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MUDANÇAS TECNOLÓGICAS, TRABALHO E DESIGUALDADES NA AMÉRICA LATINA: REPENSAR AS ALTERNATIVAS DE PROTEÇÃO SOCIAL NO PÓS-PANDEMIA

Cambios tecnológicos, trabajo y desigualdades en América Latina: Repensar alternativas de protección social en la pospandemia

RESUMO

Este artigo analisa os efeitos da crise sanitária gerada pela pandemia de Covid-19 nos mercados de trabalho heterogêneos e desiguais da América Latina e enfatiza a necessidade de os países da região repensarem suas alternativas de proteção social diante dos problemas relacionados ao crescimento da informalidade e da precarização do trabalho. Além de demonstrar a incidência bastante desigual desses efeitos nos países da região, o artigo destaca os principais riscos que os países latino-americanos enfrentam no atual cenário de intensas transformações no sistema produtivo e nas relações de emprego, em parte precipitadas pelo advento da pandemia. Por fim, discute-se a importância de algumas medidas intersetoriais e coordenadas de proteção social para enfrentar esses problemas, tais como o fortalecimento das capacidades estatais de implementação de políticas passivas e ativas de emprego, bastante deficientes na região, e a criação de efetivos sistemas públicos de qualificação profissional.

Palavras-chave:
mudanças tecnológicas; desigualdades; qualificação profissional; pandemia; América Latina

RESUMEN

Este artículo analiza los efectos de la crisis sanitaria generada por la pandemia de COVID-19 en los heterogéneos y desiguales mercados laborales de América Latina y enfatiza la necesidad de que los países de la región repiensen sus alternativas de protección social ante los problemas relacionados con el crecimiento de la informalidad y precariedad del trabajo. Además de demostrar la incidencia muy desigual de estos efectos en los países de la región, el artículo destaca los principales riesgos que enfrentan los países latinoamericanos en el escenario actual de intensas transformaciones en el sistema productivo y las relaciones laborales, en parte precipitadas por el advenimiento de la pandemia. Finalmente, se discute la importancia de algunas medidas intersectoriales y coordinadas de protección social para enfrentar estos problemas, como el fortalecimiento de las capacidades estatales para implementar políticas pasivas y activas de empleo, que son bastante deficientes en la región, y la creación de sistemas públicos de cualificación profesional eficaces.

Palabras clave:
cambios tecnológicos; desigualdades; cualificación profesional; pandemia; América Latina

ABSTRACT

This article analyzes the effects of the COVID-19 pandemic on the heterogeneous and unequal labor markets in Latin America. It emphasizes the need for countries in the region to rethink their social protection options in the face of problems related to the growth of informality and work precariousness. In addition to demonstrating the very unequal incidence of these effects across Latin American countries, the article highlights the main risks they face in the current scenario of intense transformations in the productive system and employment relations, partly precipitated by the advent of the pandemic. Finally, the importance of intersectoral and coordinated social protection measures to face these problems is discussed, such as strengthening state capacities to implement passive and active employment policies, which are deficient in the region, and creating effective public systems for professional training.

Keywords:
technological changes; inequalities; professional qualification; pandemic; Latin America

INTRODUÇÃO

Os trágicos efeitos produzidos pela pandemia de Covid-19 não foram homogêneos entre as diferentes regiões do planeta, colocando os países diante de uma encruzilhada em termos de escolhas políticas para enfrentar a crise sanitária e repensar alternativas de desenvolvimento. A pandemia obrigou os diversos países a reconhecer a natureza inédita das mudanças em curso, demonstrou as fragilidades dos habituais instrumentos de enfrentamento das crises e instigou os governos a repensar suas políticas de emprego e proteção social.

A crise sanitária exacerbou as desigualdades relacionadas ao mundo do trabalho, particularmente no que se refere ao acesso aos recursos proporcionados pelas novas tecnologias digitais. A ampla utilização dos meios digitais durante a emergência sanitária, essenciais para a manutenção das atividades produtivas e de difusão do conhecimento, expôs as enormes distâncias entre os incluídos e os excluídos da economia digital e revelou as fragilidades dos sistemas de proteção social para gerar respostas a uma crise de proporções inéditas.

Em algumas regiões do mundo, como a América Latina e o Caribe, essas distâncias tornaram-se ainda mais pronunciadas em razão da presença de desigualdades estruturais, de mercados de trabalho precários e das deficiências dos sistemas de proteção social. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha decretado o fim da pandemia de Covid-19 em 5 de maio de 2023, os países da região continuam a enfrentar os desafios estruturais agravados pela emergência sanitária, em um contexto de lento crescimento econômico, expansão da informalidade no mercado de trabalho e aumento das desigualdades (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe [Cepal], 2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
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).

Este artigo discute os efeitos da crise sanitária nos mercados de trabalho heterogêneos e desiguais da América Latina e enfatiza a necessidade de os países da região repensarem suas alternativas de proteção social em face dos problemas gerados pelas mudanças tecnológicas. Além de demonstrar a incidência bastante desigual desses efeitos na região, o artigo destaca os principais riscos que os países latino-americanos enfrentam no atual cenário pós-pandemia de intensas transformações no sistema produtivo e nas relações de emprego.

Além desta introdução, este trabalho está dividido em quatro partes. A primeira parte discute as implicações das mudanças tecnológicas nos mercados de trabalho e destaca a desregulamentação das relações de emprego, os diferenciais de remuneração e os retornos proporcionados por investimentos educacionais extremamente desiguais como os principais mecanismos responsáveis pelo crescimento das desigualdades nas diversas sociedades. A segunda parte analisa os impactos da pandemia de Covid-19 nos mercados de trabalho da América Latina, enfatizando como velhas e novas desigualdades se combinaram na região para intensificar o desemprego e a informalidade, sobretudo com o advento de novas modalidades de emprego precárias promovidas no âmbito das plataformas digitais de trabalho. A terceira parte discute a fragilidade das políticas públicas de emprego na América Latina como o principal obstáculo para a expansão do emprego protegido no pós-pandemia e aponta algumas alternativas de proteção social que, se articuladas, poderiam dinamizar essa expansão, especialmente com o fortalecimento das capacidades de implementação de políticas de qualificação profissional. A última parte consiste na conclusão do artigo.

MUDANÇAS TECNOLÓGICAS, TRABALHO E DESIGUALDADES

A pandemia de Covid-19 evidenciou duas tendências globais e opostas de transformação do capitalismo (Boyer, 2020Boyer, R. (2020). Les capitalismes à l’épreuve de la pandémie. La Découverte.). A primeira diz respeito ao aprofundamento de um capitalismo desregulamentado; um “capitalismo de plataforma” centrado na exploração do trabalho e na extração e comercialização extensiva de dados (Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019).The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. Public Affairs.). Na crise sanitária, tal tendência demonstrou todo o seu potencial ao expandir as atividades de e-commerce em razão da utilização massiva de algoritmos impulsionados pela inteligência artificial.

Em outra direção, a pandemia também revelou o esgotamento do receituário neoliberal para o enfrentamento de crises e reforçou uma tendência de regulamentação dos mercados e de ativismo estatal (Boyer, 2020Boyer, R. (2020). Les capitalismes à l’épreuve de la pandémie. La Découverte.; Gerbaudo, 2023Gerbaudo, P. (2023), O Grande Recuo: A política pós-populismo e pós-pandemia. Todavia.). De acordo com Robert Boyer (2020)Boyer, R. (2020). Les capitalismes à l’épreuve de la pandémie. La Découverte., os países com modelos mais coordenados de capitalismo, a exemplo da China, “saíram fortalecidos ideologicamente da crise” (p. 8) ao colocarem suas burocracias públicas a serviço de uma mobilização estratégica de recursos para o enfrentamento da pandemia, tal como visto na corrida mundial pela produção de insumos médicos e vacinas.

Deve-se ressaltar que, correlatos a essas tendências, os efeitos adversos produzidos pela emergência sanitária nos sistemas educacionais, e particularmente no mundo do trabalho, tornaram mais salientes as desvantagens decorrentes do advento das novas tecnologias, que muitos autores já apontavam como fatores de acirramento das desigualdades. Nunca é demasiado lembrar que a globalização e as mudanças tecnológicas afetaram de um modo bastante desigual os diferentes grupos de trabalhadores (Iversen & Soskice, 2001Iversen, T., & Soskice, D. (2001). An asset theory of social policy preferences. American Political Science Review, 95(4), 875-893. https://doi.org/10.1017/S0003055400400079
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; Thewissen & Rueda, 2017Thewissen, S., & Rueda, D. (2017). Automation and the welfare state: Technological change as a determinant of redistribution preferences. Comparative Political Studies, 52(2), 171-208. https://doi.org/10.1177/0010414017740600
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). O risco de possuir um trabalho mal remunerado e obsoleto cresceu enormemente devido ao intenso processo de desindustrialização e automação do trabalho. No capitalismo digital do início do século XXI, as relações de trabalho vêm se tornando cada vez menos rotineiras, mais desiguais e menos remuneradas, se comparadas com o padrão clássico de emprego (Goos et al., 2014Goos, M., Manning, A., & Salomons, A. (2014). Explaining job polarization: Routine biased technological change and offshoring. The American Economic Review, 104(8), 2509-2526. https://doi.org/10.1257/aer.104.8.2509
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). O resultado desse fenômeno, segundo alguns autores, é a intensificação da polarização do emprego e da renda em diversos países (Autor & Dorn, 2013Autor, D., & Dorn, D. H. (2013). The growth of low skill service jobs and the polarization of the US labor market. American Economic Review, 103(5), 1553-1597. https://doi.org/10.1257/aer.103.5.1553
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; Lanzara, 2023Lanzara, A. P. (2023). Trabalho e proteção social na era da economia digital. Caderno CRH, 36, 1-15. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.36205
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).

Além disso, diferentemente da “economia material”, as formas de emprego no espaço digital também têm obscurecido os limites fixados pela regulação do trabalho e colocam sérios desafios para a continuidade do trabalho regulamentado e protegido. Entre os novos empregos que surgiram com os avanços tecnológicos, estão os chamados empregos intermediados por plataformas digitais (Casilli & Posada, 2019Casilli, A., & Posada, J. (2019).The platformization of labor and society. In M. Graham & W. H. Dutton (Eds.), Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives (pp. 293-306). Oxford University Press.). A emergência dessas novas modalidades de emprego implicou uma mudança de paradigma das relações laborais não contemplada nos marcos tradicionais da regulação do trabalho, provocando um vazio jurídico em termos de proteção (Dukes & Streeck, 2023Dukes, R., & Streeck, W. (2023). Democracy at work: Contract, status and post-industrial justice. Polity Press.).

É preciso, no entanto, relativizar o fenômeno do desemprego de massa gerado pelas transformações tecnológicas como uma “via de mão única”. Grande parte da tendência de substituição do trabalho, nas diversas economias, não decorre da inevitabilidade dos processos de automação, e sim das estratégias de enxugamento dos custos trabalhistas das empresas, que não medem esforços para terceirizar e permitir o trabalho digital, e do consequente processo de precarização do trabalho (Ford, 2015Ford, M. (2015). Rise of the robots: Technology and the threat of a jobless future. Basic Books.; Lanzara, 2023Lanzara, A. P. (2023). Trabalho e proteção social na era da economia digital. Caderno CRH, 36, 1-15. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.36205
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A relação entre mudança tecnológica e emprego é somente um efeito do processo mais amplo de implementação de inovações no sistema produtivo. É certo que, atualmente, a velocidade que imprime obsolescência a uma série de empregos é inédita se comparada aos períodos anteriores de “destruição criativa” (Schumpeter, 1943/2017Schumpeter, J. A. (2017). Capitalismo, socialismo e democracia. Editora UNESP (Obra original publicada em 1943).). Como ressalta Martin Ford (2015)Ford, M. (2015). Rise of the robots: Technology and the threat of a jobless future. Basic Books., o desemprego sempre caracterizou os períodos de transição das economias capitalistas gerados pelas inovações produtivas. E várias economias políticas presenciaram, após esses períodos de transição, um círculo virtuoso entre aumento da produtividade, crescimento dos salários e expansão do consumo das famílias (Ford, 2015Ford, M. (2015). Rise of the robots: Technology and the threat of a jobless future. Basic Books.). Hoje a situação é bastante distinta: a produtividade cresceu puxada pelas inovações tecnológicas, mas o mesmo não pode ser dito dos salários e do consumo das famílias (cada vez mais endividadas) e do próprio emprego (Lanzara, 2023Lanzara, A. P. (2023). Trabalho e proteção social na era da economia digital. Caderno CRH, 36, 1-15. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.36205
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).

Tal relação, portanto, deve ser compreendida no marco das transformações recentes do capitalismo que possibilitaram o advento de uma estrutura de emprego mais assimétrica e menos regulamentada (Dukes & Streeck, 2023Dukes, R., & Streeck, W. (2023). Democracy at work: Contract, status and post-industrial justice. Polity Press.). Embora operando em contextos mais competitivos e desiguais, a relação entre mudança tecnológica e emprego continua sendo mediada por regimes produtivos e de bem-estar que guardam importantes relações de complementariedade estratégica, sobretudo nas economias políticas mais coordenadas (Amable, 2016Amable, B. (2016). Institutional complementarities in the dynamic comparative analysis of capitalism. Journal of Institutional Economics, 12(1), 79-103. https://doi.org/10.1017/S1744137415000211
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).

Portanto, sem minimizar os impactos das mudanças tecnológicas, é necessário, antes, reconhecer os mecanismos responsáveis pelo crescimento das iniquidades relativas ao emprego e diferenciais de remuneração proporcionados por investimentos educacionais extremamente desiguais nas diversas sociedades. Existe uma combinação de efeitos perversos que muitas vezes deixam de ser mencionados nas análises catastrofistas (ou excessivamente benevolentes) sobre os impactos das mudanças tecnológicas nos mercados de trabalho, obscurecendo os verdadeiros problemas que afetam as relações de emprego, como o baixo crescimento dos salários e a maior desigualdade social.

Branko Milanovic (2020)Milanovic, B. (2020). Capitalismo sem rivais: O futuro do sistema que domina o mundo. Todavia. afirma que o atual crescimento global das desigualdades vem exaurindo os valores do capitalismo liberal ao sancionar um sistema de transmissão de vantagens extremamente meritocrático, cínico e injusto. O fato é que se elevaram os custos de acesso às novas tecnologias e aos serviços que no passado, em decorrência da expansão das políticas nacionais de bem-estar, proporcionavam canais de mobilidade ascendente para os grupos em desvantagem - os serviços públicos de cidadania, como educação, saúde, qualificação profissional e seguridade -, levando a um fechamento de oportunidades (Milanovic, 2020Milanovic, B. (2020). Capitalismo sem rivais: O futuro do sistema que domina o mundo. Todavia.).

A questão das transições ocupacionais geradas pelas mudanças tecnológicas não pode ser dissociada dos desafios enfrentados por diversas sociedades no que respeita ao acesso às qualificações e à formação profissional. Tal como ressalta Thomas Piketty (2020)Piketty, T. (2020). Capital e ideologia. Intrínseca., o atual cenário de crescimento das desigualdades exige a combinação de iniciativas governamentais que permitam modificar a distribuição primária da renda, “promovendo transformações profundas nos sistemas jurídico, tributário e educacional” (p. 466). Em vista das recentes mudanças tecnológicas, o sistema produtivo exige qualificações cada vez maiores. E, se a oferta dessas qualificações é desigualmente distribuída, as desigualdades de empregos e salários entre os grupos tenderão a aumentar, “não importando a excelência do sistema jurídico ou tributário em vigor” (Piketty, 2020Piketty, T. (2020). Capital e ideologia. Intrínseca., p. 471). No que diz respeito ao sistema jurídico, e ao contrário das argumentações prevalecentes que tratam a regulação do trabalho como um “custo de produção”, é inegável a contribuição do direito do trabalho e das regras concernentes à determinação dos salários para a redução das desigualdades. Cabe também destacar a pressão exercida pelas negociações coletivas e pelos sindicatos no sentido de tornar as diferenças salariais menos arbitrárias e desiguais (Piketty, 2020Piketty, T. (2020). Capital e ideologia. Intrínseca.).

Contudo, a insistência de alguns governos nas políticas de austeridade e nas medidas de flexibilização do emprego vem contribuindo para agravar o quadro de desigualdades salariais e precarização do trabalho. E a questão mais grave é que, sem programas públicos de emprego e qualificação profissional, a escassez de trabalho qualificado pode se tornar um fator permanente de estagnação das economias nacionais, limitando seus horizontes de inovação e crescimento (Lanzara, 2023Lanzara, A. P. (2023). Trabalho e proteção social na era da economia digital. Caderno CRH, 36, 1-15. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.36205
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).

Portanto, o problema está colocado, não apenas para os países desenvolvidos, que, diante do advento das novas tecnologias, viram seus investimentos públicos em educação estagnarem e suas relações mais estáveis de emprego sucumbirem a um conjunto de pressões competitivas, mas principalmente para os países da América Latina, os quais possuem profundas deficiências educacionais e mercados de trabalho informais, heterogêneos e rotativos. Tais países estão, obviamente, menos preparados para lidar com os desafios colocados pelo advento das novas tecnologias digitais, e por isso, hoje, se veem mais ameaçados pela tendência de crescimento das desigualdades. A próxima seção discute esses desafios no contexto latino-americano, à luz dos problemas evidenciados pela crise sanitária de 2020-2023.

Os efeitos da pandemia sobre os mercados de trabalho na América Latina: a combinação de novas e velhas desigualdades

A América Latina foi a região mais afetada do mundo pelos efeitos da pandemia de Covid-19 (Comisión Económica para América Latina y el Caribe [Cepal], 2022Comisión Económica para América Latina y el Caribe. (2022). Los impactos sociodemográficos de la pandemia de COVID-19 en América Latina y el Caribe (LC/CRPD.4/3). Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/ee93d909-bcfa-4799-b04b-ff322e8b2ea7/content
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). As implicações negativas da crise sanitária na região não são nada fortuitas, obviamente. A América Latina segue sendo a região que concentra a maior desigualdade do planeta. Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), os 10% mais ricos do continente concentram uma parcela maior da renda do que qualquer outra região (37%), enquanto os 40% mais pobres recebem 13% (United Nations Development Programme [UNDP], 2020United Nations Development Programme. (2020). Human Development Report 2020. UN. http://hdr.undp.org/en/2020-report
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).

Os graves problemas estruturais que afetam os países da região foram ampliados pelas consequências adversas geradas pela crise pandêmica. Em 2021, no auge da pandemia, o número de pessoas em extrema pobreza correspondeu a 13,8% da população total da América Latina e as pessoas em situação de pobreza, a 32,1%, números muito superiores aos registrados antes da crise sanitária (Cepal, 2022Comisión Económica para América Latina y el Caribe. (2022). Los impactos sociodemográficos de la pandemia de COVID-19 en América Latina y el Caribe (LC/CRPD.4/3). Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/ee93d909-bcfa-4799-b04b-ff322e8b2ea7/content
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). Os efeitos adversos da crise incidiram no pouco estruturado e heterogêneo mercado de trabalho da região, levando a um aumento imediato das taxas de desocupação, 10,3% em 2020, e a uma queda profunda da participação no mercado de trabalho, com o consequente crescimento da pobreza e desigualdade (Cepal, 2022Comisión Económica para América Latina y el Caribe. (2022). Los impactos sociodemográficos de la pandemia de COVID-19 en América Latina y el Caribe (LC/CRPD.4/3). Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/ee93d909-bcfa-4799-b04b-ff322e8b2ea7/content
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).

Embora se observe uma melhora em certos indicadores dos mercados de trabalho entre 2020 e 2022, isso reflete uma recuperação cíclica e bastante lenta do crescimento econômico ou efeito rebote após a grave contração de 2020, e uma recuperação do mercado de trabalho incompleta e desigual (Cepal, 2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
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). Segundo relatório Cepal/Organización Internacional del Trabajo (OIT) (2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
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), estima-se que a taxa de participação no mercado de trabalho permanecerá ligeiramente abaixo dos níveis pré-pandemia nos próximos anos. Da mesma forma, as projeções apontam uma deterioração na qualidade do emprego gerado no contexto pós-pandemia de baixo crescimento, pois muito provavelmente significará que os trabalhadores serão mais vulneráveis, terão níveis mais baixos de proteção social e estarão localizados em setores menos produtivos, devido à combinação perversa dos efeitos da pandemia com as desigualdades estruturais da região (Cepal/OIT, 2023Comisión Económica Para América Latina Y El Caribe, & Organización Internacional del Trabajo. (2023). Hacia la creación de mejor empleo en la pospandemia, Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe, Nº 28 (LC/TS.2023/70), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/80b8ed48-ce7f-4b38-a54a-21aba58a55b2/content
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).

Cabe salientar que a perda de postos de trabalho gerada pela pandemia afetou em maior proporção os grupos mais vulneráveis: os trabalhadores informais, os jovens, as pessoas com menor nível de educação, as mulheres, os afrodescendentes, os povos indígenas e os imigrantes. Entre esses grupos, ocorreu uma queda maior da ocupação entre as mulheres. A redução do emprego entre as mulheres foi mais acentuada por sua maior inserção nos setores mais afetados pela crise sanitária e caracterizados por empregos inseguros e precários (emprego doméstico, restaurantes, hotéis e comércio) (Cepal/OIT, 2023Comisión Económica Para América Latina Y El Caribe, & Organización Internacional del Trabajo. (2023). Hacia la creación de mejor empleo en la pospandemia, Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe, Nº 28 (LC/TS.2023/70), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/80b8ed48-ce7f-4b38-a54a-21aba58a55b2/content
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).

Os desafios da inclusão dos jovens no mercado de trabalho também se tornaram mais salientes no contexto da pandemia, quando as pessoas de 15 a 29 anos sofreram uma perda de emprego maior do que a população adulta. Além disso, os jovens estão sobrerrepresentados na população de trabalhadores informais da região - a taxa de informalidade de pessoas de 15 a 29 anos é de 53,4%, 12 pontos percentuais superior à das pessoas de 30 a 64 anos - e, como consequência, tiveram uma maior perda de renda em razão da interrupção do trabalho e da ausência de proteção (Cepal, 2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
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).

Os dados disponíveis indicam que a perda de emprego decorrente dos efeitos da pandemia foi maior para pessoas com menores índices de educação formal do que para pessoas com ensino superior. Vale ressaltar que as medidas adotadas pelos diversos países para diminuir as jornadas de trabalho e evitar as demissões em massa se traduziram imediatamente em forte diminuição dos salários. Nota-se, ainda, que a tendência de estagnação dos salários e de contração da massa salarial nos diversos países não se reverteu com o fim da crise sanitária (Cepal/OIT, 2023Comisión Económica Para América Latina Y El Caribe, & Organización Internacional del Trabajo. (2023). Hacia la creación de mejor empleo en la pospandemia, Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe, Nº 28 (LC/TS.2023/70), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/80b8ed48-ce7f-4b38-a54a-21aba58a55b2/content
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).

A redução do emprego assalariado concentrou-se sobretudo no setor privado, particularmente na indústria e na construção civil, enquanto no setor público houve uma leve diminuição, ou uma expansão moderada do emprego, conforme o país (OIT, 2023Organización Internacional del Trabajo. (2023) Oficina Regional para América Latina y el Caribe. Panorama Laboral 2023, OIT, Ginebra, Suiza. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_906617.pdf
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). Cabe destacar que, em muitos países, houve um crescimento do emprego no setor de serviços de saúde, o que demonstra a importância estratégica desse setor diante de uma renovada demanda social por serviços públicos de melhor qualidade no pós-pandemia, com destaque para os países com sistemas públicos e universais, revelando o seu potencial para absorver empregos qualificados (Kerstenetzky, 2023Kerstenetzky, C. L. (2023). Investimento público em serviços sociais como componente central de uma agenda de desenvolvimento. Revista do Serviço Público, 74(1), 64-86.). Por outro lado, houve um aumento significativo do emprego no conjunto das atividades financeiras, de e-commerce e de serviços, que recorreram fortemente às modalidades de teletrabalho, particularmente proporcionadas pelas plataformas digitais de emprego (Cepal/OIT, 2023Comisión Económica Para América Latina Y El Caribe, & Organización Internacional del Trabajo. (2023). Hacia la creación de mejor empleo en la pospandemia, Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe, Nº 28 (LC/TS.2023/70), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/80b8ed48-ce7f-4b38-a54a-21aba58a55b2/content
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).

As medidas necessárias de isolamento social para debelar a propagação da pandemia, particularmente o fechamento de escolas e centros de treinamento profissional, afetaram sobremaneira as crianças e os jovens. Saliente-se, ademais, que na América Latina o desenvolvimento de soluções tecnológicas para o enfrentamento dos problemas ocasionados pela pandemia foi condicionado por fatores estruturais. Ainda que grande parte dos países da região tenha adotado formas de ensino remoto ou híbrido, as deficiências educacionais aprofundaram as distâncias entre os alunos das escolas públicas e privadas, afetando particularmente os grupos de baixa renda, os quais possuem um acesso limitado ou nulo às novas tecnologias da informação (Cepal, 2022Comisión Económica para América Latina y el Caribe. (2022). Los impactos sociodemográficos de la pandemia de COVID-19 en América Latina y el Caribe (LC/CRPD.4/3). Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/ee93d909-bcfa-4799-b04b-ff322e8b2ea7/content
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).

Assim, o maior tempo de permanência desses indivíduos fora da escola potencializou seus riscos de inserção precária ou de exclusão no mercado de trabalho. Evidências empíricas demonstram que entrar no mercado de trabalho durante uma recessão prolongada, tal como a provocada pela crise sanitária, pode afetar negativamente a trajetória profissional dos jovens por uma década ou mais (Schwandt & Wachter, 2019Schwandt, H., & Wachter, T. (2019). Unlucky cohorts: Estimating the long-term effects of entering the labor market in a recession in large cross-sectional data sets. Journal of Labor Economics, 37(1), 161-198. http://dx.doi.org/10.1086/701046
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). Ademais, diante da necessidade de gerar renda para suas famílias, esses jovens foram pressionados a aceitar qualquer emprego, no geral precário e informal, incluindo as novas modalidades de emprego sem proteção ofertadas no âmbito das plataformas digitais (International Labour Organization [ILO], 2020International Labour Organization. (2020). Monitor: COVID-19 and the world of work (4th ed.). Update estimates and analysis. ILO. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/briefingnote/wcms_745963.pdf
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

Em que pese o fato de essas plataformas terem representado uma alternativa de ocupação durante a crise sanitária, repercutindo no aumento da empregabilidade temporária, a expansão dessa modalidade de emprego intensificou-se no período pós-pandemia, em vista das tendências já apontadas de crescimento do trabalho digital e de consolidação do chamado capitalismo de plataforma (Casilli & Posada, 2019Casilli, A., & Posada, J. (2019).The platformization of labor and society. In M. Graham & W. H. Dutton (Eds.), Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives (pp. 293-306). Oxford University Press.). Nesse sentido, a crise sanitária acentuou o ritmo de transformações produtivas relacionadas ao uso das novas tecnologias e modalidades de emprego digitais. Estima-se que 3% dos assalariados da região se inseriam nessas modalidades de emprego em 2019; essa proporção aumentou para 25% durante a vigência da emergência sanitária e demonstra poucos sinais de reversão no contexto atual (OIT, 2023Organización Internacional del Trabajo. (2023) Oficina Regional para América Latina y el Caribe. Panorama Laboral 2023, OIT, Ginebra, Suiza. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_906617.pdf
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

Aliás, essas tendências estão bastante presentes em alguns países da região por meio do recrutamento de trabalho realizado pelas plataformas digitais. É notório que a pandemia beneficiou empresas organizadas em torno dessas plataformas, como Uber, iFood e Amazon, que contratam trabalhadores como autônomos, incentivando formas de trabalho “colaborativas”, porém se eximindo da obrigação de pagar salários mínimos, tributos e benefícios sociais. O fato é que essas empresas passaram a atuar nos diversos países latino-americanos, expandindo consideravelmente suas atividades durante a pandemia, e estão se transformando em verdadeiras fábricas virtuais não regulamentadas.

Na atual fase de reativação dos empregos, os trabalhadores latino-americanos enfrentam os desafios da reinserção no mercado de trabalho em um contexto de lenta recuperação econômica e baixa geração de empregos qualificados. Cresce, portanto, a probabilidade de essas plataformas se transformarem num novo repositório de trabalho farto, ocasional e barato, especialmente para os jovens (Weller, 2020Weller, J. (2020). La pandemia del COVID-19 y su efecto em las tendencias de los mercados laborales. CEPAL - Documentos de Proyectos. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45759-la-pandemia-covid-19-su-efecto-tendencias-mercados-laborales
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
). Assim, o emprego nas plataformas digitais representa um risco, sobretudo de ampliação do trabalho informal, que abrange praticamente a metade dos trabalhadores da região (49% dos ocupados no final de 2022), colocando sérios desafios aos sistemas de proteção (Cepal/OIT, 2023Comisión Económica Para América Latina Y El Caribe, & Organización Internacional del Trabajo. (2023). Hacia la creación de mejor empleo en la pospandemia, Coyuntura Laboral en América Latina y el Caribe, Nº 28 (LC/TS.2023/70), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/80b8ed48-ce7f-4b38-a54a-21aba58a55b2/content
https://repositorio.cepal.org/server/api...
).

Desde o início da retomada do emprego, com o gradual relaxamento das medidas de confinamento decretadas durante a vigência da pandemia, as ocupações informais representaram entre 40 e 95% do aumento líquido dos postos de trabalho gerados entre o terceiro trimestre de 2020 e o segundo trimestre de 2023 (OIT, 2023Organización Internacional del Trabajo. (2023) Oficina Regional para América Latina y el Caribe. Panorama Laboral 2023, OIT, Ginebra, Suiza. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_906617.pdf
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
). Esses dados mostram que a recuperação do emprego nos diversos países continuou a ser impulsionada pelo crescimento dos postos informais, como pode ser visto na Figura 1.

Figura 1
Contribuição do Emprego Formal e Informal para a Recuperação do Emprego Total - Países Latino-Americanos Selecionados. III Trimestre de 2020-II Trimestre de 2023

Portanto, se a falta de acesso ao trabalho qualificado e protegido já se constituía em obstáculo para o crescimento inclusivo dos países latino-americanos, com as transformações trazidas pelas novas tecnologias da informação, que foram potencializadas pela pandemia, as lacunas existentes entre os insiders e outsiders da economia digital transformaram-se em verdadeiros abismos, dificultando ainda mais a inserção qualificada de parte da população no mundo do trabalho, sobretudo dos grupos mais vulneráveis.

Na próxima seção, serão destacadas algumas alternativas de proteção social para enfrentar essas transformações aceleradas pelas consequências da pandemia, enfatizando a importância de aprimorar as políticas passivas e ativas de emprego, bastante deficientes nos países da região.

Desafios para a proteção social na América Latina no pós-pandemia: Políticas de qualificação profissional

As respostas de alguns governos nacionais à emergência sanitária demandaram níveis inéditos de colaboração e mobilização de recursos entre atores públicos e privados. As ideias em torno da construção de um “Estado empreendedor” (Mazzucato, 2014Mazzucato, M. (2014). O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Portfolio-Penguin.) e de uma burocracia pública inovadora, cujas políticas sejam dinâmicas e “orientadas por missões”, adquiriram especial relevo como consequência da crise sanitária (Kattel, 2022Kattel, R. (2022). Dynamic capabilities of the public sector: Towards a new synthesis. UCL Institute for Innovation and Public Purpose, Working Paper Series (IIPP WP 2022-07). https://www.ucl.ac.uk/bartlett/publicpurpose/wp2022-07
https://www.ucl.ac.uk/bartlett/publicpur...
; Mazzucato & Kattel, 2020Mazzucato, M., & Kattel, R. (2020). COVID-19 and public-sector capacity. Oxford Review of Economic Policy, 36(1), 256-269. https://doi.org/10.1093/oxrep/graa031
https://doi.org/10.1093/oxrep/graa031...
; Mazzucato et al., 2021Mazzucato, M., Kattel, R., Quaggiotto, G., & Begovic, M. (2021). COVID-19 and the need for dynamic state capabilities: An international comparison. Development Futures Series Working Paper. United Nations Development Programme (UNDP). https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP-UNCL-IIPP-COVID-19-and-the-Need-for-Dynamic-State-Capabilities.pdf
https://www.undp.org/sites/g/files/zskgk...
).

A crise do coronavírus exigiu dos governos a criação e a mobilização de capacidades estatais inovadoras e, no leque de alternativas disponíveis, despontaram alguns países como a China e a Coreia do Sul, cujas burocracias empreendedoras foram capazes de promover respostas rápidas e consistentes aos problemas gerados pela pandemia (Mazzucato & Kattel, 2020Mazzucato, M., & Kattel, R. (2020). COVID-19 and public-sector capacity. Oxford Review of Economic Policy, 36(1), 256-269. https://doi.org/10.1093/oxrep/graa031
https://doi.org/10.1093/oxrep/graa031...
). Cabe também destacar outros países, como Vietnã, Mongólia, Senegal, Sri Lanka, e algumas regiões, como Kerala, na Índia, que, sem contar com vultosos recursos econômicos, envidaram importantes esforços coordenados, particularmente se comparados a algumas iniciativas empreendidas por economias mais avançadas. Por outro lado, governos que seguiram à risca o receituário das políticas de austeridade fiscal tiveram limitadas opções para enfrentar a crise sanitária (Mazzucato et al., 2021Mazzucato, M., Kattel, R., Quaggiotto, G., & Begovic, M. (2021). COVID-19 and the need for dynamic state capabilities: An international comparison. Development Futures Series Working Paper. United Nations Development Programme (UNDP). https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP-UNCL-IIPP-COVID-19-and-the-Need-for-Dynamic-State-Capabilities.pdf
https://www.undp.org/sites/g/files/zskgk...
).

No campo da política social, a pandemia demonstrou a importância dos instrumentos não contributivos de proteção e reacendeu a discussão sobre a adoção de uma renda básica universal. A crise sanitária também evidenciou a relevância dos instrumentos contributivos, especialmente do seguro-desemprego, para a proteção dos trabalhadores, apontando para a necessidade de ampliar sua cobertura, bastante escassa nos países latino-americanos, e de aproveitar melhor seus recursos para enfrentar o problema das transições ocupacionais geradas pelas mudanças tecnológicas (Weller, 2020Weller, J. (2020). La pandemia del COVID-19 y su efecto em las tendencias de los mercados laborales. CEPAL - Documentos de Proyectos. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45759-la-pandemia-covid-19-su-efecto-tendencias-mercados-laborales
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).

Entretanto, os problemas evidenciados pelas consequências da crise sanitária no mundo do trabalho cobram dos governos da região a implementação de políticas mais efetivas de inclusão produtiva, com ênfase nas políticas ativas de qualificação profissional. Ainda que o ritmo de adoção das novas tecnologias seja reduzido entre os países latino-americanos, em razão da sua acentuada heterogeneidade produtiva, as desigualdades ampliadas pela pandemia mostraram que os sistemas de proteção social desses países estão pouco equipados para enfrentar os riscos associados ao fenômeno das transições ocupacionais (Weller, 2020Weller, J. (2020). La pandemia del COVID-19 y su efecto em las tendencias de los mercados laborales. CEPAL - Documentos de Proyectos. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45759-la-pandemia-covid-19-su-efecto-tendencias-mercados-laborales
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). E, em mercados de trabalho estruturalmente flexíveis, caracterizados por baixos níveis de produtividade e altamente rotativos, as transições ocupacionais provocadas pelas mudanças tecnológicas podem gerar consequências sociais bastante adversas, acirrando as tendências de precarização do trabalho e de polarização da renda, sobretudo na ausência de políticas de qualificação e treinamento vocacional.

O principal objetivo da proteção social é garantir “mínimos civilizatórios”, ampliando o acesso das pessoas à renda, aos serviços sociais e ao trabalho decente. Três componentes da proteção social são fundamentais para assegurar esse objetivo, quais sejam: 1) a política social não contributiva (tradicionalmente conhecida como assistência social, que pode incluir tanto medidas universais como focalizadas de transferência de renda); 2) a proteção social contributiva, que corresponde aos benefícios vinculados ao trabalho, tais como os benefícios previdenciários e o seguro-desemprego, também conhecidos como instrumentos passivos de proteção da renda; e 3) a regulação dos mercados de trabalho, que consiste num conjunto de normas e instituições orientadas ao fomento e proteção das relações de emprego, com destaque para as políticas ativas de qualificação profissional (Cecchini & Martínez, 2011Cecchini, S., & Martínez, R. (2011). Protección social inclusiva en América Latina: Una mirada integral al enfoque de derechos. Cepal. https://www.cepal.org/es/publicaciones/2593-proteccion-social-inclusiva-america-latina-mirada-integral-un-enfoque-derechos
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).

É importante destacar que esses componentes não podem atuar de maneira isolada. O atual contexto pós-pandemia de aceleração das mudanças tecnológicas e transições ocupacionais exige iniciativas de proteção menos estanques e mais articuladas. Tal como ressaltado na seção anterior, o contexto da pandemia forçou a introdução de novas modalidades de trabalho, geralmente precárias, relacionadas ao espaço digital e acirrou o fenômeno da heterogeneidade do emprego na América Latina. Diante dessas transformações aceleradas, é urgente criar políticas de emprego mais dinâmicas e adaptativas para os países da região (Isgut & Weller, 2016Isgut, A. E., & Weller, J. (2016). Introducción. In A. E. Isgut & J. Weller (Eds.), Protección y formación: Instituciones para mejorar la inserción laboral en América Latina y Asia. (pp. 10-21). CEPAL. https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40660/6/S1600551_es.pdf
https://repositorio.cepal.org/bitstream/...
; Novick, 2018Novick, M. (2018). El mundo del trabajo: Cambios y desafios em materia de inclusión. CEPAL - Serie Políticas Sociales, 228, 1-47. https://www.cepal.org/es/publicaciones/43221-mundo-trabajo-cambios-desafios-materia-inclusion
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; Weller, 2020Weller, J. (2020). La pandemia del COVID-19 y su efecto em las tendencias de los mercados laborales. CEPAL - Documentos de Proyectos. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45759-la-pandemia-covid-19-su-efecto-tendencias-mercados-laborales
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).

Adaptar-se a um cenário de fortes transformações, no entanto, não significa relaxar os dispositivos normativos que organizam essas políticas como direitos e garantias básicas dos cidadãos. O que se requer em termos de adaptação, no atual cenário pós-pandemia de mudanças tecnológicas, transições ocupacionais e crescimento do emprego precário, é a criação de uma institucionalidade de política social de atuação intersetorial e coordenada.

Articular políticas ativas e passivas para os mercados de trabalho da região seria de fundamental relevância para garantir renda aos trabalhadores e suas famílias, particularmente na atual fase pós-pandemia de lenta recuperação dos níveis de emprego, promovendo as qualificações necessárias para que trabalhadores e jovens enfrentem os períodos de transição.

A combinação dessas políticas não se constitui em novidade. As experiências internacionais atestam o caráter efetivo dessas políticas. Vários governos da Europa nórdica e continental promoveram amplas políticas ativas e passivas de emprego entre os anos 1950 e 1970, aprimorando seus regimes produtivos e de bem-estar (Bonoli, 2010Bonoli, G. (2010). The political economy of active labor-market policy. Politics & Society, 38(4), 435-457. https://doi.org/10.1177/0032329210381235
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; Swenson, 2002Swenson, P. A. (2002).Capitalists against markets: The making of labor markets and welfare states in the United States and Sweden. Oxford University Press.; Thelen, 2004Thelen, K. (2004). How institutions evolve: The political economy of skills in Germany, Britain, the United States and Japan. Cambridge University Press.). No emblemático modelo alemão de codeterminação dos salários, o Estado, os sindicatos e os empregadores, por muito tempo, compartilharam a importante tarefa de qualificar os trabalhadores por meio de abrangentes sistemas de treinamento vocacional, conferindo vantagens para a indústria alemã em termos da manutenção de altos índices de produtividade do trabalho e bem-estar social (Thelen, 2004Thelen, K. (2004). How institutions evolve: The political economy of skills in Germany, Britain, the United States and Japan. Cambridge University Press.). A partir da década de 1970, com a crise do pleno emprego, a tônica dessas políticas voltou-se para a articulação dos programas de seguro-desemprego e treinamento profissional (Bonoli, 2010Bonoli, G. (2010). The political economy of active labor-market policy. Politics & Society, 38(4), 435-457. https://doi.org/10.1177/0032329210381235
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). A vinculação dos programas de seguro-desemprego aos serviços de intermediação e qualificação possibilitou o acesso dos trabalhadores a um amplo conjunto de informações sobre as oportunidades de emprego existentes, adequadas à sua qualificação profissional, ensejando estratégias mais ativas de criação de empregos.

Entretanto, tornou-se bastante comum afirmar que a utilidade dessas políticas deixou de existir em razão da “crise do emprego” e das mudanças tecnológicas. Mas o fato é que tais políticas foram exatamente produzidas em um contexto bastante semelhante ao atual, um contexto de transição ocupacional, de rápidas inovações produtivas e escassez de trabalho qualificado (Bonoli, 2010Bonoli, G. (2010). The political economy of active labor-market policy. Politics & Society, 38(4), 435-457. https://doi.org/10.1177/0032329210381235
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). Portanto, não há razão para desacreditar essas políticas, visto que o atual problema dos mercados de trabalho não diz respeito ao advento das novas tecnologias, e sim a um crescente processo de desregulamentação do trabalho e à ausência de políticas públicas de emprego (Lanzara, 2024Lanzara, A. P. (2024). O desmonte das políticas de emprego no Brasil: A empregabilidade sem direitos. In S. Fleury (Ed.), Cidadania em perigo: Desmonte das políticas sociais e desdemocratização no Brasil (pp. 124-149). Edições Livres/Cebes-Fiocruz.).

No entanto, na América Latina, as deficiências relacionadas a essas políticas são imensas, a começar pelos programas de seguro-desemprego. Estes são inexistentes na maioria dos países da região; e, naqueles que possuem tal programa, os benefícios são de curta duração, os critérios de elegibilidade para o seu recebimento são bastante exigentes - desconsiderando, portanto, as altas taxas de rotatividade do emprego - e, em muitos casos, os valores das prestações mensais pagas aos trabalhadores desempregados são insuficientes (Pinto, 2016Pinto, M. D. V. (2016). Un analisis de la protección ante el desempleo en América Latina. In A. E. Isgut & J. Weller (Eds.), Protección y formación: Instituciones para mejorar la inserción laboral en América Latina y Asia (pp. 87-116). CEPAL. https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40660/6/S1600551_es.pdf
https://repositorio.cepal.org/bitstream/...
). Vale ressaltar que a cobertura incipiente e os baixos valores do benefício limitam o seu potencial para estabilizar a massa salarial em períodos de crise (ILO, 2017International Labour Organization. (2017). World Social Protection Report 2017/19: Universal social protection to achieve the Sustainable Development Goals. ILO. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_604882.pdf
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
). Apenas cinco países possuem programas de seguro-desemprego com contribuições obrigatórias: Argentina, Brasil, Colômbia, Uruguai e Venezuela. Na maioria dos outros países, entretanto, o pagamento de indenizações por demissões é a única forma de proteção disponível para os desempregados. Saliente-se, também, que os esquemas de seguro-desemprego existentes são pouco articulados aos programas de qualificação profissional (Amorim & Bilo, 2019Amorim, B., & Bilo, C. (2019). Seguro-desemprego ao redor do mundo: Uma visão geral (Nota técnica IPEA n. 55). IPEA. http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9308/1/NT_55_Disoc_Seguro_desemprego%20ao%20redor%20do%20mundo_uma%20vis%C3%A3o%20geral.pdf
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
; Pinto, 2016Pinto, M. D. V. (2016). Un analisis de la protección ante el desempleo en América Latina. In A. E. Isgut & J. Weller (Eds.), Protección y formación: Instituciones para mejorar la inserción laboral en América Latina y Asia (pp. 87-116). CEPAL. https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40660/6/S1600551_es.pdf
https://repositorio.cepal.org/bitstream/...
).

Ademais, a inexistência de sistemas públicos e abrangentes de qualificação profissional com capacidade de processar, coordenar e capilarizar informação constitui-se em grande obstáculo para os países latino-americanos perseguirem políticas mais consistentes para o mercado de trabalho (Lanzara, 2016Lanzara, A. P. (2016). Ativismo burocrático, políticas sociais intersetoriais e os desafios da inclusão produtiva no Brasil. Desenvolvimento em Debate, 4(2), 63-81. https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/article/view/31889/18054
https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/ar...
, 2024Lanzara, A. P. (2024). O desmonte das políticas de emprego no Brasil: A empregabilidade sem direitos. In S. Fleury (Ed.), Cidadania em perigo: Desmonte das políticas sociais e desdemocratização no Brasil (pp. 124-149). Edições Livres/Cebes-Fiocruz.). Apesar dos esforços recentes para expandir essas políticas, várias ações e iniciativas de qualificação presentes nos diferentes países encontram-se dispersas entre diversas agências e ministérios, possuindo baixa ou nula articulação intersetorial, e carecem de capacidades burocráticas e alcance territorial (Novick, 2017Novick, M. (2017). Metodologías aplicadas en América Latina para antecipar demandas de las empresas em materia de competencias técnicas y profesionales. CEPAL-Serie Macroeconomía del Desarrollo, 187, 1-54. https://repositorio.cepal.org/handle/11362/41590
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).

A ausência desses elementos, por sua vez, facilita a emergência de medidas pouco efetivas de qualificação ofertadas por redes privadas ou informais de obtenção de emprego. Nessas redes, porém, as informações relativas à alocação de emprego difundem-se preferencialmente para indivíduos que já possuem competências profissionais. O inverso ocorre com os grupos menos organizados, mais pobres e menos escolarizados, que encontram sérias dificuldades para se inserir em trajetórias ocupacionais mais estáveis. Os problemas que afetam esses grupos, como a escassez de informação, tendem a ser desconsiderados pelas estratégias convencionais de qualificação, já que tais grupos não se enquadram no perfil do demandante “clássico” de emprego (Lanzara, 2016Lanzara, A. P. (2016). Ativismo burocrático, políticas sociais intersetoriais e os desafios da inclusão produtiva no Brasil. Desenvolvimento em Debate, 4(2), 63-81. https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/article/view/31889/18054
https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/ar...
, 2024Lanzara, A. P. (2024). O desmonte das políticas de emprego no Brasil: A empregabilidade sem direitos. In S. Fleury (Ed.), Cidadania em perigo: Desmonte das políticas sociais e desdemocratização no Brasil (pp. 124-149). Edições Livres/Cebes-Fiocruz.).

Vale ainda lembrar que o gasto social com políticas ativas de qualificação é extremamente baixo na América Latina. Surpreendentemente, esse gasto, que poderia ser incrementado para gerar políticas de criação de empregos qualificados no pós-pandemia, caiu para 0,42% do PIB regional em 2022; 0,55 % menos que o nível registrado no primeiro ano da pandemia, como resultado do encerramento de programas implementados em resposta à crise (Cepal, 2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
https://repositorio.cepal.org/server/api...
).

Os países da região necessitam urgentemente construir sistemas públicos mais abrangentes de formação profissional e capacitação tecnológica. Aprimorar as competências profissionais e a educação, aumentando as matrículas nos sistemas de educação vocacional e no ensino superior, segue sendo um grande desafio para o conjunto desses países, particularmente para os grupos com baixo perfil de empregabilidade (Novick, 2018Novick, M. (2018). El mundo del trabajo: Cambios y desafios em materia de inclusión. CEPAL - Serie Políticas Sociales, 228, 1-47. https://www.cepal.org/es/publicaciones/43221-mundo-trabajo-cambios-desafios-materia-inclusion
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).

Como apontam diversos estudos, as políticas de qualificação profissional na região deveriam assumir uma orientação mais prospectiva, adequando-se aos diferentes perfis de empregabilidade da população para se anteciparem aos problemas gerados pelas mudanças na estrutura produtiva e diminuírem as assimetrias de informação entre demandantes e ofertantes de emprego, especialmente as assimetrias que afetam as populações de trabalhadores informais e sujeitos a empregos intermitentes e precários (Gontero & Albornoz, 2019Gontero, S., & Albornoz, S. (2019). La identificación y anticipación de brechas de habilidades laborales en América Latina: Experiencias y lecciones. CEPAL-Serie Macroeconomía Del Desarrollo, 199, 1-88. https://www.cepal.org/es/publicaciones/44437-la-identificacion-anticipacion-brechas-habilidades-laborales-america-latina
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
; Gontero & Zambrano, 2018Gontero, S., & Zambrano, M. J. (2018). La construcción de sistemas de información sobre el mercado laboral en América Latina. CEPAL-Serie Macronomía Del Desarrollo, 193, 1-57. https://www.cepal.org/es/publicaciones/43413-la-construccion-sistemas-informacion-mercado-laboral-america-latina
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
; Novick, 2017Novick, M. (2017). Metodologías aplicadas en América Latina para antecipar demandas de las empresas em materia de competencias técnicas y profesionales. CEPAL-Serie Macroeconomía del Desarrollo, 187, 1-54. https://repositorio.cepal.org/handle/11362/41590
https://repositorio.cepal.org/handle/113...
).

A respeito das tendências prospectivas de emprego, a crise sanitária e o crescimento dos problemas ambientais colocaram em relevo a necessidade de criar ocupações voltadas a superar esses desafios. Deve-se considerar, portanto, a importância da chamada “economia verde”, dos serviços sociais e de infraestrutura como potenciais fontes para a geração de empregos qualificados na região, unindo as estratégias de inclusão produtiva aos objetivos de fortalecimento dos Estados de Bem-Estar e das políticas urbanas e ambientais. Uma política de ativação disposta a criar empregos qualificados no setor de serviços sociais, com ênfase no fortalecimento do complexo industrial da saúde, por exemplo, além de oportuna, em vista dos problemas gerados pela recente crise sanitária, seria de fundamental importância para estreitar a relação entre inovações produtivas, capacitação profissional e serviços de proteção social (Lanzara, 2020Lanzara, A. P. (2020). Mudanças tecnológicas, exclusão digital e os desafios da proteção social. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. https://cee.fiocruz.br/?q=Mudancas-tecnologicas-exclusao-digital-e-os-desafios-da-protecao-social
https://cee.fiocruz.br/?q=Mudancas-tecno...
).

Há que se levar em conta, nessa discussão, a necessidade de capacitação profissional para agentes públicos de prestação de serviços na área social. O potencial de absorção de empregos qualificados nos serviços de bem-estar é fato que vem sendo largamente documentado em trabalhos recentes e representa uma importante alternativa diante do fenômeno da automação e precarização do trabalho (Atkinson, 2015Atkinson, A. (2015). Inequality: What can be done? Harvard University Press.; Kerstenetzky, 2023Kerstenetzky, C. L. (2023). Investimento público em serviços sociais como componente central de uma agenda de desenvolvimento. Revista do Serviço Público, 74(1), 64-86.). Assim, a promoção articulada de políticas de qualificação voltadas aos setores de infraestrutura urbana, saneamento ambiental e proteção social e de políticas de indução a um consumo sustentável (Coote, 2021Coote, A. (2021). Universal basic services and sustainable consumption. Sustainability: Science, Practice and Policy, 17(1), 32-46. https://doi.org/10.1080/15487733.2020.1843854
https://doi.org/10.1080/15487733.2020.18...
) representa uma alternativa para os países latino-americanos enfrentarem os desafios colocados pelo contexto pós-pandemia e renovarem suas políticas de emprego e bem-estar.

É necessário, ainda, aproveitar o potencial do ecossistema digital para gerar informações e ampliar os sistemas de provisão de serviços sociais nos países da região. Como destacam alguns autores informados pela perspectiva das capacidades estatais, a existência de uma sólida base de dados e informações providas por meios tecnológicos e a produção regular de estatísticas, censos e cadastros são fortes indicadores da capacidade dos Estados de penetrar os seus territórios para logisticamente implementar suas decisões de política pública (D’Arcy, & Nistotskaya, 2017D’Arcy, M., & Nistotskaya, M. (2017). State first, then democracy: using cadastral records to explain governmental performance in public goods provision. Governance, 30(2), 193-209. https://doi.org/10.1111/gove.12206
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; Lee & Zhang, 2016Lee, M., & Zhang, N. (2016). Legibility and the informational foundations of State capacity. The Journal of Politics, 79(1), 118-132. https://doi.org/10.1086/688053
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). Não resta dúvida de que as novas tecnologias digitais despontam como infraestruturas fundamentais para os países latino-americanos integrarem seus territórios aos sistemas de provisão de serviços sociais, gerando capacidades de coleta, processamento e análise de dados, permitindo assim potencializar as intervenções do Estado em vista dos objetivos do desenvolvimento inclusivo (Martínez et al., 2020Martínez, R., Palma, A., & Velásquez, A. (2020). Revolución tecnológica e inclusión social: Reflexiones sobre desafíos y oportunidades para la política social en América Latina. CEPAL - Serie Políticas Sociales, 233,187. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45901-revolucion-tecnologica-inclusion-social-reflexiones-desafios-oportunidades-la
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).

Ademais, essas novas tecnologias poderiam se converter em importantes aliadas do esforço de fortalecer as capacidades de provisão de políticas de qualificação profissional na região, particularmente no atual contexto pós-pandemia, prospectando as informações necessárias para aprimorar o alcance territorial dessas políticas e reduzir as assimetrias de informação relativas à oferta de empregos e qualificação, que afetam particularmente os grupos mais vulneráveis.

A transformação digital, em particular, poderia abrir novas oportunidades para o setor do trabalho doméstico remunerado e dos cuidados por meio da criação de plataformas que vinculem a oferta de trabalho e as necessidades de cuidados dos domicílios. Poderia também facilitar a profissionalização e certificação dos trabalhadores envolvidos nesses empregos, o que levaria a uma valorização social e econômica desse trabalho. Contudo, as vantagens que a digitalização desse setor pode gerar para a inclusão laboral dependem, em grande medida, da capacidade regulatória e de supervisão das instituições públicas responsáveis pelo cumprimento das leis trabalhistas (Cepal, 2023Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. (2023). Panorama Social da América Latina e do Caribe. Resumo Executivo (LC/PUB.2023/19), Santiago, Chile. https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/036c20b8-c0d9-49ce-8410-ab028e33fa2e/content
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).

A apropriação dessas tecnologias pelos governos, certamente, facilitaria a introdução de mecanismos mais efetivos de monitoramento e avaliação das políticas de qualificação profissional na região, além de possibilitar o desenvolvimento adequado de competências socioprofissionais no seu público-alvo.

Por fim, a pandemia também demonstrou que é preciso urgentemente melhorar a qualidade dos sistemas educacionais dos países da região, corrigindo sua tradicional assimetria e segmentação, e fortalecer a regulamentação e fiscalização dos seus mercados de trabalho, em decorrência da expansão do trabalho precário nas plataformas digitais de emprego. Ao lado da criação de abrangentes sistemas de qualificação, a adoção dessas medidas seria de fundamental importância para ampliar o acesso da população ao trabalho qualificado e protegido.

CONCLUSÃO

A recente crise sanitária afetou severamente o mercado de trabalho dos países latino-americanos e ampliou os níveis de desemprego, informalidade e pobreza. Este estudo demonstrou que as adversidades produzidas pela recente crise sanitária, no pouco estruturado mundo do trabalho latino-americano, tornaram mais salientes as desvantagens decorrentes da baixa qualificação dos trabalhadores, sobretudo num cenário de profundas transformações tecnológicas.

A relevância que adquire esse tema, no atual cenário de desigualdades ampliadas pelos efeitos da pandemia, desafia os governos da região a repensarem suas políticas públicas de emprego. A consolidação dessas políticas no pós-pandemia é uma oportunidade única para os países latino-americanos avançarem rumo a uma economia mais dinâmica e inclusiva, evitando assim a armadilha que condena esses países ao atraso tecnológico e à baixa produtividade do trabalho.

Conforme destacado, nos países latino-americanos, as consequências da recente perda de dinamismo econômico e a crescente desestruturação dos mercados de trabalho, somados aos efeitos gerados pela pandemia, afetaram de maneira bastante adversa o acesso dos jovens e trabalhadores aos meios proporcionados pelas novas tecnologias digitais. Além disso, as reformas liberalizantes e o desmonte dos sistemas de proteção social também impactaram negativamente os mercados de trabalho da região.

A recente crise sanitária demonstrou que as sociedades marcadas por fortes desigualdades de acesso aos serviços públicos de cidadania, incluindo os serviços de qualificação profissional, não estão suficientemente preparadas para enfrentar os desafios das mudanças tecnológicas, requerendo políticas públicas que promovam a disseminação de competências para aprimorar a inserção qualificada dos jovens e dos trabalhadores mais vulneráveis na economia do conhecimento.

Vale ressaltar que a efetividade dessas políticas depende de uma ação governamental mais incisiva no campo da regulamentação das plataformas digitais. Nesse aspecto, a pandemia também demonstrou que a democratização do acesso ao conhecimento é uma demanda que corre na contramão das atuais tendências de monopolização da informação, exploração do trabalho virtual e comercialização extensiva de dados impostas pelas empresas digitais. Portanto, os governos da região têm importantes desafios no sentido de dissuadir, mediante regulação estatal, os retornos crescentes (e injustos) que potencializam o poder desses monopólios.

É importante salientar que as “soluções de mercado” serão incapazes de suprir as crescentes necessidades de capital humano exigidas por economias cada vez mais centradas em inovações produtivas e em novos empreendimentos sociais, sobretudo para cumprir os objetivos de um desenvolvimento que se quer inclusivo e ambientalmente sustentável - objetivos que a pandemia demonstrou serem incontornáveis.

Se a pandemia revelou que a disseminação do conhecimento é um bem público essencial, o governo tem um papel fundamental a desempenhar na oferta de políticas que aprimorem as competências socioprofissionais e diminuam as assimetrias de informação nos mercados de trabalho.

Conforme mencionado neste estudo, os principais fatores que inibem o desenvolvimento dessas competências nos mercados de trabalho latino-americanos decorrem das assimetrias de informação entre os ofertantes e demandantes de emprego, prejudicando especialmente os trabalhadores mais pobres e sem acesso à informação.

Um abrangente sistema público de emprego, com capacidade de ampliar e capilarizar informações, reduz os riscos relacionados às transições ocupacionais, especialmente para os jovens que enfrentam sérias dificuldades para se inserir no mercado de trabalho; confere agilidade aos serviços de intermediação da mão de obra, particularmente no que respeita às novas habilidades demandadas e à heterogeneidade dos postos de trabalho, que tendem a aumentar o tempo de procura do trabalho; induz os empregadores a internalizarem os custos do treinamento; e fornece certificações profissionais mais apropriadas em termos de conteúdos de formação.

A criação de eficientes sistemas de informação e monitoramento para gerar políticas articuladas de educação, trabalho e renda seria de vital importância para os países latino-americanos superarem os problemas estruturais dos seus mercados de trabalho e sistemas educacionais, que, conforme destacado, foram potencializados pelos efeitos adversos da recente crise sanitária.

Por fim, é necessário frisar que a implementação exitosa desses sistemas deve contar com a ampla participação de sindicatos, cooperativas e trabalhadores informais nas suas estruturas de gestão, coordenação e decisão, possibilitando, nesse sentido, a formação de coalizões que sejam capazes de articular os interesses da sociedade em torno de políticas de emprego mais permanentes e efetivas.

Avaliadores/as

Avaliado pelo sistema de revisão duplo-anônimo.

O/A segundo/a não autorizou a divulgação de sua identidade e relatório de avaliação por pares.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem todas as sugestões de dois pareceristas anônimos dos CGPC na versão preliminar deste artigo.

REFERÊNCIAS

Editado por

Editor Associado: Felipe Gonçalves Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2023
  • Aceito
    05 Jul 2024
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