A trajetória da Senaes em prosa e números: consolidação e réquiem de uma agenda pública para a economia solidária. Organizações e Democracia, 21(2), 97-116. https://doi.org/10.36311/1519-0110.2020.v21n2.p97-116
https://doi.org/10.36311/1519-0110.2020....
).

Considerando que o cenário da economia solidária é recente, sobretudo quando se refere ao seu reconhecimento como política pública, devem-se admitir grandes avanços em pouco tempo. Sua razão de existência já foi bastante explorada. Pode-se reconhecer que, além de criar oportunidades de ocupação, trabalho e renda para as pessoas, a economia solidária proporciona desenvolvimento territorial e sustentável, mas a consolidação do campo só será possível quando os elementos reguladores e normativos do ambiente forem adaptados a seus princípios, expressões, práticas e cultura.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estados de Goiás (Fapep) pelo apoio à realização da pesquisa.

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  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente (Daiane Lima da Silva).

PARECERISTAS

  • 4
    Fernanda Henrique Cupertino Alcântara (Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora / MG - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8396-147X
  • 5
    Um dos revisores não autorizou a divulgação de sua identidade.
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES

    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/91212/85730

Editado por

Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente (Daiane Lima da Silva).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    05 Jul 2023
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