Resumo:
O acolhimento institucional é uma medida protetiva para crianças e adolescentes, sendo o desligamento considerado um processo complexo que, sem o acompanhamento adequado, resulta em diferentes adversidades. Este estudo analisa a interação com redes de apoio social na trajetória de jovens, explorando seus múltiplos arranjos de convivência. Foram selecionados registros etnográficos realizados na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, entre os anos 2019 e 2023 com jovens que residiram em espaços institucionais e profissionais com atuação associada à desinstitucionalização aos 18 anos. Como resultados, as redes de apoio social se destacam como importantes vias de resistência, além de influência positiva no bem-estar dos jovens. Enfatizam-se, sobretudo, as reivindicações pelo incentivo à reaproximação familiar, à implementação de acompanhamento pós-desligamento, além do desenvolvimento de políticas e programas personalizados e não excludentes, que promovam a convivência familiar e comunitária.
Palavras-chave:
Desinstitucionalização; Redes de apoio social; Etnografia
Resumen:
El cuidado institucional es una medida de protección para niños y niñas, siendo el egreso a los 18 años en Brasil considerado um processo complejo que, sin un seguimiento adecuado, resulta en diferentes adversidades. Este estudio analiza la interacción en la trayectoria de jóvenes con las redes sociales de apoyo, explorando sus múltiples formas. Se seleccionaron registros etnográficos realizados en la ciudad de Porto Alegre, en Rio Grande do Sul, entre los años 2019 y 2023 con jóvenes que vivieron en espacios institucionales y profesionales con actividades asociadas al egresso. Como resultado, las redes sociales de apoyo se destacan como importantes vías de resistencia, además de una influencia positiva en el bienestar de los jóvenes. Se enfatiza, sobre todo, las exigencias de fomentar el acercamento familiar, la implementación de seguimiento post salida, además del desarrollo de políticas y programas personalizados y no excluyentes que promuevan la convivência familiar y comunitaria.
Palabras clave:
Egreso; Redes sociales de apoyo; Etnografía
Abstract:
Institutional care is a protective measure for children and adolescents, with desinstitucionalization at 18 years old being considered a complex process that, without adequate support, results in various adversities. This study analyzes the interaction in the trajectory of young individuals with social support networks, exploring their multiple forms. Ethnographic records were selected, made in the city of Porto Alegre, in Rio Grande do Sul, between the years 2019 and 2023 with young individuals who lived in institutional residences and professionals with activities associated with desinstitucionalization. As a result, social support networks stand out as important means of resistance, positively influencing the well-being of young individuals. It emphasizes, above all, the need to promote family reintegration, implementing post-care follow-up, and developing personalized and inclusive policies and programs that promote family and community living.
Keywords:
Desinstitucionalization; Social support nerworks; Ethnography
Introdução2
Recentes pesquisas têm salientado sobre os desafios enfrentados no Brasil por crianças e adolescentes que, sob a aplicação de medida de acolhimento institucional, permanecem em serviços de acolhimento até a maioridade (Rifiotis 2017; Borzese e Villalta 2020; Licio et al. 2021; Cassarino-Perez 2022; Moraes 2023). Apesar dos esforços institucionais, as iniciativas desenvolvidas não têm sido suficientes para a garantia plena de seus direitos. Como resultado, aos 18 anos, todos aqueles que residem nesses espaços passam por um processo de desinstitucionalização, relacionado não somente ao desligamento das instituições, mas abrangendo a experiência de transição como um todo, mesmo após a saída da instituição (Rifiotis 2017; Borzese e Villalta 2020).
Obstáculos na educação, inserção no mercado de trabalho, acesso à moradia, além de desafios emocionais, são alguns dos problemas associados. Nesse contexto, as redes de apoio construídas ao longo das trajetórias individuais emergem como elementos cruciais para facilitar diferentes formas de suporte e apoio, além de se constituírem como importante via de enfrentamento e resistência na desinstitucionalização (Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009; Cardoso 2023).
O presente artigo visa analisar a interação entre as redes de apoio social e afetivo durante a desinstitucionalização, sob a perspectiva de jovens que vivenciaram esse processo e de profissionais de diferentes instituições. Utilizando trechos de entrevistas oriundas de pesquisa etnográfica com quatro profissionais (Adriana, Clarissa, Patrícia e Vera) e seis jovens que permaneceram acolhidos até a maioridade (Carolina, Eduardo, Flor, Jota, Manuela e Rafael),3 múltiplos arranjos de convivência são identificados, incluindo famílias de origem, extensas e adotivas, além de profissionais de residências institucionais, padrinhos afetivos,4 amizades, entre outros formatos.
Todas as entrevistas e observações foram realizadas entre os anos de 2019 e 2023 e integram a tese de doutorado em Ciências Sociais intitulada Com dezoito vai ter que sair: a idade como único critério para o desacolhimento institucional (Cardoso; 2023), que acompanha a realização de uma produção audiovisual5 em que jovens relatam suas experiências pregressas no sistema de acolhimento institucional e como suas vidas foram atravessadas pela determinação judicial que implicou na separação familiar. Todos os interlocutores residiam na cidade de Porto Alegre no momento da pesquisa etnográfica.
Considero a definição de redes de apoio social e afetiva utilizada no estudo realizado por Siqueira, Betts e Dell'Aglio (2006) sobre a rede estabelecida por adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil e em pesquisa sobre o apoio social de famílias com crianças acolhidas, de Barroso, Pedroso e Cruz (2018). Nesses estudos, ao analisarem o contexto de famílias e crianças e adolescentes que tiveram suas trajetórias atravessadas por medida de acolhimento, as redes de apoio são conceituadas como fontes estratégicas de recursos de proteção diante de situações adversas, consistindo em pessoas que formam relacionamentos, ofertam e recebem diferentes suportes, tais como material, cognitivo, afetivo e emocional.
Além da esfera familiar, outros sistemas, incluindo amigos, escola e instituições de acolhimento são incluídos como meios de contribuir com afeto, assistência, apoio material e orientação por meio de sugestões e conselhos, assim como para a construção de relações de confiança. No presente artigo, os registros etnográficos objetivam demonstrar percepções diversas quanto às interações entre estas redes, com ênfase no período de desinstitucionalização.
Por fim, adoto a perspectiva teórica de Fonseca, Allebrandt e Ahlert (2009), ao tratarem como "táticas de resistência" as estratégias exercidas na interação com as estruturas de poder em relação aos seus mecanismos de controle social. Nesse sentido, as autoras enfatizam a criatividade exercida pelos próprios indivíduos em seus cotidianos. A fim de identificar o que aqui compreendo como tais estratégias, destaco os depoimentos dos interlocutores sobre suas experiências particulares como forma de ilustrar o modo como as redes de apoio, diante de diferentes situações, atuaram durante a desinstitucionalização.
Retornando à família de origem e/ou extensa
Adriana desempenha o papel de educadora social em uma instituição de acolhimento em Porto Alegre/RS e se autodeclara como uma mulher branca, viúva e mãe de dois filhos. Segundo a interlocutora, à medida que o desligamento se aproxima, são iniciadas tentativas de experiências familiares. Eduardo, que tem 19 anos e se autodeclara indígena, foi acolhido com onze irmãos aos treze anos de idade. Eduardo viveu em diferentes instituições até atingir os 18 anos, e sugere que a reaproximação familiar deveria ser incentivada previamente, e não apenas nos momentos iminentes ao desligamento:
A aproximação com a família ela poderia começar desde 16, 17. Porque eles começam ali perto dos 18 né! […] Tem casos que o pessoal tem uma aproximação da família desde sempre, mas eles poderiam tentar mais assim… "ô, tu não tem um irmão, uma irmã? Vamos tentar conversar com ela, né, tu já tem 17 anos". Começar a tu visitar mais a casa dela, tu poder passar mais tempo com ela, eles não fizeram isso, fizeram isso quase no final né, então eles poderiam trabalhar mais esses casos que têm familiares, só que precisa aproximar. Precisa fazer esse movimento. […] começar a trabalhar o mais cedo possível isso, então faltou só isso, né, eles trabalharem isso antes, não perto ali, ou em cima da hora, mas que tenha maior aproximação, pro cara se sentir mais tranquilo, mais tranquilizado, mais preparado, e ver se realmente vai dar certo. (Eduardo, com. pess., 2023).
Vera é coordenadora de um instituto, que possui como proposta acompanhar jovens antes e após o desligamento. Ela se autodeclara como uma mulher branca de 58 anos, graduada em direito, casada e mãe pelas vias biológica e adotiva. Patrícia é voluntária no mesmo instituto que Vera coordena e se descreve como uma mulher branca de 42 anos, mãe de dois filhos adolescentes e graduada em psicologia.
Ao desempenhar papel voluntário em uma organização que se dedica ao acompanhamento do desligamento, Patrícia se concentra em avaliar a situação dos adolescentes durante a transição institucional. Indagando sobre vínculos familiares, Patrícia investiga a possibilidade de retorno à moradia com a família de origem, questionando se há desejo nesse retorno e se os familiares têm realizado visitas.
Para Vera, que coordena a mesma organização em que Patrícia atua como voluntária, o retorno à família de origem é destino comum entre jovens que atingem os 18 anos na instituição. Caso não seja considerado como uma opção viável, questiona-se se preferem morar sozinhos ou com amigos. A organização se propõe a facilitar esse processo, intervindo nos casos de retorno à família, ou ajudando na procura por moradia, com base em análise das suas condições. Ao ponderar sobre o retorno à convivência familiar, Patrícia destaca a importância em avaliar a situação de cada adolescente:
Se quer morar com o tio, com a família, dá pra fazer? Então olhar esse caminho […] só os responsáveis que sabem, se tem briga ou violência, talvez o desejo deles seja um, mas a realidade outra. Então eu falo com os técnicos para ver se dá para investir nesse sentido. Tem outros que não querem nem saber da família, que querem morar sozinhos, ou com amigos, aí tem que ver como vai ser, como faz para alugar, como vai ser, e a gente tá nesse preparo. (Patrícia, com. pess., 2019).
Na experiência de Manuela,6 o retorno para a casa da família de origem foi permeado por desafios, associados, especialmente, à condição de saúde da mãe: "[…] só que a minha mãe, eu saí de lá por causa de sérios problemas dela. Ela fuma todo tipo de droga e ela bebe". Manuela descreve sobre os motivos que a levaram a deixar a casa da família, apontando também para conflitos com membros de sua família extensa:
[…] E quando ela bebe, ela sai dela e daí ela bebeu no dia do meu aniversário e disse que ia me matar […] Só que antes disso eu tinha essas outras coisas né, dentro da casa com o meu tio, com o meu padrasto. Então eu falei ó, quer saber? Pro meu bem-estar mental e o meu bem-estar físico eu vou embora. Aí o que que eu fiz? Eu peguei só as coisas que são necessárias, eu peguei umas três peças de roupa e fui. (Manuela, com. pess., 2021).
Clarissa tem 43 anos e se autodeclara como uma mulher negra, com formação em assistência social. Ela trabalha como coordenadora de uma rede de casas lar7 e, desde o início de sua atuação na instituição, já acompanhou cerca de quinze desligamentos institucionais. Ela afirma que Nicole, aos 14 anos mantém o contato com sua mãe biológica: "Tem a mãe que a visita. Ela tem muitas críticas assim do que essa mãe precisaria para mudar sua situação".
Ao considerar a possibilidade do retorno à convivência diária, Clarissa aponta para a resistência de Nicole em fazer visitas para a mãe: "Agora vão passar o Natal e o Ano Novo, mas ela já disse, ‘ai, Clá, mas é só para visitar mesmo a mãe’, porque a mãe vai de novo voltar para as drogas. Tem muitas recaídas assim".
"Não é raro as experiências não darem certo" – afirma Adriana, complementando que o retorno à instituição após uma experiência familiar malsucedida, é ainda mais preocupante para os adolescentes: "[…] a família que eu achei que pudesse sair daqui e ir morar com eles não aconteceu, né – e isso é uma coisa bem comum de acontecer, infelizmente". Jota tem 22 anos e se autodeclara negro. Em seu caso, a medida de acolhimento foi determinada junto a cinco dos seis irmãos quando tinha onze anos. Jota considera que as dificuldades identificadas na reaproximação familiar evidenciam falhas no sistema de acolhimento:
[…] Se tu não tem onde morar, tu vai ter que morar de favor, tu vai ter que dar um jeito, que é o que acontece, muitas pessoas voltam pro seio familiar, entendeu? aí tu saiu do seio familiar porque teve um problema, não te estruturizar e acabar voltando, quer dizer que o que? Que o processo de acolhimento não funciona. (Jota, com. pess., 2021).
Clarissa descreve o processo de Anelise, que planeja morar com os tios após o desligamento. A coordenadora sugere, no entanto, que muitas problemáticas permeiam essa relação, incluindo desafios que remontam à própria medida de acolhimento. Nem sempre – pontua Clarissa, a equipe técnica acredita que as famílias de origem e/ou extensa sejam as opções mais adequadas e que, inclusive, há pessoas da rede extensa que não "se colocam muito à disposição", apesar do desejo dos adolescentes.
Os irmãos gêmeos Eduardo e Gustavo circularam por diferentes espaços após a saída do acolhimento institucional. Primeiro, foram para a casa da irmã, onde permaneceram por dois meses: Depois, foram para a casa de um irmão, onde permaneceram por quase dois anos. Eduardo e Gustavo chegaram a morar juntos, mas Eduardo conta que a experiência "não deu certo". Após, Gustavo foi morar sozinho e, depois, passou a dividir o apartamento com um amigo. Eduardo foi para a casa da irmã:
[…] e eu fui morar com a minha irmã, daí passei um tempo lá, eu fiquei uns cinco seis meses lá com ela, arrumei emprego, saí do emprego, então foi bem difícil assim né, e daí no final, graças a deus, nos quarenta e cinco do segundo tempo, eu consegui um emprego aqui na "Farmácia" […] graças a deus eu tenho esse emprego, que foi com ele que eu consegui a minha independência, né, a minha chave da minha casa. (Eduardo, com. pess., 2023).
Eduardo afirma que por último, chegou a morar com o avô, até que alugasse a residência onde vive atualmente: "Fui para a casa do meu avô e aí no meu avô eu passei duas semanas. Em duas semanas eu consegui mudar a minha cabeça. Por isso que eu te falei que a chave da minha casa foi muito difícil de conseguir, sabe?".
Vários momentos me senti deslocado, não me senti muito bem no lugar, não me senti à vontade, né, sentia que mais tava atrapalhando do que ajudando, então várias vezes me senti como um incômodo ali, né, um encosto, mas hoje em dia graças a deus não sinto mais isso. (Eduardo, com. pess., 2023).
Rafael tem 21 de idade e se autodeclara moreno. Ele foi para o acolhimento aos cinco anos, com os dois irmãos. Rafael e Jota compartilham experiências semelhantes, ao considerar a moradia com suas irmãs, antes de se desligarem das instituições. Rafael menciona que sua irmã estava desempregada, e ele não queria se sentir como causa de maiores despesas: "Porque ela tem três filhos e aí eu não queria ser esse peso, entendeu?". Jota descartou a ideia devido aos problemas que a irmã enfrentava em seu casamento: "Então não fazia sentido eu morar com ela para acabar dando mais um gasto pra ela, mais um transtorno".
Nos depoimentos coletados, oriundos de pesquisa etnográfica, a presença dos irmãos como rede social afetiva é destacada como influência significativa. Jota enfatiza o seu papel de cuidado com os irmãos mais novos durante o período em que estiveram acolhidos juntos. Rafael destaca a importância da presença de seus irmãos mais velhos como referências, mencionando as visitas e a colaboração para ajudá-lo na busca por moradia antes de sua saída da instituição.
Carolina, que tem 23 anos de idade e se autodeclara como uma mulher negra, foi acolhida com os cinco irmãos, quando tinha nove anos. Hoje, é mãe de um menino de um ano e meio e trabalha como folguista em duas casas-lar, sendo uma delas justamente a residência em que esteve acolhida antes de completar 18 anos. Carolina escolheu residir justamente na mesma vizinhança que sua irmã após deixar a casa lar.
A pesquisa de Almeida (2009), que tem centralidade em grupos de irmãos acolhidos, sugere que é comum que ocupem um lugar de importância, tornando-se relações de referência e desenvolvendo fortes sentimentos de cumplicidade e proteção, resultado da vivência compartilhada em suas famílias biológicas, na separação da família de origem e no ingresso e permanência em acolhimento.
Quanto às trajetórias das famílias de origem, não se pode desconsiderar que estas costumam ser marcadas pela referência a categorias, como abandono e negligência, resultando em representações que tendem a homogeneizá-las, e silenciando as problemáticas estruturais que se apresentam (Diotti 2018; Mendes e Conceição 2018).
Ademais, a medida de acolhimento institucional é uma tecnologia de governo que atua no sentido de regular sujeitos, populações e problemáticas (Fonseca et al. 2016). Nesse sentido, na interação com os sujeitos, diferentes arranjos familiares podem ser apresentados como um destino ora "mais desejável", ora "menos desejável", operando moralidades e exercendo influência, inclusive, na própria posição e prática de profissionais, assim como de famílias, crianças e adolescentes afetados pela medida. Enfatizam-se, assim, as complexidades identificadas nessas interações, tanto entre os próprios indivíduos quanto entre eles e as tecnologias de governo que os regulam.
Em diferentes formatos: amigos, educadores, entre outros
Jota tinha o costume de se perguntar sobre quem seriam as pessoas que o haviam ajudado e que ainda estariam dispostas a auxiliá-lo. O interlocutor se relembra de Lavínia, sua professora de Geografia desde a sexta série do fundamental. Foi Lavínia quem ajudou Jota durante seu desligamento, contribuindo com a compra de itens como cobertores, lençóis, roupas, copos e talheres quando ele foi morar sozinho. Jota afirma que ele e Lavínia construíram uma amizade que se mantém até hoje. Após a saída compulsória da instituição, Letícia também é citada como uma amizade significativa:
[…] Até que daí a minha ex-cunhada, ela nesse meio tempo ela acabou vendo a minha postagem no LinkedIn e ela disse assim ‘Cara, eu não sabia que tu morava em abrigo’ […]. Por que que tu não falou antes? Vem cá morar comigo’. E aí quando eu tava já trabalhando né, e a casa dela era própria e eu fui morar com ela. Então eu acabei ficando ali uns dois meses e aí eu fui morar com ela […] e aí foi isso que onde eu… Bah, consegui me estruturizar, porque eu tinha com quem conversar né, pelo menos. (Jota, com. pess., 2021).
Flor tem 19 anos e se autodeclara indígena. Ela é natural de Manaus e tinha quatro anos de idade quando foi para um acolhimento. Foi ela quem escolheu o nome "Flor". Ao sair do acolhimento, Flor foi para uma república,8 mudando-se posteriormente para a residência do namorado. Após o término do relacionamento, retornou à república, que encerrou suas atividades após alguns meses. Atualmente, Flor reside na casa dos pais do namorado de uma amiga, mas pensa em sair em razão de conflitos entre ela e a mãe do namorado da amiga. Manuela, após deixar a casa da família, foi morar com uma amiga que conheceu durante o período na casa lar. No entanto, a relação entre elas se tornou conflituosa, resultando na expulsão de Manuela. Diante disso, Manuela foi a procura do suporte de Marisa, a quem se refere como sua mãe adotiva:
Depois ela me mandou embora, aí eu fui embora, porque é sempre assim, eu vou pra casa das pessoas e as pessoas me mandam embora […] Daí eu fui para casa da Marisa, que era minha mãe adotiva né, de muitos anos que eu conhecia ela, não deu certo, porque eu tava em depressão, eu não tava me sentindo bem, eu só queria ficar deitada, eu não comia, e ela achava que eu tava fazendo aquilo pra chamar atenção, porque pra ela, para muita gente depressão é se matar, se cortar, entendeu? Então eu não podia mudar o pensamento dela, porque a minha psiquiatra disse que eu estava em depressão e se eu continuasse assim eu ia acabar tomando outras atitudes. (Manuela, com. pess., 2021).
Posteriormente, Manuela foi morar sozinha e compartilha que, em breve, dividirá a residência com uma amiga: "Agora, semana que vem, vai vir morar uma menina comigo, que também era de acolhimento". Manuela complementa: "Por que que ela vai vir morar comigo? Porque eles querem que ela volte pra família, só que ela não vai se sentir bem com a família, daí a gente tava conversando, ela falou com a mãe dela, a mãe social, e ela falou: não, eu vou ser mais feliz com a Manuela". Situação semelhante aconteceu com Carolina, que conheceu Bárbara enquanto ambas residiam na mesma instituição, como detalha no trecho a seguir:
[…] eu aluguei uma casa e como eu ainda tava trabalhando na época, daí eu pagava o meu aluguel. Mas depois de um tempo uma menina que tava morando na mesma casa que eu, a gente resolveu morar juntas, daí a gente ficou morando juntas por um tempo, depois cada uma seguiu o seu lado. (Carolina, com. pess., 2023).
Catarina havia sido mãe social na casa lar em que Rafael e seus irmãos residiram. Próximo aos 18 anos, o irmão de Rafael, que morava na mesma vizinhança de Catarina, pediu para que ela o acolhesse. Enquanto morou com Catarina, ela e Rafael mantiveram uma boa convivência, dividindo responsabilidades. Rafael destaca que, devido à condição de grupo de risco de Catarina durante a pandemia de Covid-19, costumava ajudá-la em tarefas que exigiam saídas de casa.
Quando eu saí dali eu não tava trabalhando, daí foi meio que tipo um sufoco, porque eu tive que pedir pra uma ex-mãe social que cuidava da gente quando a gente era menor, e ela me acolheu pelo menos por alguns meses, até eu me estabelecer conseguindo um emprego e aí tipo eu fiz os 18 e fui lá pra casa dela, ela me acolheu, tranquilo, daí eu consegui um emprego agora faz esse pouco tempo, e tô morando sozinho agora. (Rafael, com.pess., 2021).
Rafael menciona que deixou a casa de Catarina para ir morar com a namorada, afirmando que ele e Catarina continuam em contato e que, inclusive, recentemente, ele havia a visitado para a comemoração do Dia das Mães. Além de Catarina, Rafael complementa que ainda conversa com outras educadoras das instituições em que residiu, especialmente com aquelas que considerava ter desenvolvido mais proximidade. Rafael faz muitas referências à figura de Cláudio – funcionário da casa lar que o ajudou muitas vezes, aconselhando-o e que inclusive, lhe indicou para o primeiro emprego.
Clarissa considera comum que, ao atingirem a maioridade, muitos jovens passem a residir com antigos cuidadores: "O último caso de desligamento, que foi em setembro agora de 2022, a Raquel, ela foi morar na casa dos pais sociais". Na convivência diária com Raquel durante um período de três anos, Clarissa destaca que Raquel e os pais sociais estabeleceram laços afetivos muito fortes, afirmando que a situação de Raquel se assemelhava a "uma espécie de adoção, mesmo ela já tendo completado 18 anos".
Carolina afirma que Nora e Roberto, seus pais sociais na casa lar, lhe ofereceram apoio constante ao longo de vários momentos, permanecendo ainda hoje muito presentes em sua vida e na vida de seu filho Pedro:
Até hoje eles me ajudam. E a pessoa que eu tenho bastante vínculo assim, era a mãe Nora né, que ficou comigo lá e cuidou de mim, ela e o pai Roberto, que até hoje eu chamo de mãe, até hoje eu chamo de pai, e hoje eles são dindos do meu filho […] Eles são padrinhos do meu filho. E o meu filho chama eles de vô e de vó. E eles chamam ele de neto. E até hoje eles me ajudam bastante. (Carolina, com. pess., 2023).
Foram Nora e Roberto que ajudaram Carolina a mobiliar a sua nova casa: "Quando eu me mudei, eu não comprei nada da minha casa. Eu ganhei tudo! […] Eles fizeram o meu aniversário, de 18 anos, daí a mãe social teve a ideia de fazer chá de casa nova antes de eu sair". Foi Nora quem recomendou a Carolina uma vaga como cuidadora residente em regime de folguista, na mesma casa lar em que ela foi acolhida: "na primeira oportunidade, ela [Nora] me deu a vaga. Sou folguista de duas casas lar".
Em pesquisa conduzida por Abais e Dell'aglio (2014), as autoras indicam que crianças e adolescentes acolhidos em residências de acolhimento consideraram um funcionário (educador ou técnico) como fonte de apoio mais significativa, superando, em número, as referências às famílias consanguíneas. Contudo, nem todas as descrições dos relacionamentos entre crianças/adolescentes e profissionais, como monitores, educadores e técnicos, foram positivas, especialmente para Jota.
Além de inúmeros conflitos vivenciados por Jota com a mãe social durante sua institucionalização, ele compartilha sobre a situação delicada de uma de suas irmãs mais novas. Antes de atingir 18 anos, após adoção, Flávia foi morar com uma funcionária da casa lar. Posteriormente, Flávia fugiu da casa da mãe adotiva por conflitos devido à discriminação em relação à sua orientação sexual: "Ela entrou num meio onde achou que ia receber amor, mas ela acabou recebendo dor por ser uma pessoa LGBT". Após a sua fuga, Jota afirma que Flávia encontrou apoio na casa de uma tia, que cedeu espaço em sua casa para que a sobrinha pudesse viver com ela.
É possível observar que são múltiplas e variáveis as formas como os relacionamentos interpessoais se apresentam nos registros etnográficos. Isso demonstra que as trajetórias, assim como o modo como se constituem as relações e como são experienciadas, especialmente no contexto da desinstitucionalização, não são homogêneas.
Programa de apadrinhamento afetivo
Oportunizar vínculos e assistência financeira temporária contribuindo para a superação de desafios socioeconômicos enfrentadas por jovens acolhidos pelo sistema de proteção: essa é a proposta do programa Apadrinhamento Afetivo, implementado em Porto Alegre desde o ano de 2002 (Fávero 2001; Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009; Dantas 2011). As interlocutoras Clarissa e Vera destacam importância do programa para formação de vínculos duradouros, mesmo após o desligamento da instituição.
Clarissa enfatiza que Camila, aos 15 anos, tem pensado sobre a possibilidade de ir morar com os padrinhos afetivos após o seu desligamento. A interlocutora sugere que os padrinhos, inclusive, já concordaram com a ideia proposta. Vera também acredita que a relação de confiança com padrinhos afetivos seja muito importante, como aconteceu com Marcos, adolescente que evadiu e seguiu contatando os padrinhos:
Tinha um menino esse ano e ele conseguiu uma madrinha, um casal bem novinho assim, com criança pequena, conseguiu. Uma semana depois que ele tava com os padrinhos ele evadiu. Ele não voltou mais pro acolhimento, mas ele continuou indo pros padrinhos. Porque ele confiou neles, sabe?. (Vera, com. pess., 2022).
Em pesquisa sobre o apadrinhamento afetivo, Dantas (2011, 44) afirma que "quando os afilhados completam 18 anos, seus padrinhos podem levá-los para morar em suas casas ou os ajudarem a conseguir uma moradia para os afilhados". As autoras Santana e Contreras (2020, 7) pontuam que o intuito do apadrinhamento afetivo tem sido "afetivo ou financeiro" e que normalmente tem se concretizado como uma ferramenta positiva, capaz de assegurar um ambiente familiar especialmente no que diz respeito à criação de vínculos duradouros e convívio familiar e social para crianças com mais de 10 anos e com chances reduzidas de reinserção familiar e adoção.
Embora concorde com a eficácia do programa, Vera ressalta que seria necessário um maior cuidado por parte das instituições no desligamento, uma vez que nem todos são contemplados pelo apadrinhamento afetivo, assim como nem sempre constroem relações duradouras de afeto e confiança:
Eu vejo que a equipe técnica dá mais valor a um apadrinhamento do que com a saída deles, sabe? […] realmente os vínculos com os padrinhos são fortes, muitas vezes eles levam os adolescentes depois dos 18 para morar com eles. Mas não são todos, são alguns. (Vera, com. pess., 2022).
Na perspectiva das interlocutoras sobre o programa, destaca-se o estabelecimento de laços afetivos que podem perdurar, inclusive, para além do desligamento institucional. Ao transcender o vínculo institucional, tal arranjo oferece a possibilidade de continuidade desses laços e experiências práticas, como o caso de Camila, que considera ir morar com os padrinhos após o desligamento. A observação de Vera, entretanto, aponta para o fato de que nem todos os jovens são contemplados por essa modalidade, destacando a necessidade de maior atenção para o desenvolvimento de políticas específicas voltadas à desinstitucionalização por parte das instituições.
A rede social e afetiva como via de resistência
A proposta de parcerias com repúblicas, sugerida como orientação na transição institucional,9 na prática revela a ausência desta modalidade em diversos estados e municípios brasileiros. Mesmo onde existe, a disponibilidade de vagas é insuficiente, resultando na escassez de oportunidades habitacionais (Cassarino-Perez 2022; Moraes 2023). Em relação à limitada oferta em Porto Alegre, Vera diz: "Nós temos hoje três ou quatro repúblicas em Porto Alegre, não dá conta desses adolescentes, então é muito complicado assim, saber que a maioria deles vão sair e não vão ter chance".
[…] Nós já tivemos adolescentes […] que já tavam há dois anos fora do acolhimento e vieram pedir socorro pra gente ajudar porque eles não tinham o que comer, não tinham onde morar, da gente montar na pandemia uma casa inteira pra uma adolescente que saiu do acolhimento, não tinha onde morar, nós alugamos uma casa […] durante quatro meses pagamos o aluguel, a água e a luz dela, nós demos comida pra ela, e montamos a casa dela com doação de todos os voluntários que a gente têm, entendeu? (Vera, com. pess., 2022).
Ao ponderar sobre o seu processo de desligamento institucional, Jota considerava que não tinha uma rede de suporte com quem pudesse contar, além de se encontrar desempregado e sem perspectiva de moradia:
[…] eu estava apavorado, porque eu tava desempregado, sem dinheiro, sem ficar onde morar, sem nada, nada, nada, nada, nada, nada. Por quê? Eu não tinha mãe, eu não tinha familiares para morar, eu não tenho familiares, eu não tenho nem tia, nem tio, nem padrasto, nem nada, nada, nada, nada. Tipo, eu não tenho a referência de família, nada, nem tio, nem tia, nem a amiga da minha amiga, que morava lá na vila, que poderia me aceitar, nada. […] a solidão existiu, por um tempo assim, por questão muito familiar, eu não tava com meus irmãos […] Acabei passando muitas dificuldades. (Jota com. pess., 2021).
Adriana observa que após o desligamento, os pedidos por ajuda, sejam financeiros, com tarefas burocráticas, ou apenas o desejo de conversar, frequentemente chegam: "[…] Conselhos. Às vezes, é só para conversar. Eles se sentem sozinhos". Vera reforça a importância de um acompanhamento efetivo durante a transição institucional, ressaltando a falta de escuta, apoio e suporte e de pessoas que ofereçam esse tipo de ajuda: "O fato de ele sair de lá de dentro e ter alguém que apoie… não importa onde ele tá, ele vai ter o apoio daquela pessoa ali… ele consegue".
Vera acredita que um dos desafios críticos associados ao acolhimento são crianças e adolescentes que "não criam vínculos com ninguém": "[…] Eles não têm isso lá dentro. Então tu imagina! Se é difícil pra gente que tá aqui fora, imagina quem tá lá dentro, que não tem escuta, que não tem ninguém brigando por eles, né". Segundo Vera, há um reflexo disso no desligamento: "[…] Acabam no esquecimento até os 18 anos e a sair e a não ter ninguém aqui fora como vínculo afetivo, né!"
Jota salienta que foram raros os educadores com quem pôde contar, reiterando que não recebeu o suporte que considerava necessitar ao longo de sua experiência de acolhimento, assim como de desligamento. Patrícia comenta sobre a percepção de Isabella, jovem que dizia não ter com quem contar durante a transição institucional:
Ela já tomou pra ela que ou é com ela, ou é com ninguém. Ela diz: não foi como eu queria até agora, mas agora eu mesma vou conseguir, vou fazer 18 e a minha vida vai ser diferente, que agora é só comigo. Não tem mais o que esperar da família. Não tem o que esperar da sociedade e agora sou eu… não adianta ficar aqui chorando. Não vou ficar mais esperando, vou trabalhar, vou construir a minha vida (Patrícia, com. pess., 2019)
Manter programas destinados "ao apoio e acompanhamento de egressos" se institui como uma prioridade pelo art. 94 da constituição.10 Clarissa afirma que na instituição em que trabalha como coordenadora, apesar da existência de um plano de acompanhamento, ainda não há uma "política fechada" dedicada ao desligamento:
[…] durante esse período acompanhei alguns desligamentos de adolescentes com 18 anos, e é um processo, que apesar de que a gente tenha um plano assim de acompanhamento, um ano antes quando eles fazem 17, é muito desafiador, porque não tem uma política pública assim fechada né, em que a gente possa traçar esse plano assim, como uma metodologia. Cada caso de acolhido se torna único, assim como seu processo. (Clarissa, com. pess., 2022).
Para Vera, a realização de um acompanhamento prévio ao desligamento, assim como um processo de "pós-acolhimento" seria fundamental. Isto porque, após a saída aos 18, muitas instituições perdem o contato dos jovens. Sobre políticas públicas voltadas à resolução de tais problemáticas, Rifiotis (2016, 215) coloca em evidência uma ausência destas iniciativas, o que resulta em uma espécie de não lugar:
Os serviços de acolhimento e, consequentemente, as políticas que os produziam como parte do dispositivo de proteção à infância e à adolescência, eram o lugar de partida. Se, entretanto, em termos de políticas públicas, havia um interesse ampliado em relação ao processo de institucionalização, no que se refere aos "egressos" pude observar que se produzia uma espécie de não lugar nessas mesmas políticas que outrora os reconheceram como sujeitos de direitos ou cujos direitos foram violados.
Diferentes estudos têm apontado que as medidas protetivas não têm sido plenamente efetivas no cumprimento da garantia de direitos à convivência familiar e comunitária (Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009; Rifiotis 2017; Licio et al. 2021; Cassarino-Perez et al. 2022; Cardoso 2023; Moraes 2023). Nas pesquisas citadas, são indicados como motivos a ausência de políticas sociais que possam garantir a proteção integral às crianças/adolescentes, assim como às suas famílias de origem.
Como agravante, são referenciadas as consequências das longas permanências em residências institucionais, associadas a fragilidade de incentivo e manutenção de vínculos, pois quanto maior for o tempo de institucionalização, menores se tornam as chances de reestabelecimento de vínculos com figuras parentais ou parentes próximos, assim como a inserção em família substituta.11
Sugere-se que a identificação de tal falha no sistema é razão suficiente para a insistência de que o poder público continue, por tempo maior, provendo as garantias necessárias a quem completa a maioridade dentro dos espaços institucionais (Licio et al. 2021; Moraes 2023), incluindo a identificação de seus "percursos pós-desligamento com vistas a impulsionar mudanças no atendimento das necessidades identificadas" (Licio et al. 2021, 16). Importa contribuir, nesse sentido, com dados relevantes, especialmente através da escuta do que os próprios jovens têm a dizer (Moraes 2023).
Diante dessas ausências, é na circulação por espaços entre as famílias, as instituições e a comunidade, que as principais redes afetivas e de apoio vão sendo formadas. Não é incomum, portanto, que nos registros apresentados, vínculos de diferentes formatos sejam citados. Ao referenciar os laços desenvolvidos entre jovens e monitores que convivem nas instituições, Fonseca, Allebrandt e Ahlert (2009, 62) afirmam que a busca por apoio nos monitores após a saída reforça a ideia de que "o apoio intergeracional pode acontecer fora das relações de parentesco propriamente ditas, se direcionando cada vez mais para a rede de relações afetivas que o próprio jovem vem construindo ao longo de sua vida".
As autoras ressaltam a importância em sublinhar a criatividade dos próprios indivíduos em suas práticas cotidianas de enfrentamento e interação com as estruturas de poder, afirmando que o aparelho disciplinador não está lidando com objetos inertes e que, por isso, pintar as pessoas como vítimas passivas seria ignorar a sua própria capacidade, não somente de resistência, como de criatividade: "Quanto aos jovens abrigados, nem sempre ficam esperando passivamente que o ‘sistema’ resolva seus problemas. Vão tecendo táticas fora do abrigo que ora completam as lacunas das políticas sociais, ora burlam as políticas que julgam inoperantes" (Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009, 58).
Muitas das privações de suporte identificadas entre populações atravessadas por cenários desiguais se encontram acompanhadas de uma longa história de gerações de famílias que viveram privações semelhantes, associadas, inclusive, à própria aplicação da medida de acolhimento institucional (Barroso, Pedroso e Cruz 2018). Isto porque, famílias afetadas pela destituição do poder familiar, geralmente, não possuem redes de apoio em suas comunidades, além de trajetórias de vida normalmente marcadas por processos de rupturas de vínculos afetivos, o que resulta na ausência de possibilidades de apoio e de pessoas com quem possam contar e recorrer em busca de ajuda para conseguir desempenhar funções de cuidado e proteção dos filhos (Fávero 2001).
Ademais, o escasso incentivo ao contato entre as famílias de origem e/ou extensa e crianças e adolescentes em acolhimento tem sido sugerido como dado de relevância para que as políticas associadas ao sistema de proteção fortaleçam os vínculos, ao invés de privá-los e/ou fragilizá-los (Barroso, Pedroso e Cruz 2018). Ao refletir sobre as diferentes instituições de acolhimento em que residiu, Jota se posiciona criticamente em relação à ausência de incentivos significativos à reaproximação familiar. Em sua perspectiva, a falta desse estímulo, sem dúvida, resulta na permanência de adolescentes nas instituições até os 18 anos. O interlocutor aponta para uma falha na promoção e no fortalecimento das relações familiares, destacando que essa falha não está associada apenas à reintegração familiar, mas também a um senso geral de familiaridade nos espaços institucionais, que também não fortaleceram os seus vínculos com os irmãos:
Essa coisa de resolução, de vamos auxiliar, vamos tentar com que a família cresça dentro do abrigo, e a família de fora também cresça, isso, sério, não têm, não têm. Se tiver, são raros os casos. […] As crianças e os adolescentes acabam crescendo dentro dos abrigos e crescendo sem senso de família (Jota, com. pess., 2022).
Wolf (1990) descreve sobre o modo como relações interpessoais e de parentesco podem apresentar vantagens nas sociedades complexas. O autor cita diversos exemplos de relações que podem exercer influência ou atuar como manobras sociais para adquirir e manter bens, conhecimento, poder e prestígio. Nos círculos de parentesco, as famílias mantêm características permanentes de desempenho de múltiplas funções, capazes de satisfazer necessidades econômicas, sociais, sexuais e afetivas, além de exercer influência sobre os recursos sociais de que dispõe para atuar fora do meio familiar. Em uma relação de amizade, o acesso a recursos naturais e sociais podem atuar no âmbito emocional e instrumental e, inclusive, exercer influência política e econômica. Para o autor, tais exemplos revelam uma dinâmica social de trocas registradas como relações de força, podendo atuar como meios para alcançar recursos, distribuir bens e serviços, manter contatos, elevar status sociais, trocas mútuas, entre outros.
Ao abordar a inserção de jovens no mercado de trabalho que viveram em instituições de caráter internato-prisão, Altoé (2009, 81) identifica que entre aqueles que conseguiram manter relações familiares, maiores possibilidades de empregabilidade e moradia se visibilizavam, em razão da funcionalidade das relações familiares como mediadoras: "O fato de estar morando com a família, não tendo que se preocupar de imediato com moradia e alimentação, dá ao indivíduo mais tranquilidade na busca de um emprego". Por outro lado, para aqueles sem vínculos familiares, as dificuldades aumentavam "visto que se encontram sozinhos, não podendo contar com a infraestrutura básica que é oferecida pela família", tornando ainda mais desafiadora a tarefa de arcar com custos como aluguel, alimentação e transporte.
Nos registros etnográficos apresentados, muitas foram as dificuldades enfrentadas no contexto de desinstitucionalização, que se potencializavam mediante a fragilidade ou a ausência de relações sociais com familiares e com a comunidade. Além disso, acusações de práticas institucionais excludentes, por não haver lugar para todos os candidatos potenciais, assim como a ausência de vagas em repúblicas, que influenciam no acesso à moradia, a falta de um acompanhamento pós-desligamento e o não lugar nas políticas públicas (Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009; Rifiotis 2016; Licio et al. 2021; Moraes 2023) parecem enfatizar a importância destacada sobre a necessária efetividade à garantia dos direitos já anteriormente estabelecidos pelo estatuto da criança e do adolescente.
Neste cenário, a atuação das redes de apoio construídas pode ser avaliada como processos de resistência diante das dificuldades estruturais apresentadas, podendo atuar como influência positiva, tanto para a remissão em sentimentos de desamparo, ampliação do bem-estar e de boa saúde, como para maior satisfação e qualidade de vida (Siqueira, Betts e Del'Aglio 2006; Barroso, Pedroso e Cruz 2018). Segundo o relato dos interlocutores, práticas de suporte, como o fornecimento de recursos materiais, informações, ou simplesmente a companhia, por meio de apoio emocional, através de uma conversa ou conselho, foram elementos que se destacaram como influências positivas nas interações entre as redes de apoio na desinstitucionalização.
Por outro lado, as ausências, tanto de redes de apoio que possam oferecer tais auxílios quanto de políticas que incentivem a promoção e o fortalecimento dos vínculos familiares e com a comunidade, indicou a ampliação de adversidades diante de constrangimentos marcados por violações de direitos muito próximas ao próprio contexto da medida de acolhimento institucional. Sentimentos como solidão e preocupação podem permear a experiência entre aqueles que se tornam alvo dessas múltiplas falhas, ausências e rupturas, muitas vezes atribuídas pelos interlocutores à ineficácia e ausência de práticas efetivas dos órgãos públicos, e não apenas às famílias de origem, como os discursos hegemônicos operantes frequentemente tentam fazer crer.
Considerações finais
Diferentes interlocutores (tanto os profissionais quanto os jovens entrevistados) abordaram sobre as complexidades e nuances associadas à experiência familiar na desinstitucionalização. Além da referência à conflitos, uma perspectiva recorrente, especialmente no depoimento das profissionais, é a centralidade em um aparente insucesso no retorno à convivência com a família de origem. As referências a conflitos, expulsões e fugas, no entanto, não foram exclusividades das famílias de origem e/ou extensas nos depoimentos, abrangendo também outros formatos de relacionamentos, como famílias adotivas e relações de amizade. Nesse ponto, retomo o argumento de que privações de redes de suporte têm atravessado famílias em situações desiguais por gerações, causando impacto na própria aplicação da medida de acolhimento (Fávero 2001; Barroso, Pedroso e Cruz 2018).
Entre os desafios enfrentados na transição de jovens para a vida fora das instituições, os registros etnográficos revelam lacunas, tais como: a escassez de opções viáveis de moradia, em parte decorrente da ausência de vagas em repúblicas; a tentativa de reaproximação familiar somente com a proximidade do desligamento; a falta de uma política de desligamento estruturada que englobe um acompanhamento prévio e pós-desligamento e, por fim, a ausência de suporte eficaz de modo geral por parte dos órgãos públicos. As reivindicações dos interlocutores em diálogo com a literatura que vem se debruçando sobre o tema apontam, sobretudo, para a necessidade de intervenções mais abrangentes e personalizadas, sem caráter excludente, demandas que convergem com o caráter excepcional e provisório da medida de acolhimento.12
Como evidenciado, diante da ausência da garantia plena de direitos, as redes de apoio social surgem, muitas vezes, como "estratégia de resistência" (Fonseca, Allebrandt e Ahlert 2009), seja através do suporte em recursos materiais, emocionais ou sociais. A valorização dessas diferentes redes afetivas pelos interlocutores destaca, por fim, a importância em promover, através de programas e iniciativas, a convivência familiar e comunitária, reconhecendo que a criação e continuidade de vínculos ao longo da trajetória podem exercer influência significativa para o bem-estar emocional e social dos jovens. Torna-se fundamental, por fim, ouvir o que crianças e adolescentes têm a nos dizer sobre as suas experiências, considerando os desafios retratados ao longo da desinstitucionalização para, assim, modelar intervenções mais eficazes e inclusivas.
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2
Agradeço a Capes pela concessão da bolsa de doutorado que propiciou a realização da pesquisa que originou este artigo.
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Os nomes de todos os interlocutores entrevistados foram alterados para assegurar seu anonimato.
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O apadrinhamento afetivo é um programa promovido por órgãos estatais e ONGs destinado a construção de novos vínculos entre uma pessoa e/ou uma família cadastrada no programa e crianças e adolescentes entre 7 e 18 anos de idade em medida protetiva de acolhimento. Através de convivência periódica, sugere-se que ofereçam apoio emocional, orientação e convivência familiar fora do ambiente institucional.
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5
Souza, Lia. 2024. Egresso – Trailer. Postado em 19 mar. 2024. YouTube, 00:00:57. https://youtu.be/5badMCUieDw?si=fbIakAyDBzGd1swq.
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6
Manuela foi a única interlocutora a qual não tive acesso a informações detalhadas, em razão das dificuldades de comunicação no período de nosso contato, que ocorreu durante a pandemia de COVID-19. Entre as idas e vindas de nossas conversas por aplicativo de celular, ela me contou sobre detalhes de sua vida e aceitou a participação na pesquisa. Posteriormente, no entanto, perdemos o contato, motivo pelo qual não foi possível a aplicação de uma entrevista completa com ela.
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7
É definido como um serviço de acolhimento provisório em unidades residenciais, nas quais pelo menos uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente – em uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva (Brasil 1990).
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República é definida como um serviço de acolhimento que oferece apoio e moradia a grupos de jovens em com vínculos familiares rompidos ou extremamente fragilizados; em processo de desligamento de instituições de acolhimento, que não tenham possibilidade de retorno à família de origem ou de colocação em família substituta e que não possuam meios para autossustentação (Brasil 2009).
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Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2009. Orientações técnicas para os serviços de acolhimento para crianças. Conanda/CNAS. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes-tecnicas-servicos-de-alcolhimento.pdf
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10
Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania. 1990. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Presidência da República, 13 jul. 1990. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
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11
Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2006. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Conanda/CNAS: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf.
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12
Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.1990. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Presidência da República, 13 jul. 1990. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
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Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.
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