Open-access DOR MUSCULOESQUELÉTICA EM PROFISSIONAIS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA DURANTE A PANDEMIA COVID-19: ESTUDO DE MÉTODOS MISTOS*

RESUMO:

Objetivo:  analisar a dor musculoesquelética em profissionais de saúde na atenção primária e sua vivência durante a pandemia da COVID-19.

Método:  estudo de métodos mistos, realizado no sul do Brasil, entre junho de 2021 e fevereiro de 2022. Amostra de 50 participantes, utilizando os questionários relacionados à dor e aos sintomas osteomusculares e entrevistas com roteiros pré-elaborados. Análise de dados com estatísticas descritivas, inferenciais e Análise Temática de Conteúdo.

Resultados:  a maior parte dos participantes foram da área da Enfermagem, com 40 horas semanais. Regiões mais acometidas: ombros, parte superior das costas e pescoço, variando de dor moderada (42%) e intensa (10%). Diferenças estatísticas significativas relacionadas à dor e medo de contrair a COVID-19, entre aqueles com problemas prévios de saúde e enfermeiros.

Conclusão:  tendo em vista que a dor pode estar associada às condições de trabalho, torna-se essencial a identificação dos fatores de risco, evitando maiores agravos para a saúde do trabalhador.

DESCRITORES: Dor Musculoesquelética; Pessoal de Saúde; COVID-19; Saúde Ocupacional; Atenção Primária à; Saúde.

ABSTRACT

Objective:  To analyze musculoskeletal pain in primary care health professionals and their experience during the COVID-19 pandemic.

Method:  A mixed-methods study carried out in southern Brazil between June 2021 and February 2022. A sample of 50 participants, using questionnaires related to pain and musculoskeletal symptoms and interviews with pre-prepared scripts. Data analysis using descriptive and inferential statistics and Thematic Content Analysis.

Results:  Most of the nursing sector participants worked 40 hours a week. The most affected areas are the shoulders, upper back, and neck, ranging from moderate (42%) to severe (10%) pain. Statistically significant differences related to pain and fear of contracting COVID-19 between those with previous health problems and nurses.

Conclusion:  Given that pain can be associated with working conditions, it is essential to identify risk factors to avoid further damage to workers’ health.

KEYWORDS: Musculoskeletal Pain; Health Personnel; COVID-19; Occupational Health; Primary Health Care.

RESUMEN:

Objetivo:  Analizar el dolor musculoesquelético en los profesionales de la salud de atención primaria y sus experiencias durante la pandemia de COVID-19.

Método:  estudio de métodos mixtos realizado en el sur de Brasil entre junio de 2021 y febrero de 2022. Una muestra de 50 participantes, mediante cuestionarios relacionados con el dolor y los síntomas musculoesqueléticos y entrevistas con guiones preparados de antemano. Análisis de datos mediante estadísticas descriptivas e inferenciales y análisis temático de contenido.

Resultados:  La mayoría de las participantes pertenecían al sector de la enfermería y trabajaban 40 horas semanales. Regiones más afectadas: hombros, parte superior de la espalda y cuello, con dolores que van de moderados (42%) a intensos (10%). Diferencias estadísticamente significativas relacionadas con el dolor y el miedo a contraer COVID-19 entre las personas con problemas de salud previos y las enfermeras.

Conclusión:  Dado que el dolor puede estar asociado a las condiciones de trabajo, es esencial identificar los factores de riesgo y evitar mayores daños a la salud de los trabajadores.

DESCRIPTORES: Dolor musculoesquelético; Personal de Salud; COVID-19; Salud laboral; Atención primaria de salud.

HIGHLIGHTS

1. Profissionais da APS sentem dor musculoesquelética relacionada aos fatores laborais.

2. As demandas de trabalho na pandemia contribuíram para as queixas físicas.

3. As regiões mais referidas: ombros, parte superior das costas e pescoço.

INTRODUÇÃO

Os distúrbios musculoesqueléticos vêm se consolidando como um problema importante na saúde pública e são responsáveis pelas elevadas proporções de lesões relacionadas ao trabalho1. A Dor Musculoesquelética (DME) é um sintoma comum dos distúrbios musculoesqueléticos, com uma alta prevalência entre os profissionais de saúde2.

Os sintomas de doenças físicas e mentais como o estresse e a dor estão entre as principais queixas dos profissionais de saúde em diversos estudos nacionais e internacionais2-6, previamente e durante a pandemia, elevando as taxas de absenteísmo e o afastamento do trabalho. Isso destaca a necessidade de um olhar mais atento para a saúde dos profissionais inseridos no processo de cuidar.

Sabe-se que, durante a pandemia, foi necessário a reorganização dos serviços de saúde e do processo de trabalho, com notável aumento na sobrecarga física e mental destes profissionais. Tais fatores favoreceram o surgimento da dor, como foi evidenciado em um estudo com os profissionais de saúde da área hospitalar7.

Já as unidades de Atenção Primária à Saúde (APS) são ambientes permeados de estressores que propiciam um desgaste físico e emocional, sobretudo, durante a pandemia da Doença do Coronavírus 2019 (COVID-19)8. Nesse sentido, entende-se que, além da assistência prestada na APS, os profissionais tiveram que lidar com o aumento da demanda de serviço, somados a um espaço físico inadequado, a sobrecarga de trabalho e a insegurança, aumentando os estressores no ambiente laboral, o que favoreceu a dor1.

Ao considerar que a APS possui um papel importante na efetivação do acesso integral à saúde da população, é fundamental conhecer a realidade dos profissionais que atuam nesse cuidado. Sabe-se que a dor associada às condições de trabalho tem afetado a saúde do profissional, e que a mesma pode ser prevenida e tratada precocemente. Se torna essencial à identificação dos fatores que contribuem para o seu surgimento, de forma a evitar maiores agravos para a saúde do trabalhador, sendo este um diferencial desta pesquisa. Diante do exposto, este estudo objetiva analisar a DME em profissionais de saúde na APS e sua vivência durante a pandemia da COVID-19.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de métodos mistos do tipo explanatório sequencial, que associou dados de uma etapa quantitativa, seguida de uma etapa qualitativa. Este estudo permitiu que as evidências qualitativas fossem usadas para o aprofundamento e a explicação dos achados quantitativos9. O peso maior foi atribuído à análise quantitativa (estudo transversal correlacional) e menor à qualitativa (estudo qualitativo descritivo).

O estudo foi desenvolvido na APS de um município do sul do Brasil, este possui quatro Unidades Básicas de Saúde e 18 Estratégias Saúde da Família, todas participaram do estudo. O público-alvo foi composto por 162 profissionais de saúde que atuavam na APS: médicos, enfermeiros, técnicos em Enfermagem, nutricionistas e profissionais da Odontologia. Porém, 50 participaram, representando 32,4% do universo total proposto. Como se tratava de uma população viável ao desenho do estudo, optou-se por trabalhar com toda a população elegível, tendo como parâmetro de amostragem a taxa de resposta.

Foram considerados como critérios de inclusão: ser do serviço de Enfermagem, odontológico, médico, nutricionista e atuar na APS durante a pandemia. Foram excluídos os profissionais de saúde que no período da coleta de dados estavam em férias, atestado, em licença maternidade ou qualquer outro tipo de afastamento, e os que não responderam as quatro tentativas de contato presencial e on-line realizadas pelos pesquisadores.

Primeira fase: instrumentos e coleta de dados quantitativos

A coleta de dados quantitativos ocorreu de junho a novembro de 2021, e se deu por meio de um instrumento on-line autoaplicável construído no Google Forms, contendo: Questionário sociodemográfico, laboral e clínico; Questionário Nórdico de Sintomas Osteomusculares (QNSO); e Escala numérica de avaliação da dor. O instrumento foi enviado para a população do estudo via e-mails e por aplicativo de troca de mensagens. Em um segundo momento, foi realizada uma etapa presencial de coleta de dados, buscando acessar os profissionais que não haviam respondido de forma on-line. O questionário impresso foi entregue aos participantes nas unidades, após a explicação dos objetivos da pesquisa.

O questionário sociodemográfico, laboral e clínico foi elaborado pelas pesquisadoras e incluiu as variáveis: sexo; idade; estado civil; filhos; formação; pós-graduação; cargo; unidade de lotação; carga horária; jornada de trabalho; tempo de atuação no setor; prática de atividade física; problemas de saúde; uso de medicações; afastamento do trabalho. Seguido pelas questões referentes à COVID-19, relacionadas às medidas de contingência e contaminação.

O QNSO, traduzido para o português em 2003, consiste em 36 questões múltiplas e dicotômicas quanto à ocorrência de dor, formigamento/dormência, em nove regiões anatômicas (pescoço, ombros, parte superior das costas, cotovelos, punhos/mãos, parte inferior das costas, quadril/coxa, joelhos, tornozelos/pés), nos últimos 12 meses e nos últimos sete dias, se foi impedido de realizar atividades normais, e se consultou algum profissional da área da saúde (médico ou fisioterapeuta) por causa dessa condição10.

A escala numérica de avaliação da dor, foi utilizada para a classificação da intensidade da dor, com enumeração de zero a 10: no qual zero representa “sem dor”, dor leve, de um a quatro; dor moderada, de cinco a seis; e dor intensa, de sete a 10 “dor máxima”11.

Os dados quantitativos foram digitados no programa Microsoft Excel® por dois digitadores independentes, sendo posteriormente comparados para o controle de possíveis erros de digitação. Após, foram transferidos para o software Statistical Package for Social Science (SPSS), e analisados com estatística descritiva e inferencial. Para a caracterização das variáveis sociodemográficas, laborais e clínicas dos participantes foi utilizada a estatística descritiva e analítica. As variáveis quantitativas foram descritas por medidas de tendência central e dispersão. Para a associação e/ou correlação entre as variáveis foram utilizados os testes qui-quadrado e exato de Fisher, sendo considerados significativos os valores de p < 0,05.

Segunda fase: instrumento e coleta de dados qualitativos

A coleta de dados qualitativos ocorreu de dezembro de 2021 a fevereiro de 2022. O objetivo desta etapa foi a busca por dados de natureza subjetiva que colaborassem na elucidação das relações entre a dor e o trabalho na pandemia. Assim, foram conduzidas entrevistas semiestruturadas individuais com uma amostra composta por 14 profissionais: médicos, nutricionista, enfermeiros, técnicos em Enfermagem e dentista. Os profissionais foram selecionados por meio de um sorteio aleatório simples com aqueles que participaram da etapa quantitativa. Portanto, caracterizou-se, na etapa qualitativa, um desdobramento da etapa quantitativa.

O número de participantes foi estabelecido por meio do critério de saturação teórica dos dados12. Portanto, as coletas interromperam-se com o alcance de 14 entrevistas, por se considerarem obtidos os resultados suficientes para esta etapa.

As entrevistas foram conduzidas a partir de um roteiro elaborado pelas pesquisadoras, abordando os tópicos: percepções sobre o trabalho durante a pandemia; fatores que favoreceram as experiências de dor e interface com o trabalho na pandemia. A investigação destes achados foi importante para constituir um banco de dados qualitativos cujo conteúdo possibilitasse o encontro de informações capazes de iluminar os achados quantitativos.

As entrevistas foram realizadas no formato on-line, conduzidas pela pesquisadora principal, com tempo médio de 35 minutos de duração. As falas foram gravadas e após, transcritas por uma equipe de transcritores do grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria. Após as transcrições, foi realizada a dupla checagem e dupla conferência para a verificação de possíveis erros e fortalecimento da confiabilidade dos dados. A transcrição integral das entrevistas compôs o corpus qualitativo para a análise.

Os dados qualitativos foram submetidos à Análise Temática de Conteúdo e organizados por meio de três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados/interpretação13. A pré-análise corresponde ao primeiro momento, em que o pesquisador começa a ter contato com o material empírico13. A partir das gravações, foi realizada a transcrição rigorosa das falas como elas se apresentaram. Após, foi realizada uma leitura flutuante com o objetivo de se aprofundar no conteúdo. Após a leitura e a releitura do material, este foi refinado e organizado de acordo com a proposta da pesquisa. Ao finalizar essa etapa, foi possível organizar o conteúdo teórico de forma que ficassem destacados os depoimentos que iam ao encontro do objetivo do estudo. Os participantes foram identificados com as letras PS (“Profissional de Saúde”), seguida por um número cardinal aleatório.

A exploração do material consiste em uma fase longa, essencialmente ocorre a identificação, decomposição e a codificação dos temas emergentes em Unidades de Registro (UR), cujo agrupamento por semelhança de conteúdo e a construção de categorias contribuem na compreensão e na síntese dos principais achados13. Nessa etapa, o material produzido a partir das entrevistas foi organizado e agrupado em três URs (cansaço, dor musculoesquelética, sobrecarga de trabalho). Essas URs foram agrupadas por afinidade e organizadas em uma categoria analítica: Interfaces entre o trabalho e a saúde física.

Por fim, no tratamento dos dados e a interpretação, em posse de resultados significativos e fiéis, o pesquisador poderá fazer inferências e adiantar as interpretações de acordo com o objetivo, ou ainda, dados obtidos de forma inesperada13. Esta etapa coincidiu com o processo de triangulação dos dados, ou seja, os achados qualitativos foram interpretados à luz dos achados quantitativos e da literatura nacional e internacional. A triangulação se consolidou na discussão conjunta dos resultados.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local sob o parecer n° 30792920.5.1001.5350.

RESULTADOS

Na etapa quantitativa participaram 50 profissionais de saúde. A amostra foi predominantemente feminina, 44 (88%), 19 (38%) com idade entre 41 a 50 anos, casada 30 (60%), 37 (74%) com filhos, 21 (42%) são enfermeiros, 24 (48%) com formação há mais de dezesseis anos. Em relação à jornada de trabalho, o maior percentual, 27 (54%), foi o que corresponde a oito horas diárias, como mostra a tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas, clínicas, laborais e a intensidade da dor de profissionais de saúde (* * n: Amostra; n = 50) da APS. Ijuí (RS), Brasil, 2021.

Constatou-se uma diferença estatística significativa entre a maior intensidade da dor e o medo de contrair a COVID-19, com maiores índices de dor entre aqueles que apresentaram medo de se infectar pelo vírus. Também, entre a dor e aqueles que apontaram problemas prévios de saúde. Ainda, entre a dor e a variável profissão, com intensidade variando entre dor moderada e dor intensa.

Sequencialmente, a tabela 2 discorre sobre os resultados referentes à dor musculoesquelética por região anatômica, problemas como dor, formigamento/dormência nos últimos 12 meses e nos sete dias que antecederam a coleta de dados, impedimento de realizar atividades cotidianas nos últimos doze meses e a necessidade de procurar ajuda profissional para tratar sintomas da dor.

Tabela 2
Frequência de dor musculoesquelética, por região anatômica, referida por profissionais de saúde (ǁ ǁ n: amostra. n = 50) na APS. Ijuí (RS), Brasil, 2021.

Na etapa qualitativa, dentre os 14 entrevistados, houve a predominância do sexo feminino (n=12, 85,7%), enfermeiras (n=8, 57,1%) e com média de idade entre 31-40 anos (50%).

Interfaces entre o trabalho e a saúde física

A categoria a ser discutida diz respeito às interfaces do trabalho durante a pandemia e a saúde física dos profissionais de saúde da APS. Os participantes relataram a sua dor, evidenciando a interferência em seu bem-estar e a necessidade de uma ajuda especializada, como pode ser verificado nos extratos de falas apresentadas a seguir:

Senti muita dor no final do dia, dor no corpo, dor nas articulações, principalmente no joelho. A gente passa muito tempo em pé, com dor nas costas, lombalgia mais intensa, cansaço (PS 5).

Eu tive muita dor, a dor muscular foi concentrada nos ombros e costas. Teve momentos que precisei de quiropraxia (PS 3).

Os depoimentos sinalizaram que a DME surgia como consequência da sobrecarga laboral vivenciada pelos profissionais durante a pandemia da COVID-19, o que reforça as interfaces entre a dor, o trabalho e o contexto pandêmico:

A demanda foi excessiva, era uma demanda espontânea muito grande, quase não conseguimos trabalhar com os agendados. As equipes não foram aumentadas, a gente continuou com os mesmos profissionais, com uma sobrecarga muito maior. No meio da vacina chegava o curativo, chegava o paciente passando mal, a gente tinha que gerenciar tudo isso (PS 3).

Às vezes a gente se sobrecarrega devido à ausência de colegas, funcionário afastado, não era posto outro no lugar, tinha que ser substituído pelos que ficam. Com certeza deu sobrecarga de trabalho (PS 11).

O cansaço foi um elemento evidente nos achados qualitativos. Os depoentes sinalizaram para a intensificação do trabalho durante a pandemia. Nesse contexto, a dor estava relacionada à exaustão e com os prejuízos à qualidade de vida (como a insônia e as alterações no padrão alimentar).

Percebo uma grande diferença de antes para agora. Não sei se, em função de sobrecarga de trabalho, ou uso da máscara. Mas percebo um excesso de cansaço (PS 1).

A gente acaba não dormindo direito, não se alimenta direito. Eu digo que a questão da exaustão, do cansaço, sempre tive uma carga horária grande, mas nunca trabalhei tanto como na pandemia (PS 9).

Ao triangular os dados, observam-se as interfaces entre o trabalho durante a pandemia e a saúde física dos profissionais de saúde da APS. Os depoimentos mostraram que isso está relacionado aos elementos que constituem as condições laborais destes profissionais, atrelados ao ambiente no qual estão inseridos. As atividades desempenhadas estão diretamente relacionadas ao paciente e à família. E, com o cenário da pandemia, passaram a atender a uma demanda ainda maior, o que exigiu um grande esforço por parte dos profissionais.

As mudanças ocorridas nas unidades, para manter a assistência, estavam acompanhadas de posturas e ambientes inadequados para os atendimentos, sobrecarga de trabalho, número insuficiente de profissionais na equipe, a falta de conhecimento sobre a nova doença e, também, a insegurança na prestação de cuidados, são fatores que ficam demonstrados nos relatos dos participantes nas entrevistas e são apontados como responsáveis por contribuírem com os prejuízos na saúde física e emocional destes profissionais, colaborando para o surgimento da dor e alterando a qualidade de vida.

DISCUSSÃO

Novos desafios foram impostos aos profissionais de saúde da APS, que passaram a trabalhar em cenários diferentes do que era habitual em decorrência da pandemia da COVID-19. Isso contribuiu para que a saúde física desses profissionais fosse afetada negativamente, e favoreceu o surgimento de sintomas de distúrbios musculoesqueléticos, como a dor. Essa afirmativa se dá a partir das reflexões que surgiram com as análises dos resultados deste estudo, no qual os profissionais de saúde, relataram a presença da DME de intensidades variadas e em diferentes regiões anatômicas.

A DME pode causar limitações nas atividades cotidianas e no trabalho, sendo responsável pelas altas taxas de licenças e aposentadorias14. Devido à natureza dos serviços prestados pelos profissionais de saúde e à exposição frequente aos fatores de risco no ambiente laboral, eles estão mais susceptíveis a desenvolverem a dor, que podem interferir na qualidade do trabalho e elevar as taxas de absenteísmo1,15.

Assim, pontua-se que a pandemia aumentou os riscos ocupacionais, o que contribuiu para o adoecimento dos profissionais envolvidos na gestão de cuidados. Os resultados qualitativos evidenciaram a percepção dos profissionais em relação à sobrecarga emocional e física, já apresentando queixas de dor. Além disso, revelaram insatisfação com a qualidade do sono e da alimentação, cansaço e uso de medicamentos, possibilitando a percepção de elevados prejuízos para a saúde do profissional decorrentes do trabalho na pandemia.

Do total, 84% dos participantes apresentaram alguma queixa física ou dor em uma ou mais regiões anatômicas no último ano. Isso sugere que esta tem se tornado um problema de saúde ocupacional entre os profissionais da APS durante a pandemia. Um estudo na Turquia corrobora com estes resultados, no qual 94,9% dos profissionais de saúde da assistência hospitalar, também apresentaram DME durante a pandemia7. Isso evidencia o aumento das queixas de sintomas físicos em decorrência do trabalho no contexto pandêmico.

Assim, a maioria dos participantes referiram dor, formigamento e/ou dormência nos últimos sete dias anteriores à coleta de dados, e impedimento para realizar as atividades diárias nos últimos doze meses pela mesma condição, sendo necessário a procura por ajuda profissional para tratar tais sintomas. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos envolvendo os profissionais de saúde que atuaram em atendimento móvel de urgência e em hospitais7,16. A DME referida pelos participantes, evidencia que, apesar de se apresentarem em regiões anatômicas e percentuais variados, foi vivenciada pela maioria dos participantes. Estes resultados sinalizaram para a etiologia da dor, que passa de aguda para crônica, além disso, sugere a percepção da dor relacionada às mudanças no contexto de trabalho, decorrentes da pandemia.

Em relação à ocorrência da dor nas diferentes regiões anatômicas nos últimos 12 meses, a dor nos ombros é a mais frequente, seguido pela parte superior das costas e do pescoço. Também foi a mais citada como causa de impedimento para a realização de atividades normais, e a mais frequente nos últimos sete dias. Um estudo realizado no Brasil, com profissionais de Enfermagem de uma unidade de Nefrologia, mostrou que 46,7% dos entrevistados também referiram dor nos ombros nos últimos 12 meses17.

Um estudo nacional e um internacional5,18, evidenciaram que a dor acomete os profissionais de saúde de diferentes segmentos. Na APS, em estudos anteriores à pandemia, verificou-se que a maioria dos profissionais apresentavam dores ou queixas físicas, associadas ao desempenho de suas atividades5. Na assistência hospitalar, as queixas de dor também já eram frequentes, como mostrou um estudo no Vietnã em 2018, no qual 74,7% dos participantes sofreram com a dor nos últimos doze meses e 41,1% nos últimos sete dias18. Esses dados são justificados pelas características do trabalho exercido pelos profissionais que, frequentemente, necessitavam de grande esforço físico e mental para a realização de suas atividades assistenciais19, contribuindo para o aumento das queixas de esgotamento e de sintomas físicos.

Os profissionais de saúde estão propensos a desenvolverem a dor, devido às particularidades de seu processo de trabalho19. Ao observar os depoimentos é possível constatar que a pandemia da COVID-19 exigiu uma reorganização imediata do processo de trabalho, levando os profissionais a um cenário novo, que demandou novas habilidades e conhecimentos para o processo de cuidar, causando um desgaste físico e emocional maior aos profissionais, elevando os fatores que favorecem a dor. Ao se ter em vista que a dor pode ser desencadeada em indivíduos expostos aos fatores estressantes e que influenciam a qualidade de vida19.

Além disso, houve relatos referentes à dificuldade da prática de atividade física durante a pandemia, um fator que favoreceu o surgimento da dor1. As pessoas que praticam alguma atividade física suportam melhor as exigências do trabalho, ao contrário dos indivíduos sedentários. A falta de atividade física adequada é uma causa de sintomas de distúrbios musculoesqueléticos20.

Ao analisar os dados e os depoimentos coletados, nas duas etapas desta pesquisa, entende-se que a sintomatologia da dor interfere na saúde física e pode estar ligada às cargas de trabalho e às atividades desenvolvidas rotineiramente pelos profissionais de saúde, independente das suas funções. Apesar de não ter sido observado uma diferença estatística significativa entre a dor e a sobrecarga de trabalho, é notável que a maioria dos participantes relatou cansaço e sobrecarga. Estes fatores podem trazer prejuízos ao trabalhador, tanto no aspecto profissional, quanto nos aspectos sociais e comportamentais, além de contribuir para o absenteísmo, o estresse e os sintomas da dor21.

No que se refere à intensidade da dor, 42% dos profissionais referiram ter sentido dor moderada e 10% dor intensa. Foi observado uma diferença estatística significativa entre a DME e a variável medo de contrair a COVID-19, o que pode ser justificado pelo fato de as demandas psicológicas serem importantes fatores predisponentes para o surgimento da dor. O trabalho que exige grandes cargas físicas e mentais para ser executado, assim como as atividades assistenciais realizadas dentro de uma unidade de saúde, são as responsáveis pela maioria das queixas de dor por trabalhadores22.

Também foi verificada a associação entre a dor e a ocorrência de problemas de saúde, isso sugere que os trabalhadores que já apresentavam alguma doença prévia, tinham mais propensão à dor; e entre a dor e a variável profissão, visto que os enfermeiros apresentaram maior intensidade de dor. Os profissionais da Enfermagem exercem grande esforço físico e mental no trabalho, tornando-se mais vulneráveis à DME, associada às condições e à carga de trabalho, sendo responsável por boa parte dos afastamentos20. Portanto, é necessário considerar as políticas adequadas para o manejo da prevenção e o tratamento da dor em profissionais de saúde, diminuindo os reflexos nocivos desses sintomas na saúde e no trabalho destes profissionais.

As limitações deste estudo incluem o fato de as entrevistas terem sido realizadas no formato on-line, considerando que o contato presencial possibilita uma maior interação e percepção da linguagem corporal, bem como o potencial viés de seleção. Apesar disso, trata-se de um estudo com resultados importantes que viabilizam a compreensão da realidade vivenciada por esses profissionais na APS, além de estimular outras pesquisas que busquem caracterizar melhor a relação trabalho e saúde na APS.

CONCLUSÃO

Na APS, os profissionais estão expostos aos fatores de risco que favorecem o surgimento da DME, na pesquisa, foram evidenciados por meio de relatos dos participantes, que as regiões mais acometidas são os ombros, a parte superior das costas e o pescoço, com uma dor variando de intensidade moderada a intensa. Além disso, o trabalho na APS durante a pandemia refletiu na vida dos profissionais de saúde, causando uma sobrecarga de trabalho, que levou às maiores queixas de dor, cansaço, esgotamento físico e mental.

Este estudo revelou que os profissionais de saúde estão suscetíveis à dor inerentes ao processo de trabalho e possibilitou identificar a presença de fatores que contribuíram para o surgimento e o agravamento de sintomas da DME nos trabalhadores da APS durante a pandemia da COVID-19. Ademais, destaca a importância de se implantar estratégias e políticas públicas voltadas ao cuidado da saúde do profissional de saúde, tendo em vista que a dor se constitui em um problema de saúde pública, que afeta diretamente a qualidade de vida desses profissionais, assim como a qualidade de sua assistência.

  • *
    Artigo extraído da dissertação do mestrado: “ESTRESSE E DOR MUSCULOESQUELéTICA EM PROFISSIONAIS DE SAúDE DA ATENçãO PRIMáRIA à SAúDE FRENTE à PANDEMIA COVID-19: ESTUDO DE MéTODOS MISTOS.”, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, RS, Brasil, 2022.
  • COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
    Tamborini MM de F, Colet C de F, Centenaro APFC, Souto EN de S, Andres ATG, Schultz CC, et al. Musculoskeletal pain in primary care professionals during the COVID-19 pandemic: mixed methods study. Cogitare Enferm. [Internet]. 2024 [cited in “insert year, month, day”]; 29. Available from: https://doi.org/10.1590/ce.v29i0.94735.

REFERÊNCIAS

  • 1 Widiyanto A, Ellina AD, Peristiowati Y, Atmojo JT, Livana PH. Risk factor of workrelated musculoskeletal disorders among health workers: a systematic review. Int. J. Health Sci. [Internet]. 2022 [cited 2022 Sept. 06]; 6:4687-4701. Available from: https://doi.org/10.53730/ijhs.v6nS5.9573
    » https://doi.org/10.53730/ijhs.v6nS5.9573
  • 2 Soler-Font M, Ramada JM, Van Zon SKR, Almansa J, Bültmann U, Serra C. Multifaceted intervention for the prevention and management of musculoskeletal pain in nursing staff: results of a cluster randomized controlled trial. PLOS ONE. [Internet]. 2019 [cited 2022 Aug. 29]; 14(11): e0225198. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0225198
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0225198
  • 3 Cordioli Junior JR, Cordioli DFC, Gazetta CE, Silva AG, Lourenção LG. Quality of life and osteomuscular symptoms in workers of primary health care. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2020 [cited 2022 Aug. 03]; 73(5):e20190054. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0054
    » http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0054
  • 4 Ribeiro T, Serranheira F, Loureiro H. Work related musculoskeletal disorders in primary health care nurses. Appl Nurs Res. [Internet]. 2017 [cited 2022 Aug. 11]; 33:72-77. Available from: https://doi.org/10.1016/j.apnr.2016.09.003
    » https://doi.org/10.1016/j.apnr.2016.09.003
  • 5 Santana MPS, Almeida MMC, Santos KOB. Prevalence of musculoskeletal symptoms in family health strategy workers. Rev. Baiana Public Health. [Internet]. 2020 [cited 2022 Sept. 06]; 44(2):9-23. Available from: https://doi.org/10.22278/2318-2660.2020.v44.n2.a3002
    » https://doi.org/10.22278/2318-2660.2020.v44.n2.a3002
  • 6 Carminati AES, Misura SMP, Denis YVG. Situación de carga física y mental en enfermería de Uruguay durante la pandemia Covid 19. Rev. Urug. med. Interna. [Internet]. 2022 [cited 2022 Sept. 05]; 17(2):e2022v17n2a4. Available from: https://doi.org/10.33517/rue2022v17n2a4
    » https://doi.org/10.33517/rue2022v17n2a4
  • 7 Arca M, Dönmezdil S, Durmaz ED. The effect of the COVID-19 Pandemic on anxiety, depression, and musculoskeletal system complaints in healthcare workers. J Work. [Internet]. 2021 [cited 2022 July 22]; 69(1):47-54. Available from: https://doi.org/10.3233/WOR-205014
    » https://doi.org/10.3233/WOR-205014
  • 8 Irandoost SF, Yoosefi JL, Safari H, Khorami F, Ahmadi S, Soofizad G, et al Explaining the challenges and adaptation strategies of nurses in caring for patients with COVID-19: a qualitative study in Iran. BMC Nurs. [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug. 29]; 21(1):170. Available from: https://doi.org/10.1186/s12912-022-00937-8
    » https://doi.org/10.1186/s12912-022-00937-8
  • 9 Hong QN, Fàbregues S, Bartlett G, Boardman F, Cargo M, Dagenais P, et al The Mixed Methods Appraisal Tool (MMAT) version 2018 for information professionals and researchers. Educ Inform. [Internet]. 2018 [cited 2022 Aug. 12]; 34(4):285-91. Available from: https://doi.org/10.3233/EFI-180221
    » https://doi.org/10.3233/EFI-180221
  • 10 Barros EN, Alexandre NM. Cross-cultural adaptation of the Nordic musculoskeletal questionnaire. Int Nurs Rev. [Internet]. 2003 [cited 2022 July 21]; 50(2):101-8. Available from: https://doi.org/10.1046/j.1466-7657.2003.00188.x
    » https://doi.org/10.1046/j.1466-7657.2003.00188.x
  • 11 Nascimento JC. Evaluation of pain in patients with cancer in palliative care in the light of the literature. Health and Science in action. [Internet]. 2017 [cited 2022 June 02]; 3(1):11-26. Available from: https://revistas.unifan.edu.br/index.php/RevistaICS/article/view/329
    » https://revistas.unifan.edu.br/index.php/RevistaICS/article/view/329
  • 12 Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Sampling in qualitative research: proposal of procedures to verify theoretical saturation. Cad. Public health. [Internet]. 2011 [cited 2021 Oct. 25]; 27(2):389-94. Available from: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2011000200020
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2011000200020
  • 13 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.
  • 14 Mota PHS, Lima TA, Berach FR, Schmit ACB. Impact of musculoskeletal pain in functional disability. Fisioter Pesqui. [Internet]. 2020 [cited 2022 July 12]; 27(1). Available from: https://doi.org/10.1590/1809-2950/19006327012020
    » https://doi.org/10.1590/1809-2950/19006327012020
  • 15 Júnior EGM, Souza FT, Maduro PA, Mesquita FOS, Silva TFA. Self-reported musculoskeletal disorders by the nursing team in a university hospital. BrJP. [Internet]. 2019 [cited 2022 July 12]; 2(2):155-8. Available from: https://doi.org/10.5935/2595-0118.20190028
    » https://doi.org/10.5935/2595-0118.20190028
  • 16 Santos RAV, Raposo MCF, Melo R de S. Prevalence and associated factors with musculoskeletal pain in professionals of the Mobile Emergency Care Service. BrJP. [Internet]. 2021 [cited 2022 July 15]; 4(1):20-5. Available from: https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210013
    » https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210013
  • 17 Schultz CC, Campos ALP, Gabi1 KAC, Kleibert1 KRU, Colet CF, Stumm EMF. Musculoskeletal pain and resilience in a nephrology unit nursing professionals. BrJP. [Internet]. 2021 [cited 2022 July 16]; 4(4):316-20. Available from: https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210056
    » https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210056
  • 18 Luan HD, Hai NT, Xanh PT, Giang HT, Thuc PV, Hong NM, et al Musculoskeletal disorders: prevalence and associated factors among District Hospital Nurses in Haiphong, Vietnam. BioMed Res. Int [Internet]. 2018 [cited 2022 Sept. 03]. Available from: https://doi.org/10.1155/2018/3162564
    » https://doi.org/10.1155/2018/3162564
  • 19 Clauw DJ, Häuser W, Cohen PS, Fitzcharles M. Considering the potential for an increase in chronic pain after the COVID-19 pandemic. Pain. [Internet]. 2020 [cited 2022 July 12]; 161(8):1694-97. Available from: https://doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001950
    » https://doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001950
  • 20 Souza YM, Pai DD, Junqueira MM, Macedo ABT, Tavares JP, Chaves EBM. Characterization of nursing workers on leave due to musculoskeletal disorders at a university hospital. Rev Nurse UFSM. [Internet]. 2020 [cited 2022 July 12]; 10(e10):1-17. Available from: https://doi.org/10.5902/2179769236767
    » https://doi.org/10.5902/2179769236767
  • 21 Barbosa GC, Buesso TS. The impact of work overload and worker satisfaction in mental health. Health Magazine Sta. Maria. [Internet]. 2019 [cited 2022 July 19]; 45(2). Available from: https://doi.org/10.5902/2236583429678
    » https://doi.org/10.5902/2236583429678
  • 22 Petersen RS, Marziale MHP. Analysis of work ability and stress among nursing professionals with musculoskeletal disorders. Rev Gaúcha Sick. [Internet]. 2017 [cited 2022 Oct. 12]; 38(3):e67184. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.67184
    » http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.67184
  • Editora associada: Dra. Virginia Souza

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    19 Dez 2023
location_on
Universidade Federal do Paraná Av. Prefeito Lothário Meissner, 632, Cep: 80210-170, Brasil - Paraná / Curitiba, Tel: +55 (41) 3361-3755 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: cogitare@ufpr.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro