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Parque Bom Retiro – Aproximações e distanciamentos na instituição do comum em Curitiba

Bom Retiro Park – Successes and challenges in the institution of the common in Curitiba

Resumo

Este artigo analisa os tensionamentos da produção do urbano a partir da contestação do padrão neoliberal de fazer cidades pela análise de um caso na cidade de Curitiba, o Parque Bom Retiro. Esse caso aponta para a possibilidade do estabelecimento do comum como prática de apropriação e uso do espaço urbano. Contrapondo-se à lógica capitalista de compreender a cidade exclusivamente como mercadoria, a racionalidade do comum ancora-se na potência das experiências coletivas e estrutura o espaço urbano baseando-se nos sentidos e afetos que permeiam a vida cotidiana. No caso apresentado, é possível identificar limites, contradições e desafios para a formação de uma rede de ações propositivas que apontam para uma certa produção do comum urbano.

lógica neoliberal; comum; práticas insurgentes; Curitiba; Parque Bom Retiro

Abstract

The paper analyzes tensions of urban production by questioning the neoliberal pattern of making cities through the analysis of a case in the city of Curitiba - the Bom Retiro Park. This case points to the possibility of establishing the common as a practice of appropriation and use of the urban space. In opposition to the capitalist logic of understanding the city exclusively as a commodity, the rationality of the common is grounded on the power of collective experiences, and structures the urban space based on the senses and affects that permeate everyday life. In the case presented here, it is possible to identify limits, contradictions, and challenges for the formation of a network of propositional actions that point to a certain production of the urban common.

neoliberal logic; common; insurgent practices; Curitiba; Bom Retiro Park

Introdução

A produção do espaço urbano na cidade contemporânea tem se desenvolvido sob o paradigma do capitalismo neoliberal. Tal circunstância impõe, sobre a produção e o uso desse espaço, uma lógica de cercamentos e exclusões que não se fundamenta apenas naquilo que orienta exclusivamente os aspectos econômicos do neoliberalismo. O modo econômico de produção neoliberal é vinculado a um conjunto de regras jurídico-políticas que demandam que, em nossas análises sobre o urbano, estejamos atentos, não apenas às dinâmicas da economia neoliberal, ou de uma política neoliberal, mas devemos, também, estar cientes de que a produção urbana contemporânea ocorre no âmbito de uma sociedade neoliberal (Dardot e Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo.).

O sucesso e ampliação das práticas neoliberais implicam garantir que a normativa do neoliberalismo seja introduzida nos processos das transformações culturais, sociais e subjetivas dos indivíduos, e isso ocorre na medida em que estimula “a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modo de subjetivação” (ibid.). Mas, também, tal sucesso se dá, na medida em que organiza todos os aspectos da vida social a partir da perspectiva da propriedade, regulando e homogeneizando as relações humanas através de padrões de consumo, e que mesmo o acesso aos nossos semelhantes ocorre apenas pelo viés econômico (Federici, 2014FEDERICI, S. (2014). “O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva”. In: MORENO, R. (org.) Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo, SOF – Sempreviva Organização Feminista.). Desse modo, o impacto da racionalidade neoliberal nos processos de urbanização tem institucionalizado mecanismos de espoliação, apagamentos, exclusões e toda a sorte de violência e desigualdades.

Diante da perspectiva da possibilidade de produção de cidades socialmente justas, culturalmente diversas e comprometidas com a preservação de ecossistemas naturais, é preciso pensar, construir e reconhecer alternativas, resistências e insurgências que possam desarticular a racionalidade neoliberal. Nesse sentido existem pensadores, militantes e teóricos que apontam na instituição do comum, ou dos comuns, práticas capazes de construir uma subjetividade que incorpora o fazer em comum (commoning) como prática para instauração de uma sociedade anticapitalista. Segundo Bollier (2014)BOLLIER, D. (2014). Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Canadá, New Society Publishers., o comum é uma condição existencial que implica ampliar a percepção de nosso lugar no mundo, para além de categorias restritas como empregados, consumidores, empreendedores ou investidores, procurando maximizar nosso bem-estar econômico. Os comuns também são caracterizados como a possibilidade de honrar os novos e diversos tipos de conhecimento que são coletivamente construídos sob as circunstâncias específicas da coletividade que os colocam em comum (ibid.). Assim, a instituição dos comuns aponta possibilidades de produção do espaço urbano tendo como princípio iniciativas de governança coletiva e ações pautadas pela proteção das fontes de recursos comuns, ou seja, reivindicar, reconhecer e instituir comuns que orientem a produção do espaço urbano para além da lógica capitalista, através de práticas coletivas e solidárias.

A instituição do comum como prática também implica atuar na realidade concreta e cotidiana das cidades à revelia da tradicional dicotomia entre mercado e Estado como agentes exclusivos, e supostamente distintos, na produção do espaço urbano. Na medida em que as cidades se apresentam como uma feroz arena de disputa no processo de acumulação capitalista, há uma constante pressão do mercado junto ao Estado no sentido de institucionalizar a imposição de cercamentos que favoreçam o capital. Desse modo, public squares, parks, walkways, sports arenas, and the very face and identity of a city are being taken over by a cozy aliance of corporations, politicians, developers, and professional architects and planners (ibid., p. 59) na constituição de um cenário no qual termos como “desenvolvimento” e “progresso” são utilizados para suprimir e desarticular outras maneiras de produzir, de se apropriar e ocupar o espaço nas cidades contemporâneas.

Contrapondo-se à lógica capitalista de compreender a cidade exclusivamente como mercadoria, a racionalidade do comum ancora-se na potência das experiências coletivas e estrutura o espaço urbano baseando-se nos sentidos e afetos que permeiam a vida cotidiana. Sendo assim, baseados em uma perspectiva anticapitalista, devemos pensar e produzir o urbano, apoiando-nos nas lutas e disputas que pretendam instituir “a partilha dos meios materiais e o mecanismo primordial pelo qual se criam os interesses coletivos e laços de apoio mútuo” (Federici, 2014FEDERICI, S. (2014). “O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva”. In: MORENO, R. (org.) Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo, SOF – Sempreviva Organização Feminista., pp. 152-153). A instituição dos comuns viabiliza-se nas ações elaboradas no âmbito de uma imaginação política coletiva e transversal. O reconhecimento, a produção, a gestão e as práticas coletivas que instauram o comum no processo de produção do espaço urbano apresentam-se como fundamento para práxis antineoliberais e como instrumentos para a superação do capitalismo, uma vez que se abandona a esfera excludente da propriedade, seja ela de natureza pública ou privada (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. (2017). Comum. Ensaios sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo.).

Na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná, podemos verificar que, assim como nas demais metrópoles brasileiras, as imposições de uma urbanização pautada por investimentos públicos e privados, que tem como finalidade atender às demandas de um mercado global, reiteram um histórico de desigualdade social e segregação espacial (Nojima, Moura e Silva, 2009). Contudo, se as dinâmicas neoliberais do capital internacional se apresentam nas disputas pela produção do espaço urbano em Curitiba, também é possível identificar ações que, em última instância, colocam-se contrárias à lógica capitalista da produção de cidades. Tais ações apontam para processos de contestação que postulam o direito à cidade, ao passo que demandam “algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas, e pressupõe fazê-lo de maneira radical e fundamental” (Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes., p. 30).

É possível identificar, em Curitiba, ações que de fato se colocam em posição de enfrentamento aos avanços da lógica neoliberal sobre o espaço urbano. Em muitos desses enfrentamentos, é possível encontrar características que reverberam valores coincidentes com prerrogativas da racionalidade do comum, como mobilizações sociais que costuram a formulação de suas proposições de maneira coletiva e transversal, estruturando suas práticas de contestação, a partir dos afetos cotidianos, solidariedade e senso de comunidade. Porém, de modo geral, tais ações se apresentam de maneira pontual, dispersa e fragmentada, sem que haja necessariamente um movimento de conexão entre elas. Não se verifica um dinâmica que, de acordo com as especificidades de cada mobilização, articule uma rede de iniciativas que possam se fortalecer mutuamente, ampliando a potência e a abrangência das ações.

A questão que se apresenta em Curitiba, para a efetiva produção do espaço urbano fundamentado no comum como imaginação e como prática, está justamente na dificuldade de articular e ampliar, para a escala urbana, as dinâmicas que constroem sua racionalidade em contextos bastante específicos e com alguma dificuldade de romper o isolamento de suas demandas. Nesse contexto, exemplificamos experiências como as padarias comunitárias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as marchas feministas ou a implementação da Praça de Bolso do Ciclista, que são exemplos de demandas que se colocam na disputa pelo espaço urbano com base em uma racionalidade que aponta para a instituição do comum, mas que não são articuladas entre si.

Dentre os movimentos que em Curitiba tensionam os mecanismos de produção do urbano a partir da contestação do padrão neoliberal de fazer cidades, analisaremos de modo um pouco mais aprofundado a disputa pela instalação do Parque Bom Retiro. Esse caso nos interessa na medida em que, de acordo com uma demanda bastante específica, aponta para possibilidade do estabelecimento do comum como prática de apropriação e uso do espaço urbano. A demanda pelo Parque também é bastante significativa, visto que desdobra conflitos semelhantes já ocorridos na cidade e se alinha a contestações mais recentes de grupos ativistas que têm, na produção dos espaços urbanos destinados ao uso público e coletivo, a centralidade de suas reivindicações.

As questões envolvendo o Parque possibilitam-nos investigar agentes, métodos e aspectos de uma disputa impulsionada a partir de práticas que podem instaurar espaços urbanos como fontes de recursos comuns, ainda que a demanda dos ativistas pela criação do parque não seja um processo no qual se verifique um rompimento total com preceitos e fundamentos de um planejamento urbano tradicional. Destarte, no caso do Parque Bom Retiro, é possível identificar alguns dos limites, das contradições e dos desafios existentes em Curitiba para se formar uma rede de ações propositivas que possa ser ampliada em escala e adotada como método para as iniciativas que apontem para uma certa produção do comum como na produção do urbano.

O Parque Bom Retiro e A Causa mais Bonita da cidade

Para que possamos compreender como os ativistas articulam a instituição da racionalidade do comum sobre o local em que pleiteiam a construção do Parque Bom Retiro, é preciso retomar a narrativa e os aspectos históricos que, para os ativistas, conferem legitimidade para suas solicitações. Aqui é importante pontuar que é possível encontrar, no discurso dos ativistas, dois principais argumentos para que o Parque se torne uma demanda legítima. Um deles é terreno como fonte de recursos naturais, como nascentes de água e vegetação nativa. O outro argumento que se pode identificar é construído sobre a necessidade de dar continuidade a uma certa tradição do uso do terreno como instrumento de prestação de serviço à sociedade, posto que, no terreno em questão, desde o início do século passado, localizava-se um hospital psiquiátrico administrado por uma instituição filantrópica.

A aproximação da pauta de defesa dos recursos naturais e da preservação da história do local revela-se importante marco para entender a reivindicação pelo Parque como um processo que pode ser compreendido pela luta para a instituição do comum. As práticas e discussões relacionadas ao uso e governança dos recursos naturais fazem parte do campo da reflexão sobre o comum desde as análises de Ostrom (2015)OSTROM, E. (2015). Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge, Cambridge University Press., que inaugurou o termo CPR (Common-pool Resources) referindo-se a sistemas de recursos comuns, que poderiam ser naturais ou feitos pela ação humana. No entanto, nas análises de Ostrom sobre long-enduring, self-organized e self-governed CPRs, constata-se o imperativo da questão dos sistemas de recursos naturais como um elemento central entre os casos estudados, visto que as condições imprevisíveis e complexas da natureza são determinantes para o estabelecimento de regras para gestão dos recursos comuns. Para além da questão ambiental, a história da localidade em disputa também deve ser entendida como um comum, na medida em que a história constitui a memória coletiva e funciona como our extended body connecting us to a vast expanse of struggles that give meaning and power to our political pratice (Federici, 2019FEDERICI, S. (2019). Re-enchanting the world, feminism and the politics of the commons. Oakland, PM Press., p. 86).

Como veremos adiante, a junção desses dois argumentos alimenta a imaginação política que determinará a proposição de uma práxis, o estabelecimento de regras, de parâmetros construídos coletivamente que balizará o que é desejável e o que deve ser rejeitado no uso daquela localidade. A partir desses argumentos, os ativistas delimitam e de certa maneira procuram responder “quais são as regras que as práticas devem ser capazes de inventar para impedir que essa coisa seja desviada de sua destinação social por condutas de apropriação predatória” (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. (2017). Comum. Ensaios sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo., pp. 288-289).

O terreno sobre o qual se dá a disputa pela implementação do Parque Bom Retiro estava, até o início do século XX, inserido em uma região predominantemente rural, no bairro do Pilarzinho, em uma área do município caracterizada pela existência de chácaras pertencentes a colonos e pequenos produtores que vendiam suas mercadorias no centro da cidade. A proximidade relativa com o centro de Curitiba, aliada ao ambiente idílico da região, mostrou-se adequada para que a Federação Espírita do Paraná (FEP) ali vislumbrasse a implantação de sua primeira obra de vulto para o exercício de suas ações filantrópicas, a construção de um hospital psiquiátrico. Assim, em 1924, a FEP, com campanhas comunitárias e de arrecadação de donativos, fez a aquisição do terreno para a construção do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro. No entanto, as limitações financeiras da Federação fizeram com que a obra fosse concluída e estivesse apta a receber pacientes somente em 1945.

A expansão urbana de Curitiba avançou em direção à porção norte da cidade mudando profundamente o entorno do hospital. A então região de chácaras adquiriu, ao longo da segunda metade do século XX, aspectos característicos da malha urbana tradicional, ruas asfaltadas, loteamentos, residências, instalação de infraestrutura urbana, aumento populacional, enfim, o terreno do Hospital Bom Retiro encontrou, no século XXI, um entorno muito diferente daquele existente quando de sua aquisição pela FEP. Inclusive, o bairro do Pilarzinho foi subdividido, e sua porção sul, na qual se encontrava o equipamento hospitalar, foi transformada em outro bairro; desse modo, o terreno hoje se localiza justamente no bairro do Bom Retiro, que recebeu tal denominação pela presença do hospital. Se o entorno do terreno que abrigou o hospital psiquiátrico sofreu um incontestável processo de urbanização, a paisagem intramuros permaneceu praticamente a mesma, inclusive no que diz respeito à preservação da mata nativa que, até os dias de hoje, ocupa quase que a totalidade do terreno.

A disputa por novos usos do terreno começa a se desenhar no ano de 2012, quando a FEP encerrou as atividades hospitalares do Bom Retiro, passando a atender seus pacientes em outro endereço, e o edifício histórico foi demolido. Ainda que em 2012 a sociedade civil tenha se manifestado em defesa da preservação do edifício, as manifestações ficaram restritas a reportagens de jornais e restringiram-se, basicamente, a matérias que reproduziam depoimentos repletos de um misto de indignação e saudosismo. Nos jornais da época da demolição do edifício, encontram-se depoimentos de funcionários, de alguns ex-pacientes, de moradores do entorno e de alguns arquitetos, historiadores e jornalistas que lamentavam a destruição inesperada de um edifício fundamental para a construção da história do bairro. Após a controversa demolição do edifício, pouco se falou publicamente da destinação ou das intenções da FEP para o terreno de 60.500 m2.

Os olhos da opinião pública voltam-se novamente para o caso do Bom Retiro em 2017, quando vem a público a confirmação de que um grupo empresarial detentor de uma rede de hipermercados (Grupo Angeloni) articulava a construção de um hipermercado naquele bairro. O jornal também noticiava que tal construção teria sido confirmada após uma reunião com o recém-eleito prefeito da cidade para o mandato 2017-2020. Ainda que a localidade exata do empreendimento não tivesse sido confirmada naquele momento, passaram a circular, na imprensa local, imagens do projeto, as quais não deixavam dúvidas de se tratar do terreno do antigo complexo hospitalar. A reação mais imediata e contundente a essa notícia foi o surgimento de um grupo de ativistas que passou a repudiar a construção de um hipermercado, reivindicando que o terreno que abrigou o antigo hospital psiquiátrico fosse destinado à criação do Parque Bom Retiro. Desse modo, surgiu a causa autointitulada “A Causa mais Bonita da Cidade”.

O grupo de ativistas que saiu em defesa da criação de um parque urbano no antigo terreno do hospital teve como plataforma, para sua primeira manifestação pública, uma página no Facebook. Desde então, a rede social tornou-se o principal canal de organização e divulgação das ações do grupo, bem como meio de exposição dos acontecimentos e decisões que envolviam a atuação do poder público municipal, do Grupo Angeloni e da Federação Espírita do Paraná. No período de maior atuação dos ativistas, entre agosto de 2017 e agosto de 2018, a presença nas redes sociais estava coordenada com atividades e manifestações que ocorriam presencialmente, junto ao terreno do Bom Retiro, em frente à Prefeitura Municipal, ou nas reuniões do Conselho Municipal de Patrimônio.

A articulação e o engajamento nas redes sociais apresentavam-se como uma face da atuação no espaço físico, ao mesmo tempo que a ação no mundo concreto não perdia de vista a criação de circunstâncias e produção de um conteúdo que servisse à divulgação em redes sociais. Sendo tanto o conteúdo gerado no mundo virtual, quanto a prática das ações concretas, frutos de uma ação coletiva e colaborativa.

Após o conhecimento público da intenção de construção do hipermercado, além da preocupação com a preservação dos recursos naturais, tornou-se bastante evidente a demanda dos ativistas pelo direito de arbitrar sobre o destino do terreno. Nesse segundo momento, os membros de “A Causa mais Bonita da Cidade” assumiram o protagonismo e posicionaram-se como um agente central na condução da narrativa que envolvia as disputas sobre os usos futuros e as possíveis maneiras de apropriação daquela área. Em setembro de 2017, o prefeito de Curitiba, aparentemente em uma tentativa de escapar das investidas dos ativistas, que o acusavam de trocar um bosque por um hipermercado, o que obviamente o colocava em uma posição desconfortável diante de seu apelo como “prefeito-urbanista”, concedeu uma entrevista na qual declarou estar em negociação com a FEP para instalar, em parte do lote de propriedade da Federação, um memorial dedicado ao escultor paranaense João Turin. Na entrevista, o prefeito declarava que era de seu desejo pessoal criar um projeto cultural em homenagem ao escultor durante o mandato que se iniciava. Segundo o prefeito, o espírito do escultor, que tanto amava Curitiba, seria seu aliado para a conservação daquela área, caso seu projeto cultural fosse ali instalado (Abdalla, 2017ABDALLA, S. (2017). Greca quer instalar Memorial João Turim no bosque Bom Retiro. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/haus/sustentabilidade/prefeitura-quer-instalar-memorial-joao-turin-no-bosque-bom-retiro/>. Acesso em: 6 out.
https://www.gazetadopovo.com.br/haus/sus...
). Evidentemente, a postura do prefeito não agradou os ativistas, visto que, para “A Causa mais Bonita da Cidade”, naquele contexto, não caberia uma proposta a respeito das características do Parque que partisse da decisão pessoal do prefeito.

A postura do prefeito em relação à criação do Parque pode ser mais bem compreendida na medida em que seu pronunciamento dá continuidade a um modo de produção do espaço urbano, que em Curitiba, há pelo menos cinquenta anos, coloca a prefeitura e a figura pessoal do prefeito no centro das definições. A partir da década de 1970, tem sido criado um consenso de que a possibilidade de um planejamento urbano eficiente e que contemple a melhoria da qualidade de vida de seus habitantes deve ocorrer com a aplicação de soluções inovadoras elaboradas pelo prefeito e por seus técnicos. Desse modo, tem se atribuído, à capacidade técnica e criativa dos prefeitos de Curitiba, o mérito pelas inovações urbanas que teriam supostamente transformado Curitiba na capital mais europeia do Brasil, modelo de transporte público e qualidade urbana, na cidade ecológica dos parques, do lixo reciclável e da cultura. De acordo com esse imaginário, a capital paranaense teria conquistado seu lugar no mundo desenvolvido graças à audácia e à competência de seu planejamento urbano idealizado por prefeitos-urbanistas. E, nesse contexto, teve papel fundamental a atuação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba – IPPUC.

O IPPUC havia sido criado em 1965, como uma autarquia municipal formada com o objetivo de garantir a efetiva implementação de um plano preliminar de urbanismo, resultado de concurso público realizado para iniciar os estudos voltados àquilo que, posteriormente, seria definido como o Plano Diretor de Curitiba. O concurso em questão foi vencido pelas empresas paulistas Serete Engenharia S.A. e Jorge Wilheim Arquitetos Associados, que propuseram mudanças na estrutura da cidade, que passou a adotar, então, um modelo linear de expansão urbana e que, entre outras grandes intervenções no espaço urbano, previa o fechamento, para veículos, de algumas quadras do centro histórico da cidade (site https://ippuc.org.br).

Assim, desde sua concepção, o IPPUC foi apresentado como um repositório de notáveis que, a partir de mais robusta qualificação técnica, estivessem aptos a capitanear o desenvolvimento urbano de Curitiba. Nesse contexto, a primeira grande intervenção urbana foi o calçamento da rua XV de Novembro, que simbolizava, não apenas a ação inaugural do mandato de Jaime Lerner como um prefeito que viria a ter, nas inovações urbanas, sua marca pessoal e tema determinante de sua administração, mas também a consolidação do IPPUC como o detentor da capacidade técnica necessária, e praticamente inquestionável, para decidir sobre o futuro do planejamento urbano da cidade.

O inegável êxito da experiência do calçamento da rua XV de Novembro, também denominada Rua das Flores, confirmado pela maneira com que a população se apropriou daquele espaço, tornando-o um símbolo da cidade, colaborou para garantir, ao IPPUC, a legitimidade para atuar no âmbito da administração pública como a mais importante instância de decisão municipal, e, em muitos casos, a única, sobre o planejamento de Curitiba durante as décadas seguintes. O impacto político das ações e dos projetos concebidos por Lerner e pelo IPPUC, como a criação da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) e do Parque Barigui, este último criado como área para contenção das cheias do rio Barigui, foi tão notável que, após seu primeiro mandato, ainda sob o período ditatorial, Lerner foi nomeado mais uma vez como prefeito, e a criação de parques e praças tornou-se uma marca bastante eloquente de sua administração. Já, no período democrático, a imagem construída de “prefeito-urbanista” estava tão fortalecida que resultou em uma sequência de vitórias nas urnas, que elegeriam personagens com esse perfil, e vinculados ao mesmo grupo político, durante quatro mandatos consecutivos, de 1989 a 2004. Desse modo, além de eleger Lerner como governador do estado do Paraná (1995-2002), a relação entre poder executivo e atuação no IPPUC desdobrou-se em outras duas figuras públicas fundamentais para a consolidação da imagem de Curitiba como modelo de planejamento urbano: Cássio Taniguchi e Rafael Greca.

As menções enfáticas às suas autoproclamadas conquistas como planejadores urbanos e como técnicos obstinados e bem-sucedidos na resolução de complexos problemas da vida urbana permearam e ainda são vívidas no discurso e na imagem autoconstruída desses políticos, que foram gerados a partir de suas conexões com o IPPUC.

O processo de fortalecimento da associação positiva da imagem de um “prefeito-urbanista” junto a boa parte da população curitibana, convertida em resultados nas urnas, não se deu apenas por ações ligadas exclusivamente à criação de espaços públicos, como o calçadão da Rua das Flores e outras praças e parques, como o Parque Barigui ou o Parque São Lourenço. De modo paralelo e complementar, foram também apresentadas novas propostas para o transporte público, valorização e redesenho de espaços culturais, mudança na coleta e destinação de lixo e, sobretudo, uma boa dose de publicidade, que reforçava a construção de um discurso sobre Curitiba como cidade ecológica, cidade sorriso, cidade sustentável, sem, no entanto, trazer para o debate público as contradições e desigualdades existentes no processo de urbanização da capital.

A prática de excluir do discurso institucional o enfrentamento das desigualdades existentes no município e a adoção de uma retórica que enfatiza a capacidade do poder público de estabelecer a ordem e a eficiência implicam imprimir determinadas características aos espaços públicos, como limpeza, sensação de segurança e beleza, como representações de uma sociedade artificialmente reconciliada. Logo, a proposição do espaço público como local eminentemente apaziguado e controlado foi e ainda é um aspecto determinante para a validação da imagem de um prefeito capacitado, nos moldes consagrados desde a década de 1970 e consolidado na sequência ininterrupta dos mandatos Lerner, Greca e Taniguchi. Obviamente, as características apontadas não seriam necessariamente problemáticas, se não estivessem relacionadas com práticas, muitas vezes excludentes e violentas, adotadas pelo poder público, invisibilizando conflitos, apagando e enfraquecendo a diversidade étnica, social e cultural, construindo marcos para uma narrativa histórica elitista, idealizada e inverossímil.

Em Curitiba, a experiência de apropriações do espaço público à revelia das diretrizes municipais, que ignoram ou mesmo desafiam o tradicional planejamento municipal, sobretudo do IPPUC, é relativamente recente. Na última década, Curitiba tem experimentado gradativamente o surgimento de espaços públicos resultantes da mobilização de grupos autônomos. No entanto, a ocupação dos espaços públicos associada à utilização das redes sociais legitimam e ampliam a adesão da opinião pública às suas reivindicações, podendo, desse modo, exercer maior pressão sobre o poder municipal.

Uma das experiências inaugurais de proposição de espaços públicos em Curitiba que surgiu de uma demanda externa ao IPPUC e que conseguiu visibilidade no âmbito municipal foi a Praça de Bolso do Ciclista (PBC). Idealizada em 2014, por um grupo de cicloativistas, em sua maioria ligados à Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu, conhecido como CicloIguaçu, a praça nasceu de uma demanda desse grupo de um terreno localizado em uma região histórica da cidade, para promover a cultura da bicicleta. O lote em questão pertencia à Prefeitura Municipal de Curitiba e estava localizado na rua São Francisco, uma das mais emblemáticas do centro histórico de Curitiba. A execução da PBC revela-se bastante interessante pelo fato de que, embora não tenham sido travadas disputas significativas de propriedade ou mesmo na esfera simbólica entre ativistas e a prefeitura, tanto a escala (menos de 130 m2), quanto o processo de execução da praça fogem aos procedimentos e às temáticas consagradas no planejamento urbano da cidade. Com a Praça de Bolso do Ciclista, inauguram-se outros discursos para legitimação do espaço público pautados pela dimensão comunitária, muito mais próximos da diversidade e da complexidade das relações possíveis no espaço público de Curitiba. Ainda assim, a praça hoje se encontra esvaziada de seu sentido político de ser uma brecha na grande narrativa do planejamento urbano oficial, uma vez que o engajamento comunitário parece ter ficado restrito no tempo. Se a comunidade não precede o comum, mas se constitui exatamente por meio de práticas comunitárias constantes, em que a gestão é pactuada e repactuada na continuidade do movimento, a falta de ações permanentes e com alguma periodicidade acabou por tornar a PBC um espaço mais simbólico por sua origem do que por sua presença como fissura no cotidiano da cidade.

A partir desse contexto, deliberar coletivamente sobre o conceito, o programa ou os equipamentos a serem implementados para o Parque tornou-se um fator tão determinante para os ativistas quanto a concretização do Parque em si. Desse modo, entendemos que as reivindicações pelo Parque apontam para uma prática de construção urbana que percebe, no âmbito das relações comunitárias, a legitimidade e a potência necessária para fazer prevalecer seus interesses coletivos. Ou seja, há o estabelecimento de uma subjetividade que valida a superação da concorrência entre indivíduos em face daquilo que lhes é comum. Os manifestantes percebem que o exercício do direito à cidade se dá pela satisfação da “necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas” (Lefebvre, 2015LEFEBVRE, H. (2015). O direito à cidade. São Paulo, Centauro., p. 105).

No entanto, também é preciso reconhecer que escapa, às ações dos ativistas aqui analisadas, algumas dimensões da produção do urbano que impedem que essa experiência reverbere em outros contextos. Analisaremos, na sequência, os limites e as contradições que fazem com que o caso do Parque Bom Retiro não produza necessariamente uma mudança de maior amplitude no paradigma das dinâmicas de produção urbana em Curitiba.

Limites e contradições na instituição do comum em Curitiba

A atuação dos ativistas envolvidos com a causa em prol do Parque Bom Retiro tem caminhado no sentido de expandir suas reivindicações abarcando temas que poderiam fortalecer a legitimidade da criação do Parque diante da opinião pública e sensibilizar novos atores. No entanto, cabe ressaltar que as pautas incorporadas à causa se concentram em um espectro de exigências que, em Curitiba, apresenta maior apelo de convocação e poder de mobilização para um recorte social bastante específico. Não podemos desconsiderar que o terreno em disputa está localizado em um bairro residencial de classe média, provido de infraestrutura e serviços, e a temática da preservação ambiental e do patrimônio histórico, nos termos em que esses temas aparecem no discurso dos ativistas, possui legitimidade relativamente consolidada em camadas de maior poder aquisitivo da sociedade.

Nesse sentido, percebe-se que as demandas pelo Parque não agregam substancialmente, à “Causa mais Bonita da Cidade”, grupos sociais já mobilizados em Curitiba e que lutam por pautas relacionadas à busca por garantias básicas de existência. É preciso compreender que a causa em questão congrega, em suas ações, indivíduos, em sua maioria, brancos e de classe média, formando um coletivo de ativistas caracterizado predominantemente por professores e estudantes universitários, pequenos comerciantes, profissionais liberais e moradores vizinhos ao terreno e de bairros centrais da cidade. Portanto, segundo esse campo simbólico, as abordagens que foram associadas à defesa do patrimônio histórico e preservação ambiental se relacionam a temas como:

  • Agroecologia – O discurso desenvolvido pelos ativistas constantemente apresenta o papel de hipermercados como agentes de distribuição de produtos relacionados à agroindústria e à alimentação contaminada por agrotóxicos. Desse modo, o Parque proposto pelos ativistas teria como principal eixo temático, na formulação de seu programa, a difusão de práticas de agricultura orgânica, permacultura e preservação ambiental;

  • Hortas urbanas – Os ativistas do Parque Bom Retiro reivindicam a existência de hortas orgânicas e de acesso público, bem como a previsão de espaços para a comercialização da produção de pequenos produtores. É importante destacar que existe uma articulação com outros movimentos que possuem demandas semelhantes, como a Horta Comunitária da Ciclovia do Centro Cívico, a Horta do Jacu e a Horta Comunitária do Parque Gomm. Cabe destacar, também, que tais ações também ocorrem em bairros com características socioeconômicas e de infraestrutura semelhantes às do Bom Retiro.

  • Mobilidade urbana – As redes sociais da “Causa mais Bonita da Cidade” denunciam obras realizadas pela prefeitura no sistema viário que dá acesso ao terreno. Segundo os ativistas, as modificações no sistema viário da cidade teriam ocorrido como resultado da pressão do Grupo Angeloni, para facilitar o deslocamento de veículos que viriam do centro da cidade até o local onde se pretendia construir o mercado. Nas análises dos ativistas, as modificações priorizam a circulação de veículos individuais em detrimento do transporte público, não contemplam a ciclomobilidade, nem a segurança dos pedestres, além de intensificar o fluxo e a velocidade do tráfego em vias que atravessam bairros residenciais.

  • Covid-19 – Desde março de 2020, os ativistas passaram a articular campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, produtos de higiene pessoal e de limpeza para serem destinados a populações mais vulneráveis à pandemia. As ações ocorrem em parceria com outras organizações da sociedade civil, como associação de moradores, o Instituto Gastronomia Humanitária e o grupo Voluntários Contra a Covid-19, formado por professores universitários e estudantes de medicina.

Isto posto, destacamos que não se pretende associar temas como agroecologia, mobilidade urbana e principalmente a pandemia de Covid-19 como assuntos exclusivos de uma classe média mais progressista. Porém, constata-se que a abordagem desses temas no contexto do ativismo vinculado ao Parque não mobiliza moradores de regiões periféricas de Curitiba, trabalhadores de baixa renda ou causas relacionadas à gênero e raça. Nesse sentido, identificamos que, ao não se conectar com certas instâncias da produção urbana, há um afastamento daquilo que apresentamos como a instituição do comum. Tal segmentação e a dificuldade de uma integração com frentes de luta em curso pelo direito à cidade debilitam a constituição do comum como modo de produção do urbano.

A partir da reunião dos ativistas em torno de “A Causa mais Bonita da Cidade”, iniciaram-se críticas bastante contundentes sobre a ação dos agentes da administração pública, sobre as empresas do setor imobiliário que fizeram a intermediação para a comercialização do terreno, sobre a Federação Espírita do Paraná e sobre o Grupo Angeloni. Ainda em 2017, os ativistas passaram a contestar a legalidade dos contratos de compra e venda firmados entre os proprietários do terreno, trouxeram aos olhos da opinião pública circunstâncias que colocavam sob suspeita a isenção dos pareceres emitidos pelo Instituto de Planejamento e Pesquisa de Curitiba (IPPUC) e passaram a questionar a lisura das decisões da Prefeitura Municipal de Curitiba. Grande parte das críticas ao poder público destina-se à modificação de legislações que pudessem favorecer a construção do mercado, como a alteração no sistema viário em benefício do acesso ao futuro empreendimento, concessão de aumento de potencial construtivo do terreno e rejeição aos pedidos de preservação histórica dos vestígios do antigo complexo hospitalar.

No entanto, é possível verificar algumas características na natureza dos atos realizados pelos manifestantes que revelam uma relação contraditória diante do estado e da racionalidade neoliberal. Se, por um lado, é inegável que os ativistas ampliam as questões relacionadas meramente à materialidade da construção do Parque, buscando interferir também no seu processo de criação com as características e condições que a causa julga legítimas; por outro, parecem ter a expectativa de uma autorização, um recuo nas intenções dos agentes do mercado imobiliário e uma certa concessão e tutela do Estado. Essa dinâmica acaba, não só por postergar a imposição do uso do terreno como parque, mas sobretudo na apropriação social da área como um comum.

Ainda que de modo implícito, a causa do Parque Bom Retiro apresenta um discurso que expõe o incômodo diante do entendimento do espaço urbano como ativo financeiro, ao passo que tensiona a atuação do poder público e problematiza o modo de produção do espaço urbano na cidade de Curitiba. Porém, o comportamento dos ativistas apresenta alguns limites e hesitações nas táticas de enfrentamento. Isso fica claro no fato de que os manifestantes em nenhum momento ocuparam o interior do terreno, sempre mantiveram suas ações do lado de fora do lote, demonstrando respeito e uma certa reverência às dinâmicas de cercamento características do estabelecimento da propriedade privada.

Apesar das críticas contundentes e dos reiterados apelos proferidos pelos ativistas, há uma conduta polida, bem-comportada, como se seus argumentos fossem capazes de persuadir os proprietários do terreno e o estado a conceder-lhes o direito de ocupar o terreno e de criar o Parque. A recusa dos ativistas em ignorar os portões e ocupar a propriedade, usufruindo dela efetivamente como Parque, pode ser compreendida como um dilema entre a desobediência e a cordialidade. Nos moldes apresentados por Jasper (2016)JASPER, J. M. (2016). Protesto – Uma introdução aos movimentos sociais. Rio de Janeiro, Zahar., a adoção de táticas aceitas ou aprovadas pela opinião pública é utilizada com o intuito de reforçar a reputação dos ativistas como pessoas moralmente irrepreensíveis. Enquanto, a adoção de táticas mais violentas ou consideradas grosseiras poderia inspirar uma repressão que poderia provocar o fim do movimento.

No entanto, considerar o recorte social dos ativistas também pode iluminar nossa compreensão das motivações pelas quais se opta pela cordialidade e adia-se a tomada do terreno como parque. Os ativistas em sua maioria são advindos de contextos urbanos nos quais não são excluídos por completo da assistência do estado ou são eles também, em alguma escala, proprietários. O impasse dos ativistas parece situar-se no enfrentamento do problema de que, quando se trata da luta pelo Parque, é necessário manifestarem-se contrários a uma dinâmica típica da sociedade neoliberal, contraditoriamente, são essas mesmas dinâmicas que lhes alimentam a ideia de estabilidade e controle sobre seu cotidiano; portanto, são reticentes quanto ao rompimento do status quo da propriedade. Os manifestantes, ao permitirem que a lógica da propriedade determine a interdição do uso do terreno, distanciam-se de uma possível instituição dos comuns, visto que o uso instituinte “não é um direito de propriedade: ele é a negação em ato do direito de propriedade em todas as suas formas, porque é a única forma de lidar com o inapropriável” (Dardot e Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. (2017). Comum. Ensaios sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo., p. 509). Nesse sentido, ao protelar o uso, os ativistas afastam-se do centro de gravidade do comum, pois concentram grande parte de suas demandas a partir de uma ideia de transferência da propriedade, do campo privado para o estado.

Conclusões

A análise do contexto de reivindicações sobre o Parque Bom Retiro sob a perspectiva da produção de comuns urbanos apresenta aspectos contraditórios e uma série de ações descontínuas e isoladas. Mas o conjunto das demandas relacionadas à proposição do Parque aponta para perspectivas que revelam novas possibilidades de apropriação dos espaços de nossas cidades, sobretudo dos espaços públicos, como lugar de cidadania e local privilegiado para a demanda de práticas coletivas e compartilhadas.

Compreendendo-se que a produção do urbano na capital paranaense está inserida em um contexto latino-americano, de industrialização tardia e de capitalismo periférico, sob a pressão das práticas neoliberais e do capital financeiro, podemos entender a dimensão das dificuldades encontradas pelos ativistas quando estes solicitam a existência no espaço urbano de uma lógica que não seja pautada pelo consumo e pela propriedade.

O caso do Parque Bom Retiro demonstra que o planejamento urbano em Curitiba é um campo em disputa, e que a capacidade institucional do estado para a promoção de uma cidade mais aberta às pretensões e exigências de grupos não hegemônicos tem seus limites. Visto que, no caso analisado, o estado tem se apresentado receptivo às abordagens de empresas de grande poder econômico e enrijecido diante das pressões sociais de grupos que propõem o urbano como lugar de representação de interesses coletivos orientados para o bem comum.

O tensionamento suscitado pelos ativistas de “A Causa mais Bonita da Cidade” é precioso, na medida em que, na luta pela criação do Parque Bom Retiro, expõe as relações entre os agentes atuantes na produção do espaço em Curitiba, aqui identificados como as instituições administrativas do município, o mercado imobiliário e a mobilização de grupos autônomos. Os embates protagonizados entre os ativistas e a administração municipal tornam explícita a importância do controle sobre os termos em que se materializa o espaço urbano na capital paranaense, visto que as características físicas e simbólicas desses espaços contribuem para a consolidação de determinadas narrativas e discursos sobre a cidade. Consequentemente, ter o protagonismo na proposição de praças e parques, principalmente a partir da década de 1970, auxiliou na legitimação de instituições e na permanência no poder de grupos políticos aliados entre si.

A iniciativa dos ativistas de repudiar a construção de um hipermercado não apenas dificulta a ação muitas vezes predatória do mercado imobiliário, como também questiona a legitimidade de um planejamento urbano sustentado pelo elogio à eficiência técnica, mas que, em suas entranhas administrativas, mostra-se impermeável às demandas coletivas e populares.

Portanto, se os ativistas, até o momento, acumularam mais derrotas institucionais do que vitórias, é possível afirmar que possuem o mérito de procurar fissuras na narrativa institucionalizada sobre a cidade, uma vez que sugerem um potencial fortalecimento de causas que reclamem por uma ocupação do espaço urbano de modo mais comprometido com a memória da cidade, com a preservação ambiental e validando aspectos da vida urbana que possam contribuir para a produção de cidades como fontes de recursos comuns disponíveis para o uso e benefício de seus habitantes.

Logo, a questão central que percorre o caso do Parque Bom Retiro, identificada pelos ativistas, é o cercamento, ou melhor, a espoliação de recursos comuns – o entorno natural, a memória e as vivências comuns associadas ao local, pelas forças capitalistas com a conivência do poder público. Sustentam que a construção do hipermercado resultará na evidente mercantilização dessa riqueza comum, recursos requisitados para o uso compartilhado e utilizado pela população do seu entorno, para tornar-se recurso de controle privado, anulando as texturas da cidade e da sua vida pública construídas ao longo do tempo.

A oposição aos fundamentos e aos efeitos do imperativo do cercamento na produção do espaço urbano está no cerne de diversas outras ações comunitárias em Curitiba. Essas ações reivindicam direitos mobilizadas pelo desejo coletivo de fazer cidade e, mais, de reinventá-la, e seu êxito depende da capacidade de pensar, propor, elaborar e gerir coletivamente o espaço urbano. Criam-se possibilidades de forjar e sustentar outros mundos pelo reconhecimento de que a vida urbana associativa e insurgente é aquela que deve impulsionar a vida pública institucional.

No entanto, a escala do problema do cercamento, aprofundado pelo projeto neoliberal, exige um nível de ação coordenada considerável para disputar o espaço político, no qual são definidos os interesses de larga monta. Constituir uma rede de ação e produzir mediações mais amplas que apontem para a formação de um sujeito político coletivo, capaz de incidir num nível político mais amplo, parecem-nos princípios fundamentais das lutas antineoliberais para garantir abertura a um devir pós-capitalista.

As práticas e os experimentos alternativos em Curitiba hoje, ainda que apontem renovações significativas sobre o fazer cidade, apresentam-se de forma muito localista e pouco enredados. As discussões sobre o acesso aos recursos naturais, aos investimentos públicos, à circulação e ao livre deslocamento dos corpos pela cidade aparecem como pano de fundo em muitas ações curitibanas, mas como lutas desarticuladas. No caso específico do Parque Bom Retiro, a chancela do estado para a construção do Parque aparece diversas vezes como o fim último da mobilização, de maneira que as iniciativas do grupo para criar condições para a experimentação e transformação no/do cotidiano têm sua potência reduzida.

Com isso, não pretendemos desqualificar ou diminuir as histórias de luta, de resistência, e as propostas de mudança das experiências locais em Curitiba. Ao contrário, buscamos apontar a validade dessas novas regras e lógicas de ação como processos fundamentalmente democráticos para encontrar saídas aos impasses conferidos pelos parâmetros neoliberais. Entendemos que é necessário analisar os limites e as contradições desses processos no intuito de colaborar com as práticas de resistência ao neoliberalismo. Nossas reflexões apontam as perspectivas e os desafios para a construção de uma resposta cosmopolita, a fim de amplificar a potência das mobilizações em um contexto global.

Figura 1
– Vista aérea do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro

Figura 2
– Vista do edifício principal do complexo do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro

Figura 3
– Vista aérea atual, na qual se verifica com destaque o bosque com vegetação nativa inserido no contexto de urbanização consolidada do bairro Bom Retiro

Figura 4
– Simulação da vista aérea da implantação da loja Angeloni no Bom Retiro

Figura 5
– Manifestantes de “A Causa mais Bonita da Cidade” impedidos de ter acesso à reunião do Conselho Municipal de Patrimônio de Curitiba

Figura 6
– Manifestação dos ativistas no portão principal que dava acesso ao Hospital Psiquiátrico Bom Retiro

Figura 7
– Piso remanescente do antigo Hospital Psiquiátrico Bom Retiro

Figura 8
– Ativistas no terreno do Bom Retiro

Referências

  • ABDALLA, S. (2017). Greca quer instalar Memorial João Turim no bosque Bom Retiro. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/haus/sustentabilidade/prefeitura-quer-instalar-memorial-joao-turin-no-bosque-bom-retiro/>. Acesso em: 6 out.
    » https://www.gazetadopovo.com.br/haus/sustentabilidade/prefeitura-quer-instalar-memorial-joao-turin-no-bosque-bom-retiro/>
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  • OSTROM, E. (2015). Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge, Cambridge University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    8 Dez 2020
  • Aceito
    18 Jun 2021
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