EDITORIAL
Em busca da harmonização e qualidade nos estudos clínicos
Dividir a experiência clínica dos diferentes institutos pertencentes ao Complexo HCFMUSP foi um dos principais objetivos do I Simpósio de Pesquisa Clínica, que aconteceu em 28 de setembro último, em São Paulo. No evento estiveram presentes alguns dos principais pesquisadores da instituição, a fim de abordar os conceitos básicos relacionados à participação em estudos clínicos. Temas como: o desafio de desenvolver um novo medicamento, através das quatro fases clínicas (I a IV), os princípios da Conferência Internacional de Harmonização e as Boas Práticas Clínicas (ICH-GCP) e a importância do adequado desenho do protocolo foram discutidos. O valor e o significado do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), como é conhecido no Brasil, foram também comentados. Inconsistências no TCLE são, ainda, a maior razão de reprovação nos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) no Brasil e em outros países. O Simpósio foi uma das ações relacionadas ao processo de harmonização referente às pesquisas clínicas que está em andamento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o maior hospital público acadêmico da América Latina. Com o objetivo de consistentemente aumentar a participação em estudos clínicos, regras claras e diretrizes são mandatórias. Os principais condutores de um processo como este são: o comprometimento da direção da instituição, o antecedente de experiência em pesquisa e a qualificação dos pesquisadores da instituição, assim como o seguimento, pelo time, de um processo "razoável" e respeitoso durante a implementação.
Estudos clínicos são essenciais para o desenvolvimento de melhores opções de tratamentos. Antes de se iniciar os testes em seres humanos, extensa experimentação pré-clínica deve ser conduzida em animais e em laboratório, o que dura alguns anos. Se este estágio é bem sucedido, a companhia patrocinadora deve fornecer estes dados para a agência americana (FDA) ou para as agências equivalentes existentes em outros países, solicitando aprovação para o início dos testes em seres humanos. Este procedimento é conhecido como IND-Investigatinal New Drug.1 Os estudos clínicos de drogas experimentais são usualmente realizados em 3 fases sucessivas, sendo que cada fase envolve um maior número de pacientes que a anterior. Os estudos de fase I são realizados em pequenos grupos de voluntários sadios, duram poucos meses e são desenhados para se avaliar o que acontece com a droga no corpo humano, isto é, como ela é absorvida, distribuída, metabolizada e excretada (estudos "ADME"). A fase II pode durar até dois ou três anos e envolve centenas de pacientes (não mais voluntários sadios). A maioria dos estudos fase II são randomizados e "duplo-cegos": um grupo recebe a droga e outro, o tratamento padrão ou placebo (grupo controle). Na última fase de desenvolvimento pré-aprovação regulatória (fase III), o novo fármaco/procedimento é testado em até milhares de pacientes, dependendo da patologia. Estes estudos, também duplo-cegos geralmente, fornecem dados sobre a eficácia e segurança do novo medicamento e podem durar vários anos. Uma vez completada esta fase, que fornece todos os dados necessários para os itens habitualmente exigidos na bula de um novo medicamento, a companhia pode requerer a aprovação formal da agência regulatória, através de um processo conhecido, nos Estados Unidos, como NDA (New Drug Application). No caso de aprovação, as companhias obtêm a autorização para a comercialização e podem, adicionalmente, continuar conduzindo estudos de fase III (agora fase IIIb) ou estudos de fase IV.2 Os direitos e a segurança dos pacientes são assegurados, primeiro através da aprovação de um Comitê de Revisão Institucional (ou por um Comitê de Ética em Pesquisa), o qual é normalmente composto por médicos e outros profissionais de saúde, além de pessoas leigas; segundo, através do consentimento (TCLE, no Brasil), que detalha a natureza do estudo e tudo o que pode acontecer durante o estudo.
A introdução de diretrizes internacionais em Boas Práticas Clínicas (ICH-GCP) em 1996 e o desenvolvimento de infraestrutura altamente qualificada para pesquisa em diversos países abriu oportunidade de participação em pesquisas clínicas. É necessário adaptar-se a estas inovações para manter e ampliar a atratividade do país como uma base para a pesquisa internacional. Os três principais parâmetros utilizados para se decidir onde serão implementados centros para a pesquisa clínica multicêntrica internacional são: agilidade, qualidade e custo da pesquisa. Nenhum destes parâmetros é independente e a decisão final dependerá da avaliação da custo-efetividade de cada projeto. Vários grupos têm estudado como a indústria e a academia, assim como o governo, podem ter uma influência positiva nestes fatores.3 Algumas soluções têm sido identificadas e deveriam servir de exemplo e aprendizado.
Há considerável pressão sobre a indústria farmacêutica para reduzir os tempos de desenvolvimento de produtos. Um elemento importante neste processo é o tempo para se incluir o primeiro paciente (conhecido como FPI). Planos de ação devem ser implementados para remover os atuais problemas com o andamento da pesquisa: (i) esclarecer as responsabilidades de cada um na aprovação do protocolo e, se possível, fazer com que corram em paralelo, a fim de ter a revisão completa dentro de um período de tempo definido, naturalmente seguindo todas as regras relativas a estudos clínicos, nacionais e internacionais; (ii) definir estratégias de capacitação para melhorar a qualidade das submissões aos Comitês de Ética, com ferramentas de treinamento desenvolvidas pelas sociedades médicas, além dos próprios times de pesquisa dentro de cada centro de pesquisa. O I Simpósio de Pesquisa Clínica do HCFMUSP foi, sem dúvida, um passo nesta direção.
Passando para o quesito qualidade, que é certamente outra condição importante para o reconhecimento como um bom parceiro em pesquisa clínica, duas grandes áreas poderiam ser mencionadas: a) qualidade organizacional, referente a habilidade dos centros em recrutar pacientes eficientemente e, b) qualidade interna, que conta com a habilidade de conduzir a pesquisa de maneira ética e adequada às diretrizes em vigor. A aplicação das regras de ICH-GCP para os estudos que têm como objetivo licenciar novos medicamentos aumentou a quantidade de tarefas administrativas associadas à pesquisa clínica.3 Há redução, portanto, do tempo disponível para os investigadores recrutarem e examinarem os pacientes do estudo. A conseqüência é que, não raramente, os centros de pesquisa têm falhado em atingir suas metas de recrutamento previamente estabelecidas. Neste sentido, o desenvolvimento de redes de pesquisa clínica é uma contribuição positiva, tendo sido implementada em vários países, incluindo o Brasil.4 Recentemente, uma Chamada Pública da FINEP estabeleceu alguns critérios com o objetivo de escolher centros de pesquisa ligados a hospitais de ensino, para construir a Rede Nacional de Unidades de Pesquisa Clínica ligadas a Hospitais de Ensino. O HCFMUSP foi um dos centros contemplados neste processo e o trabalho em rede já está em andamento.
Tanto o governo como a indústria têm suas próprias necessidades de pesquisa. Entretanto, muito da infraestrutura requerida para pesquisa clínica é comum àquela exigida pela indústria e poderia, portanto, ser utilizada. O mesmo é válido para programas de treinamento em GCP. Além disso, através de discussões abertas, várias áreas certamente podem ser identificadas onde há interesse tanto do governo quanto da indústria e cujos resultados certamente seriam mais facilmente atingidos através de colaboração, sendo que o claro entendimento das responsabilidades de cada um poderia melhorar a eficiência e, consequentemente, a competitividade do processo de pesquisa. A parceria em pesquisa já ocorre em vários países e serve como locomotiva em busca destas aspirações. Deve ser enfatizado que o objetivo deste trabalho é contribuir para a saúde e bem estar das pessoas. Para assegurar que o Brasil permaneça e/ou se mova em direção à pesquisa clínica internacional, qualidade, agilidade e custo-efetividade são, portanto, mandatórios. Isto passa ainda pelo melhor conhecimento do público leigo sobre o que é pesquisa clínica, através da disseminação de informações sobre Pesquisa & Desenvolvimento e pela cuidadosa utilização dos termos de consentimento. Um guia para colaboração entre o governo e outros parceiros de pesquisa poderia reunir todos esses princípios de maneira eficaz.
Protocolos de pesquisa podem ser desenvolvidos pela universidade, governo, indústria ou outros e deveriam ser introduzidos em um Registro de estudos clínicos. Sempre deve haver clara definição de quem é o patrocinador, de quem é a responsabilidade pelo financiamento do estudo, de como será o acesso aos dados, direitos de publicação e de propriedade intelectual, assegurando que o gerenciamento dos dados tenha suficiente independência e que conflitos de interesse não surjam. Em um ambiente complexo como o de uma grande universidade, como é o caso do HCFMUSP, muitas situações podem ocorrer, podendo ser ou parecendo ser conflito de interesses para seus empregados ou investigadores. O ideal é, portanto, declarar completamente os potenciais conflitos de interesse, uma vez que a declaração de possíveis conflitos é vital para a preservação da confiança pública na ciência, mesmo que pareça desconfortável fazê-la.5 É evidente que todos os envolvidos se beneficiarão de maior transparência e criatividade no gerenciamento de conflitos. O diálogo deve ser iniciado e/ou reforçado incluindo-se, por exemplo, o tema em congressos e eventos nacionais, assegurando-se ainda a interdisciplinaridade e a inclusão do tema na formação dos estudantes. Finalmente, declarar um potencial conflito não implica em que exista um comportamento inadequado e, seguramente, a maior parte deles pode ser adequadamente manejada.6 Em março de 2002, o Annals of Internal Medicine publicou diretrizes sobre o assunto para pesquisadores e para instituições, recomendando que cada um estabelecesse suas próprias regras.7
O resultado deste trabalho abrirá espaço para maior cooperação e competitividade. Como mencionado pelos ganhadores do Prêmio Nobel de Economia em outubro último, Robert Aumann e Thomas Schelling, "um mínimo de cooperação é pré-requisito para uma sociedade próspera".8 Schelling, em seu trabalho "A Estratégia do Conflito" (1960) enfatiza o fato de que quase todos as decisões que envolvem várias pessoas contêm, simultaneamente, uma mistura de interesses comuns e conflitantes. Ao falar sobre conflito, comprometimento e cooperação, ele também menciona que, na presença de um conflito de interesses, cada parte geralmente busca um acordo que lhe seja tão favorável quanto possível. Contudo, qualquer acordo é melhor para ambas as partes do que acordo algum. Talvez a questão devesse ser: "qual seria um resultado razoável para todas as partes?" Algumas vezes, os conflitos parecem ser tão fortes que seriam insolúveis. Entretanto, de acordo com sua análise de situações de conflito e das vantagens da cooperação em vez da confrontação nas relações de longo-prazo, a cooperação seria uma espécie de situação de equilíbrio a ser obtida apesar dos conflitos imediatos.8 Conseqüentemente, é importante conhecer e entender o outro lado, uma vez que, através do mútuo conhecimento, os grupos se tornarão mais propensos a cooperar, todas as vezes que eles sejam forçados a enfrentar a mesma situação.9,10 Há uma lição para todos nesta teoria, independente do campo do qual se esteja falando.
REFERENCES
1. Investigational New Drug (IND) Application process. Available at http://www.fda.gov/cder/regulatory/applications/ind_page_1.htm, accessed on Oct 17th, 2005.
2. Background information on clinical research. Available at http://www.pdr.net/pdrnet/librarian/PFPUI/A14KPIHYr0Ofc/ND_CP/Clinical Trials, accessed on Oct 2nd, 2005.
3. Pharmaceutical Industry Competitiveness Task Force. Clin Res Report. 2001. Available at http://abpi.org.uk; accessed on Oct 12th, 2005.
4. Chamada Pública MCT/MS/FINEP Ação Transversal Implantação de Unidades de Pesquisa Clínica em Hospitais de Ensino 04/2005 Projetos Aprovados. Available at: http://www.finep.gov.br//fundos_setoriais/acao_transversal /resultados /Resultado_Pesquisa_Clinica_04_2005.PDF
5. Parks MR & Disis ML. Conflicts of interest in translational research. J Transl Med. 2004;2:28. Also available at http ://www.pubmedcentral.gov/articlerender.fcgi?tool= pmcentrez&artid=514574
6. Conflict of commitment and interest. Available at http://www.research.uic.edu/conflict/, accessed on Oct 12th, 2005.
7. Coyle SL. Physician-industry relations. Part 1 & 2. Ann Inter Med. 2002;136:396-406.
8. Aumann R, Schelling T. Contributions to game theory: analyses of conflict and cooperation. Available at http://nobelprize.org/economics/laureates/2005/ecoadv05.pdf, accessed on Oct 13th, 2005.
9. Schelling TC. The strategy of conflict. Cambridge MA: Harvard University Press; 1960.
10. Nobel de Economia vai para clássicos da teoria dos jogos. Available at: http://www.vermelho.org.br/diario/2005/1011/1011_nobel.asp, accessed on Oct 13th, 2005.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Mar 2006 -
Data do Fascículo
Fev 2006