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Apresentação

Após um longo período na obscuridade, o tema da habitação voltou a ganhar centralidade na agenda política a partir de meados da década de 2000, não apenas no Brasil como em outros países da América Latina. A expressão mais contundente dessa centralidade se deu, sem dúvida, através de programas de construção de conjuntos habitacionais contando com subsídios públicos, que se desenvolveu mais recentemente no Brasil e na Venezuela, seguindo em grande medida o modelo adotado pelo Chile desde os anos 1980. Mas também é importante ressaltar a multiplicação de ações de urbanização de favelas, das quais as mais conhecidas são as experiências brasileira e colombiana, assim como os programas de regularização fundiária e urbanística.

A expansão das políticas habitacionais não se fez, todavia, sem ambiguidades. Nesse sentido, o objetivo central do presente número da revista Cadernos Metrópole é construir uma perspectiva crítica sobre a experiência recente, tentando identificar seus avanços, limites e possibilidades.

Um aspecto central das políticas habitacionais, como apontado pela literatura já clássica sobre o tema, diz respeito à relevância da questão fundiária. Ermínia Maricato, em estudos recorrentes, tem apontado o papel da propriedade privada da terra, ao longo da história do país, como o principal obstáculo para a democratização do acesso à cidade. Neste número dos Cadernos, o texto de Tomás Antonio Moreira e Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro, A questão fundiária na Política Nacional de Habitação Brasileira, procura mostrar como as mudanças recentes na política habitacional, que apontavam na direção da utilização de mecanismos e instrumentos de controle da valorização e da especulação imobiliária, foram desconsideradas, a partir da criação do programa Minha Casa Minha Vida. Nesse sentido, ao priorizar um programa que buscava incentivar o crescimento econômico e cujo desenho dava ampla autonomia à ação do capital imobiliário, sem cuidar de mecanismos regulatórios efetivos na direção dos avanços realizados no âmbito da Política Nacional de Habitação, o programa acabou por gerar uma forte demanda por terra que influenciou uma progressiva elevação de preços fundiários e imobiliários, atingindo todas as cidades brasileiras e revertendo os avanços legislativos e institucionais anteriormente alcançados.

Uma outra ambiguidade da política habitacional brasileira recente diz respeito ao financiamento público e, particularmente, ao papel do FGTS como instrumento de captura de poupanças e de financiamento de programas habitacionais voltados para camadas de menor renda. O texto de Luciana de Oliveira Royer, O FGTS e o mercado de títulos de base imobiliária: relações e tendências, mostra como os recursos do FGTS vêm sendo crescentemente utilizados para sustentar o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), particularmente através da aquisição de títulos de crédito de base imobiliária. O texto apresenta evidências significativas de que é a atuação do FGTS que vem garantindo liquidez a esse mercado, sem que se tivesse estabelecido a necessária vinculação com investimentos habitacionais, particularmente para a Habitação de Interesse Social, desviando o Fundo de seus objetivos específicos e mostrando indícios de que o Sistema de Financiamento Imobiliário, criado com objetivo de substituir o SFH, permanece sem sustentabilidade econômica.

A periferização aparece como tema recorrente nas análises do Programa Minha Casa Minha Vida, como será visto nos textos presentes nesta edição, e em outras experiências latino--americanas, como mostra o estudo de Maria Eugenia Rodrigues Daneri, intitulado Vínculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivenda e integración urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo. El caso del PRO.CRE.AR en La Plata. Analisando o caso da Província de La Plata, na Argentina, a autora mostra as contradições de um programa de provisão de moradias que, além de reforçar os processos de periferização, coloca a população em situações de precariedade de infraestrutura, através de uma política de habitação que, de forma similar ao que acontece com o Programa brasileiro, não dialoga com as políticas urbanas e com o planejamento do uso do solo urbano.

A problemática habitacional tem como um de seus pontos centrais a questão dos assentamentos informais, favelas ou assemelhados, um problema recorrente nas cidades latino--americanas e presente nas cidades brasileiras já há mais de um século e que tem sido objeto de programas de urbanização e de regularização, como já apontado acima. O texto de Suzana Pasternak e Camila D'Ottaviano, Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010, faz um balanço das mudanças recentes no Brasil, apresentando uma importante inovação por utilizar, pela primeira vez, os dados disponibilizados pelo Censo 2010 referentes à “Leitura Territorial”, para os setores de aglomerados subnormais. O texto mostra o grande crescimento desses assentamentos na primeira década do século XXI, passando de 6,5 milhões para 11,4 milhões, e 88% desses domicílios estão concentrados em 20 grandes cidades. Mostra ainda que as favelas passaram por um processo de intenso crescimento na última década e que, não obstante as melhorias decorrentes dos programas de urbanização, ainda se identifica forte precariedade, seja pelas condições geológicas do terreno, seja pelas altas densidades, seja pelas condições de acesso à infraestrutura. Essa precariedade se revela mais forte, particularmente, nas cidades do Norte e do Nordeste.

O tema das favelas traz à baila o princípio do direito à moradia e da função social da propriedade na concepção e na implementação das políticas de habitação. Essa importância se manifestava particularmente pela centralidade dos programas de urbanização de favelas e de regularização fundiária. A regularização fundiária e a urbanização de assentamentos precários vinham ganhando importância crescente nas políticas públicas, em todos os níveis de governo, todavia, nos anos recentes pudemos identificar uma reversão dessa tendência, como aponta o texto de Rosana Denaldi et al., como ressaltaremos mais adiante. Esses programas passaram a conviver, nos últimos anos, com ações de renovação urbana e de realização de grandes obras que implicam despejos forçados e deslocamentos de parcelas importantes da população para periferias distantes.

O estudo de Rosana Denaldi et al., Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários, detém-se em uma avaliação daquele que foi o mais importante programa de urbanização de assentamentos precários no Brasil – o PAC-UAP – com foco na região do ABC paulista. O texto mostra que, por um lado, os recursos do PAC permitiram ampliar largamente os investimentos municipais em urbanização de favelas, ampliando fortemente a escala de intervenção. Por outro, identificam-se dificuldades na viabilização do Programa, seja em nível nacional, seja no caso analisado (Região do ABC paulista) com baixo nível de contratação e atraso significativo na execução das obras. As conclusões apontam que os problemas identificados referem-se (a) à maior complexidade de obras em assentamentos precários, seja pelas condições de terreno, seja pelo fato de se tratar de um assentamento consolidado, seja, ainda, pela necessidade de uma articulação forte entre as políticas de reassentamento e a realização de obras estruturais; (b) à baixa qualidade e nível incompleto dos projetos de arquitetura e de engenharia, indicando inclusive a falta de experiência técnica acumulada nesse campo; (c) aos procedimentos de gestão financeira e de andamento das obras pelas equipes da Caixa, que também não se adequam à realidade das obras em favelas, ressaltando-se a rigidez das normas de contratação e de acompanhamento. O texto ressalta a importância que o programa não seja relegado a segundo plano por conta das dificuldades encontradas, mas que se busque seu aprimoramento no sentido de melhorar as condições técnicas da intervenção e da gestão.

O enfrentamento do problema das ocupações informais passa por dois tipos de políticas que podem ou não ser combinadas: a urbanização, que significa a provisão de infraestrutura, melhoria da acessibilidade e tratamento de situações de risco, e a regularização fundiária, que visa resolver os problemas da titularidade da terra, assim como a situação de regularidade em relação à legislação urbanística e edilícia. Como têm mostrado estudos históricos e recentes sobre a regularização fundiária no Brasil, a legislação, embora tenha avançado, ainda não permitiu que se acelerem os ritos jurídicos, e, portanto, permanecem obstáculos à regularização plena. Tal é também o caso na Argentina, como mostra o trabalho de Tomás Alejandro Guevara, ¿Y el título para cuándo? El proceso de regularización del barrio Virgen Misionera, que identifica claramente os obstáculos ao processo de regularização nos casos analisados, mostrando que são necessárias ainda muitas mudanças na legislação, uma vez que o campo jurídico permanece ainda fortemente condicionado à proteção ao direito de propriedade. O autor aponta ainda que alguns dos instrumentos presentes na legislação brasileira, como a usucapião especial urbana e as Zeis, poderiam ser úteis para resolver problemas identificados nos casos analisados, ressaltando a importância de avanços na legislação em geral para os países latino-americanos.

O conjunto de textos que se segue versa, em linhas gerais, sobre o Programa Minha Casa Minha Vida. Denise Morado Nascimento, em As políticas habitacionais e as ocupações urbanas: dissenso na cidade, faz um interessante contraponto entre a ação do Programa, que leva à periferização, e a experiência das ocupações em áreas centrais, a partir do caso de Belo Horizonte.

Danielle Klintowitz, com o texto Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer em um governo petista?, apresenta um enfoque mais abrangente de análise, olhando o Programa a partir de uma perspectiva nacional. Na primeira parte do texto, mostra como o programa se afasta das diretrizes da PNH, ao enfatizar o papel do setor privado e também como essa primazia acaba por gerar efeitos não desejados, já que a distribuição de recursos não segue a lógica da distribuição do déficit habitacional. Na segunda parte, adotando um enfoque da ciência política, a autora busca identificar a lógica da formação das coalizões que dão suporte aos diferentes aspectos da política habitacional. Ressalta que, desde o início, o governo pautou duas agendas paralelas, uma voltada para os movimentos sociais e outra para o setor imobiliário, tentando costurar as duas agendas sob a égide (legitimadora) do SNHIS.

O tema dos problemas distributivos acima apontados é retomado em artigo de Renato Pequeno e Sara Vieira Rosa, O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE: análise dos arranjos institucionais, que buscarão explicá-los a partir dos arranjos institucionais e do papel dos diferentes atores, no contexto da Região Metropolitana de Fortaleza. Retomando o tema do acesso à terra em condições econômicas adequadas como fator explicativo dos processos de distribuição de recursos, o texto aponta que esse fator não deve ser dissociado de um olhar mais agudo sobre a natureza e o porte dos agentes privado envolvidos, já que esses desenvolvem estratégias – inclusive fundiárias – diferenciadas. Ressalta ainda a importância de um fortalecimento da gestão pública e do planejamento e de um redesenho do Programa com revisão do arranjo institucional adotado.

Maria Beatriz Cruz Rufino retoma o tema da periferia em Transformações da periferia e novas formas de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças na produção habitacional, agora a partir do olhar da produção de conjuntos habitacionais e não mais apenas dos loteamentos populares como era a tradição na literatura especializada. Partindo da análise dos resultados de pesquisas sobre a expansão periférica recente capitaneada pelo Programa Minha Casa Minha Vida, a autora desenvolve um interessante ensaio teórico em que postula “o deslocamento da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, para a primazia de uma contradição urbana, sob domínio do capital financeiro, responsável pela produção de novas desigualdades”.

Marcella Carvalho de Araújo Silva, no texto Entre as estatísticas e a cidade: o cadastramento e a produção da demanda social por apartamento no Minha Casa Minha Vida, em que discute o processo de cadastramento das famílias que participam do Programa Minha Casa Minha Vida, problematiza de forma particular a relação entre o cálculo do déficit habitacional, que é fonte de referência para o Programa e a constituição da demanda específica, a partir do processo de cadastro. Tomando como estudo de caso o processo de cadastro operacionalizado pela equipe do trabalho técnico social da Prefeitura do Rio de Janeiro em uma favela da Zona Norte da cidade, a autora aponta para a complexidade das relações sociais que se configuram na esteira do processo de reassentamento, sugerindo a existência de um conjunto de injustiças, assim representadas pela população, tanto na classificação do risco e de quem é obrigado a sair, quanto na designação de novas unidades no conjunto habitacional.

Já Vitor Matheus Oliveira de Menezes, em Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida: trajetórias de benefício e percepções de bem-estar social, trata de uma avaliação das percepções dos beneficiários do Programa a partir de um estudo de caso de um empreendimento situado em Salvador-BA, introduzindo como elementos analíticos a trajetória e a inserção da população em redes familiares e sociais. O texto mostra que a percepção dos atores é complexa e contraditória e que a importância dos vínculos familiares como elemento de sustentação da reprodução social deve ser levada em conta nas análises sobre a efetividade das políticas públicas.

No texto Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida: discussão conceitual e reflexões a partir de um caso empírico, Aline Werneck Barbosa Carvalho e Italo Itamar Caixeira Stephan buscam refletir sobre a efetividade do Programa em municípios de pequeno porte, a partir da análise dos empreendimentos realizados em Viçosa-MG. Partindo de um survey realizado em todos os empreendimentos do município e tomando como base a comparação com a moradia anterior, o texto conclui pela problematização dos resultados tendo em vista aspectos de acesso a infraestrutura e a mobilidade espacial.

O presente número da revista Cadernos Metrópoles apresenta um balanço bastante completo das tendências recentes na Política Habitacional, mostrando que, se os anos recentes mostraram que essa política ganha maior centralidade na agenda pública, há ainda um longo caminho a avançar para que o direito à moradia possa ser efetivamente assegurado para todas as camadas da população.

Adauto Lucio Cardoso*
Organizador

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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