Resumo
Este artigo propõe uma possibilidade de leitura do espaço urbano por meio da metodologia apresentada por Ewing e Clement (2013) no livro Measuring urban design. Essa metodologia foi aplicada em um trecho da área central da cidade de Laguna/SC tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nos anos 1980, por sua relevância histórica e cultural, o que determina quais espaços públicos de uma cidade são mais atrativos à presença humana em detrimento de outros, quais são as qualidades perceptíveis desse espaço e como essas qualidades podem ser mensuradas. Os resultados iniciais indicam que a metodologia proposta é adequada para identificar e mensurar as qualidades perceptíveis do ambiente urbano, tanto em áreas urbanas patrimoniais quanto nas demais áreas.
espaço urbano; espaço público; centro histórico; qualidade urbana; percepção
Abstract
This article proposes the possibility of reading urban space through the methodology presented by Ewing and Clement (2013) in the book Measuring Urban Design. This methodology was applied to a section of the central area of the city of Laguna, State of Santa Catarina, an area listed by the National Institute of Historical and Artistic Heritage in the 1980s due to its historical and cultural relevance. The methodology determines which public spaces in a city are more attractive to human presence compared to others and what the perceptible qualities of these spaces are, as well as how these qualities can be measured. Initial results indicate that the proposed methodology is suitable for identifying and measuring the perceptible qualities of the urban environment, both in urban heritage areas and in other areas.
urban space; public space; historic center; urban quality; perception
Introdução
O espaço urbano de uma cidade é constituído pelas relações existentes entre as suas áreas edificadas e suas áreas livres, mas, sobretudo, pela forma como os citadinos interagem com elas. O espaço urbano é resultado das interações sociais, das pessoas que o utilizam e o vivenciam. Segundo Habermas (2003), o espaço público reside na esfera pública, sendo uma rede adequada para a formação de posições e opiniões.
Assim, podemos considerar que sua forma e configuração podem estimular ou não o uso das diferentes relações possíveis. Mas quais são as características, ou mesmo qualidades urbanas, que um espaço precisa ter para ser atrativo para os usuários? O que determina quais espaços públicos de uma cidade são mais atrativos à presença humana em detrimento de outros? Quais são as qualidades perceptíveis do espaço urbano? E, principalmente, como essas qualidades podem ser mensuradas? Este artigo propõe uma possibilidade de leitura do espaço urbano por meio da metodologia apresentada por Ewing e Clement (2013) no livro Measuring urban design.
Os espaços públicos de uma cidade têm características próprias e individuais, podendo revelar o caráter de uma cidade como um todo. Ao vivenciarmos esses espaços, vivenciamos também a cidade e suas singularidades. Quando falamos de uma cidade de caráter patrimonial, esse valor intrínseco ganha maior relevância, e os espaços públicos urbanos – ruas, calçadas, praças e parques – trazem consigo não só um valor social, mas, também, histórico e cultural. Dessa forma, foi escolhida para a aplicação dessa metodologia o bairro Centro da cidade de Laguna, no litoral sul de Santa Catarina.1
A metodologia
A metodologia aqui apresentada se baseia em uma pesquisa interdisciplinar que teve por objetivo principal a medição das qualidades e dos elementos do desenho urbano que proporcionam áreas de circulação atrativas aos pedestres, tais como mobiliário urbano, vegetação, cor e formato das fachadas entre outros, sempre a partir da escala do usuário.
Essa análise focou, principalmente, as vias urbanas e o pedestre, por considerar que, em termos de domínio público, nenhum elemento é mais importante do que as ruas: por elas vamos ao trabalho, fazemos compras, praticamos exercícios físicos e desenvolvemos nossas atividades diárias.
Parques, praças, trilhas e outros locais públicos também têm papel importante nas tarefas do cotidiano, mas, considerando o papel crítico e onipresente das ruas, essa metodologia buscou identificar os atributos que tornam uma rua mais convidativa e transitável que outra.
As medidas utilizadas em estudos anteriores para caracterizar o ambiente construído foram, em sua maioria, qualidades gerais, como densidade de vizinhança e conectividade de ruas. O que essas medidas nos dizem sobre como é andar por uma rua? A resposta não diz muito, e é por isso que medir as qualidades do desenho urbano é muito importante. (Ewing e Clement, 2013, p. 99)
A proposta do grupo de pesquisa foi criar uma ferramenta para medir as qualidades de desenho urbano que o espaço público possui – que, inicialmente, baseiam-se em definições altamente subjetivas – para definições operacionais que pudessem capturar a essência de cada qualidade e serem medidas de forma confiável entre avaliadores, incluindo aqueles sem treinamento na área do desenho urbano. Em um primeiro momento, foram identificadas quais seriam essas definições, quais seriam as mais subjetivas e quais seriam as menos subjetivas (Figura 1).
A literatura existente, até então, sobre desenho urbano aponta para qualidades sutis que podem influenciar escolhas como, por exemplo, por onde caminhamos e por quanto tempo permanecemos nesses locais. Referidas como qualidades perceptivas do ambiente urbano, ou qualidades de desenho urbano, presume-se que tais qualidades intervêm entre características físicas e comportamento, encorajando a pessoa a caminhar por determinados locais em detrimento de outros (ibid.).
Porém, testar essa suposição requer métodos confiáveis de medição das qualidades do desenho urbano, permitindo a comparação dessas qualidades com o comportamento do usuário. Diferentes ferramentas para mensurar a qualidade do ambiente surgiram nos últimos anos e algumas são amplamente utilizadas nos Estados Unidos, em pesquisas de medição da qualidade urbana.
No entanto, para Ewing e Clement (2013), as chamadas qualidades são mais do que somente as características físicas individuais que podem compor o ambiente urbano. Tais características possuem um efeito cumulativo que é maior do que a soma das suas partes.
As características físicas, individualmente, podem não nos dizer muito sobre a experiência de andar por uma rua em particular, especificamente, porque não captam as percepções gerais das pessoas sobre o ambiente da rua, percepções que podem ter relações complexas ou sutis com as suas características físicas.
Qualidades que são visualmente percebidas, como dimensões e cores, podem diferir de qualidades como sensação de conforto, sensação de segurança e nível de interesse, que refletem como um indivíduo reage a um lugar – como uma pessoa avalia as condições dadas a partir de suas próprias atitudes e preferências.
Assim, ainda segundo os autores, “[...] percepções são apenas isso – percepções” (ibid., p. 2). Elas podem provocar reações diferentes em pessoas diferentes, em momentos diferentes, podem ser avaliadas objetivamente por observadores externos; já as reações individuais não podem. Para Tuan (2012), mesmo que nossas percepções do meio ambiente sejam diversas, somos membros da mesma espécie e por isso estamos limitados a ver as coisas de uma determinada maneira.
Durante o desenvolvimento inicial da metodologia, as principais qualidades perceptivas do ambiente urbano foram identificadas com base em uma revisão da literatura do desenho urbano que abarca desde os autores mais clássicos, como Camillo Sitte, Kevin Lynch, Gordon Cullen e Jane Jacobs, até autores mais contemporâneos no estudo da percepção do espaço urbano, como Amos Rapoport e Jan Gehl.
Empiricamente, presumiu-se que essas qualidades poderiam influenciar as decisões das pessoas de se deslocarem a pé em vez de dirigirem até um destino, passearem em seu tempo de lazer ou apenas saírem e se socializarem em uma rua. Também foram revisadas as literaturas sobre preferência visual e avaliação, que tentavam medir como os indivíduos percebem seus ambientes e entender melhor o que os indivíduos valorizam nesses ambientes.
A base teórica que embasa a metodologia foi além da literatura e dos limites do campo teórico do desenho urbano e da arquitetura e urbanismo, entrando no campo da psicologia ambiental, em que as qualidades perceptivas do ambiente figuram proeminentemente em diversos estudos (ibid.).
Os atributos
Os pesquisadores chegaram a uma lista com 51 qualidades (Figura 2), ou atributos, do ambiente urbano. Destes, oito foram selecionados pelo grupo de pesquisadores para estudo adicional com base na importância atribuída a eles na literatura: imagibilidade, recinto, escala humana, transparência, complexidade, coerência, legibilidade, ligação.
As 51 qualidades ou atributos perceptíveis no ambiente urbano, com destaque para as oito selecionadas
Imagibilidade (imageability)
A imagibilidade refere-se à qualidade que um lugar possui em se destacar, ser memorável. Um lugar tem alta imagibilidade quando elementos físicos específicos e seus arranjos capturam a atenção, evocam sentimentos e criam uma impressão duradoura no observador. Provavelmente, não é um único elemento que, por si só, faz uma rua ser memorável, mas, sim, a combinação de muitos outros.
Para Lynch (1997), uma cidade com alto teor de imagibilidade é bem organizada, contém partes distintas e é instantaneamente reconhecível para qualquer pessoa que a tenha visitado ou vivido nela (Figura 3).
Recinto (enclosure)
O recinto refere-se ao modo como o espaço público é definido visualmente pelo seu entorno imediato. São espaços onde a altura dos elementos verticais está proporcionalmente relacionada com a sua largura, criando a noção de recinto. Os espaços ao ar livre são definidos e moldados por elementos verticais que interrompem as linhas de visão dos espectadores. Quando as linhas de visão são tão fortemente bloqueadas que tornam os espaços externos parecidos com os de um ambiente interno como, por exemplo, um quarto, uma sensação de fechamento ocorre. Para Cullen (2009, p. 27), “[...] o recinto é o objetivo da circulação, o local para onde o tráfego [de pedestres] nos conduz. Sem ele, o tráfego tornar-se-ia absurdo” (Figura 4).
Escala humana (human scale)
A escala humana refere-se ao tamanho, à textura e à articulação dos elementos físicos que se articulam com o tamanho e as proporções das pessoas e igualmente, com a velocidade com que elas circulam pelo ambiente. O guia de desenho urbano da cidade de Seattle (2004) define escala humana como a qualidade de um ambiente que inclua componentes estruturais ou arquitetônicos de tamanho e proporções que se relacionem com a forma humana e/ou que exibam, por meio de seus componentes estruturais ou arquitetônicos, as funções humanas contidas (Figura 5).
A transparência refere-se ao grau em que as pessoas podem ver ou perceber o que está além do limite de uma rua ou de um espaço público e, mais especificamente, o grau em que o indivíduo pode ver ou perceber a atividade humana além da periferia de uma rua ou de outro espaço público. Os elementos físicos que influenciam a transparência incluem paredes, janelas, portas, cercas, paisagismo e aberturas em espaços intermediários. Para Jacobs, (2011), esses elementos contribuem para a percepção da atividade humana para além da rua (Figura 6).
Complexidade (complexity)
A complexidade refere-se à riqueza visual de um lugar e depende da variedade do ambiente físico, especificamente a quantidade e o tipo dos edifícios, a diversidade arquitetônica e de ornamentação, os elementos da paisagem, o mobiliário urbano, a sinalização e a atividade humana. Para Rapoport (1990), a complexidade está relacionada com a quantidade de diferenças notáveis a que o espectador é exposto por unidade de tempo, ou seja, o tempo de permanência no local é tão relevante quanto a quantidade e a qualidade dos atrativos disponíveis. Os seres humanos se sentem mais confortáveis recebendo informações em um ritmo perceptível; informação de menos gera desinteresse, informação demais gera sobrecarga sensorial (Figura 7).
Coerência (coherence)
A coerência refere-se a um sentido de ordem visual. O grau de coerência é influenciado pela consistência e pela complementaridade na escala, no caráter e na disposição do edifício, do paisagismo, do mobiliário urbano, das pavimentações e de outros elementos físicos (Figura 8).
Estudos sobre a sinalização das ruas indicaram que os pedestres preferem ambientes com sinalização moderada e coerente. Se os elementos tiverem características suficientes em comum, a cena da rua parecerá ordenada, lógica e previsível para os pedestres que passearem, se não, parecerá bagunçada (Ewing e Clement, 2013).
Legibilidade (legibility)
A legibilidade refere-se à facilidade com que a estrutura espacial de um lugar pode ser compreendida e visualizada como um todo. A legibilidade de um lugar é fortalecida por uma rede de pedestres e de vias que proporcionam ao usuário um senso de orientação e localização relativa. Os elementos físicos servem como pontos de referência (Figura 9).
Lynch (1997) sugere que, ao se deparar com um novo lugar, as pessoas automaticamente criam um mapa mental que divide a cidade em caminhos, limites, distritos, nós e pontos de referência. Lugares com limites fortes, pontos de referência distintos e ruas movimentadas permitem que as pessoas formem mapas mentais detalhados e relativamente precisos.
Ligação (linkage)
A ligação refere-se às conexões físicas e visuais entre o edifício e a rua, entre dois ou mais edifícios, entre os espaços públicos e, também, entre dois lados da mesma rua, com tendência de unificar elementos díspares, como linhas de árvores, projeções de edifícios e cruzamentos marcados (Figura 10).
Porém, segundo a avaliação dos próprios pesquisadores, entre as oito qualidades ou atributos do ambiente urbano escolhidos, somente os cinco primeiros – imagibilidade, recinto, escala humana, transparência e complexidade – puderam ser medidos com sucesso, passando nos testes de validade e de confiabilidade. Estes foram aplicados em trabalhos posteriores que conectaram as qualidades de percepção que influenciam a caminha-bilidade com ferramentas práticas de medição baseadas em pesquisas empíricas e em aplicações no mundo real.
Nessa metodologia, os atributos foram analisados a partir de observação in loco e a pé e de vídeos feitos nos locais escolhidos pelos pesquisadores para posterior análise em laboratório. Para a correta aplicação da metodologia, duas questões devem ser entendidas: o que são os atributos, como eles se apresentam no espaço urbano e como podem ser medidos (Quadro 1).
Resumo dos atributos de análise do ambiente urbano, suas definições, indicadores e procedimentos de aplicação
Segundo Ewing e Clement (2013), as medições das características físicas encontradas no ambiente podem ajudar a explicar as qualidades do projeto urbano, e as qualidades do projeto urbano podem ajudar a explicar a cami-nhabilidade global de um lugar.
Aplicando a metodologia em um centro preservado
O local escolhido para a aplicação dessa metodologia foi o bairro Centro da cidade de Laguna, localizada no litoral sul de Santa Catarina que, em 1985, teve sua área central tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devido à sua importância para a colonização e o desenvolvimento da região Sul do Brasil, como forma de garantir a sua conservação. O bairro Centro é também o centro fundacional da cidade, onde as manifestações políticas, religiosas e culturais ocorrem, portanto, é o espaço simbólico da identidade da sociedade lagunense, sintetizando a sua memória urbana (Lucena,1998).
O litoral sul catarinense possui registro de ocupações humanas desde o período pré-histórico, com os povos dos Sambaquis. Durante o período colonial, a região exerceu importante papel por sua localização estratégica em relação à bacia do Prata. As primeiras povoações do litoral de Santa Catarina, ocorridas no século XVII, foram resultado da preocupação dos portugueses em ocupar a região Sul do Brasil. Havia a necessidade de assegurar a continuidade do Império português até o rio da Prata, já que se tornava mais acirrada a disputa com os espanhóis que ocupavam aquela região.
Segundo o historiador Oswaldo Cabral (1937), até meados de 1658, o litoral sul do Brasil – hoje Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – não possuía nenhuma fundação estável. No entanto, São Francisco, a Ilha de Santa Catarina e Laguna já eram conhecidas pelos navegadores e exploradores da região por serem lugares onde as embarcações podiam se abastecer de água doce.
São Francisco do Sul, Nossa Senhora do Desterro, São José da Terra Firme e Santo Antônio dos Anjos da Laguna foram os primeiros núcleos colonizados fundados pelas então Bandeiras de Povoação de São Vicente e São Paulo. As bandeiras eram expedições organizadas por iniciativa de particulares, ou seja, sem o financiamento do governo português. As primeiras expedições de bandeirantes buscavam a captura de indígenas que pudessem ser vendidos como escravos, porém, em seguida, passaram a procurar metais e pedras preciosas. Nesse período, a colonização do Sul seguiu rumos diferentes em relação ao Norte do País, as notícias da existência de imensas riquezas minerais no interior do continente, como as encontradas no México e no Peru, despertaram a cobiça e o interesse pelas regiões do interior. A Argentina era conhecida como terra da prata, e o litoral sul do Brasil, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, como costa do ouro e da prata. A região esteve no centro da disputa entre as coroas portuguesa e espanhola, o que resultou na assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 1494, que passa pela cidade de Laguna. Esse fato da nossa história é tão importante para a cultura local que, na década de 1970, foi erguido o Marco de Tratado de Tordesilhas indicando por onde o traçado possivelmente passaria.2
O município de Laguna localiza-se no litoral sul do estado de Santa Catarina, distante 126 km da capital Florianópolis pela BR-101. Possui extensão territorial de 336.396 km2, com população estimada de 40 mil em 2018. O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, indicou que a cidade de Laguna possuía 51.562 habitantes, porém, em 2012, houve a emancipação do distrito de Pescaria Brava, que na ocasião possuía aproximadamente 10 mil habitantes. Segundo dados da Prefeitura Municipal de Laguna (2022), a cidade possui 35 bairros, sendo o Centro Histórico e o Magalhães os mais antigos da cidade. Seus limites são, a leste, o oceano Atlântico; a oeste, os municípios de Tubarão e Capivari de Baixo; ao norte, os municípios de Imaruí e Imbi-tuba; e, ao sul, o município de Jaguaruna.
O bairro Centro localiza-se na porção sul do município, às margens da lagoa de Santo Antônio dos Anjos. A área, preservada pelo Iphan, engloba o centro histórico, os morros circundantes e uma faixa de 200 metros que adentra a lagoa. A principal atividade econômica da cidade é o comércio e, embora essa área tenha potencial para o turismo cultural, as atividades ligadas ao turismo concentram-se principalmente nas praias, durante os meses mais quentes.
A sua configuração urbana, no polígono central onde se situa a área tombada, possui um desenho ortogonal que segue o relevo, tendo de um lado a lagoa de Santo Antônio e do outro os morros da Glória, de Nossa Senhora e do Moinho. Essa configuração possui características peculiares como a posição da igreja de Santo Antônio dos Anjos, que não se alinha com a praça Vidal Ramos em frente, como é comum nas cidades coloniais do período, mas, sim, com a rua Conselheiro Jerônimo Coelho, ficando a praça deslocada para a esquerda, mas de frente para a Lagoa.
O bairro Centro, que é também o centro preservado da cidade de Laguna, comporta as instituições da administração pública, como a prefeitura da cidade e as instituições bancárias, além de variados tipos de serviços e comércio, como também áreas destinadas ao lazer e fruição da população, como praças de variados formatos e dimensões e edificações de uso residencial. O que torna essa área rica de possibilidades é a presença do uso residencial, que, associado às demais atividades de lazer, comércio e serviço, compõe um ambiente vivo que dialoga com a cidade contemporânea, “o que lhe atribui um valor simbólico superior aos demais bairros da cidade” (Cittadin, 2010, p. 124).
O primeiro plano diretor da cidade foi elaborado em 1978, vigente na prática até 2014, quando da aprovação de um novo plano. O período coincide com a implementação de várias obras pelo poder público, como pavimentação de ruas, ampliação das redes de distribuição de energia elétrica e de água.
Na área central, foram propostos alguns tombamentos municipais, concentrados no entorno da praça República Juliana e em algumas edificações isoladas. Porém, segundo Lucena (1998) esses tombamentos não impediram as renovações urbanas permitidas pelo plano diretor de 1978 como a ampliação do gabarito permitido para quatro pavimentos, o que ocasionou a demolição de diversos casarios ao longo da rua Gustavo Richard, antiga rua da Praia, que foram substituídos por agências bancárias, escritórios e novos prédios residenciais.
Segundo Lucena (1998), a destruição desse acervo arquitetônico e urbanístico só não foi mais devastadora em função do posterior tombamento Federal de toda a área central, em 1985, que impossibilitou a demolição de qualquer imóvel no centro da cidade.
A partir do tombamento até o final da década de 1990, houve maior expansão imobiliária na região do Mar Grosso em relação à área central. Lucena (1998, p. 52) considera que, a partir desse período, houve “uma reanimação das atividades, principalmente comerciais”. Provavelmente, consequência da presença de novos moradores nos meses mais quentes, atraídos pela praia e pelo carnaval, em um primeiro momento, e mais tarde pelas qualidades paisagísticas e históricas do restante da cidade.
Ao longo desse período, pós-tombamen-to, a configuração urbana da área central pouco se alterou, mantendo as características de seus espaços públicos praticamente inalterados, já que a maioria dos investimentos se concentrou a leste, no bairro Mar Grosso.
Os espaços públicos do bairro Centro foram se constituindo conforme a própria cidade foi se alterando no decorrer das décadas. Podemos presumir que inicialmente, de forma espontânea e aleatória, conforme a necessidade de uso e da configuração espacial gerada pela ocupação humana. A princípio, os espaços públicos mais antigos, como, por exemplo, a praça da Matriz (Campo do Manejo) e a Fonte da Carioca (Campo da Fonte), nasceram configurados pelo uso diário e rotineiro dos que ocupavam a cidade, assim como surgiriam nas décadas seguintes, conforme a cidade se desenvolvia.
A poligonal de tombamento foi definida durante o processo de tombamento em 1984, quando o bairro Centro passou por extensa análise devido a um parecer de tombamento pelo Iphan, já a poligonal de entorno foi definida bem mais tarde, em 2016 (Figura 11).
O bairro Centro e a indicação da poligonal de tombamento (1) e da poligonal de entorno (2) – 2018
A poligonal de tombamento é delimitada por linhas imaginárias, as poligonais, que utilizam as ruas, incluindo os lotes que para elas se abrem ou as cotas de topografia, para delimitar a área tombada a ser preservada, e também, seu entorno imediato. (Motta e Thompson, 2010, p. 84)
No caso de Laguna, o tombamento do bairro Centro, que se localiza na porção sul do município, às margens da lagoa de Santo Antônio, a área protegida pelo processo de tombamento incluiu, além da malha urbana e dos edifícios, também os morros circundantes e uma faixa de 200 metros da lagoa. Durante o processo, foi considerada, além das edificações e do sistema viário, a paisagem de entorno do centro da cidade, entendendo-se o conjunto a ser tombado em sua totalidade, e não apenas em partes ou edificações desconectadas.
A região comporta instituições públicas, serviços e comércio, além de ainda manter o uso residencial. Essa característica faz com que a área protegida esteja diretamente ligada ao dia a dia da cidade e, por isso, deve ser entendida como um ambiente dinâmico, onde as interações sociais e culturais acontecem e se desenvolvem cotidianamente. As áreas analisadas encontram-se dentro dos limites dessa poligonal de tombamento.
O bairro Centro tem poucos vazios urbanos, pois é uma área bastante consolidada. Os vazios são compostos, em sua maioria, por espaços públicos, como rua, passeios e praças. Os locais analisados foram a praça da Matriz, a praça da República Juliana, o morro do Rosário, o largo da Carioca, a área do mercado público e sua doca e a praça Paulo Carneiro, que fica em frente ao Mercado. Foram incluídas, nessa análise inicial, as áreas adjacentes e o sistema viário circundante, por comporem também o espaço público (Figura 12).
Configuração atual do bairro Centro, onde podemos perceber sua forma consolidada e seus principais espaços públicos
Por ordem cronológica, os espaços públicos mais antigos do bairro Centro são: a praça da Matriz, a praça da República Juliana e o largo da Carioca. Para o desenvolvimento do estudo proposto, o bairro Centro foi dividido em quatro setores, englobando um ou mais dos locais analisados. O critério de escolha baseou-se na relevância sociocultural, na configuração urbana e por comportarem as áreas mais antigas do bairro, identificadas durante a análise histórico-estrutural e a construção das imagens (mapas). Para o desenvolvimento deste artigo, foi selecionado um dos setores, o Setor 1, que engloba a praça da Matriz, as ruas circundantes e o calçadão (Figura 13).
O bairro Centro com a indicação dos quatro setores analisados (contorno em vermelho), e o Setor 1 apresentado nesse artigo (pintado em vermelho) – 2017
No final do século XIX, tiveram início os projetos de melhorias na urbanização do bairro Centro: foi implantada a iluminação pública e efetuado o calçamento das principais vias, como a Gustavo Richard e a Raulino Horn, que receberam pavimentação de pedra de matacão ou calcário.
Em 1915 foi inaugurado, onde antes era o Campo do Manejo, o jardim Calheiros da Graça, atual praça Vidal Ramos, com traçado geométrico, palmeiras imperiais (algumas ainda continuam na praça), chafariz circular e uma cerca para evitar a entrada de animais. Rapidamente, o jardim se tornou um local destinado a lazer, festas e convívio social, que antes ocorriam na praça Conde D’Eu, hoje praça República Juliana.
No seu entorno, foram construídos os clubes Blondin (1917) e Congresso (1935) e o Cine Teatro 7 de setembro (1858), o que reforçou a característica social do jardim público. Em 1925, a cerca e o muro da praça foram retirados e, com o fechamento do cinema na década de 1960, a praça e as demais áreas do bairro Centro foram perdendo seu movimento nos finais de semana (Lucena, 1998).
Ao longo da última década, a administração pública municipal bem como entidades privadas promovem eventos no bairro Centro (Figura 14), alguns de caráter mensal, outros anuais, com o intuito de promover a presença de pessoas na área e fomentar a dinâmica urbana. Dentre esses eventos podemos destacar a Feira Livre de Artesanato, de caráter mensal, o Pré-Carnaval e a Festa de Santo Antônio, de caráter anual.
Eventos que ocorrem no bairro Centro e no Setor 1: Feira Livre de Artesanato (1); Pré-Carnaval (2); Festa de Santo Antônio (3 e 4)
No Setor 1 (Figura 15), encontram-se os espaços públicos mais antigos e tradicionais do bairro como a praça Vidal Ramos. Pode-se considerar que seus espaços públicos mantêm praticamente a configuração que tinham quando a Vila da Laguna foi criada. A capela de pau-a--pique construída em 1696 deu lugar, em 1738, à igreja Santo Antônio dos Anjos da Laguna, ou, simplesmente, Igreja Matriz, e ao antigo Campo do Manejo, atual praça Vidal Ramos.
Fazem parte desse setor a praça Vidal Ramos ou da Matriz, o calçadão (rua XV de Novembro) e as demais ruas adjacentes. Essa é a área onde a cidade teve início, local da primeira capela e das primeiras residências, inclusive uma das mais tradicionais. O mapeamento da área da praça Vidal Ramos demonstrou que ela é bastante utilizada tanto para momentos de lazer e permanência como para área de circulação e conexão com as ruas de seu entorno.
Em termos de uso e de qualidade do espaço público, podemos afirmar que o elemento urbano mais significativo é a praça Vidal Ramos e da Matriz. Ao longo do desenvolvimento da cidade, a praça foi se modificando até que, em 1930, recebeu sua configuração atual, que permanece até hoje. Além dela, um elemento urbano mais recente é o calçadão da rua XV de Novembro, construído no início dos anos 2000, que recentemente passou por uma reconfiguração do seu espaço, com a instalação de uma nova pavimentação, novos mobiliários urbanos e um sistema de drenagem baseado na infra-estrutura verde, que propõe uma forma mais natural de drenagem urbana.
Em relação às demais áreas do bairro Centro, o Setor 1 exerce uma função atratora em função dos diversos usos encontrados: duas das quatro agências bancárias que o município possui, variado comércio e serviços, residenciais e edifícios de caráter religioso, como a igreja Matriz e o centro espírita, considerado um dos mais antigos do Estado, e edificações de caráter cultural, como o centro cultural Santo Antônio e a casa da Anita. Por tudo isso, é uma área bastante frequentada, abrigando tanto moradores do setor quanto usuários e trabalhadores dos serviços e comércios oferecidos no bairro (Figura 16).
Setor 1: travessa XV de Novembro (1), rua Conselheiro Jerônimo Coelho (2), rua Santo Antônio e, ao fundo, a igreja Matriz (3), calçadão, continuação da rua XV de Novembro (4), praça Vidal Ramos ou da Matriz (5) e rua Santo Antônio (6) – 2018
Considerações iniciais sobre a aplicação da metodologia em um centro preservado
Podemos identificar que o Setor 1 possui tanto usos diários quanto sazonais. Consideramos diários os usos dos moradores e frequentadores do bairro Centro, por exemplo, nos horários de missa; sazonais, os ocorridos uma vez ao ano, como a Festa de Santo Antônio, que utiliza o espaço da praça Vidal Ramos e as ruas adjacentes para os festejos que ocorrem sempre na primeira quinzena de junho. Quanto às qualidades de desenho urbano analisados – imagibi-lidade; recinto; escala humana; transparência e complexidade – pudemos perceber que, mesmo que o seu espaço público não possua nem manutenção nem infraestrutura de qualidade, esse espaço não perdeu suas qualidades.
O Setor 1 foi analisado, conforme definidos anteriormente, de início, a partir da leitura do espaço urbano e depois com a leitura do espaço do usuário, com a medição dos atributos. A síntese dessa análise é apresentada no Quadro 2.
Segundo Ewing e Clement (2013), as medições das características físicas encontradas no ambiente podem ajudar a explicar as qualidades do projeto urbano e além disso, as qualidades do projeto urbano podem ajudar a explicar a caminhabilidade global de um lugar.
Considerando os atributos inerentes a um centro antigo, como a imagibilidade e a complexidade, tal medição pode contribuir para elaborar, de maneira mais adequada, manuais de uso do espaço público em cidades preservadas.
Durante as medições das qualidades do desenho urbano, ao identificar os atributos de imaginabilidade, enquadramento, escala humana, transparência e complexidade, considerou-se a importância das fachadas dos edifícios na composição e configuração do espaço público. Considerando os atributos estéticos e de beleza dos edifícios históricos, essa relevância, no caso de Laguna, adquire maior importância.
Outra questão importante foi entender que os espaços públicos, em uma cidade protegida, pouco diferem dos demais, talvez apenas no quesito impermanência, pois, ao ser tombada, sua configuração e relação entre espaços construídos e espaços livres permanece por mais tempo inalterada. Mesmo assim, a forma como os espaços se relacionam mantém as mesmas características de outras cidades.
Vale ressaltar, porém, que as configurações dos espaços públicos encontradas no Setor 1, analisado para a elaboração deste artigo, estão diretamente relacionadas com o tamanho do bairro e da cidade como um todo, só podendo ser comparadas aos espaços públicos de outras cidades de mesmo porte e características similares.
Por fim, quanto ao uso da metodologia, consideramos que ela é adequada com a leitura do espaço do usuário quando consideramos a escala da rua e da praça, que é a escala do pedestre, onde estão os atributos que podem definir a qualidade do desenho urbano na escala do pedestre.
Porém, para ser eficiente, esta análise deve considerar as demais escalas do espaço urbano: a escala da cidade, em que devem ser analisadas a legislação, as formas de parcelamento do solo, o suporte físico e as políticas urbanas, e a escala do bairro, em que podemos mensurar e identificar a infraestrutura urbana, a relação entre os espaços livres privados e públicos.
Notas
-
1
O tema deste artigo está relacionado com uma pesquisa mais ampla que busca identificar as relações existentes entre a preservação de áreas centrais e a qualidade do desenho urbano.
-
2
Entendemos que existem diversos trabalhos acadêmicos que tratam da formação do território brasileiro e, mais especificamente, do Tratado de Tordesilhas, mas, apesar de sua relevância, é aqui citado por conta da contextualização histórica e da formação da cidade de Laguna.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Abr 2025
Histórico
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Recebido
30 Abr 2022 -
Aceito
12 Abr 2024