Open-access O modelo atômico de Thomson no PNLD 2021: uma crítica a partir de subsídios da epistemologia histórica de Gaston Bachelard

Thomson’s atomic model in PNLD 2021: A critique based on Gaston Bachelard’s historical epistemology

Resumo

O atomismo é indispensável para a química moderna, carregando diversos aspectos epistemológicos e históricos de tal ciência. No ensino, o conceito de átomo permeia os currículos de maneira transversal, sendo abordado diretamente no conteúdo de modelos atômicos. Tendo isso em vista, esse artigo apresenta uma análise qualitativa do modelo atômico de Thomson apresentado pelos livros didáticos de ciências do ensino médio do PNLD 2021. Primeiro, o desenvolvimento histórico dos trabalhos de Thomson foi analisado a partir de fontes históricas primárias e secundárias, utilizando a epistemologia histórica de Gaston Bachelard. Em seguida, procedeu-se à avaliação do rigor histórico-filosófico do material dos livros didáticos. Identificou-se um modelo de Thomson distorcido, cujo desenvolvimento histórico é apresentado de maneira superficial e descontextualizada, omitindo elementos epistemológicos relevantes para a sua compreensão crítica. Com base nas análises, são apontadas perspectivas para ampliar a exploração de aspectos histórico-epistemológicos do modelo de Thomson no ensino.

Palavras-chave: Ensino de química; Atomismo; Livro didático; História e filosofia da ciência; Joseph John Thomson

Abstract:

Atomism is an indispensable doctrine for modern chemistry, representing many epistemological and historical aspects of this science. In chemical education, the concept of atom is present in curricula in a latent manner, taking a central part in the content related to atomic models. Thus, this article presents a qualitative analysis of Thomson’s atomic model found in high-school science textbooks participating in the PNLD 2021. First, an analysis of the historical development of Thomson’s work was conducted through primary and secondary sources, which were analyzed through Gaston Bachelard’s historical epistemology. Next, based on such analyzes, the historical-philosophical rigor of the textbooks was evaluated. A distorted and superficial form of Thomson’s model and of its historical development was found, omitting epistemological elements necessary for its critical comprehension. Based on the criticism brought forward, we propose perspectives that may help with the exploration of epistemological and historical aspects of Thomson’s atom.

Keywords: Chemistry teaching; Atomism; Coursebook; History and philosophy of science; Joseph John Thomson

Introdução

O átomo é um conceito fundamental da química contemporânea, permeando todas as subáreas de tal ciência (Pereira; Silva, 2018). Dada a sua importância para o conhecimento químico, o conteúdo dos modelos atômicos mostra-se como um ponto central para o ensino de tal ciência. Por esse motivo, diversos estudos vêm se debruçando sobre o assunto, apontando problemáticas que o seu ensino apresenta, bem como potencialidades ainda não exploradas em toda a sua extensão (Chaves; Santos; Carneiro, 2014; Silva; Machado; Silveira, 2015).

Os modelos atômicos no ensino de química são apresentados como um conteúdo de História da Ciência que consiste, em linhas gerais, em uma apresentação relativamente linear do desenvolvimento histórico da teoria atômica a partir de um conjunto limitado de modelos. Essa apresentação histórica não vem isenta de problemas. Pode-se questionar, por exemplo, a noção de linearidade que a organização do conteúdo cria, ou então a acurácia histórica com a qual os modelos e fatos são apresentados (Chaves; Santos; Carneiro, 2014). Por outro lado, o atomismo também possui uma forte dimensão filosófica, a qual é muito pouco explorada no ensino e na pesquisa em ensino de ciências.

Dado os apontamentos acima, propomos uma análise crítica dos aspectos históricos e filosóficos dos modelos atômicos em sua forma didatizada apresentada pelos livros didáticos de ciências. Optamos por restringir nossa análise ao modelo proposto por J. J. Thomson (1856-1940), uma vez que, conforme demonstraremos, tal modelo é subaproveitado em seu conteúdo histórico-filosófico. A versão simplificada que é ensinada nos livros esconde, por exemplo, que o modelo de Thomson foi um dos primeiros a fornecer uma raiz matemática para a lei periódica de Mendeleev (Bachelard, 2009). Assim, uma exploração do desenvolvimento histórico de tal modelo, bem como das implicações filosóficas que ele carrega, poderá trazer contribuições relevantes para o ensino de química.

Para fundamentar nossa análise, buscaremos subsídios na filosofia de Gaston Bachelard (1884-1962). Tal referencial teórico mostra-se adequado, pois a epistemologia histórica bachelardiana permite relacionar o desenvolvimento histórico da ciência com as transformações epistemológicas sofridas pelo conhecimento científico. Sendo assim, partindo de uma análise historiográfica, poderemos entender de maneira profunda os impactos do modelo de Thomson, isto é, o que a sua proposição significou para o conhecimento científico de sua época.

Nossa argumentação se estruturará da seguinte maneira. Primeiro, faremos um apanhado dos trabalhos de Thomson e do desenvolvimento histórico do seu modelo. Para isso, nos basearemos em obras originais do autor, com o apoio de fontes secundárias como os trabalhos de Lopes (2009) e Chayut (1991). Em seguida, buscaremos, na filosofia de Bachelard, subsídios para a compreensão do átomo. Para tal, nos baseamos, principalmente, nos livros Atomistic Intuitions (Bachelard, 2020) e O Pluralismo Coerente da Química Moderna (Bachelard, 2009). A partir desse referencial, poderemos analisar as dimensões filosóficas e históricas do átomo de Thomson, bem como de sua relação com a doutrina atomística. A partir disso, poderemos proceder para a análise dos livros didáticos. Optamos por realizar a leitura crítica de todas as sete coleções do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2021 (objeto 2), dado o impacto que tais livros didáticos possuem na educação brasileira. Por fim, utilizaremos os subsídios filosóficos e históricos discutidos nas primeiras seções para estabelecer uma crítica ao modelo atômico de Thomson que se apresenta nos livros didáticos, apontando perspectivas que podem trazer melhorias para o seu ensino.

Panorama Histórico sobre o Átomo de Thomson

Segundo a contemporânea historiografia da ciência, ao tratarmos de eventos relacionados ao desenvolvimento de ideias científicas, é preciso dar atenção para o contexto da época, a fim de compreender como se deu o desenvolvimento gradual das ideias e quais foram as suas influências, dentro do contexto científico e social daquele momento. Só assim poderemos construir uma interpretação balanceada dos fatos que nos levarão à construção de uma visão de desenvolvimento das ciências baseada em rupturas e continuidades (Kragh, 1987).

Com a proposição da ideia de átomo por John Dalton (1766-1844) no início do século XIX, temos a abertura de um período onde os químicos se preocuparam com a constante medição da massa fundamental dos elementos, se utilizando do átomo como um constructo teórico para a racionalização de suas medidas. As ideias de Dalton não foram aceitas universalmente, pois existiam aqueles que eram mais fiéis à tradição empirista dominante nessa época. Esses químicos valorizavam as propriedades mensuráveis (como a massa e a densidade) em detrimento de modelos hipotéticos. Ao realizarem as medições do peso atômico dos elementos, preferiam chamá-los de “pesos equivalentes” (Oki, 2009).

No mesmo período em que ocorriam as disputas entre os atomistas e equivalentistas, apareceram as primeiras evidências da periodicidade com a análise do peso atômico de elementos com propriedades similares. Alguns cientistas, como Lothar Meyer, William Odling e Dimitri Mendeleev tentaram organizar os elementos de maneira em que uma lei periódica ficasse evidente. A tabela periódica de Mendeleev, concebida por volta da década de 1870, foi a que eventualmente ganhou mais destaque na comunidade científica por conter previsões acerca de elementos químicos descobertos nos anos seguintes (Gordin, 2012; Scerri, 2015).

Em meio a esses tempos turbulentos, Joseph John Thomson teve uma rica carreira acadêmica com grandes contribuições para a química. Nascido no ano de 1856, em Cheetham, uma pequena cidade próxima a Manchester, na Inglaterra, iniciou seus estudos precocemente, ao ingressar no Owens College em 1870, quando tinha apenas 14 anos, sob recomendação de seu pai. O principal desejo da família era que Thomson se tornasse um aprendiz em uma firma local de engenharia após seus estudos, mas com a morte de seu pai dois anos depois, em 1872, o jovem abandonou essa ideia (Chayut, 1991; Lopes, 2009).

No Owens College teve uma formação em física e matemática, mas também foi lá que teve o seu primeiro contato com ideias importantes para a química, graças a dois de seus professores, Henry Roscoe (1833-1915) e Balfour Stewart (1828-1887). Roscoe atuava como professor de química e havia sido inicialmente treinado no laboratório de Bunsen, que considerava a física como uma ferramenta importante para os trabalhos dos químicos. Estudioso sobre o desenvolvimento da teoria atômica de Dalton, apresentou discussões acerca desse modelo para o jovem Thomson. Balfour Stewart era professor de física, apesar disso, tinha interesse em estudar combinações químicas. Foi responsável pela introdução de Thomson ao mundo da pesquisa científica com seu curso prático em laboratório, onde os alunos poderiam escolher trabalhar em projetos de temas variados. Ademais, também é possível que Stewart tenha apresentado ao jovem estudante o modelo de átomo vórtex proposto por Lorde Kelvin em 1867, visto que ele publicou um livro, The Unseen Universe, onde explorava esse modelo em 1875. O modelo atômico de Kelvin colocava o átomo como uma entidade formada por uma série de tubos vórtices fechados contidos em um éter infinito, homogêneo e sem fricção. Além disso, esse modelo está associado aos experimentos com ímãs flutuantes em campos magnéticos de polaridade oposta executados por Alfred Marshal Mayer (1836-1897), cuja presença é recorrente nos trabalhos desenvolvidos por Thomson ao longo de sua carreira científica (Chayut, 1991).

Influenciado por seus professores, Thomson tentou concorrer a uma bolsa no Trinity College, em Cambridge. Conseguiu ingressar na instituição em sua segunda tentativa, quando tinha apenas 19 anos e lá aprofundou seus conhecimentos em física e matemática. Passou grande parte de sua carreira associado a essa instituição, onde conseguiu alcançar cargos administrativos notáveis. Alcançou notabilidade na comunidade científica internacional com a publicação, em 1883, de um suplemento do Tratado de Eletricidade e Magnetismo, de Maxwell, intitulado Recent Researches in Electricity and Magnetism, antes mesmo de publicar sobre seus experimentos com raios catódicos e de propor o seu modelo atômico (Lopes, 2009).

O início de sua carreira é marcado por trabalhos relacionados ao eletromagnetismo, mas seu contato com a química durante a adolescência, o deixou fascinado por questões relacionadas à valência e às combinações químicas. Logo passou a se dedicar a desenvolver um modelo de átomo que pudesse explicar tais questões. Em A Treatise on the Motion of Vortex Rings, publicado em 1883, Thomson (1968) refinou o modelo do átomo vórtex para utilizá-lo na explicação de combinações químicas. Nessa obra ele relacionou o conceito de valência com o número de anéis vórtices que compunham o átomo e definiu que o número máximo de anéis seria 6 e, portanto, esse também seria o número máximo de ligações que um átomo poderia realizar. Apesar de tratar do modelo de Kelvin no desenvolvimento desse trabalho, Thomson utilizou diversos conceitos provenientes dos estudos de Dalton, como a regra da simplicidade e o uso de terminologia daltoniana (como as palavras díades e tríades). Alguns anos depois, ele abandonou o modelo do átomo vórtex por ele ser muito complexo e de difícil utilização (Chayut, 1991; Lopes, 2009).

No início da década de 1890, Thomson passou por um momento de transição na sua metodologia de trabalho: ele abandonou a abordagem mais matematizada preferida pelos físicos para apresentar um trabalho baseado na mecânica clássica, com modelos que possuíam um apelo visual e que tinham como ênfase a relação entre o eletromagnetismo e as transformações químicas. Essa decisão o afastou da nova geração de físicos que estava surgindo na Europa, mas possibilitou que ele se aproximasse da química, uma disciplina onde símbolos e modelos pictóricos facilitam a teorização sobre seus fenômenos de interesse. Em 1897, iniciou seus experimentos com os tubos de Crookes, um equipamento já bastante conhecido por cientistas da época, capaz de gerar raios catódicos. Na época, a natureza desses raios não era totalmente compreendida (Chayut, 1991; Lopes, 2009).

Essa mudança de abordagem e os resultados de seus experimentos com os tubos de Crookes se mostram presentes no livro Eletricity and Matter, publicado em 1904. Ao analisarmos o livro, percebemos que Thomson utilizou de inúmeras técnicas experimentais para a investigação da relação entre carga e matéria, como a eletrólise de soluções e ionização de gases (Thomson, 1904a). Os seus experimentos com os tubos de Crookes são descritos em uma seção do Capítulo 4 chamado Mass of the Carriers of Eletricity. Em tal trecho da obra, Thomson descreveu como encontrou a verdadeira natureza dos raios catódicos ao identificar a velocidade das partículas que o compunham, ao desviá-las com a utilização de forças eletromagnéticas. A partir da velocidade, foi capaz de deduzir a razão da carga e massa (representada como e/m) dessas partículas. Esse experimento foi realizado múltiplas vezes, variando a composição dos gases e dos eletrodos no tubo e o seguinte fato foi observado: “Esses experimentos me levaram ao notável resultado onde o valor de e/m é o mesmo seja qual for a natureza do gás no qual a partícula pode ser encontrada, ou qualquer seja a natureza do metal no qual é suposto de que ela se origina." (Thomson, 1904a, p. 86, tradução nossa).

As partículas foram nomeadas de 'corpúsculos' e Thomson determinou que estas eram os constituintes da eletricidade negativa. No livro, é relatado que foram realizadas tentativas para obter a razão e/m dos constituintes da eletricidade positiva, mas sem muito sucesso, visto que os valores obtidos variavam com a mudança de gás e de metal do eletrodo no tubo.

Thomson (1904a) apresentou a primeira proposta de seu modelo atômico, composto por corpúsculos, no Capítulo 5, The Constitution of the Atom. Esse modelo de átomo tinha como base uma esfera de massa positiva com corpúsculos distribuídos em anéis concêntricos em seu interior. A parte positiva do átomo teria uma massa insignificante, estando a maioria da massa contida nos corpúsculos, por estes atraírem mais éter. Assim, seria possível determinar o número de corpúsculos de um átomo a partir do seu peso atômico.

Além disso, os corpúsculos estariam em movimento no interior do átomo, distribuídos de maneira equidistante com uma conformação dependente do número deles em cada anel. Thomson se inspirou nas medidas de distâncias entre os ímãs flutuantes verificadas nos experimentos realizados por Mayer (figura 1).

Figura 1
Distribuição de ímãs flutuantes segundo o experimento de Mayer

Quando um anel fosse ocupado por muitos corpúsculos, um anel interno seria formado para garantir a estabilidade do átomo. Desse modo, os anéis internos teriam um número menor de corpúsculos, enquanto aqueles com uma quantidade maior de partículas estariam localizados mais próximos da superfície do átomo (Thomson, 1904a). A Lei Periódica estaria associada à similaridade na maneira em que os corpúsculos dos átomos de diferentes elementos se organizavam:

Quando o número de imãs aumenta, o arranjo triangular desaparece por um tempo, mas reaparece com vinte imãs, e novamente com trinta e cinco, o arranjo triangular aparecendo e desaparecendo é de certa maneira, análogo ao comportamento dos elementos na Lei Periódica (Thomson, 1904a, p. 118, tradução nossa).

Alguns átomos podem possuir anéis externos mais ou menos estáveis, dependendo da distribuição de seus corpúsculos internos; a estabilidade dos anéis também pode ser afetada por condições do meio. Os átomos com anéis menos estáveis teriam uma maior tendência de perder corpúsculos ao se chocarem com outros átomos, sendo assim considerados eletropositivos. Aqueles com anéis mais estáveis, poderiam receber corpúsculos livres, sendo considerados eletronegativos. Vale ressaltar que, para Thomson (1904a), a eletropositividade ou eletronegatividade de um átomo não seria uma característica inerente do seu elemento. Para ele, essas classificações seriam relativas, a fim de admitir a existência de ligações químicas entre átomos de um mesmo elemento. Portanto, mesmo em uma ligação entre dois átomos de hidrogênio, teríamos um átomo eletropositivo (que teria sido aquele que perdeu o corpúsculo) e um átomo eletronegativo (que recebeu o corpúsculo), de modo que a diferenciação entre qual átomo desempenharia determinado papel se daria por influência de condições do meio. Alguns átomos teriam anéis tão instáveis que poderiam perder mais de um corpúsculo, o que explicaria valências superiores a um.

Foi dessa maneira que Thomson (1904a) buscou relacionar seu átomo com o conceito químico de valência. O autor chegou até a considerar os mecanismos que levariam à combinação de átomos com valências diferentes:

Se os átomos A fossem do tipo que perdem dois corpúsculos, e os átomos B o mesmo tipo de antes [que perdem apenas um corpúsculo], então os átomos A ganhariam a carga em duas unidades positivas, os átomos B uma carga de uma unidade negativa de eletricidade. Assim, para formar um sistema neutro, dois dos átomos B devem combinar com um do A e assim o composto AB2 seria formado (Thomson, 1904a, p. 131, tradução nossa).

Thomson continuou desenvolvendo seu modelo atômico, como podemos observar em suas publicações seguintes. Em On the structure of the atom: an investigation of the stability and periods of oscillation of a number of corpuscles arranged at equal intervals around the circumference of a circle; with application of the results to the theory of atomic structure (Thomson, 1904b), ele apresentou as bases matemáticas para a dedução da distribuição dos corpúsculos em átomos de diversos tamanhos. Já no livro The Corpuscular Theory of Matter, publicado em 1907, houve um detalhamento de seus experimentos e a apresentação do modelo em sua forma mais madura (Thomson, 1907).

Muitos químicos, especialmente no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, estavam insatisfeitos com o estado da química nesse período, sendo a falta de princípios fundamentais na disciplina e o foco no empirismo alguns dos motivos que levavam a essa insatisfação. Dessa maneira, o trabalho de Thomson foi bem recebido nesses países, tendo sido logo utilizado como base para a construção de uma nova química teórica. A influência de Thomson foi sentida por cerca de vinte anos, desde 1903 até 1923, em um momento em que a física teórica ainda não se mostrava capaz de explicar a valência e a sua relação com a estrutura atômica. Essa influência inspirou Gilbert N. Lewis (1875-1946) a desenvolver a sua teoria de valência e a concepção da ideia de ligação covalente, levando a grandes mudanças para a química, em especial a química orgânica (Chayut, 1991).

Porém, o trabalho de Thomson começou a perder popularidade entre os físicos logo nos primeiros anos após a sua publicação. Isso ocorreu devido à mudança de perspectiva na física teórica com a virada para o século XX, com a substituição dos preceitos da mecânica clássica pelo eletromagnetismo nascente, que eventualmente levou ao desenvolvimento da mecânica quântica. Consequentemente, muitos físicos viam o modelo de Thomson como algo pouco refinado por se apoiar demais nas concepções da mecânica clássica. Esse foi o caso do jovem Niels Bohr (1885-1962), que apesar de ter inicialmente trabalhado em um pós-doutorado com o cientista mais velho em 1911, logo se afasta dos métodos de Thomson por achar que eles são incoerentes. Alguns anos depois, em 1913, Bohr publica os artigos em que descreveu seu modelo atômico com orbitais quantizados, inspirado pelo trabalho de Rutherford e Nicholson, ganhando a atenção dos físicos da época (Chayut, 1991; Heilbron; Kuhn, 1969).

O átomo de Thomson na epistemologia histórica de Bachelard

Conhecendo o contexto histórico e o processo de desenvolvimento do modelo atômico de Thomson, podemos refletir sobre as suas dimensões filosóficas e os impactos que causaram na epistemologia científica. Dada esta tarefa, os trabalhos de Gaston Bachelard podem ser de grande ajuda, haja visto que a epistemologia histórica proposta por tal autor permite ir a fundo na relação entre o desenvolvimento histórico dos conceitos científicos e as transformações epistemológicas que tal desenvolvimento implicou e implica. No livro Atomistic Intuitions (Bachelard, 2020), ainda sem tradução para o português, o autor apresenta uma discussão ampla sobre a doutrina atomística, traçando um panorama geral do seu desenvolvimento. Contudo, é em uma obra posterior, O Pluralismo Coerente da Química Moderna (Bachelard, 2009), publicada originalmente em 1932, que o autor se debruça de maneira direta sobre tal modelo, cabendo a nós estabelecer diálogos entre os dois livros, a fim de proporcionar uma visão compreensiva do modelo de Thomson.

Em Atomistic Intuitions (Bachelard, 2020), o autor apresenta o progresso histórico-epistemológico do atomismo em quatro escolas de pensamento: a realista, a positivista, a criticista, e a axiomática. Cada uma dessas escolas corresponderia a um momento histórico diferente, e representaria um estágio distinto da racionalidade científica. No que tange ao atomismo, cada escola atribuiria uma função epistemológica diferente ao átomo, dotando-o de diferentes significados e utilizando-o de maneiras distintas para a construção do conhecimento.

Apesar de Bachelard não identificar diretamente o modelo de Thomson com uma das quatro escolas, ele o faz com o modelo de Dalton, o qual possuía grande importância para a ciência no momento em que Thomson iniciou seus estudos. É pertinente, portanto, olharmos para o átomo de Dalton, a fim de compreendermos o contexto epistemológico em que Thomson desenvolveu seus trabalhos.

De acordo com Bachelard (2020), o modelo proposto por John Dalton se inscreve na filosofia positivista. Para o autor, o grande critério de tal filosofia é o de não postular a existência de algo que não pode ser medido e verificado experimentalmente. O átomo positivista deveria ser simplesmente um artifício empírico para a racionalização de experimentos, uma hipótese de trabalho caracterizada apenas por seu valor empírico e esvaziada de qualquer dimensão metafísica.

Diversas das contribuições de Dalton são ensinadas até os dias atuais nos currículos do ensino básico e superior de química, entre elas o seu modelo atômico e a Lei das proporções múltiplas. Contudo, na tradição do ensino, tais contribuições costumam ser abordadas em momentos bastante distintos dos cursos: enquanto o modelo atômico é ensinado em proximidade com os demais, a Lei das proporções múltiplas é ensinada ao se falar de equações químicas. Apesar dessa distanciação que a formação inicial de químicos pode sugerir, Bachelard (2020) aponta que a construção da Lei das proporções múltiplas e a formulação do modelo atômico se deram de maneira concomitante. A percepção da proximidade epistemológica entre tais ideias permite entender o teor positivista das ideias de Dalton: o átomo era simplesmente um andaime conceitual para o trabalho com os pesos atômicos, conceito que possuía um sentido empírico mais direto e que podia ser verificado experimentalmente nas reações químicas. Entendido assim, o átomo era um conceito dotado de sentido experimental, e que deveria ser mantido assim, longe de interpretações metafísicas.

Essa recusa à metafísica implicava na ausência de discussões sobre a estrutura interna do átomo. É por isso que boa parte da comunidade científica preferia falar em equivalentes ao invés de átomos, uma vez que o primeiro termo se compromete menos com a existência de uma estrutura não verificável, se referindo apenas às equivalências de massa. Assim, as discussões estavam centradas mais na aplicação do átomo do que em sua suposta composição (Oki, 2009).

Sendo este o contexto que se desenhava para o atomismo químico na época de Thomson, é fácil ver como os seus trabalhos proporcionaram grandes rupturas epistemológicas, tanto na descoberta dos elétrons, como na proposição do seu modelo. Longe de operar dentro de uma lógica positivista, o modelo de Thomson nos parece se identificar, conforme argumentaremos a seguir, muito mais com a escola criticista do atomismo. Trazendo contribuições de filósofos criticistas da ciência, Bachelard (2020) propõe que, em uma epistemologia crítica, o atomismo nasce não de uma imposição da natureza, mas sim de uma imposição da maneira pela qual o conhecimento é construído cientificamente. Bachelard frisa que não se trata de uma visão nominalista, pois o atomismo é tomado como uma hipótese necessária e inevitável. A natureza do conhecimento científico seria tal que exigiria uma formulação matemática e unitária, sendo o atomismo uma necessidade para que isso seja satisfeito. Nesse sentido, segundo Bachelard (2020, p. 69), “[...] quando se trata do átomo criticista, deve ser possível identificar uma característica verdadeiramente peremptória e primária”, a qual seria o número, entendido não em seu sentido empírico, mas sim como uma criação do entendimento humano.

Sendo o átomo uma necessidade do método de estudo, a pluralidade de objetos científicos levaria, naturalmente, à postulação de diferentes átomos para o estudo de fenômenos de ordens distintas, como a química, a eletricidade, o calor, etc. Este ponto é especialmente relevante para nós, pois nos leva a compreender o sentido crítico do átomo de maneira mais clara: apesar de na química o átomo ser entendido unicamente como o átomo químico, devemos, se quisermos compreender a filosofia crítica, entendê-lo apenas como a unidade dos fenômenos químicos. Dessa maneira, torna-se possível reconhecer também a existência de unidades (isto é, átomos) de fenômenos de outras ordens. No caso do modelo de Thomson isso será especialmente importante, pois o elétron nada mais é do que a unidade do fenômeno elétrico, a qual coexiste com a unidade do fenômeno químico.

Sendo assim, a filosofia crítica reconhece que a ciência de cada época possui o seu próprio grupo bem definido de sistemas atômicos, do qual ela se vale para explicar o que há para ser explicado. A ciência crítica deverá, então, atribuir propriedades não aos átomos em si, mas às suas conexões e interações, o que apenas seria possível por meio de um empirismo ativo. A identificação dos diferentes átomos e o reconhecimento das relações entre eles requer uma experimentação que seja uma ‘atividade mental ativa’ e não somente uma contemplação passiva. Não haveria uma experimentação neutra de ideias, mas sim um empirismo que viria sempre carregado de teorias e racionalizações.

É clara a relação dos trabalhos de Thomson com a filosofia crítica. Conforme argumentamos previamente, a característica principal do atomismo criticista é o número-unidade, sendo o átomo uma unidade a ser reconhecida. Tendo isso em mente, olhemos para como Thomson justifica a utilização de experimentos relacionados à ionização de gases:

Quando nós consideramos a condução de eletricidade por gases, a evidência favorável ao caráter atômico da eletricidade é ainda mais forte do que no caso da condução por líquidos, principalmente visto que conhecemos mais sobre a passagem de eletricidade por gases do que por líquidos (Thomson, 1904a, p. 73, tradução nossa).

Acima, ao utilizar a palavra átomo, Thomson se refere não ao átomo químico, mas sim ao átomo da eletricidade, isto é, ao elétron. Assim, o esforço racional de Thomson era crítico enquanto buscava atomizar os fenômenos elétricos, procurando uma unidade por meio da qual os fenômenos elétricos pudessem ser compreendidos de maneira racional. Quando falamos na descoberta do elétron, não nos referimos a um empirismo positivista, e nem utilizamos o termo descoberta em um sentido ingênuo. Nos trabalhos de Thomson, o corpúsculo não é um mero andaime que auxilia os estudos elétricos, nem tampouco uma entidade que se dá diretamente aos sentidos; a descoberta do elétron é uma conclusão à qual se chega a partir de determinações matemáticas de grandezas experimentais. É a força dessa argumentação matemática que permitiu racionalizar a existência de um corpúsculo, mesmo sendo ele completamente inacessível aos sentidos. Desse modo, deve-se reconhecer, por um lado, a presença da experimentação ativa do criticismo, sem a qual o reconhecimento dos átomos não seria possível, e por outro, a força crescente da racionalidade perante o empirismo, invertendo os valores positivistas.

Se a descoberta dos elétrons registra uma racionalidade crítica, a proposição do modelo atômico por Thomson a aprofunda. Segundo Bachelard (2009), foi apenas com os estudos dos fenômenos elétricos que se tornou possível discutir a estrutura interna dos átomos. Conforme explica o autor, até aquele momento os experimentos permitiam apenas “formar e mobilizar imensas colônias de átomos” (Bachelard, 2009, p. 142), não sendo possível tratar de características que individualizassem os corpúsculos. É por isso que as discussões acerca da real existência do átomo e sua estrutura ainda apresentavam um forte caráter metafísico. Contudo, os métodos elétricos permitiram romper essa barreira, pois, conforme explica Bachelard (2009, p. 1420), “[...] a experiência elétrica é tão exata que se pode falar de experiência no nível de um átomo particular”. Foi neste contexto de experiências capazes de individualizar os átomos, que se deram as pesquisas de Thomson.

Atomizando criticamente os fenômenos elétricos, Thomson pôde explicar matematicamente a estrutura interna do átomo químico, geometrizando-o a partir das leis cinéticas, mecânicas e eletrodinâmicas. Assim, o átomo deixou de ser apenas um andaime para o trabalho experimental, para se tornar uma entidade altamente racionalizada. Note que se trata de uma racionalização profunda. Bachelard (2020, p. 101) fecha o livro Atomistic Intuitions apontando três perguntas que o atomismo deve responder à medida que deixa de ser ingênuo para se tornar racional; entre elas, escreve: “Como podem fatos ajudarem a descobrir leis; e especialmente, como podem leis se tornarem tão fortemente organizadas a ponto de sugerirem regras?” É fácil ver como o modelo de Thomson representa um esforço no sentido apontado pela pergunta, uma vez que logrou coordenar as leis periódicas e elétricas, relacionando fenômenos e ‘átomos’ de ordens distintas. Evidencia-se, portanto, o avanço epistemológico trazido por Thomson por meio de seu modelo.

A importância de suas contribuições foi reconhecida já em 1906, quando recebeu o prêmio Nobel de física pela descoberta da composição particular dos raios catódicos, isto é, os elétrons, e pela elaboração de um modelo de átomo composto por tais partículas (Nobel Foundation, 2024).

Análise de livros didáticos

Em nossa análise documental, consideramos as sete obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2021 (objeto 2). Em cada uma dessas coleções foi realizada a busca pelo termo Thomson, e foram identificados os trechos que versam sobre J. J. Thomson e o seu modelo atômico. O título de cada coleção e os volumes de cada uma delas que consideramos encontram-se no quadro 1.

Quadro 1
Obras analisadas

As observações de leitura podem ser encontradas no quadro 2. Em nossa leitura, buscamos analisar o teor da descrição textual e o uso de representações e de analogias (como a do pudim de passas). Na coluna de outras informações foram indicadas, oportunamente, relações e conexões feitas pelos textos, bem como informações encontradas no material de apoio ao professor.

Quadro 2
Análise da leitura das obras didáticas

Outro aspecto analisado foi a quantidade de espaço que os livros destinam às discussões do modelo de Thomson. As observações referentes a tal aspecto se encontram organizadas no quadro 3.

Quadro 3
Análise do espaço reservado para o modelo de Thomson em cada obra

Discutindo o modelo didático de Thomson

A leitura dos livros didáticos nos permitiu identificar diversos aspectos críticos do ponto de vista histórico e filosófico. Primeiro, é preciso apontar que o pequeno espaço dedicado à discussão do modelo de Thomson mina grande parte das possibilidades de tratativas que o conteúdo poderia receber. Mais da metade dos livros dedica aproximadamente meia página de texto ao modelo, e um deles nem sequer menciona a sua existência.

Tendo em vista a limitação acima, olhemos para os aspectos da história da ciência presentes nos documentos analisados. A BNCC frisa como a contextualização histórica deve ser executada: “A contextualização histórica não se ocupa apenas da menção a nomes de cientistas e a datas da história da Ciência, mas de apresentar os conhecimentos científicos como construções socialmente produzidas, com seus impasses e contradições” (Brasil, 2018, p. 550).

Porém, na análise dos livros percebemos que essa orientação não é seguida, nem no que diz respeito ao contexto geral dos trabalhos de Thomson, nem no que se refere ao desenvolvimento histórico das ideias defendidas por tal cientista.

Conforme já apontamos anteriormente, o desenvolvimento dos trabalhos de Thomson se deu em um contexto marcado por intensas discussões na Física e também na Química. Por um lado, as pesquisas em eletromagnetismo e os debates sobre a natureza dos raios catódicos estavam ocorrendo por toda Europa. Por outro, na química eram consolidados os conceitos relacionados à lei periódica e à valência, além da discussão da importância do atomismo para essa ciência. A compreensão deste cenário amplo permite situar os trabalhos de Thomson na história, sendo vital para o reconhecimento de sua importância científica. Apesar disso, estas conjunturas são pouco discutidas nas obras didáticas: somente a Obra 2 (Santos, 2020) e a Obra 5 (Mortimer et al., 2020) exploram o contexto das pesquisas sobre eletromagnetismo que precedeu a obra de Thomson. Quanto ao cenário químico, nenhuma obra faz sequer uma breve menção.

Além de dificultar a aprendizagem do modelo em sua totalidade, essa omissão do contexto histórico-científico também pode levar ao apagamento da relação interdisciplinar entre física e química, duas ciências cujo desenvolvimento ocorreu muitas vezes de maneira mútua. Apenas uma discussão ampla pode mostrar como os propósitos de Thomson serviam tanto à Química como à Física, sendo esta uma temática que poderia ser explorada em uma perspectiva interdisciplinar em sala de aula. Com efeito, a Obra 4 (Lopes, Rosso, Carnevalle, 2020b) até chega a mencionar Thomson como o descobridor dos elétrons em um capítulo sobre Lei de Ohm, situado em seu volume 5. Contudo, trata-se apenas de uma menção passageira, não havendo nenhuma tentativa de desenvolver uma conexão mais estreita.

No que se refere ao desenvolvimento das ideias de Thomson, os textos limitaram-se a expor a descoberta dos elétrons e a proposição do modelo atômico como fatos históricos simples, mencionados como eventos cronologicamente conectados, sem explorar as tensões envolvidas em suas ocorrências. Conforme discutimos nas seções anteriores, o que convencionamos chamar de ‘descoberta dos elétrons’ consiste, na realidade, em um processo de objetivação da entidade elétron. Para que se possa compreender esse processo epistemológico complexo e carregado de racionalidade, é necessária uma ampla discussão dos experimentos de Thomson, indo além do contexto das pesquisas eletromagnéticas do período, e adentrando os experimentos com a ampola de Crookes. A individualização do elétron enquanto corpúsculo pode até ter sido corroborada pelo experimento de Millikan, no qual foi possível visualizar indiretamente os elétrons por meio das gotas de óleo; contudo, foi por meio da determinação de uma relação matemática, a razão carga/massa, que o elétron foi primeiramente entendido como corpúsculo (Bachelard, 2009). Sem essa discussão histórica é impossível conceber a descoberta do elétron como o esforço de grande racionalidade que é. Tendo isso em vista, a omissão desse processo de objetivação significa a perda de uma oportunidade pedagógica de explorar uma noção crítica de descoberta científica que rompa com a ideia ingênua de ‘descobrir é ver’. Perde-se, também, a possibilidade de discutir um caso histórico que demonstra como a ciência contemporânea se direciona para uma experimentação cada vez mais distanciada dos sentidos primeiros e menos imediata. O esvaziamento dos aspectos históricos implica, portanto, na perda de oportunidades importantes do ponto de vista didático-pedagógico, se visamos a profundidade epistemológica dos conceitos.

Tratemos, agora, da maneira como o modelo atômico de Thomson se desenha entre as obras didáticas. A maioria dos livros abandonou o uso da analogia do pudim de passas, o que nos parece ser um avanço dado o fato de que o seu uso levava a interpretações distorcidas do modelo, como evidenciado por Souza, Justi e Ferreira (2006). Contudo, apesar da analogia não ser utilizada diretamente, a descrição do modelo apresentada continua de acordo com ela em grande medida: o átomo seria como uma esfera positivamente carregada em cuja extensão se distribuem elétrons, representados também como esferas menores, com carga negativa. Tal modelo consiste em uma versão bastante simplificada daquela encontrada nos trabalhos de Thomson, nos quais reconhecemos não só a presença de elétrons em uma massa uniforme e positiva, mas também a organização interna no átomo, com a disposição em anéis concêntricos. Apenas uma das obras, a de número 3 (Godoy; Agnolo; Melo, 2020), reconhece essa estrutura organizada, e apenas outra, a de número 5 (Mortimer et al., 2020). menciona diretamente a mobilidade dos elétrons, prevalecendo uma concepção estática do modelo de Thomson. Na mesma direção, as representações visuais não ilustram a organização dos elétrons em anéis concêntricos, nem buscam representar a movimentação dos corpúsculos no interior do átomo. Podemos assim concluir que os livros didáticos apresentam uma versão imprecisa do modelo em questão.

Essa imprecisão histórica dos conceitos deveria, por si só, chamar nossa atenção. Contudo, não podemos deixar de notar que, ao simplificar o modelo de Thomson ao ponto de ignorar a sua organização interna, perdemos a possibilidade de discutir o fato dele ter um alto caráter químico. Conforme vimos, por meio de cálculos, Thomson logrou uma ‘raiz matemática’ dos fenômenos químicos, explicada teoricamente pelas diferentes possibilidades de distribuição dos elétrons nos anéis concêntricos. Essa discussão, porém, não é abordada por nenhuma das obras - nem poderia ser, já que a estrutura organizada do átomo não é sequer reconhecida por elas. Desse modo, a imprecisão histórica implica na perda de conteúdos que dialogam de maneira relevante com o desenvolvimento da química.

Tendo em vista as fragilidades didáticas apontadas, bem como o fundamento histórico e epistemológico que levantamos, é pertinente refletirmos sobre o processo de produção dos livros didáticos, o qual apresenta diversas peculiaridades quanto à autoria e à originalidade dos textos (Bittencourt, 2004). Tal produção consiste em um processo complexo e pouco claro, que envolve diversos autores, técnicos e editores, e que tem como fim não apenas o rigor científico e histórico, mas também a natureza didática e a sua função como mercadoria. Sendo assim, não é possível ter clareza sobre as fontes utilizadas e, consequentemente, sobre o rigor das informações apresentadas. Estabelecemos como hipótese ser por isso que os livros, ao longo do tempo, reforçam coletivamente informações que se distanciam do seu sentido original. Desse modo, ressaltamos a importância da consulta às fontes originais na produção dos livros didáticos para a garantia de maior precisão nos conceitos e processos apresentados.

Para além das questões inerentes aos livros didáticos e sua confecção, apontamos para a pertinência de uma reorganização radical na sequência curricular, a fim de reposicionar o conteúdo do modelo de Thomson. Historicamente, foi sob influência de tal modelo que o químico G. N. Lewis propôs sua teoria de valência e a notação que a acompanha, além do conceito de ligação covalente. Além disso, foi em parte inspirado pelas leis periódicas que Thomson buscou desenvolver o seu modelo. Sendo assim, se levássemos em conta o desenvolvimento epistemológico dos conceitos químicos, poderia ser prudente posicionarmos o conteúdo relacionado ao átomo de Thomson em meio a outros conteúdos que não o de outros modelos atômicos. Dada a sua proximidade histórico-epistemológica com os trabalhos de Lewis e com os debates sobre as leis periódicas, esse modelo poderia ser mais bem aproveitado se discutido oportunamente com as representações de Lewis e, consequentemente, com os conteúdos relacionados às ligações químicas, tanto iônicas quanto covalentes. Evidentemente, para que a relação com tais conteúdos fosse clara ao leitor, seria necessário abordar o modelo de Thomson de maneira menos simplificada do que convencionalmente se faz, trazendo à tona a sua estrutura interna, bem como o desenvolvimento das ideias que levaram à sua objetivação.

Consideramos esta proposta como radical porque ela impactaria também o conteúdo relacionado a outros modelos atômicos que também deveriam ser redistribuídos, rompendo, assim, com a sequência curricular tradicional. A manutenção de um ‘macroconteúdo’ de modelos atômicos, em que se agrupam todos os modelos tradicionais do átomo químico, pode até fazer sentido em um primeiro momento, sugerindo uma linearidade epistemológica que une todos os modelos. Contudo, se seguirmos a filosofia bachelardiana, em que entendemos ser por meio da ruptura com o conhecimento vigente que a ciência progride, por que não considerar as rupturas epistemológicas entre um modelo e outro, posicionando-os em momentos distintos de um curso de química, a fim de explorar cada qual em seu contexto?

Em conclusão, apontamos que a organização temática que aproxima todos os modelos em uma só sequência parece sacrificar grande parte das potencialidades epistemológicas e tantas outras potencialidades históricas em nome da construção de uma linearidade cronológica. Trata-se de uma proposta teórica, sendo necessário outros estudos para verificar a sua eficácia.

Conclusões

A teoria atômica apresenta um desenvolvimento histórico complexo, marcado por profundos compromissos filosóficos. Entendemos que os trabalhos de Thomson são representativos de uma filosofia criticista, pois rompem com o atomismo positivista, ampliando a importância da racionalidade científica perante o empirismo restrito. Além disso, o modelo de Thomson possui forte caráter químico, tendo sido um dos primeiros a propor uma raiz matemática para as leis periódicas. No ensino, uma discussão ampla de tal modelo poderia abordar seu desenvolvimento histórico, explorando sua relação com a química do início do século XX e abordando de maneira implícita os seus aspectos filosóficos críticos, permitindo, assim, problematizar a visão ingênua sobre descobertas científicas e experimentação.

Apesar de suas potencialidades pedagógicas, estes aspectos histórico-epistemológicos são pouco explorados pelas obras didáticas. O conteúdo relacionado aos modelos atômicos é apresentado tradicionalmente de maneira cronológica nos currículos de química. Essa abordagem é incompatível com uma proposta que busca levar aspectos da história e filosofia da ciência no ensino por trazer uma apresentação descontextualizada dos conteúdos, que implica na ideia de linearidade no desenvolvimento das ideias científicas, desconsiderando a possibilidade de rupturas teóricas e filosóficas no desenvolvimento de novas teorias e modelos. Neste sentido, o modelo de Thomson pode bem ser um dos que mais sofre com o tipo de abordagem tomada pelos livros didáticos, sendo apresentado de maneira superficial em espaços extremamente limitados. Em alguns casos a descoberta do elétron é relatada como uma mera curiosidade, sem aprofundamentos que a expliquem, havendo também a omissão (total ou parcial) do contexto científico daquele momento. Indo além, em sua versão didatizada, o modelo de Thomson apresenta diversas inconsistências históricas, sendo esvaziado de seu significado químico e também de suas implicações epistemológicas.

Dessa forma, apontamos para a pertinência de uma abordagem historicamente mais precisa para o modelo de Thomson e seu desenvolvimento, aproximando a versão didática da versão histórica que encontramos nos documentos analisados. Ressalta-se, assim, a importância do uso de fontes primárias na produção dos livros didáticos. Além disso, uma reformulação radical da organização dos conteúdos de modelos atômicos no currículo e nos livros didáticos poderia abrir espaço para que a História e Filosofia da Ciência fossem utilizadas de maneira mais eficiente no ensino de química. Abandonando a apresentação cronológica linear dos modelos atômicos, seria possível aproximar curricularmente os modelos atômicos de conteúdos que sejam histórica e epistemologicamente relacionados a eles. No caso específico do modelo de Thomson, acreditamos que a discussão poderia ser beneficiada em ser aproximada a assuntos como a teoria de valência e as ligações químicas.

Agradecimentos

Agradecemos aos professores Maurício Pietrocola Pinto de Oliveira e Ivã Gurgel. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2024
  • Aceito
    15 Jul 2024
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