Open-access Afetos e trabalho de cuidado no processo de morrer

Affects and Care Work in the Process of Dying

Afectos y trabajo de cuidado en el proceso de morir

Resumo:

O artigo discute a circulação dos afetos no processo de morrer, articulando a literatura sobre trabalho de cuidado e a literatura sobre emoções, sentimentos e afetos na Sociologia e na Antropologia. Apresentam-se os dados de pesquisa na forma de cenas etnográficas, coletados durante trabalho de campo em um serviço de assistência domiciliar paliativo em um hospital público do Rio de Janeiro. Discute-se a relação entre repertórios de interpretação dos afetos e regras de sentimento, bem como sua padronização em rotinas de ação através de papéis sociais e posições estruturadas.

Palavras-chave:
Afetos; Trabalho de cuidado; Morte e morrer

Abstract:

The article discusses the circulation of affects in the dying process, articulating the literature on care work and the literature on emotions, feelings and affects in Sociology and Anthropology. It presents research data in the form of ethnographic scenes, collected during fieldwork in a palliative home care service in a public hospital in Rio de Janeiro. The relationship between affect interpretation repertoires and feeling rules is discussed, as well as their standardization in action routines through social roles and structured positions.

Keywords:
Affects; Care work; Death and dying

Resumen:

El artículo discute la circulación de los afectos en el proceso de morir, articulando la literatura sobre el trabajo de cuidados y la literatura sobre emociones, sentimientos y afectos en Sociología y Antropología. Presenta datos de investigación en forma de escenas etnográficas, recogidas durante el trabajo de campo en un servicio de cuidados paliativos a domicilio en un hospital público de Río de Janeiro. Discute la relación entre repertorios de interpretación de afectos y reglas de sentimiento, así como su estandarización en rutinas de acción a través de roles sociales y posiciones estructuradas.

Palabras clave:
Afectos; Trabajo de cuidado; Muerte y Morir

Introdução

Reflexões sobre o cuidado e sobre as emoções não raro se encontram nos estudos sobre o trabalho emocional (Hoschchild 1983) e trabalho afetivo de cuidado (Theodosius 2008; Hirata 2016). As duas temáticas convergem tanto em conteúdo quanto pelo seu lugar relativamente marginal no interior das tradições de pensamento sociológico e antropológico. De um lado, o estudo das emoções perpassa um campo multidisciplinar, incluindo a psicologia, as neurociências, a biologia, no qual a sociologia e a antropologia emergiram nas décadas de 1970 e 1980 (Lutz e White 1986; Bericat 2016), enunciando um conjunto de questões próprias. De outro, o cuidado ganhou espaço mais ou menos na mesma época através dos escritos de Carol Gilligan (1982) e Nel Noddings (1984), que propuseram uma ética do cuidado em uma perspectiva feminista. Não obstante suas aparições ao longo da história do pensamento filosófico ocidental, o tema esteve em uma posição subalterna em relação a outros (Reich 1995). Carol Gilligan (1982) viu no cuidado um ponto de vista moral diferenciado, distintivamente ligado ao sexo feminino, Joan Tronto (1993, 117) criticou a ligação necessária com o gênero feminino e com uma "atitude" ou "disposição": "O cuidado é um trabalho difícil, mas é o trabalho que sustenta a vida". Semelhantemente, Pascale Molinier (2012, 251) sublinha que o cuidado é primeiramente uma "forma de trabalho" com uma dinâmica emocional particular. No feminismo marxista, o cuidado é uma das facetas, senão a mais importante, do processo de reprodução da vida humana, que é condição sine qua non da produção da vida material (Barbagallo e Federici 2012). Enquanto trabalho, é desigualmente distribuído e corresponde a padrões de marginalização e dominação internacionais (Ehrenheich e Hochschild 2011; Hirata 2016). Enquanto valor ou lógica, permanece subvalorizado, geralmente preterido em prol de outras lógicas de raciocínio moral.

Annemarie Mol (2008) ofereceu uma descrição densa dessa lógica enquanto modo de ordenamento e de prática que se distingue de outros pela sua provisoriedade e fragilidade, por causa de seu envolvimento com "corpos frágeis e máquinas não exatamente previsíveis" (Mol 2008, 91). Embora Mol permaneça agnóstica em relação ao lugar do poder e da dominação, outras pensadoras abordaram os "desacordos, conflitos e violências" (Araújo 2019, 3) das relações assimétricas de cuidado. A vulnerabilidade típica dos trabalhadores do cuidado se imbrica com a vulnerabilidade daqueles que recebem cuidado (Molinier 2012), gerando relações ambíguas de controle e afeição, bondade e violência. Falar de cuidado é, portanto, falar de uma prática de corpos sobre corpos, de sujeitos vulneráveis sobre sujeitos vulneráveis, que não prescinde nem está acima de relações de poder, controle e dominação, mas se imbrica nas assimetrias e hierarquias que atravessam as relações sociais.

Do ponto de vista do conteúdo, parece haver algumas afinidades eletivas entre as descrições da vida humana que privilegiam o cuidado e as emoções. Enfatiza-se a interdependência e a vulnerabilidade dos seres humanos enquanto traços constitutivos da vida em sociedade, os quais decorrem diretamente da nossa existência corpórea (Tronto 1993, 162; Molinier 2012). Também se destaca a imagem de um ser humano poroso, atravessado a todo tempo pelas variações do seu entorno (Brennan 2004).

A imbricação entre as dimensões somática, normativa e estrutural da vida em sociedade está presente na literatura sobre o cuidado e é explicitamente debatida na literatura sobre emoções. Recupera-se o debate entre relativismo e universalismo (Lutz e White 1986, 408): seriam as emoções experiências universais e trans-históricas independentes, ou seriam elas específicas a uma ou outra cultura? O que garante que diferentes experiências e expressões observadas em vários locais e momentos históricos possam ser agrupadas sob a categoria "emoção"? Para alguns, o termo é só um rótulo conveniente para designar um conjunto de fenômenos reais e, em alguma medida, independentes de classificação, enquanto para outros não há qualquer "referente essencial" por trás dele (Beatty 2013, 416).

Outra questão estruturante corresponde parcialmente ao antagonismo entre abordagens individuais e sociais (Lutz e White 1986, 408) e à distinção entre experiência emocional e expressão emocional (Bericat 2016, 4): seriam as emoções fenômenos íntimos, visceralmente experimentados, dotados de um dinamismo próprio que está além do alcance das estruturas sociais e simbólicas, ou seriam elas meros epifenômenos de vocabulários, ritos e hierarquias que agiriam "de fora para dentro"?2

Esse é o caminho explorado pelos teóricos da "virada afetiva", inspirados por Deleuze e Spinoza e pela neurobiologia de António Damásio e Silvan Tomkins. Os pensadores e pensadoras da virada afetiva usam a categoria "afeto" para indicar a dimensão específica da realidade constituída de processos (sociopsicológicos/biológicos/neurológicos) emergentes que estão em ressonância, mas não em total correspondência com a dimensão discursiva do social ou a dimensão consciente da cognição. Esse "afeto" designa tanto a força motriz latente em certos estados corporais, quanto o campo modulado, vital e composto de múltiplos devires que flui entre humanos e não humanos (Clough e Halley 2007; Gregg e Seigworth 2010, 6). Sua qualidade pré-consciente do afeto é conceituada por Massumi (1995) em termos de uma lacuna, um espaço entre e antes do registro consciente de uma emoção, que pode ser transposta em linguagem. O afeto, sinônimo de intensidade, é "um estado de suspense, potencialmente de disrupção", mas não é qualificado nem pela sua passividade, "porque está cheio de moção, moção vibratória, ressonância" nem pela sua atividade, "porque a moção não é do tipo que pode ser direcionada (senão simbolicamente) para fins práticos em um mundo de objetos e objetivos constituídos…" (Massumi 1995, 86).

A polissemia do cuidado – uma prática, um trabalho, um valor e uma lógica (Mol 2008; Molinier 2012) – encontra um espelho na polissemia das emoções – estados corporais, respostas neuronais, vocabulários culturais e expressões simbólicas. Tanto um quanto o outro revelam os dilemas morais associados ao trabalho delicado e incontornável de manter a vida social a partir de corpos frágeis e vulneráveis. Para explorar suas intersecções, parto de um contexto etnográfico que acredito ser capaz de iluminar aspectos fundamentais do imbricamento entre cuidado e afetos em relações sociais assimétricas.

Opto pelo termo "afeto" para designar as experiências somáticas significativas que recebem outros nomes como sentimento e emoção na literatura, usando ocasionalmente os termos "sentimento" e "emoção" como sinônimos. Na seção seguinte, apresento o contexto etnográfico do artigo. Em seguida, apresento duas cenas etnográficas visando discutir a relação entre afetos e cuidado no processo de morrer. Por fim, concluo apresentando argumentos mais amplos acerca do estudo das emoções e do cuidado.

Contexto etnográfico

Durante a etnografia a partir da qual esse texto foi escrito, acompanhei a rotina de trabalho de profissionais de saúde integrantes de um serviço de assistência domiciliar – apelidado a partir de agora de Departamento de Atenção Domiciliar (DAD) – em um hospital público federal de grande porte. O DAD é descrito pelos profissionais que o integram como um serviço de desospitalização e atenção domiciliar, focado em pacientes sob cuidados paliativos, mas também atendendo pacientes cujas demandas de tratamento não são consideradas complexas o suficiente para estadia no hospital e, não obstante, exigem atenção contínua, por exemplo, pacientes com feridas abertas que demandam troca periódica de curativos e desbridamento. A princípio, os pacientes sob cuidados paliativos e seus familiares foram o foco da etnografia.

Minha entrada no campo se deu mediante contato com a enfermeira diretora do DAD na época em um congresso de saúde coletiva. Após conversar com ela e um técnico administrativo do departamento, fui aceito como pesquisador e aconselhado a submeter meu projeto ao comitê de ética interno do hospital. Uma vez realizado o trâmite do comitê, estaria habilitado a acompanhar as visitas durante dois dias da semana. O hospital foi incluído no processo do Comitê de Ética em Pesquisa pela Plataforma Brasil e o projeto foi aceito, após esclarecimentos aos membros do comitê hospitalar encarregado das pesquisas acadêmicas lá realizadas. Em particular, alguns membros do comitê me exortaram a não revelar informações sensíveis aos pacientes, principalmente sobre seus diagnósticos. Também houve estranhamento por se tratar da primeira pesquisa em Ciências Sociais no hospital. A pesquisa foi aprovada pelo CEP da área e pelo comitê interno da instituição onde a etnografia foi realizada.

Os cuidados paliativos são um modelo de assistência para pacientes acometidos por enfermidades para as quais não há possibilidade de tratamento curativo, usualmente, doenças crônicas degenerativas como o câncer. Diante da imagem tenebrosa de uma morte ocultada, fria, solitária e cruel (Ariès 1981; Elias 2001), os cuidados paliativos defenderiam uma abordagem caracterizada pelo alívio da dor e dos sintomas, e pela "integração de aspectos psicoespirituais no cuidado" (Mendes 2017, 29). Preza-se pela valorização tanto da individualidade do paciente, que deve ser abordado em sua "muldimensionalidade", o que significa considerá-lo como ser físico, psíquico, emocional, espiritual e social, quanto de seus familiares e entes queridos como partes ativas do processo de morrer (Menezes 2004, 127-28). Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o movimento hospice, que teve entonações religiosas e carismáticas na figura de Saunders, rotinizou-se e tornou-se parte integrante de instituições de saúde hospitalares (Mendes 2017; Livne 2014). Os cuidados paliativos são o modelo de assistência de saúde proposto pelo movimento hospice e comumente usa-se os dois termos como sinônimos.

Assim, para o Departamento de Atenção Domiciliar (DAD), o cuidado domiciliar é um "cuidado compartilhado". Nas palavras da enfermeira diretora do departamento, o cuidado compartilhado requer que haja "um familiar disposto a fazer os cuidados na casa de acordo com a orientação da equipe". Nas visitas domiciliares da equipe multiprofissional e nas relações entre pacientes, familiares e profissionais de saúde, o processo de morrer é gerido pelo trabalho de cuidado. Defino esse processo inspirando-me no conceito de "trajetória da doença" de Strauss et al. (1985, 8): "o processo de morrer inclui os eventos fisiológicos do corpo adoecido, a coordenação prática dos cuidados desse corpo – incluindo aqui a concatenação de temporalidades, expectativas, demandas, objetos e pessoas – e os efeitos dessa coordenação e desse processo nos envolvidos".

Para lidar com os eventos que compõem o processo de morrer, os sujeitos se organizam e coordenam suas ações em "arranjos de cuidado" (Fazzioni 2018; Soneghet 2022), isto é, figurações relacionais-práticas voltadas ao manejo do corpo e de seus problemas. A coordenação prática do cuidado envolve a distribuição de responsabilidades, o compartilhamento de informações e saberes, e a circulação de afetos. Estes últimos não são meros epifenômenos de posições, papéis ou condições materiais. É preciso entender seu lugar específico na organização dos arranjos de cuidado e do processo de morrer, sem reduzi-los de antemão a outras dimensões da vida social. Para esse fim, faço uma passagem breve pelas teorias do afeto para discutir o conceito em questão.

Interpretação e expressão

As duas cenas etnográficas relatadas a seguir – nesta e na próxima seção – foram observadas durante visitas domiciliares a pacientes em cuidados paliativos. O DAD atende a todo o município do Rio de Janeiro e, sendo um serviço de um hospital público, a maioria de seus pacientes é de baixa renda ou de classe média baixa. Seleciono os casos por dois motivos: os dois incluem falas explícitas sobre estados emocionais, embora de tipos diferentes (tristeza e raiva); o primeiro é focado em uma paciente e o segundo em uma cuidadora familiar, o que permite iluminar algumas diferenças ligadas às posições nos arranjos de cuidado. Nas cenas a seguir, acompanhei a visita da profissional de psicologia do serviço, logo, é possível assumir que sua apresentação enquanto psicóloga no início das visitas, serve como "pista" para os pacientes e familiares de que aquele é um ambiente propício para falar de questões emocionais.

Chego na casa de Bárbara, 65 anos.3 Ela foi diagnosticada com câncer de mama no ano de 2013 e foi recomendada uma mastectomia. Uma vez realizada a cirurgia, Bárbara conta que voltou a sua ‘vida normal’, até que um dia começou a experimentar dormência na perna esquerda. Voltando ao hospital, foi avisada que o câncer havia retornado e se espalhado para sua coluna e que, em decorrência disso, perderia o movimento das pernas. Alguns meses depois, suas pernas já estavam paralisadas e Bárbara passou a se locomover com cadeira de rodas. Ela mora com seu marido, Marcelo, e seu filho mais velho. Quando eu e Daniele, a psicóloga do DAD, chegamos a sua casa, seu marido atende o portão e Bárbara espera na sala. Conversamos um pouco sobre seu quadro e sobre como ela chegou ao atendimento domiciliar. Então, Daniele começa o procedimento de anamnese da psicologia, que consiste em um questionário curto com informações gerais sobre o paciente, bem como questões voltadas para aferir seu "estado" geral.

Daniele: Bárbara, eu vou perguntar como a senhora se sente de 0 a 10, sobre essas palavras aqui. Tá bem?

Bárbara: Tá bem.

Daniele: Dor?

Bárbara: Zero.

Daniele: Cansaço, você sente cansaço?

Bárbara: Só quando eu fico muito tempo na cadeira. De ficar na cama também. Tudo cansa né, a cama também. Dói minhas costas.

Marcelo: E como cansa!

Bárbara: Aí eu chamo ele, falo "bota a cadeira aqui que eu levanto, aí sento na cadeira."

Daniele: E um número?

Bárbara: Zero…

Lucas: Aí quando a senhora cansa de ficar na cama, vai pra cadeira?

Bárbara: Isso. Fico em pé um pouco, com a bengala, vou ali fora. Aquela cachorra ali, ela cresceu comigo né. Aí ela vem, quer deitar no meu colo quando eu to na cadeira, tenho que fazer carinho nela. Eu levanto vou andar e falo "vamo andar", aí ela me acompanha.

Daniele: Tristeza?

Há uma pausa. Bárbara demora um pouco mais para responder.

Bárbara: Às vezes a gente sente né, um pouquinho. Às vezes vem. Queria andar né. Queria poder sair, fazer as coisas…

Daniele: Mas o seu marido não pode sair pra você?

Bárbara: Pode, ele vai. Mas é que também pra ir no banco, por exemplo, pegar meus dinheirinhos. Ele também é velho né, aí tem que me levantar, botar na cadeira… A gente espera meu filho chegar do trabalho.

Daniele: Então um número, pra tristeza…

Bárbara: Dez…

Daniele: Dez?

Bárbara: Não, é muito né? [seu tom de voz é apologético, como se sentisse que falou algo errado]

Daniele: Você que sabe, a tristeza é da senhora. [Daniele sorri, como se tentasse assegurá-la de que pode responder como quiser]

Há mais uma pausa.

Bárbara: Número seis, então.

Lucas [pesquisador]: A senhora disse que espera andar de novo pra poder sair…

Bárbara: É, eu andava muito. Daqui eu andava até Taquara, até o Tanque, até onde precisava. Eu andava muito, muito mesmo… Eu gosto de andar!

Do início até o fim da visita domiciliar a Bárbara, ela fez piadas. O bom humor inicial e a jocosidade de sua fala logo perderam espaço quando narrou sua história até ser inserida no DAD. Ao falar sobre a cirurgia para retirar os seios, sua fala titubeou e ela não encontrou as palavras para indicar essa parte de seu corpo, ao que Daniele completou sua frase. Além das interrupções a respeito das quais se fala, há também as interrupções na fala, isto é, no ato de narrar. O gaguejar de Bárbara ao falar de sua mastectomia pode ser interpretado como lapso momentâneo de memória, uma vez que o câncer em estado avançado costuma atacar as faculdades cognitivas. No entanto, a repetição das pausas, não somente dentro da mesma cena, como aquela parcialmente relatada acima, mas também entre cenas diferentes, pode indicar um padrão. No ato de não falar, ou de hesitar na fala, abre-se um espaço para a rearticulação. O ato contínuo da conversa é interrompido momentaneamente em um tipo de reflexividade forçada, posto que o sujeito se vê atravessado por afetos que não sabe, ou não quer comunicar.

Diante das perguntas da psicóloga, um enquadramento é colocado: os sentimentos de Bárbara devem ser comunicados em uma escala de 0 a 10. Apesar de duvidar da veracidade da escala, como me diz após a visita, Daniele acredita que as perguntas são boas para averiguar "mais ou menos o que o paciente tá sentindo". Sendo assim, a aparente precisão da escala funciona como um pressuposto, um ponto de partida para questões que podem ser melhor entendidas por um saber menos explícito e menos exato, mas ainda assim útil.

A princípio, a interação entre Bárbara e Daniele pode ser facilmente enquadrada em um tom crítico: uma profissional de saúde impôs sua ferramenta terapêutica a despeito da expressão genuína da paciente. Tal leitura pressuporia que aquilo que Bárbara está sentindo é um estado "interno" irredutivelmente seu, sobre o qual se imporia, por virtude de uma assimetria de poder, um instrumento "externo". Além disso, pressuporia algum tipo de uso estratégico do instrumento da escala que não parece fazer sentido para os atores em interação. Ao fim da visita, pergunto a Daniele sobre a escala e ela me diz que "é mais um jeito de conversar mesmo, pra saber mais ou menos como o paciente está". Portanto, a escala de 0 a 10 não é um instrumento usado para aferir, de uma vez por todas e de maneira absolutamente precisa, o estado emocional de qualquer indivíduo. Antes, seu objetivo é elicitar algum tipo de expressão acerca dos sentimentos que, a princípio, não são conhecidos pela psicóloga. Onde estaria a verdade sobre as emoções de Bárbara? Qual resposta é a mais genuína?

Afetos ganham contorno no "espaço entre" (Merleau-Ponty 2004, 83) os sujeitos e se constituem ali. Falar de circulação de afetos ou circulação afetiva é designar o teor emergente, processual e interacional da dimensão afetiva: "O corpo é o veículo do estar-no-mundo e, para o ser vivente, ter um corpo significa estar unido a um meio definido, fundir-se a determinados projetos e nele estar perpetuamente engajado" (Merleau-Ponty 2012, 84). O corpo é o veículo primário da experiência da vida. Estamos nele e por ele vivemos do primeiro fôlego até o último, logo, está profundamente atado à experiência subjetiva da própria vida. Sendo também um ente material entre outros, suscetível a ações, influências e percepções alheias, o corpo é também da "ordem do ‘objeto’" (Merleau-Ponty 1968, 137), assim como as coisas que encontra e percebe. A tal dualidade dá-se o nome de reversibilidade. Como argumentou Marcel Mauss, o corpo é "o primeiro e mais natural instrumento" que é tanto "objeto técnico" quanto "meio técnico" (Mauss 2003, 407). É técnico pois seu manejo cotidiano se dá por meio de atos tradicionais e eficazes, isto é, transmitidos socialmente e considerados úteis e adequados para determinados fins. Não percebemos essas técnicas corporais enquanto tais, mas as experimentamos como atos mecânicos e puramente físicos, isto é, sem conteúdo simbólico ou caráter cultural. O corpo é, portanto, uma "abertura vivida" atravessada por relações significativas e práticas com seu entorno (Soneghet 2021, 24).

A despeito da reversibilidade do corpo e de sua abertura ao entorno, a experiência emocional é sempre dotada de uma "peculiar egocentricidade" (Beatty 2013, 419). Sentimos nossos sentimentos como partes de nós mesmos e somos capazes de dissimulá-los, disfarçá-los e mentir sobre eles. Se as emoções ganham forma "entre", isso não significa que não existam "dentro" ou que existam experiências, repertórios e normas "fora" que modelem a experiência emocional. Mauss discute a questão do ponto de vista da ideia de "consciência": "É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência. Não é graças à inconsciência que há uma intervenção da sociedade" (Mauss 2003, 421). O antropólogo francês recai, todavia, em uma teoria da sociedade como "superego", afirmando que é graças a ela que há domínio sobre as emoções. Não obstante, é pioneiro ao afirmar que o estudo de fenômenos na encruzilhada do biológico com o sociológico são fundamentais para entender uma dada sociedade.

A consideração do aspecto intersubjetivo e emergente das emoções se justifica pois estas, uma vez percebidas ou expressas, não existem em um estado puro pré-social e, mesmo quando não comunicadas ou percebidas, são reflexivamente concebidas pelos sujeitos em termos de significados socialmente compartilhados. Em outras palavras, posso sentir raiva e não falar sobre isso, mas perceberei a minha raiva, minhas possibilidades de ação e expressão e mesmo o estado corporal que estou experimentando a partir de experiências pregressas e de enquadramentos simbólicos partilhados. A noção das emoções como estados pré-sociais individuais está ligada à concepção individualizada de corpo, bem descrita por Le Breton (2002). Nessa concepção, o corpo marca a ruptura do sujeito com o outro, não havendo representação legítima para a porosidade do sujeito e sua mútua implicação com outros.

Tal implicação mútua, desdobrada em interações sociais, não prescinde de uma série de papéis sociais, expectativas de comportamento e "regras de sentimento" (Hochschild 1983), isto é, normas acerca do que pode ou não ser expresso em determinadas situações. No caso das visitas de um serviço de atenção domiciliar, há papéis sociais explícitos – o profissional de saúde, o cuidador primário, o paciente –, expectativas de comportamento e assimetrias – usualmente relativas ao saber médico e à expertise técnica dos profissionais em comparação aos saberes e práticas dos familiares e pacientes (Strauss et al. 1985), bem como a raça e gênero (Hirata 2016) –, de modo que a circulação dos afetos não é totalmente desordenada. Seu ordenamento se dá através de práticas afetivas:

Uma prática afetiva é uma figuração onde possibilidades e rotinas do corpo são recrutadas ou entrelaçadas juntas com a feitura-de-sentido e com outras figurações materiais e sociais. É um complexo orgânico no qual todas as partes se constituem relacionalmente umas às outras. (Wetherell 2012, 19).

Trata-se, então, de "montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos" (Mauss 2003, 422) que podem incluir também outras entidades não humanas. O uso de um vocabulário – a escala de 0 a 10 –, apesar de iniciar uma conversa sobre os sentimentos de Bárbara, não foi suficiente para precisá-los. Na tentativa de ajustar e comunicar os afetos em sua circulação, a escala deixa de ser um instrumento de mensuração exato e passa a ser uma mediação pela qual os sujeitos passam para falar (ou não falar) daquilo que está em questão. Semelhantemente, outros repertórios interpretativos, como por exemplo uma interpretação religiosa dos sentimentos, ou uma explicação psicanalítica, são mobilizados na circulação dos afetos para que estes encontrem um sentido estável.

Diante da resposta de Bárbara à pergunta sobre tristeza, Daniele se mostra desconcertada, pois não é comum que um paciente responda daquela maneira. No processo de morrer, a expressão de afetos "extremos" é questão delicada e, muitas vezes, malvista. Nesse sentido, os repertórios interpretativos tanto servem para a feitura de sentido de tal ou qual estado afetivo, quanto delimitam as fronteiras daquilo que pode ser considerado um sentimento "normal", "autêntico", "exagerado", dentre outras categorias. Há, portanto, uma articulação entre a dimensão normativa e a dimensão hermenêutica das práticas afetivas. Depois de retorquir à resposta de Bárbara, Daniele retoma o repertório interpretativo psicológico, segundo o qual os estados afetivos são, em última instância, singulares a cada indivíduo, logo, não devem ser deslegitimados. Porém, a essa altura, Bárbara já havia modulado sua resposta, mudando de um 10 para 6. É possível averiguar qual grau de tristeza é mais verdadeiro? A princípio, parece que a primeira resposta seria mais autêntica, pois não teria passado pela interação com a psicóloga e, por conseguinte, não haveria sido ajustada.

No entanto, a primeira resposta de fato não foi dada em termos da escala numérica: "Às vezes a gente sente né, um pouquinho. Às vezes vem. Queria andar né. Queria poder sair, fazer as coisas…" A imprecisão da fala de Bárbara não tem espaço no repertório interpretativo da escala técnica de 0 a 10 que, por sua vez, está ligada a uma demanda institucional de relato preciso do "estado" do paciente. Os afetos oscilantes, confusos e potentes do processo de morrer estão desencaixados em relação aos moldes do registro do parecer técnico, mas podem ser traduzidos por ele. No entanto, a diferença produzida entre a resposta inicial de Bárbara e o registro final do número "6" indica que algo foi perdido/transformado na tradução. Em quatro frases, Bárbara passa de uma tristeza esporádica e diminuta, para um desejo impossível, repetido posteriormente na conversa.

A oscilação afetiva associada à passagem por repertórios interpretativos diferentes coloca em questão o vínculo entre a circulação intersubjetiva dos afetos e seus significados. Como argumentou Whitney (2018, 495), a "força afetiva" das emoções de alguém – nesse caso, o quanto a tristeza de Bárbara me comove e elicita uma resposta inquisitiva da psicóloga – pode não mover outros se as "condições intercorpóreas da feitura de sentido afetiva" forem negadas. Assim, a significação afetiva pode ser impedida se os efeitos de sua circulação intercorpórea forem bloqueados ou negados. No processo de morrer, especialmente em termos de um ideário paliativista, a mudança de repertório interpretativo pode ser vista como mecanismo de gestão de afetos extremos, visando a construção de um estado afetivo mediano e regular. Assim, a oscilação afetiva característica do afeto de morrer, ao ser modelada em uma circulação de afetos que recusa certas formas de significação afetiva em prol de outras, pode ser transformada em um estado afetivo regular.

A imbricação normativa-hermenêutica na circulação dos afetos não existe em um vácuo. Desde a percepção dos afetos dos outros até a transposição destes em ações concretas, passando pela expressão verbal ou não verbal regrada, a circulação dos afetos é socialmente mediada. Ancoradas intersubjetivamente, as emoções não constituem um plano além ou aquém das desigualdades e assimetrias que estruturam relações sociais no dia a dia. No caso do processo de morrer por adoecimento, tal dimensão estruturante da circulação dos afetos é determinada pela relação entre papéis desempenhados no trabalho de cuidado. De um lado, profissionais de saúde se apresentam como portadores legítimos da interpretação de alguns estados somáticos significativos no contexto de doença, ao mesmo tempo que obscurecem outros. Apesar disso, é comum que sentimentos "irrompam" no momento do encontro entre médicos e pacientes, o que justifica as tentativas de geri-los e controlá-los (Bonet 2006). Dito de outro modo, a possibilidade de exercício de certas práticas afetivas – propor uma interpretação dos afetos que seja aceita consensualmente ou por virtude de imposição, reivindicar regras de sentimento gerais para uma situação particular ou infringi-las, expressar as emoções de modo que elas sejam apreendidas satisfatoriamente do ponto de vista de quem expressa – depende da posição do sujeito praticante.

O que se pode e o que se deve fazer

Entre regras de sentimento, repertórios, interpretações e expressões, os afetos desaguam em ações. No âmbito do cuidado, tais ações tem singularidades que as diferenciam de outras formas de agir. A seguir, apresento outra cena etnográfica com intuito de ilustrar como as emoções estão vinculadas à organização do trabalho de cuidado:

Eu e Daniele, psicóloga do DAD, chegamos na casa de Lúcio a tarde. Ele tem 87 anos e viemos fazer a visita de inserção dele no serviço. Lúcio tem câncer de pulmão em estágio avançado e, em decorrência de outras complicações de saúde relacionadas a diabetes, não consegue se locomover por conta própria. Larissa, 85, esposa de Lúcio, vem andando da sala para se sentar ao nosso lado, na varanda do apartamento. Ela anda com muita dificuldade e é perceptível que sente dor. Antes mesmo de se sentar, Larissa já começa a falar conosco em tom de voz irritado.

Larissa: Veja bem, eu quero saber se tem como a gente fazer alguma coisa melhor com ele. Ele não tem condição de ficar em casa, não tem jeito. Eu também não estou bem pra ficar cuidando dele, eu tenho hipertensão, tenho problema de coração, o médico me falou que eu devia estar internada. E eu to aqui. Como está não tá dando.

Daniele, que havia começado a preencher os papéis para inserção de Lúcio no DAD, para e se dirige a Larissa, explicando que a atenção domiciliar oferecida pelo hospital é de assistência. Isso significa que o DAD não é capaz de participar de todo o cuidado do paciente, e atua com orientações e visitas periódicas. Portanto, cabe a família decidir se ficará com o paciente em casa ou não.

Larissa: Então, eu não sei. Eu acho que eu não aguento. Acho que uma hora eu vou passar mal e pronto.

Larissa olha para mim. Ela conta de quando operou seu joelho há 15 anos atrás e de como o processo foi longo e difícil. Ela começa a chorar e para de falar. Nesse ponto, Carolina, nora de Larissa intervém na conversa.

Carolina: Infelizmente, ela não aguenta. E ela tá com esses problemas de coração, se ela for, quem vai ficar com ele?

Daniele: Quem mora aqui?

Larissa: Aqui mora eu e ele. Lá em cima mora meu filho e ela, que é minha nora, mais os filhos dela. Tem um filho adolescente e um mais novinho.

Daniele pergunta a nora sobre a família que mora perto, sobre quem pode ajudar e sobre a possibilidade de coordenar os cuidados. Com o tempo, Larissa fala menos, enquanto Carolina e Daniele conversam. Discute-se a possibilidade de alugar uma cama hospitalar para facilitar os cuidados, mas Larissa diz que eles não têm condições. Chegando no final da visita, Daniele fala novamente as atribuições do DAD e da família, e pergunta se Larissa entendeu.

Larissa: Não, entendi, entendi… Vocês são uma equipe adicional, não vão fazer tudo. Consulta ainda é no médico e tudo mais. Eu entendi. Até peço desculpa pelo jeito que eu falei antes. No princípio eu fui grossa, mas é que a gente fica nervosa e agoniada.

Daniele: Tudo bem, a senhora tá sobrecarregada, a senhora precisa de cuidados, tá querendo cuidar, mas precisa ser cuidada. Não precisa pedir desculpa.

Larissa vira pra mim enquanto Daniele fala com Carolina. Ela olha nos meus olhos e segura minha mão.

Larissa: Velho é difícil né? É uma dificuldade, pode falar… Calma que você tá começando a vida ainda.

Ela ri e eu rio com ela.

Se as respostas de Bárbara eram tímidas, pouco precisas e às vezes contraditórias, a fala de Larissa é direta e efusiva. A raiva decorrente da desospitalização do marido, que ela julgou precoce, e a tristeza resultante de tantas outras mazelas são evidentes imediatamente. Nessa cena, porém, pode-se perceber como a circulação de afetos é movida pela ação dos sujeitos, enquanto abre disposições para agir. A ideia de "fazer um barraco" ou "uma cena" para que algo aconteça é bem conhecida no senso comum, embora tenha conotações negativas. Todavia, os afetos, sejam eles positivos ou negativos, alegres ou tristes, agressivos ou amorosos, são capazes de, enquanto estados corporais, colocar os sujeitos em movimento. Isso significa reconhecer sua potência de fazer agir. Spinoza (1677 [2007], 98) associou os afetos, ou as "afecções do corpo" à "potência de agir" do mesmo. A capacidade do corpo de ser afetado é indissociável de sua capacidade de afetar o meio, isto é, a abertura sensorial do corpo ao seu entorno é o que permite que ele seja afetado, de modo que sua potência de agir diminua ou aumente, e o que permite que ele afete o mundo e os outros. Por isso, é preciso pensar o afeto como complexo prático-relacional: a capacidade de afetar os outros está intrinsecamente ligada à suscetibilidade de ser afetado por eles. Se "comover" ou sentir-se "incomodado" são versões distintas da mesma capacidade de ser afetado e, nisso, afetar.

O que parece ser demasiado etéreo ou abstrato pode ser concretizado ao atentarmos para as práticas afetivas na sequência da conversa com Larissa: primeiro, Larissa comunica explicitamente sua raiva e frustração com o estado de seu marido; diante disso, Daniele ajusta seu curso de ação, deixando os papéis de lado e dirigindo-se a ela; então, os afetos de Larissa são traduzidos por Daniele e Carolina em termos de problemas práticos – quem pode cuidar de Lúcio, é possível pagar por ajuda, como podemos conseguir uma maca ou uma cadeira sanitária para auxiliar no banho; por fim, Daniele reafirma o que pode ser feito por parte do DAD, e Larissa se desculpa pela sua fala inicial e se despede de nós com bom humor.

Afetos colocam a prática em questão, no sentido de colocar, para os sujeitos em relação, o problema de como se deve agir em face dos afetos que circulam. Em outras palavras, estar afetado é estar em um estado particular de atenção e sensibilidade em relação ao mundo. Esse estado nem sempre é consciente, pois ocupa espaço semelhante àquele da consciência prática, ou seja, é um modo de ser que potencialmente pode ser articulado, mas não o é em princípio: "Trabalhando na fluidez do presente onde as coisas estão mudando, a consciência prática é guiada mais pelo sentimento de suas circunstâncias cambiantes, especificamente pelos elementos afetivos da consciência e das relações" (Burkitt 2002, 154). Dada a abertura sensorial do corpo para o mundo, estamos constantemente em algum estado de afetação. A questão de quando um estado afetivo "vem à tona" e se "impõe" sobre os indivíduos não é respondível de antemão, uma vez que depende, dentre outras coisas, de modos socialmente constituídos de afetividade e normalidade.4

As passagens entre estados afetivos frequentemente não são percebidas nem mesmo por aqueles que as experimentam, encaixando-se assim na névoa infra-consciente/pré-discursiva dos afetos emergentes (Bonet 2006). Não obstante, os afetos se desdobram no espaço entre corpos, na interação, nas conversas e nas narrativas. Além disso, suas oscilações estão ancoradas em práticas afetivas que, usualmente, adquirem um padrão ou uma "sequência episódica normativa" (Wetherell 2012, 79). A sequência de práticas que se desenrola no diálogo entre Larissa, Carolina, Daniele e eu, é uma sequência episódica normativa porque, pela concatenação de práticas afetivas, constrói-se um senso do que se deve e se pode fazer. No entanto, nos meandros dessa construção, percebe-se um direcionamento para certas possibilidades práticas em detrimento de outras. Mesmo a tradução de afetos em problemas práticos é uma opção dentre outras, por exemplo, a escuta das emoções sem qualquer interesse em direcioná-las para um plano de ação. As formas pelas quais somos capazes de prestar atenção a nós mesmos e aos outros são elaboradas socialmente e culturalmente, isto é, de acordo com as lentes simbólicas e posições estruturadas pelas quais os sujeitos se constituem e se relacionam uns com os outros (Csordas 2002, 244).

Quando Larissa disse: "Acho que uma hora vou passar mal e pronto", rapidamente ajustei minha postura e voltei meu corpo para ela. Olhei para seu rosto e vi que seus olhos estavam marejados. Até então, alternava o olhar entre Daniele, eu e Lúcio, seu marido, sentado em uma poltrona na sala. Depois disso, olhou somente para mim e começou a chorar, enquanto contava a história de sua cirurgia, seus problemas cardíacos, suas dores. Carolina reitera o que ela diz, mas em outro tom de voz, como se pela subtração do teor afetivamente carregado da fala de Larissa, fosse possível voltar ao problema em questão: como cuidar de Lúcio, sem descuidar de Larissa. Nessa sequência episódica de comunicações verbais e não verbais, os afetos circulantes se constituíram pela atenção dada a eles, pela sua interpretação e colocação no discurso, e pela sua tradução em termos práticos. Assim, aquilo que sentimos passa pelo que falamos e pelo que fazemos intersubjetivamente e intercorporeamente. Tal processo não ocorre em um vazio relacional, mas em um "sensorium comum", um conjunto de figuras corporais, gestos, mímicas, posturas, representações e normas que regem as interações em sociedade (Le Breton 2002, 121).

Acerca do corpo, Le Breton (2002, 122) argumenta que este é o meio pelo qual o ser sujeito "simboliza […] a tonalidade das relações com o mundo". O conjunto de formas de expressão corporal e nossas representações do corpo estão imbricadas a ponto de se tornarem invisíveis no cotidiano. Todavia, em "momentos de crises, de excessos" (Le Breton 2002, 124), o corpo volta a ser visível e traz à tona seu caráter presente-ausente. Nesses momentos, que podem ser pontuais ou duradouros e dentre os quais podemos elencar a enfermidade grave, a circulação afetiva aparece como língua franca do corpo presente, se fazendo perceber por meio de práticas afetivas inteligíveis, mas não de significado fixo.

O arranjo de cuidado em torno de Lúcio e de Larissa, que em sua posição de cuidadora não deixa de ser recipiente de cuidados, foi posto em movimento e parcialmente organizado em uma sequência de práticas afetivas. A circulação de afetos não foi a "estrutura" que sobredeterminou as ações, nem o reduto de "intensidades" que fez o mundo girar. O afeto "confere grande parte da textura dessas práticas e as torna altamente envolventes e altamente investidas" (Wetherell 2012, 81), ao mesmo tempo em que "estruturam o possível campo de ação dos outros" (Burkitt 2002, 165).

Conclusão

Afetos nos tomam de assalto e rapidamente somem. Mas também se impõe e redefinem para nós a "textura" do mundo. Isso porque entre corpos, práticas e afetos, não deixa de haver poder:

Em nossas interações, podemos agir com afeto estratégico em direção ao campo de ações dos outros, de modo que relações de poder são sempre, em alguma medida, recíprocas […], pois ao trabalhar no campo possível da ação social, o poder também busca influenciar nossos gestos e enunciados, nossos sentimentos e pensamentos. (Burkitt 2002, 165).

A intensidade dos afetos não significa potencialidade absoluta. Assimetrias de poder e desigualdades estruturadas podem se reproduzir, e se reproduzem, nas práticas afetivas. Isso porque, como já dito, a afetividade é eminentemente corpórea e corpos são constituídos socialmente de maneira desigual (Young 1980). Na história de Larissa, há algo além de dores físicas e problemas médicos: há falta de recursos para arcar com materiais adequados ao tratamento, há uma história de negligências, há a renda da aposentadoria que não abrange todas as necessidades. Na história de Bárbara, há a tristeza que não tem número e o desejo de andar, mas há também a vinda da Amazônia para o Rio de Janeiro em busca de trabalho, a saudade da família que ficou, a falta de recursos para as pomadas que poderiam aliviar as feridas causadas pela cadeira de rodas. Certos eventos – e certos afetos – ficam "em excesso" da narrativa (Das 2015, 125). Estes não deixam de "agir", pelo contrário, nos acossam e "perturbam" (Duarte 1998), para que lembremos que sempre há algo a ser feito, mesmo diante do fim.

As narrativas, mesmo que por vezes insuficientes, são partes fundamentais da circulação dos afetos. Como falamos sobre o que sentimos? De que modo concatenamos causas e efeitos – algo aconteceu e me entristeceu, ou fizeram algo comigo e fiquei irritado? Os sujeitos acometidos por doenças graves reordenam suas experiências narrativamente (Bury 1982), e isso vale também para seus estados afetivos. Foi possível, então, vislumbrar a articulação entre corpos, afetos, significados e o trabalho de cuidado. Visto que os afetos são ao mesmo tempo o que potencializa o agir e o que deixa suscetível a ação de outrem, segue-se que sua circulação abre um espaço intersubjetivo de implicação mútua, no qual os afetos do outro evocam alguma resposta. Não obstante, o teor dessa resposta, seus efeitos e até mesmo o modo de evocação ou escuta, são contingentes. A mobilização de certos repertórios interpretativos pelos quais é possível fazer sentido dos afetos dos outros e de si mesmo, pode implicar em algumas escolhas, isto é, escolhas sobre qual afeto será escutado, é digno de atenção e de resposta.

A despeito e em conjunto com as possíveis interpretações e padronizações do afeto em sua circulação, permanece seu potencial enquanto intensidade que age e faz agir. A abertura sensorial (afetiva) do corpo, agindo sobre os outros que agem sobre ele, é a condição tanto da violência e do poder exercidos pela via afetiva, quanto da transformação e da reconstrução da vida social. Assim, afeto é "promessa" ou "ameaça" (Gregg e Seigworth 2010, 9) nos arranjos de cuidado no processo de morrer, pois abre o espaço tanto para negligências e violências, quanto para a atenção e o cuidado. Nas práticas afetivas, é possível enxergar os contornos desiguais das vulnerabilidades dos sujeitos. Afirmar que somos corpos que afetam e são afetados, não significa afirmar que somos afetados e afetamos igualmente. Em seu enraizamento corporal e na sua padronização em sequências de práticas, a dimensão afetiva do social mostra-se como um espaço intersubjetivo de gestão de vulnerabilidades desiguais, e não como epifenômeno de dimensões "mais reais".

  • 2
    O problema foi enunciado por Durkheim em sua análise dos ritos piaculares e funerários. Quando um grupo familiar "sente-se diminuído" diante da perda um membro, seus "sentimentos coletivos" e a manifestação dos mesmos não correspondem a um "movimento natural da sensibilidade privada", mas a um "dever imposto pelo grupo" (Durkheim 1912 [1996], 435-37).
  • 3
    Os profissionais de saúde, pacientes e familiares serão identificados por pseudônimos para manter seu anonimato.
  • 4
    A articulação entre o ordinário e o catastrófico, ou o normal e o crítico, são temas da etnografia de Veena Das (2015). Doenças em contextos socioeconômicos de pobreza podem ser vistas como "quase eventos" que são inseridos nas rotinas da vida cotidiana, mas guardam o potencial de se transformarem em "eventos críticos". As condições sociais nas quais as pessoas experimentam a doença e a saúde –incluindo relações familiares, sistemas médicos e classe – moldam as possibilidades e a forma da oscilação entre normal e crítico.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do autor antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2023
  • Aceito
    16 Fev 2024
  • Publicado
    03 Jul 2024
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