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A química de saneantes dos álcoois e a discussão sobre mídia, ciência e pandemia: a educação para as relações étnico-raciais no ensino remoto

The chemistry of sanitizing alcohols and the discussion about science, media, and the pandemic: teaching for interethnic and interracial relations in distance learning

Resumo:

Neste artigo buscou-se discutir e analisar o ensino remoto de química de saneantes em tempos de Covid-19 e os discursos sobre os elementos da mídia, ciência e pandemia, com a implementação da educação para as relações étnico-raciais com estudantes da educação básica, no projeto de letramento racial, o projeto Afrocientista. Com aspectos de uma pesquisa afrocêntrica, a intervenção pedagógica desenvolvida ocorreu com estudantes da escola pública e de periferia da Grande Goiânia, no estado de Goiás. Os dados foram analisados a partir da hermenêutica da profundidade do dispositivo polirracional do conhecimento químico. Os resultados apontam que, mesmo frente às limitações do ensino remoto, foi possível discutir sobre o conceito de função alcóolica, ainda que com a dificuldade do movimento circular das dimensões do conhecimento químico, como também as interfaces dos meios de comunicação e do conhecimento científico diante da pandemia da Covid-19 e as vivências da população afro-brasileira.

Palavras-chave:
Ensino de química; Educação básica; Educação a distância; Integração racial; Cultura afro-brasileira; Racismo

Abstract:

This study examines and assesses the chemistry of sanitizing alcohol for elementary school students during the COVID-19 pandemic via distance learning. In addition, it addresses how to apply ethnic-racial education in a racial literacy program by examining the roles played by the media, science, and the pandemic. We conducted a pedagogical intervention with public school students from the periphery of a Brazilian city, integrating Afrocentric research components and analyzing the data using the polyrational tool of chemical knowledge and the hermeneutics of depth. The study demonstrates the feasibility of discussing the concept of alcohol function, despite the challenges posed by the circular movement of chemical knowledge dimensions. The article also looks at the experiences of the Afro-Brazilian community and the relationship between scientific information and the media during the pandemic.

Keywords:
Chemistry teaching; Elementary education; Distance education; Racial integration; Afro-Brazilian culture; Racism

Introdução

A educação das relações étnico-raciais é pautada pela Lei 10.639/03 (Brasil, 2003BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2003. Disponível em: http://tinyurl.com/yc3f3var. Acesso em: 6 nov. 2022.
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) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnicoraciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, DF: MEC, 2004.). Dessa forma, se aglutina à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em: https://tinyurl.com/575p3d2v. Acesso em: 6 nov. 2022.
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) e passa a vigorar a obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino sobre a história e cultura afro-brasileira. Portanto, inclui o estudo sobre a história e atualidade da África e dos africanos, a luta dos negros e negras no Brasil, a cultura negra brasileira e suas contribuições para a formação da sociedade nacional, considerando em todo o currículo escolar a contribuição do povo negro nas áreas sociais, culturais, econômicas e políticas que são pertinentes à história do Brasil (Brasil, 2003BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2003. Disponível em: http://tinyurl.com/yc3f3var. Acesso em: 6 nov. 2022.
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). De acordo com Gomes (2018)GOMES, N. L. O movimento negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiásporico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 223-245., urge a necessidade da transformação dos currículos em prol da construção da democracia e para a luta antirracista, numa ruptura epistemológica, política e social pela presença negra. Tal presença negra se realiza nos espaços de poder e decisão, nas estruturas acadêmicas, na cultura, na gestão da educação, da saúde, da justiça, ou seja, a transformação social necessária que deve alcançar não somente o campo de produção de conhecimento, como também as estruturas sociais e de poder.

Nesse movimento, objetiva cumprir o que é estabelecido na Constituição Federal nos seus artigo 5º, inciso I, artigo 210, artigo 206, inciso I, parágrafo 1° do artigo 242, art. 215 e art. 216 (Brasil, 1988BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://tinyurl.com/4khdezpa. Acesso em: 6 nov. 2022.
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), como também, nos artigos 26, 26A e 79B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em: https://tinyurl.com/575p3d2v. Acesso em: 6 nov. 2022.
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) que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e culturas que constituem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros. Porém, apesar dos quase vinte anos da obrigatoriedade dessa Lei e demais dispositivos legais que endossam a educação das relações étnico-raciais, ainda persiste a presença de um currículo que apresenta as ciências e as tecnologias apenas a partir da episteme europeia, branca, silenciando a diversidade cultural e étnico-racial do Brasil.

A articulação entre os elementos da vida cotidiana diante das ações subjetivas e objetivas dos meios comunicacionais e das formações educativas e sociais, resulta no racismo estrutural (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.), o que incide no enfretamento do genocídio do povo negro (Nascimento, 1978NASCIMENTO, A. Genocídio do negro no Brasil: um processo de racismo mascarado. São Paulo: Paz e Terra, 1978.) e o combate à persistência de silêncio e invisibilidade do negro (Carneiro, 2003CARNEIRO, S. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117- 133, 2003. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300008.
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).

Frente às configurações históricas e culturais da realidade brasileira e às desigualdades que circundam as relações raciais, é pertinente reconhecer que o racismo é estrutural e estruturante do atual modo de produção. Assim, é tido como ‘normal’, em diferentes dimensões, as assimetrias raciais que formam as relações políticas, econômicas, jurídicas, midiáticas, educacionais e do mundo do trabalho e entre outros. Não é apenas individual ou institucional, apesar que estas dimensões também o constituem, assim, o racismo estrutural expressa concretamente como a desigualdade política, econômica e jurídica na vida das pessoas negras, que têm tratamento diferenciado e considerados inferiores (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

O racismo é um princípio organizador ou uma lógica estruturante de todas as configurações sociais e relações de dominação da modernidade, que pode ir desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, religiosas, pedagógicas, médicas, de gênero, conectadas às identidades e subjetividades. Logo, é estabelecido uma maneira que divide tudo entre as formas dos seres superiores, entendidos como civilizados, hiperhumanizados, acima da linha do humano e, em outra via, há outras formas e seres inferiores, sendo selvagens, bárbaros, desumanizados, abaixo da linha do humano (Grosfoguel, 2018GROSFOGUEL, R. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiásporico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 107-126.).

Nesse sentido, a mídia é um instrumento de direcionamento ou criação de subjetividades do ser humano, produzindo significados em torno de todo o conjunto material e imaterial do que constitui o universo da comunicação social e sua dinâmica com a necessidade existencial das sociedades modernas (Alakija, 2012ALAKIJA, A. Mídia e identidade negra. In: BORGES, R. C. S.; BORGES, R. (org.). Mídia e racismo. Petrópolis: DP et Aliii; 2012. p. 108-153, 2012. Disponível em: http://tinyurl.com/mwv6453n. Acesso em: 8 nov. 2022.
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; Sodré, 2006SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.). De acordo com Alakija (2012)ALAKIJA, A. Mídia e identidade negra. In: BORGES, R. C. S.; BORGES, R. (org.). Mídia e racismo. Petrópolis: DP et Aliii; 2012. p. 108-153, 2012. Disponível em: http://tinyurl.com/mwv6453n. Acesso em: 8 nov. 2022.
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e Sodré (2006)SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006., as pessoas cada vez mais dependem da mídia para gerir processos individuais ou coletivos, sejam nas relações familiares, afetivas, sociais, profissionais e entre outros. Considerando-se os contextos educativos, especialmente o ensino de ciências, existe uma necessidade de conectar a mídia e suas produções, no intuito de realizar divulgação científica e discussões sobre o conhecimento científico e tecnológico, oportunizando a motivação e estímulos na participação dos estudantes e suporte dos materiais didáticos (Galieta, 2008GALIETA, T. N. Definições de divulgação científica por jornalistas, cientistas e educadores em ciências. Ciência em Tela, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 2008. Disponível em: http://tinyurl.com/5788cvzy. Acesso em: 8 nov. 2022.
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).

Os meios de comunicação e até a própria educação não trabalham questões ligadas às relações étnico-raciais de forma adequada e positiva. Os livros didáticos e outras representações propagadas, em sua maioria, reportam o negro apenas sob forma estereotipada e caricatural, despossuído de humanidade e cidadania. Nesse sentido, os meios de comunicação promovem a representação do negro como pouco inteligente e ‘burro’, é um estereótipo criado para justificar a exclusão no processo produtivo pós-escravidão persistindo até a atualidade. Essa representação pode desenvolver nos alunos negros e não negros preconceitos quanto à capacidade intelectual da população negra, e assim, gerar um sentimento de incapacidade que pode culminar no desinteresse, à repetência e à evasão escolar, por parte da juventude negra (Silva, 2005SILVA, A. C. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA, K. (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC, 2005. p. 21-38. Disponível em: https://tinyurl.com/mvyrejdz. Acesso em: 17 abr. 2024.
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).

Para hookshooks, b. Ensinando a comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Elefante, 2021.1 1 A autora bel hooks afirma que seu nome social é escrito com as iniciais minúsculas, como forma de desafiar as convenções linguísticas e dá destaque ao conteúdo de sua escrita e autoria. (2021), é necessário observar o impacto dos meios de comunicação em massa na autoestima das crianças negras, pois há uma pedagogia do racismo e da raça que essas crianças conhecem antes mesmo delas entrarem em sala de aula. O professor e a professora precisam considerar tais questões que influenciam as subjetividades e o bem-estar dos estudantes, em especial, de indivíduos pertencentes a grupos marginalizados e subordinados, já que não há equipe de apoio, programação comportamental positiva nem recursos materiais que os conduzam à excelência acadêmica.

A aula de química é lócus pertinente ao combate ao racismo estrutural que tem suas facetas na ciência e na mídia, considerando a educação para as relações étnico-raciais e o exercício de ressignificar as representações, subjetividades, vidas concretas e experienciais atuais das juventudes negras deste país. Cabe mencionar, que não são tônicas as discussões e ações nos sistemas de ensino, currículos e nas aulas de ciências/química, com foco na implementação da educação para as relações étnico-raciais. Tampouco são incipientes os relatos no ensino remoto com o uso de tecnologias digitais diante a pandemia da COVID-19, bem como a temática da química de saneantes presentes nos produtos de limpeza, especialmente, dos álcoois no enfretamento ao coronavírus.

Também se considerou a aproximação dos movimentos negros na realidade dos estudantes junto à necessidade das discussões e apropriações do conhecimento científico e tecnológico, sistematizado e organizado, alocados na situação pandêmica, com o objeto temático e de interesse, sendo o álcool. Assim, ponderou-se as condições objetivas e concretas para a organização do ensino, que demanda sobre às condições de acesso aos recursos da internet e suportes tecnológicos. E, por conseguinte, os processos de ensino e às condições para o estudo e a aprendizagem dos sujeitos envolvidos.

Nesta investigação, buscou-se compreender e analisar a química de saneantes dos álcoois e os discursos sobre os elementos da mídia, ciência e pandemia, a partir da implementação da educação para as relações étnico-raciais, ensino remoto, com estudantes da escola pública e de periferia, no projeto de letramento racial, o projeto Afrocientista.

Percurso metodológico

A presente pesquisa se configura pelos princípios da pesquisa afrocêntrica. Asante (2009)ASANTE, M. K. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-110. afirma que a afrocentricidade é um enfoque epistemológico que promove o papel central do sujeito africano e diaspórico dentro do contexto histórico africano, com compreensões e análises de ideias, conceitos, pensamentos, eventos e práticas a partir da perspectiva do povo negro. Destarte, esta investigação retrata discussões que interpelam a experiência africana e sua diáspora, uma vez que foram prejudicados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos. Logo, são emergentes discussões que situem a imersão cultural centrada na África, com a perspectiva de que o conhecimento gerado possa ser libertador, com reflexões sobre as atuais e históricas condições de vida da população africana e de sua diáspora (Mazama, 2009MAZAMA, A. Afrocentricidade como um novo paradigma. In: NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 111-127.).

Mapa da pesquisa

1ª etapa – Foi efetivado a interação entre pesquisador, os sujeitos e o tema, com o conhecimento a imersão cultural e social dos sujeitos envolvidos. Assim, nessa primeira etapa, se deu a aproximação junto a escola pública (os sujeitos participantes da pesquisa) e com a Universidade, assim como, as ações de divulgação, seleção e orientação da proposta de trabalho de iniciação científica júnior do projeto Afrocientista.

2ª etapa – Foram realizadas as intervenções pedagógicas a partir do ensino remoto acerca de temáticas de ciência, tecnologia e comunicação, com base na cultura, história e ancestralidade africana, abordando diferentes contribuições científicas-tecnológicas dos africanos e da diáspora.

3º etapa – Foram promovidas discussões sobre a história e ancestralidade africana, com um posicionamento comprometido com a ruptura da atual condição do negro e na construção de uma agência e consciência, na perspectiva das temáticas investigadas da pesquisa.

Na primeira etapa foi efetuada as interações iniciais e contínuas entre pesquisadores, os sujeitos e o tema, com a exploração do conhecimento sociocultural dos participantes e da proposta de trabalho de iniciação científica júnior do projeto Afrocientista. Na segunda etapa, ocorreu as discussões relacionadas as temáticas de investigação, no tocante a cosmologia, a estética, a axiologia e a epistemologia que caracterizam a cultura, história e ancestralidade africana na perspectiva do ensino remoto de ciências. Logo, providenciou-se atuar com ações na formação de agentes autoconscientes e insatisfeitos nas definições exteriores, com as intervenções pedagógicas, nos debates sobre o conhecimento científico, comunicação e africanidades (Mazama, 2009MAZAMA, A. Afrocentricidade como um novo paradigma. In: NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 111-127.).

Por último, na terceira etapa, providenciou-se trazer à tona a posição e a história dos sujeitos africanos e diaspóricos numa perspectiva de consciência coletiva no ensino remoto de química, na recolocação do sujeito africano e diaspórico, com a potencialização de uma autodefinição positiva e assertiva, com a soberania e experiências do povo negro (Mazama, 2009MAZAMA, A. Afrocentricidade como um novo paradigma. In: NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 111-127.). A presente investigação é uma ação afirmativa em prol da população negra, em especial, da juventude negra nos espaços acadêmicos por meio do projeto Afrocientista, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), em parceria com o Coletivo Ciata do Laboratório de Pesquisa em Educação em Química e Inclusão (LPEQI) do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG). As ações do projeto Afrocientista ocorreram em várias regiões do país, dentre elas, a região norte, nordeste, centro-oeste e sudeste, sendo essas intervenções guiadas pelos associados ao Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) e grupos correlatos, afiliados ao consórcio da ABPN.

O objetivo do projeto Afrocientista é inserir estudantes negros nas práticas científicas, na formação cidadã e no engajamento social, envolvendo atividades teóricas e práticas do conhecimento científico, na participação do ambiente acadêmico, bem como na preparação de seletivos ao ensino superior (Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, 2018ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS. Projeto Afrocientista. Goiânia: ABPN, 2018. Disponível em: https://abpn.org.br/afrocientista/. Acesso em: 22 nov. 2022.
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). No esquadro do projeto Afrocientista do Coletivo Ciata – LPEQI na UFG –, foi trabalhado um subprojeto com a proposta de trabalho sobre ciência/química, mídia e africanidades, desenvolvido em 2021, durante a segunda edição do projeto, com encontros remotos que perfizeram as intervenções pedagógicas.

As intervenções pedagógicas tiveram a participação de cinco estudantes: a Camila, o Diego, a Ingrid, a Isís e a Valeska, nomes hipotéticos, com a intenção de resguardar a identidade dos participantes da pesquisa. Esses estudantes são jovens negros e negras, de baixa renda e oriundos da escola pública e da periferia da Grande Goiânia, no estado de Goiás. A regência ocorreu com um professor de química (aluno de doutorado), uma professora de biologia (aluna de doutorado) e com a orientação da professora formadora (pesquisadora), sendo esses, todos membros do Coletivo Ciata. O presente texto é parte revisitada da tese do primeiro autor do texto, assim, consideramos que esta investigação possui elementos teóricos-metodológicos semelhantes de outros resultados, ainda em fase de publicação (Costa, 2023COSTA, F. R. Estudos sobre as representações midiáticas e a educação para as relações étnico-raciais no ensino remoto de ciências. 2023. 161 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e Matemática) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2023.).

Com a situação da pandemia da COVID-19 e as medidas necessárias de prevenção e de amenização do vírus, a coleta de dados foi realizada por meio das gravações dos encontros remotos, em áudio e imagem, com a utilização da plataforma do Google Meet e posteriormente as falas foram transcritas e analisadas. Houve a produção de relatórios pelos estudantes ao término de cada um das Intervenções Pedagógicas (IP). Nas transcrições, algumas expressões orais foram preservadas no intuito de resguardar o discurso e a caracterização dos sujeitos sociais e suas linguagens. Utilizou-se para a análise de dados a Hermenêutica da Profundidade (Thompson, 2011THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação em massa. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.), a partir das três fases: (i) análise sócio-histórica: as análises sobre a química dos saneantes nesse período de pandemia e os aspectos midiáticos e científicos em relação a população negra brasileira; (ii) análise formal ou discursiva, com base na interação discursiva dos participantes; e (iii) interpretação/reinterpretação, pois oportunizam expor as formas simbólicas e relações de poder e dominação.

Para análise de dados também se utilizou o dispositivo polirracional do conhecimento químico de Camargo (2022)CAMARGO, M. J. R. Denegrindo o ensino de química: a prática do quilombismo na formação docente. 2022. 178 f. Tese (Doutorado em Química) – Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022. na análise da circularidade dos conhecimentos, saberes e fazeres no tocante às dimensões: representacionais, submicroquímica, pluriversal e fenomenológica. A circularidade é um movimento circular em espiral que ocorre nas discussões do conhecimento químico e suas interfaces, na intervalorização dos sujeitos participantes e seus repertórios, nas conexões dos conteúdos e seus retornos, nos conhecimentos e nas transformações da matéria (Camargo, 2022CAMARGO, M. J. R. Denegrindo o ensino de química: a prática do quilombismo na formação docente. 2022. 178 f. Tese (Doutorado em Química) – Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.). De forma resumida, esse autor assegura que: (i) na dimensão representacional são consideradas as representações dos conteúdos, conceitos e reações científicas nas atividades práticas; (ii) na dimensão fenomenológica são os processos físico-químicos que podem ser vistos e concretamente associados; tal dimensão é geralmente associada aos sentidos, sendo a química materializada na vida social; e, (iii) na dimensão pluriversal são os conteúdos e objetivos que se contrapõem à dicotomia de ciência moderna/ciência tradicional e compreende uma perspectiva crítica e em oposição ao eurocentrismo; e, por último, (iv) na dimensão submicroquímica, a abordagem de conceitos e os conteúdos ocorrem na interrelação ao nível simbólico e nas representações subjacentes.

Resultados e discussões

Apresenta-se a IP, em destaque (quadro 1), que versou sobre a discussão da aspectos da ciência, mídia, população negra e pandemia do novo coronavírus e a discussão sobre a química de saneantes dos álcoois no enfretamento a COVID-19. Assim, as ações ocorreram nos momentos que seguem.

Quadro 1
Mapa de atividades

Obteve-se 731 turnos de discursos e cinco produções textuais; por motivos de espaço, vamos apresentar somente alguns extratos desses turnos de discursos. Segue a análise do extrato 1, sobre as vivências em pandemia e conhecimento científico.

Extrato 1 – Sobre a mídia e o conhecimento científico na pandemia da COVID-19

Turno 178 – Diego: Vamos lá. Nesses meios de comunicação falam para a gente o que é certo, os padrões que a gente deve seguir, por exemplo, regras, cuidar da higiene, limpar as mãos, não sair. Igual eu tô aqui na minha vó, eu escuto muito dela, que ela não gosta que eu e minha irmã venha para a casa nesses tempos porque ela tem medo de pegar a COVID-19. Então eu vejo muito... Igual minha mãe, ela não gosta de ficar saindo ou que eu fique saindo porque ela fala que eu sou do ‘grupo de risco’, meu padrasto também por ele ter asma. Então ela não sai por causa dessa ‘ideologia’ dos sintomas, por ela escutar muito isso, ela sentiu, ficou gripada um dia, e começou a formar na mente dela que ela tava gripada, falar que ela tava, os amigos dela falavam que estava sentindo sintomas, ela ficou agoniada. Ela falou para mim que não conseguiu dormir, ela teve que colocar uma máscara para dormir, porque ela tinha medo de estar doente e passar para o meu padrasto, para mim ou para minhas irmãs.

Turno 180 – Diego: Eu vejo assim, que as pessoas falam que você não pode gripar, igual muitas pessoas brincam que você não pode tossir na rua que o povo já fica cismado com isso, é algo que entra no psicológico da pessoa. A pessoa fica com medo de estar, não estar, de transmitir...

Turno 181 – Professor: Você falou uma coisa interessante sobre o uso da máscara. Quem foi que falou que a gente deve usar máscara? Quem será que determina que agora a gente precisa se proteger, então vamos usar máscara? Quem foi que disse isso?

Turno 182 – Diego: Assim, eu não sei, eu só ouvi que era por causa da doença se transmitir pelo ar. A máscara ‘impede’ a contaminação, a liberação do vírus, só que não sei quem foi que disse.

Turno 183Professor: Ingrid, vai lá. Ingrid, quem foi que disse que a gente precisa usar máscara e por quê? Ingrid...

Turno 184 – Ingrid: Eu também não sei quem disse, na verdade quase ninguém sabe, só viu no jornal que era obrigatório. Foi mais ou menos uma grande informação que virou senso comum e todo mundo tá usando agora. Mas por onde começou, eu não sei.

Turno 192 – Diego: Sobre o primeiro decreto que era para fechar tudo e depois foram abrindo, então assim, primeiro eles falaram que não era para sair de casa, que ia fechar tudo por causa da Covid-19. Então fecharam tudo, disseram que não poderia manter aberto o comércio e que não poderia sair na rua durante alguns dias, com isso alguns setores que eu convivo, eu vejo, que fecharam, não abriram, e outros continuam abertos, não estando nem aí, achando que era normal não fazer nada. Depois falaram que poderia ‘voltar ao normal’ usando máscara, álcool em gel, tendo os cuidados […].

Primeiramente, cumpre salientar que compreendemos a história e cultura afro-brasileira e africana a partir das condições e vivências atuais e históricas, sem dicotimizar a relação temporal entre o passado e o presente, centralizando a discussão nos contextos e realidades dos sujeitos atuais. Partimos para as discussões dos estudantes negros e negras sobre as vivências em pandemia, o conhecimento científico e as relações sociais. No turno 178, Diego relatou que a mídia dita padrões, regras e propagou informações de contenção do vírus da COVID-19 como o uso de máscaras e se resguardar em casa, que influenciaram as relações familiares. O estudante Diego utiliza o termo ideologia de uma discussão anterior, para caracterizar um conjunto de concepções e atitudes promovidos pela mídia, frente aos sintomas da COVID-19. De acordo com Thompson (2011)THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação em massa. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. os meios de comunicação propagam formas simbólicas que são compreendidas em seus contextos da vida social e seus sentidos compartilhados pelos ouvintes. Nesse movimento, Diego reconheceu o poder ideológico da mídia no estabelecimento de padrões e regras em sociedade, o que afetou as relações familiares, em especial de famílias negras, de como se relacionavam e buscavam se proteger, como também as relações de autocuidado entre os mais velhos e os mais novos. Diego, no turno 180, descreveu que, facilmente, as pessoas que se gripavam ou tossiam eram associadas a casos de COVID-19, que as pessoas tinham tal psicológico, com medo de estar doente ou transmitir o vírus. Para Duarte et al. (2020)DUARTE, M. D. Q.; SANTOS, M. A. D.; LIMA, C.; GIORDANI, J. P.; TRENTINI, C. M. COVID-19 e os impactos na saúde mental: uma amostra do Rio Grande do Sul, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, p. 3401-3411, 2020. DOI: https://doi.org/gk7mtp.
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, as informações sobre a pandemia e seus contextos afetaram a saúde mental da população, com o desenvolvimento de transtornos mentais e comportamentais, em razão do impacto na renda familiar e do excesso de informações negativas com os números de infectados e mortos. Por sua vez, a mídia, com o aporte do conhecimento científico, impactou as relações sociais e familiares e ações cotidianas, em especial, da população negra, uma vez que, qualquer sintoma em comum com o do coronavírus promoviam pensamentos de que poderiam estar contaminados com o vírus. Muitas vezes, os meios de comunicações foram ineficazes com excesso de informações inadequadas e suas interatividades, sem qualquer compromisso com o recorte social de raça, para as análises e propagações de informações, haja vista que a maioria da população é autodeclarada negra no Brasil.

No turno 182, após questionamento do professor no turno 181, sobre o uso de máscara, Diego não consegue identificar como foi estabelecido o uso de máscara, apenas citou ser uma ação que poderia diminuir a contaminação do vírus. Cardoso e Gurgel (2019)CARDOSO, D.; GURGEL, I. Por uma educação científica que problematize a mídia. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 25, p. 74-95, 2019. DOI: https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.19850.
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apontam a necessidade de uma educação científica que problematize a mídia, no processo de conscientização frente aos usos políticos e de formação cidadã e crítica. O que se percebe é que o aluno não conseguiu estabelecer uma relação da informação propagada e sua produção pelos agentes da informação e entretenimento. No turno 184, Ingrid relatou que não sabia quem determinou a regra, semelhante a Diego no turno anterior, porém, que viu no jornal que era obrigatório e, em seguida, virou senso comum. Os jornais e jornalistas, deliberadamente ou não, propagam uma visão de ciência como portadora de verdades indiscutíveis, como também, uma concepção de ciência isenta de discussões e conclusões quase instantâneas (Cunha, 2008CUNHA, M. B. Concepções de ciência no jornalismo: uma análise da divulgação científica em jornais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, 2.; ENCONTRO NACIONAL DE INTERAÇÃO E LINGUAGEM VERBAL NÃO VERBAL, 2008. São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2008. p. 1-11. Disponível em: http://tinyurl.com/2hrv896z. Acesso em: 28 dez. 2022.
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). Tais meios de comunicação conseguem implicar consequências nos discursos dos ouvintes e leitores e suas participações nas atividades de ensino, e nos processos sociais diários. É possível inferir como as questões étnico-raciais são diluídas, ou até mesmos esquecidas, quando é discutida qualquer questão social e de saúde na mídia, como ocorreu no período pandêmico.

No turno 192, Diego relatou como percebeu as mudanças sociais com a COVID-19, fechamento de estabelecimentos, restrições para ficar fora de casa, uso constante de álcool gel, máscara e outros cuidados. Todas essas ações foram realizadas por um sujeito indeterminado, por eles, segundo Diego. Há a necessidade de um olhar crítico sobre as produções da mídia, no uso da linguagem aos ouvintes e leitores, nos recursos metafóricos, nas simplificações, para além da mera decodificação técnica das palavras ditas e escritas (Cardoso; Gurgel, 2019CARDOSO, D.; GURGEL, I. Por uma educação científica que problematize a mídia. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 25, p. 74-95, 2019. DOI: https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.19850.
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). É relevante tencionar os meios de comunicação nas aulas de ciências, visando a formação cidadã e crítica, oportunizando aos alunos reconhecer as relações entre os meios comunicacionais, ciência e sociedade, e, consequentemente, as intencionalidades explícitas e implícitas na manutenção das desigualdades sociais e raciais. Desta forma, os estudantes têm a chance de compreender os interesses políticos, econômicos e ideológicos pelos agentes da informação e entretenimento, que não atuam em favor de causas efetivamente públicas e nem com a afirmação da diversidade étnicoracial.

A seguir, apresenta-se o extrato 2, em continuidade à discussão e análise das interações e discursos sobre o vírus da COVID-19, o conhecimento científico e o ensino remoto.

Extrato 2 – Sobre o vírus da COVID-19, o conhecimento científico e o ensino remoto

Turno 209 – Isis: Primeiro, pelo que eu sei, a ciência criou o vírus para combater outra doença, aí o vírus começou a contaminar em determinado país e foi se espalhando. A ciência não queria revelar que ele era tão grave assim, mas depois teve um grande poder midiático sobre o vírus que matava e tinha que ficar em quarentena e tudo mais. Aí com o tempo viram que isso não estava funcionando, então a ciência arrumou meios de prevenção do vírus para a gente poder viver em sociedade novamente. Viram que não estava funcionando de novo, aí tentaram uma nova forma de... Como que fala… deixar o país do jeito que tá, mas não do jeito que tá, porque o vírus ainda está aí contaminando e matando um monte de gente. Tentaram achar uma cura, mas essa cura não tá sendo aplicada, as vezes tá sendo aplicada, mas não tá funcionando, estão inventando várias vacinas, mas ninguém sabe se essas vacinas fazem efeito, mas todo mundo tá acreditando nisso. É tanta informação sobre essa pandemia que é difícil assimilar tudo […].

Turno 213 – Diego: Aí assim, pensando, vindo assim na cabeça, eu sou muito... Assim, uma pessoa me conta uma coisa e vem na minha cabeça já imaginando tudo. Na minha cabeça, por causa da sociedade, vem um homem branco mexendo com aqueles produtos químicos, inventando as coisas, isso é aquilo outro.

Turno 215 – Isis: Na minha cabeça, a imagem de ciência é um homem em um laboratório analisando várias pesquisas e dados que encontrou e comparando com outros. Esse dia estava estudando sobre... Esqueci, ah, sobre os microrganismos, e todo mundo veio na teoria do outro e fazer aquela teoria porque tinha uma dúvida que não tava certa, até que chegou a um ideal que foi comprovado não só por um, mas por muitos, e chegaram em uma igualdade sobre uma opinião.

Turno 222 – Professora: Valeska?

Turno 223 – Ingrid: A Valeska não tá aqui não, a internet dela deve ter caído.

No turno 209, a Isis argumentou que a Ciência foi a criadora do vírus da COVID-19 e, depois, a própria Ciência buscou a cura, e a mídia, que propagou que o vírus poderia matar, e por último, que houve excesso de informações na pandemia. Em resumo, a Isis apresenta a fake-news de que a Ciência criou o vírus, em seguida, omitiu-se. Cunha e Chang (2021)CUNHA, M. B.; CHANG, V. R. J. Fake science: uma análise de vídeos divulgados sobre a pandemia. Amazônia: revista de educação em ciências e matemática, Belém, v. 17, n. 38, p. 139-152, 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/5ap3bxfn. Acesso em: 27 fev. 2024.
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afirmam que as notícias e informações falsas foram constantes no período pandêmico, por meio do compartilhamento de mensagens e vídeos nas redes sociais, que exploravam elementos de afetividade, credibilidade, religiosidade, falsidade, verdade e persuasão. O que provocou compreensões errôneas e o negacionismo da ciência e da tecnologia, e os seus impactos na sociedade, com os seus pontos de convergência com a mídia e os processos educativos. Tais compreensões se apresentam nos discursos dos jovens negros e traz a urgência de discutir o papel da ciência, tecnologia, mídia e as relações étnico-raciais e suas interpelações. Importa dizer que, na atualidade, é pertinente que o professor e a professora de ciências discutam as notícias falsas, ou seja, as fake news, uma vez que a ausência do letramento científico pode ocasionar uma tomada de decisão inadequada pelos estudantes, enfretamento do genocídio do povo negro (Nascimento, 1978NASCIMENTO, A. Genocídio do negro no Brasil: um processo de racismo mascarado. São Paulo: Paz e Terra, 1978.), e o combate à persistência de silêncio e à invisibilidade do falar do negro: a mídia não apresentou negro cientista.

Quando perguntado quais as referências sobre ciência e cientista no período de pandemia, Diego, no turno 213 relatou a imagética pensada, “[...] vem um homem branco mexendo com aqueles produtos químicos, inventando as coisas, isso é aquilo outro”. Camargo (2022)CAMARGO, M. J. R. Denegrindo o ensino de química: a prática do quilombismo na formação docente. 2022. 178 f. Tese (Doutorado em Química) – Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022. afirma ser possível e necessário a apresentação de uma ciência e tecnologia que não seja exclusivamente projetada com base na subjetividade do homem branco em seu laboratório de origem europeia. Nesse sentido, apesar das inúmeras investidas dos grupos de pesquisas e do movimento negro, na atualidade e na história, ainda persiste o racismo científico no campo escolar. Isis, no turno 215, relatou que sua imagem de ciência é um homem em laboratório analisando e comparando pesquisas, dados e teorias.

Para além de implementar a Lei 10.639/03 (Brasil, 2003BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2003. Disponível em: http://tinyurl.com/yc3f3var. Acesso em: 6 nov. 2022.
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), discutir ciência e tecnologia que retratem a contribuição de pesquisadoras negras, por exemplo, é uma alternativa de apresentar uma ciência e tecnologia que dialogue com a maioria da população negra autodeclarada no Brasil (Benite et al., 2018BENITE, A. M. C.; BASTOS, M. A.; VARGAS, R. N.; FERNANDES, F. S.; FAUSTINO, G. A. A. Cultura africana e afro-brasileira e o ensino de química: estudos sobre desigualdades de raça e gênero e a produção científica. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, p. 1-35, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-4698193098.
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). Há necessidade de uma ciência e tecnologia que tenham referenciais negros de forma positivada e assertiva, ademais, que a juventude negra do país possa ter acesso a essas referências, e assim, ser uma possibilidade laboral, visando o ingresso às carreiras acadêmicas e científicas. É pertinente destacar o papel da mídia no silenciamento e invisibilidade e no genocídio do povo negro, no qual os estudantes, ainda hoje, não conseguiram mencionar cientistas negros e negras, tanto os que atuaram em pandemia, quanto além dela. Essa intersecção entre ciência, tecnologia, mídia, educação e ausência de políticas públicas na manutenção da vida da população negra em pandemia da COVID-19 representou a morte física e subjetiva de muitos negros e negras.

Em relação aos Turnos 222 e 223, a professora chama para participação a aluna Valeska, que estava com a câmera e áudio fechados; a aluna Ingrid intervém e diz que a internet pode ter falhado. Diante deste ocorrido e outros semelhantes, compreende-se as limitações das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), o que Saviani e Galvão (2021)SAVIANI, D.; GALVÃO, A. C. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade & Sociedade, Brasília, DF, ano 31, n. 67, p. 36-49, 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/bdzuua4c. Acesso em: 8 nov. 2022.
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relatam sobre a frieza que há entre os participantes de uma atividade síncrona, no qual há o esvaziamento e o empobrecimento das aulas, na redução da forma-conteúdodestinatário da prática pedagógica, assim, dificultada pelas questões tecnológicas e de tempo-espaço. No ensino remoto, mesmo com os professores comprometidos, é dificultoso realizar um trabalho pedagógico consistente, com o aprofundamento dos conteúdos de ensino (Saviani; Galvão, 2021SAVIANI, D.; GALVÃO, A. C. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade & Sociedade, Brasília, DF, ano 31, n. 67, p. 36-49, 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/bdzuua4c. Acesso em: 8 nov. 2022.
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).

Por sua vez, frente a situações de falta de atenção e assiduidade, que envolvem também relações epistemológicas da natureza tecnológica, fica comprometida uma efetiva comunicação e interação entre os participantes da aula, diante das demandas educativas do ensino remoto. Por outro lado, a falha de internet também se dá pelos processos históricos de empobrecimento e falta de acesso aos recursos tecnológicos de informação e interatividade oferecidas à população negra, o que, consequentemente, pode comprometer as demandas sociais de usos das tecnologias digitais. Os negros e negras só estão pobres e sem recursos tecnológicos de qualidade no Brasil e bem como, os mais vitimados pela COVID-19, porque houve a colonização e a escravidão, e não ocorreu processo de reparação e justiça social.

A seguir, encontra-se o extrato 3, em continuidade à discussão e análise das interações e discursos sobre a química de saneantes dos álcoois no combate da COVID-19 e os álcoois como agentes biocidas.

Extrato 3 – Sobre o álcool como saneante da COVID-19

Turno 336 – Professor: Agora é como vocês, com as palavras de vocês, como vocês acham que é a explicação química? Como o álcool atua na limpeza e mata o vírus?

Turno 337 – Isis: Porque certos componentes químicos eliminam coisas que outros componentes não eliminam.

Turno 338Professor: É, mais ou menos.

Turno 339 – Isis: Tipo, não dá para você beber água sanitária porque ela é determinada para desinfetar as coisas. Lá no rótulo diz que as coisas que contém nela são diferentes. Ah sei lá, tá vendo, sou péssima em química.

Turno 341 – Isis: Professor, fala logo, a gente tá tentando adivinhar aqui, mas não tá dando certo.

Turno 342 – Ingrid: Eu acho que é por causa que tem uma acidez, uma composição química que ajuda a matar os vírus.

Turno 343 – Professor: Tá, e aí Diego, o que você acha? É a acidez?

Turno 344 – Diego: Acho que é, eu não sei. As pessoas falam que o álcool em gel ajuda a matar o vírus, igual você falou, que a professora de química da escola tá certa, que a quiboa [marca de uma água sanitária] mata, é igual quando você se machuca e tem que lavar com água e sabão, depois tem que passar um remédio e enfaixar porque isso ajuda a não infeccionar, mas eu não sei o que isso faz.

Turno 347 – Professor: [...] Beleza, então essa representação do vírus... Agora a minha cachorra resolveu latir. Essa aqui é o vírus. Beleza, nessa seta aqui é a proteína S, aqui seria essa primeira capa, um envolto, e aí a reação química que acontece é que o álcool em gel consegue destruir essa capa, que por sua vez a água não consegue destruir essa capa aqui. E aí, uma vez destruída essa capa, acontece a desestruturação do vírus, então as reações químicas que iam acontecer no vírus não aconteceriam mais porque não tem mais essa capa, não tem mais essa proteína S, essa proteína E, porque essas funções, essas proteínas são desestruturadas. Então tá, voltando. Vocês acham que tem alguma relação do porquê o álcool ou o detergente conseguirem desnaturar essa proteína e porque a água não consegue desnaturar essa proteína? O que o álcool tem que a água não tem? O que o detergente tem que a água não tem? Vai, é com vocês.

Turno 348 – Diego: É igual a professor lá da escola falou, a água ‘ajuda’ [dissolver] algumas moléculas, que a água é um solvente, então ela ajuda mais. Já os outros elementos, eu acho que tem, igual a Ingrid falou, algum elemento ácido que faz essa limpeza.

Turno 349 – Professor: Tá bem, então o que é um solvente? O que seria um solvente?

Turno 350 – Diego: Ai, não!

Turno 351 – Professor: Ingrid, o que seria um solvente?

Turno 352 – Ingrid: Pergunta para mim não.

Turno 353 – Professor: Vai Isis, o que seria um solvente? Isis? Camila? Camila, tá aí?

Turno 354 – Camila: Sim.

Turno 355 – Isis: Espera que eu estou comendo. Solvente é o que dissolve outras substâncias, solúvel.

Turno 356 – Professor: Exatamente, pode ser. Então é uma solução...

Turno 368 – Ingrid: É que tipo assim, talvez ele suporte... Não sei, meio que...Tipo assim, uma capacidade máxima. Eu não sei de quê. Vamos dizer assim, que é um ácido, não sei explicar.

Turno 370 – Ingrid: Tipo assim, vamos dizer que o vírus é um de ácido de uma porcentagem, exemplo, aí o álcool em gel tem 50. Aí o vírus já não aguenta, porque passou o que ele suporta, então ele acaba morrendo. Meio que isso, só que não sei explicar certinho.

Turno 371 – Professor: Tá, vai lá, Valeska. Valeska?

Turno 372 – Professora: O microfone da Valeska não está funcionando.

Turno 373 – Professor: Tá. Camila...E aí, Camila, o que você acha que é essa reação química entre o vírus e álcool em gel e o vírus e a água? O que você acha que explica?

Turno 374 – Camila: É que o álcool em gel acaba desgastando o vírus e ele acaba morrendo, e a água, de certa forma, acaba ajudando ele. Acho que é isso.

O professor e a professora iniciaram uma discussão em busca de investigar os conhecimentos prévios dos estudantes de como os álcoois atuam no processo saneante e de agentes biocidas na eliminação do vírus da COVID-19, com a abordagem dos conceitos função alcoólica, solvente, soluto, solução. No turno 336, o professor convoca ao diálogo sobre a atuação dos álcoois como agentes biocidas do novo coronavírus. A Isis, no turno 337, afirmou que os componentes químicos que eliminam o vírus. De acordo com Lima et al. (2020)LIMA, M. L.; ALMEIDA, R. K.; DA FONSECA, F. S.; GONÇALVES, C. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, São Paulo, v. 43, p. 668-678, 2020. DOI: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170552.
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, etanol, de fórmula molecular C2H6O, é um composto orgânico biocida, incolor, tóxico e é encontrado o etanol em gel, com alta viscosidade para evitar incêndios, como um saneante de mãos e de superfícies. A estudante Isis trouxe uma resposta descritiva, isto é, conseguiu estabelecer relações sobre suas características e seus constituintes, com a comparação com outros objetos e compostos, na tentativa de atender a resposta esperada.

No turno 339, Isis realizou uma analogia com a água sanitária, que é usada para desinfetar as coisas e não beber água, por exemplo; assim a composição, que é diferente de outros produtos, determinaria a sua ação. Discutir os conhecimentos químicos é possibilitar que os estudantes explorem símbolos e modelos com o uso de analogias, por exemplo, no sentindo de observar aquilo que não é observável (Pozo; Crespo, 2009POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. A. Aprendizagem e o ensino de ciências: do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. 5. ed. Porto Alegre: Artmed. 2009.). Nesse sentido, a aluna em sua participação engajada buscou dialogar sobre os conceitos e conteúdo de química, com relações de analogias e tentativa de alvo, que são recursos que podem ser explorados nas aulas.

No turno 341, Isis questiona o professor na busca da resposta correta, pois o ato de adivinhar não estava dando certo. O intuito dessa discussão inicial foi que engajassem a participação dos estudantes, sobretudo, as interações discursivas entre professores e alunos no ensino remoto, e consequentemente, a troca de significados. Tais interações discursivas possibilitam a participação ativa e reforça o caráter dialógico e colaborativo das atividades propostas (Mortimer; Scott, 2002MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. Atividade discursiva nas salas de aula de ciências: uma ferramenta sociocultural para analisar e planejar o ensino. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 7, n. 3, p. 283-306, 2002. Disponível em: https://tinyurl.com/3dsyrr38. Acesso em: 28 dez. 2022.
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). A estudante Ingrid, no turno 341, trouxe o elemento acidez, que ajuda a matar o vírus. No entanto, é o modo de ação dos álcoois, sejam as soluções alcoólicas comerciais ou o álcool em gel que, pela desnaturação das proteínas que os compõem, colapsam as membranas celulares do vírus (Lima et al. 2020LIMA, M. L.; ALMEIDA, R. K.; DA FONSECA, F. S.; GONÇALVES, C. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, São Paulo, v. 43, p. 668-678, 2020. DOI: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170552.
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). Percebe-se que os estudantes, quando perguntados sobre o conhecimento científico, em especial, o conhecimento químico, buscam usar o conceito de acidez ou a composição química, mesmo com a falta de indícios sobre a compreensão do que é a acidez ou composição química. É uma tentativa de se apropriarem da linguagem científica no campo escolar.

No turno 344, Diego realizou uma analogia do álcool em gel com outro saneante que pode ajudar a matar o vírus e seu modo de atuação, com água e sabão e a água sanitária. Diferente dos álcoois, cuja ação no combate ao vírus é na desnaturação de proteínas e o consequente colapso das membranas celulares, o sabão e água sanitária, que possuem como principais ingredientes ativos os peroxigênios, o cloro e seus derivados, respectivamente, atuam na oxidação de proteínas, lipídeos e carboidratos, ocasionando a destruição dos componentes essenciais e membranas (Lima et al. 2020LIMA, M. L.; ALMEIDA, R. K.; DA FONSECA, F. S.; GONÇALVES, C. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, São Paulo, v. 43, p. 668-678, 2020. DOI: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170552.
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). Nota-se que o estudante buscou estabelecer uma relação entre um saneante que estava sendo o objeto de estudo com outro saneante, que possui um diferente modo de ação, mas com a analogia posta, atuam também na eliminação do vírus.

Nesse movimento investigativo, os estudantes, em suas participações engajadas, tentaram discutir sobre o conhecimento químico. No movimento circular do conhecimento químico foi possível estimular idas, voltas e retomadas da apropriação conceitual do conhecimento químico, em especial, explorar as dimensões submicroquímica e fenomenológica (Camargo, 2022CAMARGO, M. J. R. Denegrindo o ensino de química: a prática do quilombismo na formação docente. 2022. 178 f. Tese (Doutorado em Química) – Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.).

No turno 348, o estudante Diego afirmou que a água pode contribuir para dissolver moléculas e é um solvente, o que difere de outras entidades químicas e suas características. A solução química alcoólica pode interferir nas interações e romper as ligações intermoleculares da proteína do vírus, como as ligações de hidrogênio que existem entre os resíduos de aminoácidos, a partir da formação de novas interações mais fracas, como as hidrofóbicas forças de London, que acabam também por se romper. Logo, com as moléculas da água junto com as de etanol tem-se um desarranjo estrutural nas proteínas afetadas e perda das suas atividades para, assim, o vírus deixar de ser eficiente com a nova formação das forças intermoleculares fortes, as ligações de hidrogênio (Lima et al., 2020LIMA, M. L.; ALMEIDA, R. K.; DA FONSECA, F. S.; GONÇALVES, C. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, São Paulo, v. 43, p. 668-678, 2020. DOI: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170552.
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). Diego trouxe o elemento solvente, utilizando esse conceito químico para falar sobre o processo de desestruturar o vírus, explicação pertinente à discussão dos álcoois como agentes biocidas.

No turno 368, Ingrid, ainda com dúvida, buscou estabelecer uma explicação sobre uma suposta capacidade máxima para eliminar o vírus, e continua no turno 370, em uma explicação hipotética como se o vírus tivesse uma determinação de ácido. O que a aluna Ingrid pode ter tentado argumentar em sua tentativa explicativa foi acerca da concentração alcoólica comumente encontrada nos produtos de limpeza e higiene comerciais, e como essas variações de concentração podem influenciar na eficácia do álcool na limpeza. As diferentes concentrações alcoólicas podem abranger um largo espectro microbiano, não apenas ao SARS-CoV-2, sendo recomendado concentrações entre 60 e 90%, com um tempo médio de vinte a trinta segundos de fricção das mãos, ou de efetivo contato com a superfície (Lima et al., 2020LIMA, M. L.; ALMEIDA, R. K.; DA FONSECA, F. S.; GONÇALVES, C. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, São Paulo, v. 43, p. 668-678, 2020. DOI: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170552.
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).

Já no turno 374, Camila descreveu que o álcool em gel desgasta e elimina o vírus da COVID-19 e que a água pode ajudar nesse processo. A aluna, de forma rápida, sintetizou sua compreensão sobre o processo de atuação do álcool como agente biocida do vírus em questão. Nesse movimento, frente às experiências do ensino remoto em âmbito nacional, e da participação dos alunos, como também a experiência discutida e analisada nesta investigação, é pertinente uma reflexão envolvendo os turnos citados a seguir, e sobre o uso e a apropriação das tecnologias de informação e comunicação no ensino remoto, e as interações discursivas nas aulas de ciências, considerando, também, os sujeitos sociais envolvidos nesse processo educativo. Percebeu-se uma frieza comunicacional, conceito cunhado por Saviani e Galvão (2021)SAVIANI, D.; GALVÃO, A. C. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade & Sociedade, Brasília, DF, ano 31, n. 67, p. 36-49, 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/bdzuua4c. Acesso em: 8 nov. 2022.
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, nas interações em tempo e espaço online do ensino remoto. Assim como nesse turno 374 por Camila, nos turnos 350, 352 e 554, os alunos Diego, Ingrid e Isis deram indícios de pouca disponibilidade de interação e diálogo no ensino remoto, em especial, para discussão de conceitos. Apesar de que no turno 356, a estudante Isis relatou que estava comendo e descreveu o conceito de solvente, que tinha sido previamente pesquisado na internet.

À medida que foram feitas investidas didáticas pelos professores para discutir os conceitos químicos e os processos de atuação do álcool na desestruturação do vírus, foi observado que os estudantes não se apropriavam ou acompanhavam as argumentações e percursos investigativos. Constantemente, era necessário solicitar a participação e o diálogo dos alunos frente às atividades propostas. Às vezes, era perguntado o que compreendiam, o que inferiam sobre determinados contextos, no intuito de responsabilizar e comprometer a participação. Em vários momentos era pedido que os alunos abrissem suas câmeras e áudios, que falassem, para além de estarem escutando os professores, ou apenas conectados na aula, ou até mesmo exercendo qualquer outra atividade, como por exemplo, no turno 356, quando Isis afirma que estava comendo. Ou quando o microfone não funciona, como no turno 372, ocorrido com Valeska.

De acordo com Peixoto (2022)PEIXOTO, J. Tecnologias na mediação do trabalho pedagógico: uma nova perspectiva didática? Série-Estudos, Campo Grande, v. 27, p. 39-60, 2022. DOI: https://doi.org/mtv4.
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, a organização do trabalho pedagógico e curricular na pandemia foi afetada pelas múltiplas determinações que dificultaram os processos educativos nos sistemas de ensino. O ensino remoto e a respectiva ação docente foi implementado em regime emergencial para minimizar o contágio pelo novo coronavírus e, por sua vez, na conjuntura pandêmica, estava estritamente condicionado a elementos que constituíram essa experiência, como a configuração dos equipamentos disponibilizados para, ou de propriedade, dos sujeitos envolvidos, a velocidade da internet, as ferramentas e suportes tecnológicos, as condições sanitárias públicas e privadas, o suporte e acompanhamento de estudos por parte das famílias, o domínio docente e discente das tecnologias digitais, as condições domiciliares de estudo, o nível de escolaridade dos responsáveis pelos estudos, entre outros (Peixoto, 2022PEIXOTO, J. Tecnologias na mediação do trabalho pedagógico: uma nova perspectiva didática? Série-Estudos, Campo Grande, v. 27, p. 39-60, 2022. DOI: https://doi.org/mtv4.
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).

Nota-se que os alunos dão mais ênfase às dimensões submicroquímica, fenomenológica, com a falta da dimensão representacional, e pluriversal, o que dificultou uma circularidade dessas dimensões nas aulas remotas de química (Camargo, 2022CAMARGO, M. J. R. Denegrindo o ensino de química: a prática do quilombismo na formação docente. 2022. 178 f. Tese (Doutorado em Química) – Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.). As ausências dessas dimensões podem ser explicadas pelas próprias limitações do ensino remoto, com o esvaziamento do ensino e na redução do conteúdo-forma-destinatário (Saviani; Galvão, 2021SAVIANI, D.; GALVÃO, A. C. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade & Sociedade, Brasília, DF, ano 31, n. 67, p. 36-49, 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/bdzuua4c. Acesso em: 8 nov. 2022.
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). Por exemplo, toda a discussão planejada pelos professores sobre a explicação do conhecimento químico acerca de como o álcool atua como agente saneante e os conceitos envolvidos, como função alcoólica, solvente, soluto e solução, dimensão representacional, foram limitados com o ensino remoto. Na dimensão pluriversal é dificultado um debate mais profundo sobre o conhecimento científico e da população africana e da diáspora, que pudesse realizar relações complexas entre áreas distintas do conhecimento, saberes e fazeres, devido à limitação de tempo, espaço e condições precárias de acesso e participação, que vão desde a rotina diária de manutenção da vida em pandemia, até as dificuldades de acesso e permanência nas atividades do projeto. Tais condições objetivas e materiais são desmotivadoras, não só para o estudante que participa, como, também, para o professor e a professora.

Haja vista as dificuldades de apresentar as reações e os fenômenos químicos e, consequentemente, a respectiva compreensão; logo, é de se considerar as limitações materiais e objetivas de uso e apropriação do celular (o recurso utilizado pelos estudantes) e do computador (pelos professores), como a ausência e/ou precariedade de acesso à internet e a aparatos tecnológicos, por exemplo. Além disso, em virtude das limitações da própria plataforma de videoconferência, de processos formativos, das condições de vida dos sujeitos envolvidos no contexto pandêmico, considera-se a necessidade de outros aparatos tecnológicos, plataformas adequadas e de formação para os usos e apropriações de tecnologias digitais, assim como reflexões sobre as condições concretas e objetivas, sem dicotomizar sujeito e tecnologia, na busca de problematizar e contemplar essa tríade de destinatário-conteúdo-forma na aula remota de química.

Considerações finais

Os resultados apontam que foi possível discutir e analisar o ensino remoto de química dos álcoois, bem como discutir sobre os elementos da mídia, ciência e pandemia com a implementação da educação para as relações étnico-raciais, no contexto do projeto. A Intervenção Pedagógica oportunizou momentos dialogados sobre relações em tempos de pandemia, entre os meios de comunicação e conhecimento científico e como essas características influenciaram o cotidiano da população negra. Foi possível discutir o conhecimento químico, apesar das dificuldades do ensino remoto, com base em como os álcoois atuam como agente de limpeza e higienização nesse período e percebeu-se que os estudantes conseguiram estabelecer relações entre suas vivências e relatos, à medida que buscavam argumentar sobre o combate à Covid-19, com as informações científicas propagadas por diferentes veículos de comunicação. Assim, com o deslocamento epistêmico do currículo, foi possível atrelar as discussões sobre conhecimento químico, junto às vivências de jovens negros e de periferia, frente o quadro pandêmico e suas limitações do ensino remoto.

No tocante aos aspectos do ensino remoto, considerou-se que foi uma alternativa possível de estabelecer o diálogo no momento de pandemia recente e de falecimentos diários pela COVID-19. O ensino remoto de química fica limitado em relação ao conteúdoforma-destinatário, como também nas diferentes dimensões do conhecimento químico e os movimentos espirais de circularidade de tais dimensões, diante da realidade material e concreta dos sujeitos nos usos e apropriações das TIC.

Agradecimentos

Os autores agradecem o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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    A autora bel hooks afirma que seu nome social é escrito com as iniciais minúsculas, como forma de desafiar as convenções linguísticas e dá destaque ao conteúdo de sua escrita e autoria.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2023
  • Aceito
    09 Fev 2024
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