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Fronteiras urbanas, mercados em disputa: jogos de poder na produção de espaços

Resumo

Neste artigo, tomamos as frentes de expansão das fronteiras urbanas como espaços privilegiados para apreender os agenciamentos práticos, trama de atores e jogos de poder na produção dos mercados urbanos de terra e moradia em São Paulo. Presença hoje incontornável nesses lugares, os homens do PCC, em interação com essa trama intrincada de atores, atuam como operadores desses mercados e da gestão interna de territórios populares. O fato é que os negócios do PCC se expandem conforme também se expandem ocupações e assentamentos populares. No jogo ambivalente de proteção e extorsão, entre aceitação e coerção, mobilizam recursos de poder nos acordos e disputas, conflitos e acomodações que são constitutivos da produção e gestão dos mercados informais de terra e moradia.

mercados informais de terra e moradia; ocupações urbanas; gestão de espaços; PCC

Abstract

In this article, we view the expansion fronts of urban borders as privileged spaces to understand practical agencies, the network of actors, and the power games involved in the production of urban land and housing markets in São Paulo. An unavoidable presence in those places today, the men of Primeiro Comando da Capital (PCC – First Capital Command), in interaction with this intricate network of actors, act as operators of these markets and the internal management of popular territories. The fact is that the PCC's businesses expand as occupations and precarious settlements expand. In the ambivalent game of protection and extortion, between acceptance and coercion, they mobilize power resources in agreements, disputes, conflicts, and accommodations that constitute the production and management of informal land and housing markets.

informal land and housing markets; urban occupations; space management; PCC

Nos últimos anos, a expansiva atuação de grupos armados nos mercados urbanos das grandes cidades brasileiras, sobretudo nos mercados imobiliários e de serviços urbanos, é apontada por estudiosos do tema e denunciada por moradores de diferentes localidades Brasil afora. No Rio de Janeiro, onde tal atuação se configura de forma paradigmática, diferentes pesquisas apontam a importância crescente da exploração econômica em torno da moradia e dos serviços urbanos para o modelo de negócios dos grupos armados, tanto das milícias como das facções do tráfico de drogas (Carvalho et al., 2023CARVALHO, M.; ROCHA, L. M.; MOTTA, J. (2023). Milícias, facções e precariedade: um estudo comparativo sobre as condições de vida nos territórios periféricos do Rio de Janeiro frente ao controle de grupos armados. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.; Hirata et al., 2020HIRATA, D. V. et al. (2020). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Rio de Janeiro, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ).; Benmergui e Gonçalves, 2019BENMERGUI, L.; GONÇALVES, R. S. (2019). Urbanismo miliciano in Rio de Janeiro. NACLA Report on the Americas, v. 51, n. 4, pp. 379-385.).

Em São Paulo, é cada vez mais frequente a presença de homens da maior facção paulista, o Primeiro Comando da Capital (PCC), nesses mercados. Entre fatos, rumores e histórias que se contam e circulam pelas quebradas das periferias da cidade, essa presença já faz parte das evidências incontornáveis no trabalho de campo de pesquisadores do urbano, como a aquisição e a apropriação de lotes para a própria moradia, conforme as regiões e circunstâncias de momento. Ou, então, como acontece nas situações descritas por Prieto e Verdi (2023)PRIETO, G.; VERDI, E. F. (2023). Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 85, pp. 55-73., agenciam ocupações e definem critérios para distribuição seletiva dos lotes. Em outros lugares, entre rumores e suposições, pequenos edifícios e construções passam a compor, digamos assim, o estoque de moradias disponíveis, sob critérios também bastante seletivos, para recém-chegados e outros tantos indivíduos e famílias que buscam moradia nos territórios populares. O fato é que o PCC vem diversificando seus negócios em outros circuitos dos mercados ilegais (Feltran, 2018FELTRAN, G. (2018). Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.) e há evidências de seu envolvimento nos mercados informais de terra e moradia para lavagem de dinheiro e estratégia para ampliar poder e influência nos territórios urbanos.

Diferente do que ocorre no Rio Janeiro, não há domínio de território, tampouco monopólio e controle dos serviços urbanos nos lugares em que instalam seus negócios. Sob outra ecologia de práticas, agenciamentos e alianças, os homens do PCC atuam como operadores desses mercados e da gestão interna de territórios populares, em interação com uma nebulosa de outros tantos atores (e interesses) presentes nesses lugares, como as ocupações de terra nas bordas da cidade. O fato é que as frentes de expansão das fronteiras urbanas figuram, hoje, como espaços privilegiados para apreender os agenciamentos práticos entre jogos de poder (e interesses) e a trama multifacetada de atores e seus recursos de ação e poder na produção dos mercados urbanos de terra e moradia, tal como se configuram nos dias atuais. Esta é a questão que propomos discutir neste texto.

Em vez de partir das dinâmicas, percursos e procedimentos do PCC e os expansivos mercados de bens ilícitos (aliás, já detalhados por uma vasta literatura), interessa-nos perscrutar as lógicas de produção e gestão dos espaços urbanos. Tomamos, como referência empírica, ocupações de terra recentes estabelecidas na fronteira norte da cidade de São Paulo, marcadas por grande precariedade e insegurança em meio a uma região ainda pouco adensada – contraponto do que poderíamos encontrar em outras regiões periféricas da cidade também pontilhadas por ocupações e assentamentos precários em meio a bairros urbanizados, favelas já consolidadas, conjuntos habitacionais e também, cifra dos tempos, mercados imobiliários em expansão.

Trata-se de uma fronteira urbana localizada entre a cidade e a floresta, aos pés da Serra da Cantareira, onde o rural e o urbano se encontram e se misturam, resultado das configurações particulares de um processo de urbanização que alcançou a região no final do século XX.1 1 Para evitar a identificação dos lugares, vamos nos referir à extensa e heterogênea zona norte paulistana de modo genérico. O mesmo vale para o nome da ocupação de que iremos tratar, bem como de nossos interlocutores, todos fictícios. Em meio a restrições rurais e ambientais estabelecidas para a área, os loteamentos populares, no mais das vezes irregulares, foram abrindo sendas de ocupação urbana, alterando a paisagem local no decorrer das últimas décadas (Moreira, 2019MOREIRA, F. A. (2019). A expansão urbana de São Paulo e a ocupação do território ao norte da várzea do Tietê: O que mudou nos processos de produção do território popular em um século? Relatório de pós-doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.).

O interesse dessa tão precária quanto expansiva região de fronteira dos mercados informais de terra e moradia está no fato de que foi possível acompanhar os meandros, momentos e fases de seu engendramento e as relações de poder aí inscritas.2 2 Os dados etnográficos apresentados neste artigo são fruto da pesquisa de doutorado de Lacerda (2023), desenvolvida entre 2018 e 2022. Expansão, produção, gestão de mercados de terra e moradia: muito concretamente, práticas, agenciamentos e relações de poder que “fazem cidade” na medida que as formas de vida que aí vão se constelando ganham densidade conforme as temporalidades pelas quais materialidades são construídas, reivindicadas, negociadas, agenciadas na produção de um “mundo habitável” – casas, arruamentos, canalizações, redes de eletricidade e tudo o mais que compõe vida urbana. Materialidades construídas por via de acordos e agenciamentos nas fronteiras embaralhadas do formal-informal, legal-ilegal, entre improvisações de momento, instrumentalização das regulações urbanas, relações tensas e conflitivas com agentes públicos, com empresários interessados em expandir seus negócios na área, proprietários vizinhos, no mais das vezes com titulação duvidosa, também com as forças da ordem, fiscais da prefeitura, polícia ambiental, policiais militares.

Quer dizer, produção de mercados não é uma abstração. Em meio a uma conflitualidade latente ou aberta, envolve atores, formas de vida, interesses, expectativas e promessas de uma vida plausível, tudo isso em meio a práticas e agenciamentos situados para lidar com as urgências da vida, regidas pela insegurança entre ameaças de remoção e incertezas quanto ao futuro imediato. Isso acompanha a história urbana de nossas cidades, encontrando-se paralelos em outras tantas cidades da América Latina e nas metrópoles do assim chamado Sul Global, sendo constitutivo da assim chamada informalidade urbana que caracteriza o urbanismo dessas cidades (Roy, 2005ROY, A. (2005). Urban informality: toward an epistemology of planning. Journal of the American Planning Association, v. 71, n. 2, p. 147-158. e 2011; Yiftachel, 2009YIFTACHEL, O. (2009). Critical theory and 'gray space': mobilization of the colonized. City, v. 13, n. 2-3, pp. 246-263.).

No correr das últimas décadas, por aqui e alhures, espaços e territórios são atravessados pelos também expansivos circuitos dos mercados ilegais, de drogas, sobretudo (mas não apenas). Mais recentemente, há a presença de organizações criminosas e de poderes armados nas dinâmicas conflitivas de produção, gestão e governo desses territórios. Marcador dos tempos que correm, é situação que introduz um ponto de inflexão na história urbana recente, abrindo-se a uma ordem de questões que nos desafia quanto aos modos de descrever e de problematizar essas realidades urbanas.

Um “fazer ilícito das cidades” (illicit city-making), propõem Müller e Weegels (2022)MÜLLER, F. I.; WEEGELS, J. (2022). Illicit city-making and its materialities: introduction to the special issue. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 230-240., que se alinham ao campo de estudos sobre “etnografias de infraestruturas”, tomando como lente analítica as materialidades urbanas nas quais se condensam relações de poder, disputas por autoridades, legitimidade e soberania e, também, controle, apropriação (ou expropriação) das riquezas circulantes. Poderes estatais, privados e ilícitos dependem da construção e da manutenção dessas infraestruturas que moldam os terrenos econômico e político de seus interesses (em disputa), que “facilitam conexões, comércio, as redes e mobilidades que também reconfiguram políticas urbanas e contestações de poder e autoridade” (ibid., p. 233).

É nesta chave que Müller e Weegels (2022)MÜLLER, F. I.; WEEGELS, J. (2022). Illicit city-making and its materialities: introduction to the special issue. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 230-240. propõem uma releitura das teses conhecidas de Tilly (1985)TILLY, C. (1985). "War making and State making as organized crime". In: EVENS, P.; RUESCHEMEYER, D. (orgs.). Bringing the State back. Cambridge, Cambridge University Press., trazendo para o campo do urbano a analogia entre Estado e crime organizado nas disputas de soberania, de controle de território, de recursos de poder e de apropriação da riqueza circulante entre poderes estatais e atores ilícitos (milícias, paramilitares, gangues e outros grupos armados). Eis a questão: a presença de poderes armados, argumentam os autores, fazem das cidades arenas de soberanias em disputa justamente nos nexos que articulam regimes de acumulação (produção e circulação das riquezas urbanas) e formas de coerção (oferta de proteção, cobrança de impostos). Nessa formulação, os autores releem Tilly (1985TILLY, C. (1985). "War making and State making as organized crime". In: EVENS, P.; RUESCHEMEYER, D. (orgs.). Bringing the State back. Cambridge, Cambridge University Press. e 1992) com foco na sua sociologia histórica acerca da formação dos Estados ocidentais, para colocar em foco as formas de soberania (em disputa) e de governo urbano (em disputa) ancoradas na produção material dos espaços urbanos. Como dizem os autores:

[...] ao localizar as práticas e atores ilícitos nos processos materiais que tornam as cidades habitáveis e os territórios urbanos e as populações governáveis, o termo “fazer-cidade” procura destacar a relação intrínseca entre a urbanização e o ilícito e aborda o papel influente do extralegal no planejamento e na organização urbana. (Müller e Weegels, 2022MÜLLER, F. I.; WEEGELS, J. (2022). Illicit city-making and its materialities: introduction to the special issue. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 230-240., p. 234)

A proposta dos autores abre uma senda para colocar nossas próprias questões em diálogo com uma vasta literatura que trata dos grupos armados, questão em pauta nos debates recentes, em escala global. Diversas são as configurações de “operadores organizados da violência” (milícias, paramilitares, gangues, organizações criminosas, grupos de autodefesa) que ocupam o cenário de cidades conflagradas por guerras civis (Grassian e Ben-Ari, 2011GRASSIAN, E.; BEN-ARI, E. (2011). Violence operators: between State and Non-State actors. Etnofoor, v. 23, n. 2, pp. 7-15.; Bazenguissa-Ganga e Makki, 2012BAZENGUISSA-GANGA, R; MAKKI, S. (orgs.) (2012). Societés en guerre: ethnofgraphies des mobilisations violentes. Paris, Éditions de la Maison des sciences de l'homme.); intervenções neocoloniais – como no Iraque, no Afeganistão, no Mali ou na Burquina Fasso (Quesnay, 2022QUESNAY, A. (2022). Régimes miliciens et gouvernement transnational dans les guerres civiles: introduction. Cultures & Conflits, n. 125, pp. 7-20.) –; guerra às drogas e à insurgência guerrilheira (Duncan, 2015DUNCAN, G. (2015). Los senores de la guerra: de paramilitares, mafiosos y autodefensas en Colombia. Bogotá, Debate.); além de grupos de justiceiros movidos por um punitivismo próprio dos tempos que correm; práticas de vigilantismo nas fronteiras de países assombrados por diásporas migratórias (Favarel-Garrigues e Gayer, 2021FAVAREL-GARRIGUES, G.; GAYER, L. (2021). Fiers de punir: le monde des justicier hors-la-loi. Paris, Éditions du Seuil.; Lamote, 2013LAMOTE, M. (2013). États-Unis/Mexique: les milices veillent. Hermès, v. 63, n. 2, pp. 101-108.).

Na pauta dessas discussões, entre controvérsias e proposições variadas, a noção de “soberanias fragmentadas” (Gazit, 2009GAZIT, N. (2009). Social agency, spatial practices, and power: the micro-foundations of fragmented sovereignty in the occupied territories. International Journal of Politics, Culture, and Society, v. 22, n. 1, pp. 83-103.) circula, dando a cifra de um campo de debate que coloca em questão a também hoje controvertida tese do monopólio da violência organizada pelo Estado (Stepputat, 2012STEPPUTAT, F. (2012). State/violence and ’fragmented sovereignties. Etnofoor, v. 24, n. 1, pp. 117-121.; Wilson, 2012WILSON, L. (2012). A history of violence: anthropology and the study of States. Etnofoor, v. 24, n. 1, pp. 123-128.). Por muito tempo, axioma não refletido das pesquisas e debates políticos, o “monopólio de violência legítima” vem sendo desafiado pelo surgimento de outros “operadores de violência” em países conflagrados e também em regiões atravessadas por circuitos dos mercados ilegais que se expandem e se apropriam de oportunidades de negócios (e recursos de poder) abertas no lastro de reformas neoliberais, privatização de empresas e serviços públicos e nas hoje expansivas economias extrativistas (Aranda, 2014ARANDA, S. M. (2014). "You don't see any violence here but it leads to very ugly things": forced solidarity and silent violence in Michoacan, Mexico. Dialectal Anthropology, v. 38, n. 2, pp. 153-171. e 2019; Mendonza, 2018MENDONZA, N. (2018). "La privatización de la ilegalidad". In: CONZALBO, F. E. (org.). Si persisten las moléstias. Ciudad de Mexico, Ediciones Cal y Arena, pp. 1-14.; Mantovani, 2015MANTOVANI, E. T. (2015). "Crimen organizado, economias ilicitas y geografias de la criominalidad otras claves para pensar el extractivismo del siglo XXI en America Latina". In: LOPEZ, P.; SANTIAGO, M. B. (orgs.). Conflictos territoriales y territorialidades en disputa. Buenos Aries, Clacso.).

A discussão é vasta; impossível dela dar conta nos limites deste artigo, mas interessa colocar essas questões no horizonte de nossas próprias indagações, afinal, a presença de grupos armados em nossas cidades está longe de ser trivial, sendo atravessada por uma atualidade ainda a ser bem entendida. É uma questão que está além do que se propõe neste artigo. Por ora, vale dizer que ela introduz certo prisma analítico e nos interroga quanto ao modo de descrever e de problematizar as complicações urbanas da nossa atualidade, a produção da cidade, seus espaços e seus territórios. Salvo engano, esta é uma questão ainda pouco abordada no campo de debate acima referido em linhas muito gerais. Daí o interesse e a importância da lente analítica proposta por Müller e Weegels (2022)MÜLLER, F. I.; WEEGELS, J. (2022). Illicit city-making and its materialities: introduction to the special issue. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 230-240.. A releitura e a atualização das teses de Tilly (1985TILLY, C. (1985). "War making and State making as organized crime". In: EVENS, P.; RUESCHEMEYER, D. (orgs.). Bringing the State back. Cambridge, Cambridge University Press. e 1996) são mais do que oportunas, alertando-nos para a importância de se averiguar e conferir estatuto aos agenciamentos políticos e formas de governo de territórios que vem se configurando nos nexos – a serem deslindados – entre poder, violência e produção dos mercados (Telles, 2022TELLES, V. S. (2022). "Notas sobre las relaciones entre mercados, poder y violencia". In: BARTELT, D. D.; AGUIRRE, R.; NAVARRETE, M. P. (orgs.). Poderes fácticos: captura del Estado, redes criminales y violencia en América Latina. Ciudad de Mexico, Fundacion Heinrich Böll, pp. 135-146.). É questão nevrálgica, própria do “fazer ilícito das cidades”, tal como os autores propõem.3 3 Esta é uma agenda de pesquisa trabalhada em nossos coletivos de pesquisa. A elaboração deste artigo é amplamente devedora das discussões desenvolvidas nos seminários de pesquisa desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, sob coordenação da professora Vera Telles, e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – LabCidade (FAU-USP), sob coordenação das professoras Raquel Rolnik e Paula Santoro. A nosso/as colegas e parceiro/as, nossos agradecimentos.

Fronteiras urbanas, mercados em disputa

Na cidade de São Paulo (como em tantas outras país afora), assentamentos precários e ocupações vêm se multiplicando e se espalhando nas regiões centrais e periféricas, acolhendo os “deserdados urbanos” – homens e mulheres, e suas famílias, vindos de outras ocupações ou outras formas de moradia precária, não poucas vezes expulsos, desalojados, afetados por remoções violentas patrocinadas pelos poderes públicos.

Os arranjos locais são variados, conforme as regiões da cidade e as circunstâncias de tempo e espaço em que as ocupações acontecem. O traço comum entre todas: são agenciamentos práticos regidos pela lógica da gestão da precariedade, das urgências da vida e da insegurança (podem ser removidos a qualquer momento), no mesmo passo em que as expectativas de permanência e de construção de um “mundo habitável” (Das, 2020, p. 67) mobilizam expedientes e recursos variados entre negociações e acertos possíveis dos moradores com fiscais e agentes dos poderes públicos; com empresas interessadas nos mercados locais; com técnicos, no mais das vezes, de serviços terceirizados para a instalação de redes urbanas de eletricidade, arruamentos, canalizações. Tudo isso sendo feito, via de regra, em uma nebulosa de interações que faz borrar as fronteiras entre legal e ilegal, formal e informal, por via de acertos, trocas e negociações em torno dos arranjos possíveis entre os acordos informais, o pagamento de mercadorias políticas (Misse, 2006MISSE, M. (2006). Crime e violência no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris.) que fazem parte das regulações do expansivo universo atual de ilegalismos populares. Também o clientelismo urbano mobiliza máquinas partidárias, jogos de poder e influência entre os meandros das burocracias das agências públicas.

É essa trama de relações e interações que exige o trabalho etnográfico, mas, por ora, o que nos interessa é já anunciar a questão e a hipótese de trabalho que gostaríamos de desenvolver ao longo deste texto. Nessas “zonas cinzentas” (Yiftachel, 2009YIFTACHEL, O. (2009). Critical theory and 'gray space': mobilization of the colonized. City, v. 13, n. 2-3, pp. 246-263.) em expansão nos últimos tempos, temos as evidências de uma dinâmica de produção de espaços urbanos que se faz no jogo ambivalente e instável entre a lei e o extralegal, entre a tolerância e a repressão, conforme se alteram microconjunturas políticas locais. Nos termos de Rolnik (2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo., p. 174), estes espaços

[...] têm em comum o fato de constituírem zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. Tais indeterminações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva, capaz de ser capturado “no momento certo”.

São nesses espaços de precariedade e de indeterminação quanto ao futuro imediato de seus moradores, que entram em ação jogos intrincados de poder e de interesse que são verdadeiros operadores da produção e da gestão dos territórios, dos mercados populares de terra e de moradia que se conformam a partir deles. Para garantir a segurança dos empreendimentos e a ordem interna das ocupações, é cada vez mais frequente a presença de grupos ou indivíduos que agenciam esses mercados. São figuras que constroem seus recursos de poder por meio de redes de relações que acionam para lidar com os sempre necessários acordos e transações com fiscais da prefeitura; policiais; vigilantes (no mais das vezes, policiais) das propriedades vizinhas (também elas, muitas vezes, de estatuto legal e jurídico duvidoso); organizações criminosas que instalam seus pontos de venda de drogas nas imediações; e também vereadores; “conhecidos” e “pessoas influentes” nos meandros das burocracias dos poderes municipais.4 4 Retomamos, aqui, questões trabalhadas por Telles (2022) em outro contexto de discussão.

É toda uma multifacetada rede de atores que se constitui em torno da gestão da precariedade: precariedade como negócio, como oportunidade de mercado e como recursos de poder. A insegurança habitacional é um elemento central na produção desses territórios; a necessidade de moradia passa a ser explorada economicamente diante do encolhimento das possibilidades de acessá-la pelas vias formais (mercados imobiliários ou políticas públicas). Diferentes operadores de negócios nebulosos começam a atuar nessa brecha por meio da promoção de ocupação de terras e da comercialização de lotes, em configurações variadas em termos de formas e condições de acesso à moradia. Trata-se da captura de práticas e modos de morar populares por uma lógica de mercado predatória, por meio da qual as estratégias de sobrevivência de grupos populares funcionam como fronteiras por onde avançam o mercado e os seus diferentes operadores. Versões locais, poderíamos dizer, do que Tsing (2022)TSING, A. L. (2022). O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo, n-1 edições. chama de “acumulação por aproveitamento” que se enreda e se aproveita das formas locais de vida e de sobrevivência para traduzir práticas e expedientes locais em valor e mercadorias. Quer dizer: formas de vida e de práticas de sobrevivência transformadas em fronteiras de mercado por via de expedientes que transitam entre legalidade e pilhagem, lei e crime, acordos e uso da força.

Pobreza como mercado e fronteira de mercado: isso não é propriamente uma novidade, tampouco exclusividade brasileira. Desde o início dos anos 2000, talvez um pouco antes, o chamado empreendedorismo popular se confirmou como repertório circulante nos centros de comércio popular, também periferias e favelas – microcenários de programas sociais não poucas vezes promovidos por fundações empresariais, em sintonia com políticas implementadas em outros países do Sul Global, voltadas à dita inclusão social por meio do mercado. Como bem mostra Roy (2011)ROY, A. (2011). Slumdog cities: rethinking subaltern urbanism. International Journal of Urban and Regional Research, v. 35, n. 2, p. 223-238., fronteiras de expansão dos mercados por meio da financeirização da pobreza (créditos e subsídios para os empreendimentos populares), promovidas por grupos financeiros interessados nos expansivos – e promissores (para eles) – mercados populares nas grandes metrópoles dessa região do planeta. Extrativismo financeiro, propõem Gago e Mezzadra (2015GAGO, V.; MEZZADRA, S. (2015). Para una crítica de las operaciones extractivas del capital. Nueva Sociedad, v. 255, n. 3, pp. 8-52., p. 44), nos territórios populares, mediante créditos para consumo e subsídios bancarizados, fazendo a “extração de valor de uma vitalidade popular cada vez mais endividada, mas nunca totalmente submissa”. Variações do que Guerreiro, Rolnik e Marín-Toro (2022) definem como “regimes de controle privado de gestão territorial”, configurando zonas cinzentas de regulação privada de territórios, envolvendo instituições empresariais, fornecedores de serviços urbanos e dispositivos de financeirização da moradia popular (voucher, auxílios mensais).

Como dizem Gago e Mezzadra (2015GAGO, V.; MEZZADRA, S. (2015). Para una crítica de las operaciones extractivas del capital. Nueva Sociedad, v. 255, n. 3, pp. 8-52., p. 44), “as lógicas extrativistas atravessam o governo da pobreza, produzindo violência e hibridizando-se com as mesmas lógicas e retóricas de inclusão suscitadas pelo discurso dos cidadãos”. E podemos acrescentar: em seus pontos de ancoramento territorial, sobretudo em territórios populares, interagem com formas de regulação privada que passam, também, pela gestão dos negócios próprios aos circuitos ampliados dos mercados ilegais.

A situação descrita por Prieto e Verdi (2023)PRIETO, G.; VERDI, E. F. (2023). Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 85, pp. 55-73. é especialmente esclarecedora: em um bairro da periferia leste da cidade de São Paulo, atuação de uma empresa, presente em várias cidades do país, com um portfólio considerável de “serviços prestados” na regulação privada de terras em situação de conflito judicial;5 5 Para uma análise detalhada e circunstanciada dessa empresa, sua escala de atuação e seus modos operatórios, ver Milano, Petrella e Pulhez (2021). o serviço prestado: fazem mediação e negociação de conflitos fundiários entre moradores e proprietários – agenciam acordos judiciais (é o principal negócio da empresa) e, assim, evitam o processo de reintegração de posse dos ocupantes da área em disputa. Como dizem os autores, “a descoberta de terras em conflito é a alma do negócio” (ibid., p. 65), capitalizando a gestão da precariedade como ativo financeiro. No caso em tela, tratou-se de um acordo mediado pela associação de moradores, com o apoio tácito de homens do PCC envolvidos, já por muitos anos, nesses mercados informais de terra e de moradia, tendo tomado parte ativa na ocupação que esteve no centro dessas tratativas com a tal empresa.

Eis o ponto a ser retido: os circuitos das economias ilegais se expandiram imensamente nos últimos anos, entrelaçando-se com a economia urbana e as dinâmicas locais dos territórios onde instalam seus negócios, ramificando-se em outros tantos negócios nebulosos ancorados nas tramas da vida urbana e, em anos recentes, também nos mercados informais de terra e moradia. Estes circuitos e as relações de poder que aí se constelam interagem com outros tantos regimes de regulação dos territórios, enredam-se nos circuitos urbanos do hoje celebrado empreendedorismo popular (e seus inúmeros e variados projetos ditos de “inclusão social”) e se constelam, também, nas fronteiras mais precárias da cidade, hoje em expansão. Nos seus pontos de ancoramento e territorialização, compõem e se compõem com os “regimes privados de gestão de territórios” (Guerreiro, Rolnik e Marín-Toro, 2022), como é o caso da situação descrita por Prieto e Verdi (2023)PRIETO, G.; VERDI, E. F. (2023). Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 85, pp. 55-73.. É nessa chave que podemos entender os agenciamentos locais nessas fronteiras de expansão dos mercados.

O fato é que os negócios do PCC se expandem conforme também se expandem ocupações e assentamentos populares. No jogo ambivalente de proteção e extorsão (Tilly, 1985TILLY, C. (1985). "War making and State making as organized crime". In: EVENS, P.; RUESCHEMEYER, D. (orgs.). Bringing the State back. Cambridge, Cambridge University Press.), aceitação e coerção, mobilizam recursos de poder nos acordos e disputas, conflitos e acomodações que são constitutivos da produção e da gestão dos mercados informais de terra e moradia.

Parte interessada nos negócios de terra e moradia, os homens do PCC são, também, presença incontornável na mediação e na arbitragem de (des)acordos, desavenças, disputas e litígios constantes nesses assentamentos. Já é uma “quase-rotina” conhecida, aceita e legitimada nos territórios populares a mediação dos homens do PCC em litígios, conflitos e desavenças que pontilham a vida cotidiana nesses lugares. A gestão da ordem e a gestão da violência passam, em grande medida, pela mediação dos irmãos,6 6 Em itálico, os termos mobilizados por nossos interlocutores. Muitas vezes, reproduzem noções compartilhadas pelo senso comum, que circulam e dão sentido a práticas e relações nos territórios periféricos da cidade. Os irmãos fazem referência aos indivíduos reconhecidos por sua vinculação ao PCC. sejam os protocolos e a cenografia próprios dos debates ou as variações mais informais da troca de ideias.7 7 Os debates e a troca de ideias, ou somente as ideias, compõem os procedimentos e protocolos instituídos pelo PCC na gestão da ordem e dos sentidos de justiça elaborados no âmbito do chamado mundo do crime, mas que se expandiram para muito além dele. São espaços de deliberação e de mediação de conflitos realizadas de modo agonístico e sempre situacional. Em nosso campo, a diferença entre eles parecia estar relacionada à gravidade da situação em pauta: no debate, há mais irmãos envolvidos, e as provas e testemunhos são requisitados até a decisão final ser proferida; já na troca de ideias, são tratadas questões consideradas de menor gravidade em uma conversa na qual o irmão responsável – provavelmente, o disciplina local – tem autonomia para decidir sobre o caso. Por certo, essas distinções são muito mais analíticas do que práticas, pois, na realidade cotidiana, o acionamento e a configuração de um ou outro podem variar em suas formas. Ao longo dos anos 2000, isso foi documentado e discutido por etnografias e estudos urbanos que acompanharam as evoluções dos mercados ilegais e a expansão do PCC nas periferias paulistas (Feltran, 2018FELTRAN, G. (2018). Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.; Hirata, 2018; Hirata e Telles, 2010HIRATA, D. V.; TELLES, V. S. (2010). Ilegalismos e jogos de poder em São Paulo. Tempo Social, v. 22, n. 2, pp. 39-59.; Telles, 2014TELLES, V. S. (2014). Gestion de la violence ou gestion (disputée) de l'ordre? Interrogations à partir d'une étude sur le marché de la drogue à São Paulo. L'Ordinaire des Amériques, n. 216. Disponível em: http://orda.revues.org/1120. Acesso em: 31 maio 2024.
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). Já é um quase lugar-comum nas notícias que circulam e, por vezes, ganham as páginas dos jornais. Agora, esses recursos de poder, (re)conhecidos entre temor e aceitação ou, para colocar em outra chave, entre proteção e coerção (Tilly, 1985TILLY, C. (1985). "War making and State making as organized crime". In: EVENS, P.; RUESCHEMEYER, D. (orgs.). Bringing the State back. Cambridge, Cambridge University Press.), são mobilizados para arbitrar e mediar conflitos e desavenças nos negócios de terra e moradia, envolvendo moradores, loteadores, proprietários do entorno imediato, e também os operadores dos serviços urbanos destinados às melhorias locais.

Este o ponto a reter: os homens do PCC atuam como operadores desses mercados e são, portanto, operadores da produção de espaços urbanos e suas frentes de expansão. É o que acontece quando arbitram as desavenças quanto aos limites entre um lote e outro, entre uma ocupação e outra ao lado, quanto ao uso de recursos de uma associação de moradores ou à distribuição de lotes.

A presença e a atuação dos homens do PCC aparecem de tal maneira emaranhadas no cotidiano desses lugares, sempre envoltas em rumores e fabulações. Assim, nem sempre é fácil saber do que se trata quando os casos e as histórias nos são relatados. Por isso, nas cenas etnográficas8 8 A pesquisa etnográfica nas ocupações foi desenvolvida entre 2018 e 2022, contando com visitas periódicas aos territórios e entrevistas, bem como por meio do acompanhamento do grupo de WhatsApp do Jardim Milão, o qual a autora passou a compor em agosto de 2018. que se seguem, fizemos escolhas estratégicas para lançar luz sobre o modo como as conexões são construídas entre os diferentes atores implicados na produção e na gestão de ocupações de terra nas franjas da zona norte paulistana, a fim de colocar em perspectiva as questões apontadas até aqui. Evidências, algumas delas, quanto ao modo como os mercados se fazem na expansão das fronteiras urbanas e, nesse processo, fazem cidade.

A questão que nos interessa enfrentar: “[...] como são produzidas e negociadas as práticas ilícitas de construção de cidades?” (Muller e Weegels, 2022MÜLLER, F. I.; WEEGELS, J. (2022). Illicit city-making and its materialities: introduction to the special issue. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 230-240., p. 232).

Fronteira urbana em expansão

A fronteira urbana de que trata este artigo foi configurada por um processo de urbanização protagonizado, em grande parte, por loteadores locais, em associação ou concorrência com supostos proprietários de terra, arrendatários/comodatários e agentes do Estado, em um entramado confuso entre grilagem, apropriação fraudulenta de terras, titulação duvidosa e outros tantos conflitos fundiários em torno da posse e da propriedade sobre a terra em uma área marcada por restrições rurais e ambientais. Ao longo dos anos 1990, agentes do Estado e loteadores se aproveitaram de brechas nas normativas que regulam a ocupação e a titulação de terras para o estabelecimento de novos assentamentos.9 9 Um processo estudado em minúcias na pesquisa de doutorado de Débora Ungaretti (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), em desenvolvimento, a quem agradecemos a permanente e generosa interlocução. Tudo isso resultou em um tecido urbano caracterizado por manchas adensadas que compõem a paisagem ao lado de chácaras, áreas verdes e o imenso paredão verde que é a Serra da Cantareira.

Em 2013, esse heterogêneo território foi atravessado pelo início das obras de implantação do Trecho Norte do Rodoanel Mário Covas, uma obra pública de escala metropolitana que incidiu sobre as configurações urbanas e sociais locais, marcando o acirramento dos conflitos fundiários na região com a entrada de novos atores que passaram a disputar essa frente de expansão urbana inaugurada pelo Estado.

De um lado, as desapropriações deram início a disputas administrativas e judiciais em torno dos altos valores das indenizações pagas pelo Estado. No centro das disputas, a titularidade da propriedade (Lacerda, Moreira e Ungaretti, 2021). Em seus meandros, os processos trazem à tona práticas de grilagem de terras, compras fraudulentas e toda sorte de irregularidades que tornam visíveis as dinâmicas de expansão das fronteiras urbanas que se fizeram, historicamente, no embaralhamento dos limites entre o legal e o ilegal, o formal e o informal.

De outro lado, por entre as brechas abertas por áreas desapropriadas e pelas obras em andamento em meio a disputas fundiárias, as ocupações de terra se multiplicaram, introduzindo outro vetor de uma conflitualidade expandida, dessa vez em torno da posse e da apropriação da terra.10 10 Para se ter uma ideia da dimensão desse processo, em um raio de 2,5 quilômetros, traçado a partir de determinado ponto do Rodoanel, foram identificadas 28 novas ocupações entre abril de 2015 e setembro de 2021. Em sua maioria, ocupações pequenas, extremamente precárias, sem condições de opor resistência às forças policiais mobilizadas para seu desalojamento. Entre as que permaneceram, em vias de uma consolidação possível, arma-se um cenário feito de um entramado de atores diversos em relações muitas vezes tensas, de alianças, disputas ou acordos de conveniência entre lideranças comunitárias, empresários locais, policiais e demais representantes do Estado, também homens identificados como irmãos ou aliados do PCC.

Os arranjos locais são variados, entre ocupações mais ou menos precárias, com maiores ou menores chances de permanecerem. Em comum, a insegurança política e jurídica que impõe negociações constantes, ajustes, acordos e desacordos com atores públicos e privados que compõem os jogos de poder e de interesses em torno da produção desses territórios. No meio disso tudo, as centenas de famílias em busca de um novo arranjo habitacional em meio a trajetórias pontilhadas por constantes deslocamentos, também elas dragadas e implicadas nesses jogos de poder e de interesses.

As ocupações nas bordas da cidade

Ainda que não tenham sido organizadas por movimentos de moradia politicamente organizados, não há nada de espontâneo nessas ocupações – são, sim, organizadas, e bem organizadas, mas a partir de outras redes de atores, mediações e horizontes de expectativas. Neste artigo, vamos focalizar apenas uma delas, aqui chamada Jardim Milão, uma ocupação formada em agosto de 2016 por meio das redes mobilizadas por uma importante liderança local (vamos chamá-la de Fábio), um jovem homem negro, de 31 anos (em 2016), cabeleireiro e pai de um menino.

Em seus percursos urbanos por entre os bairros populares da zona norte e outras ocupações em várias regiões da cidade, Fábio transitou e se formou entre territórios pontilhados por projetos sociais, outros demarcados pelos movimentos de moradia e, transversal a todos eles, pelas redes criminais que também compõem sua rede de sociabilidade, formada por amigos e conhecidos do chamado “mundo do crime”. É isso o que explica a presença de Zinho, um irmão identificado como uma importante liderança da ocupação, ao lado de Fábio. Nas palavras de uma moradora, Zinho é ligado ao PCC, enquanto Fábio é “mais do social” – a dupla comporia uma espécie de opostos complementares, agindo em conjunto. Ainda que não façam parte da Associação de Moradores do Jardim Milão, os dois homens são sempre localizados neste papel de lideranças na ocupação, pessoas a quem se deve consultar para determinadas decisões e a quem se deve recorrer em determinados conflitos.

Essas transversalidades da experiência urbana fizeram de Fábio um importante operador de redes no território. Fábio soube mobilizar repertórios e redes de conhecidos e de aliados para organizar e, depois, lidar com a gestão da ocupação no Jardim Milão. Primeiramente, a identificação de um terreno possível para instalar a ocupação. De imediato, articulação de um grupo de coordenação, formado por lideranças comunitárias e os chamados apoiadores, assim denominados os atores que, na avaliação das lideranças locais, foram decisivos para garantir a viabilidade da ocupação. No Jardim Milão, foram eles: um arquiteto, empresários locais, um advogado, um policial militar e supostos membros do PCC.

A importância desses apoiadores, na ocupação, é algo que foi se revelando, muito concretamente, em torno dos desafios e percalços enfrentados pelos seus moradores, na medida da capacidade de cada um de mobilizar recursos econômicos e de poder nas muitas negociações necessárias para a permanência e a consolidação da ocupação. Vamos nos debruçar sobre a atuação de alguns deles. Por ora, importa frisar o papel de mediadores que exercem entre as várias instâncias do mundo formal e a ocupação – mediações realizadas nas fronteiras esfumaçadas do formal-informal, do legal-ilegal. Ainda que conformada por atores sociais tão diversos, a categoria de apoiadores, cunhada por nossos interlocutores, permite observar a extensa e diversa rede de conexões e mediações a partir da qual o território é constituído e gerido: o arquiteto responde ao objetivo de planejar a ocupação da terra de forma a mimetizar o que supõe ser as normas que definem o padrão urbano formal, como uma estratégia de pleitear a regularização fundiária; os empresários, aqui compostos por sócios de uma empresa de ônibus, aportam capital político nas negociações com os distintos operadores do Estado que tentam desmobilizar a ocupação; o advogado é quem constrói a argumentação jurídica, de modo a barganhar a permanência e a legitimidade da ocupação perante os poderes públicos; a incorporação do policial militar traz para a empreitada um ator que trata neutralizar ou contornar a ação da máquina repressiva do Estado contra a ocupação. Por fim, os homens do PCC aparecem como os fiadores de muitas das negociações estabelecidas por essa rede de atores, além de mediarem as contendas e operarem a regulação do mercado de terra e moradia nessas frentes de expansão das fronteiras urbanas. Pelos serviços prestados, cada apoiador recebeu dois lotes no Jardim Milão.

Não por acaso, portanto, entre as várias ocupações que surgiram no mesmo período, o Jardim Milão comparece como um caso de sucesso que virou referência na região. Logo no início, formalizaram uma associação de moradores, que se tornou o ponto central de conexão dessa rede de apoiadores. Seus membros são os responsáveis por capitanear o projeto de consolidação do território, acionando de modo estratégico os diferentes apoiadores e demais atores que possam contribuir para tal. Mas os percursos para isso são tortuosos e incertos, exigem muitas e constantes negociações, feitas e refeitas a cada momento para evitar o risco da remoção violenta, garantir sua permanência e consolidação.

A demarcação das fronteiras

A ocupação instalou-se em uma porção de terra remanescente das desapropriações realizadas para a implantação do anel rodoviário. Em sua vizinhança imediata: as obras em andamento do anel rodoviário; um loteamento dos anos 1990; uma área com casas remanescentes de uma desapropriação realizada para o Rodoanel. Em outro lado: uma grande área vazia na qual um novo loteamento começou a ser implantado. Além da obra pública, as demais áreas foram todas agenciadas por um mesmo “loteador”, conhecido por seus empreendimentos nebulosos implementados na região desde meados dos anos 1980. Nos anos 1990, esse misto de loteador-grileiro teve seu nome citado em um intrincado processo administrativo envolvendo funcionários da prefeitura de São Paulo, assessores parlamentares, policiais e fiscais da prefeitura em conluio para burlar fiscalizações e viabilizar loteamentos irregulares na região. Um pesado jogo de pressões, troca de favores e cobrança de propinas que continua ativo na região.

Cada uma dessas configurações de vizinhança impôs ao Jardim Milão negociações e acordos para o estabelecimento e a delimitação das fronteiras da ocupação. A começar pelos técnicos responsáveis pelas obras do Rodoanel – a linha demarcatória, que não poderia ser ultrapassada –, passou por conversações e acordos entre funcionários públicos e negociantes. Aqui e em outras ocupações do entorno, a demarcação de parte das fronteiras desses territórios em formação foram riscadas em negociações circunstanciais travadas no canteiro da obra pública. Por meio delas, algumas ocupações conquistaram o seu espaço, mas não sabemos o que precisaram ofertar em troca. O que sabemos é que nem tudo foi fácil, nem sempre amigável. O desfecho violento esteve no horizonte de uma dessas difíceis negociações em torno do estabelecimento das fronteiras do Jardim Milão, um caso envolvendo lideranças da ocupação, a suposta proprietária de uma das áreas vizinhas, o loteador e os irmãos do PCC.

A suposta proprietária estava em vias de fechar um negócio com o citado loteador. Logo nas primeiras semanas da ocupação, foi até o Jardim Milão na tentativa de estabelecer os limites entre sua propriedade e a área ocupada e garantir que a ocupação não adentrasse seu terreno. Segundo relatos, para fechar o acordo, a proprietária ofereceu à ocupação cinco metros de faixa de terra margeando o córrego que delimitava as duas áreas. Uma ação por demasiado generosa que nos suscita dúvidas sobre a sua efetiva propriedade do terreno, sobretudo tendo em vista o histórico fundiário da região. Mas são apenas suposições. De todo modo, a proposta pareceu vantajosa e as lideranças se comprometeram a não a expandir para além dos limites acordados.

Em pouco tempo, o loteamento teve início na área vizinha. No começo, loteador e ocupantes pareciam agir em comum acordo. Juntaram esforços para canalizar e aterrar o córrego que dividia as duas áreas e para onde seriam destinados os dejetos coletados de ambos os lados. Mas, então, as coisas começaram a se complicar. Entre boatos e histórias narradas em fragmentos, os relatos que nos foram dados deixam entrever um conflito pela terra que acabou em um debate mediado pelo PCC.

Pelo que nos foi relatado, as coisas se desenrolaram assim: quatro lideranças da ocupação – dentre elas, Fábio e Zinho – apropriaram-se dos tais cinco metros oferecidos pela vizinha no acordo com a ocupação, que se somou ao trecho aterrado com a canalização do córrego que faz a divisa entre os dois assentamentos. Queriam fazer um negócio com esse pedaço de terra e propuseram sua venda ao sócio do loteador. Este, por sua vez, assim que tomou conhecimento da dita doação, declarou não reconhecer esse acordo pois, dizia ele, esses cinco metros seriam de sua propriedade, passando a acusar a ocupação de se apropriar de uma área que seria dele “por direito”. Enquanto isso, os moradores do Jardim Milão também manifestaram seu descontentamento com essas lideranças por tentarem se apropriar, privadamente, dos possíveis ganhos com a venda de parte da ocupação, passando por cima do interesse coletivo.

Foi então que os irmãos do PCC intervieram. As quatro lideranças e o loteador foram intimados ao debate. Os moradores foram convocados a comparecer. O evento é sempre rememorado no Jardim Milão, tanto por aqueles cujos atos eram julgados, quanto pelos demais que foram chamados a participar. A maioria se recorda da dimensão do evento: da quantidade de irmãos presentes, bem como da duração das discussões, que perduraram por alguns dias. No início, foi aberto um espaço para que os ocupantes relatassem seu descontentamento com as lideranças. Em seguida, passaram ao conflito principal. É Fábio quem conta: escapou da morte graças à caminhada de Zinho e à intervenção de um irmão a favor das lideranças, levando em conta aspectos valorizados positivamente de seus percursos anteriores. O então presidente da Associação, um dos envolvidos no caso, foi afastado, e o desfecho do debate foi favorável à ocupação: o pedaço de terra em litígio foi incorporado ao Jardim Milão. Logo depois, um muro foi erguido entre os dois assentamentos, estabelecendo, em definitivo, os limites entre ocupação e loteamento.

A disputa pela permanência

Desde seus primeiros dias, o Jardim Milão conta com a assistência jurídica de um advogado, um dos sócios de uma empresa de ônibus permissionária da prefeitura que, desde 2015, opera mais de 80 linhas em regiões da zona norte de São Paulo. Com outros sócios da empresa, o advogado compõe o grupo de apoiadores da ocupação.

Na sua origem, nos anos 1990, a empresa era uma cooperativa de perueiros organizada em um consórcio mais amplo que atuava nas zonas norte e leste da capital. Entre 2010 e 2014, a cooperativa esteve envolvida em denúncias de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro envolvendo membros do PCC, como relatam reportagens e os processos judiciais abertos no período. Em 2015, conforme regras estabelecidas pela prefeitura para a concorrência pública, a cooperativa se transformou em empresa e se dividiu em duas: uma atuando na zona leste da capital; outra, na zona norte.

Nos seus bastidores, uma história do chamado transporte alternativo bastante nebulosa que Hirata (2011)HIRATA, D. V. (2011). Produção da desordem e gestão da ordem: notas para uma história recente do transporte clandestino em São Paulo. Dilemas, Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, v. 4, n. 3, pp. 441-465. reconstituiu em detalhes. Uma história que remonta ao surgimento dos perueiros nos anos 1980 que, com suas vans, movimentavam o transporte informal – dito clandestino, porque ilegal – que cruzava bairros mais distantes da cidade em percursos não cobertos pelas linhas convencionais de ônibus. No correr dos anos 1990, conforme o PCC começa a se fazer presente nas periferias paulistas, uma teia intrincada de relações com os perueiros começa a ser tecida, passando pela estruturação do mercado de proteção-extorsão e dos esquemas de lavagem de dinheiro. No início dos anos 2000, tudo isso fica mais intrincado, também mais obscuro, com a formação de cooperativas de perueiros e a transação dos negócios ilegais nas brechas e oportunidades abertas por dispositivos normativos pelos quais a prefeitura tratou de regular a então extensa rede do transporte informal nas várias regiões da cidade.

Ao reconstituir essa trama de relações e suas transformações ao longo do tempo, o autor nos apresenta as redes mobilizadas por esse personagem, o perueiro que se transforma em próspero gestor-empresário de promissoras linhas de ônibus, já conhecido na história urbana recente e que, agora, encontra-se implicado nos processos de produção e de apropriação do espaço urbano, especialmente interessado no mercado informal de terras nas bordas da cidade. É esse histórico que nos permite situar o papel dos sócios da atual empresa de ônibus na formação do Jardim Milão.

Afinal, quais interesses podem mover os sócios dessa empresa de ônibus em uma área ainda tão pouco adensada, muito diferente da extensa e muito movimentada zona leste da cidade, recortada por importantes vias de acesso em conexão com o centro da cidade e, também, com municípios da Grande São Paulo? Pois lá estão eles, os sócios, empenhados e interessados naquele pedaço de terra, uma ocupação recente nas bordas da cidade.

O advogado-sócio da empresa teve papel fundamental na formação da ocupação. Foi ele o responsável por negociar com os policiais que primeiro chegaram ao terreno, logo no primeiro dia de entrada na terra. Foi também na sede da empresa que um acordo foi selado com o policial militar que passou a compor o grupo de apoiadores do Jardim Milão. Depois de semanas coagindo e ameaçando a ocupação por meio de rondas diárias, o acordo foi firmado com os ocupantes. A mediação ficou a cargo dos sócios da empresa. Não conhecemos os detalhes dessa negociação, mas, pelo que nos foi relatado, a partir dali o policial tratou de proteger a ocupação contra possíveis investidas policiais, seja engavetando denúncias, seja coordenando sua presença no local com os dias de plantão de outros agentes da ordem para que tudo caminhasse sem maiores intercorrências. Foi devidamente recompensado com dois lotes, tal como todos os outros apoiadores.

Ainda que não nos tenham sido dados detalhes sobre as negociações e os acordos, é possível ter uma ideia do poder de barganha dos sócios da empresa de ônibus pelas histórias e boatos que circulam. A segurança da empresa e seus sócios é garantida por um policial com fama de matador, termo que circula pelas quebradas e que evoca memórias vivas da história urbana paulista, assombrada por justiceiros e grupos de extermínio (Telles, 2010TELLES, V. S. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, Fino Traço.). Nas palavras de um de nossos interlocutores: essas empresas de ônibus são constituídas por “empresários, bandidos e policiais”. Aqui estaria o seu poder de barganha e escala de atuação: foi por meio da combinação entre sua atuação como advogado e o respaldo de suas redes e conexões, que ele e os demais sócios da empresa de ônibus garantiram a permanência do Jardim Milão nas diferentes situações em que a ocupação foi posta em risco por meio da ação legal e extralegal de agentes do Estado.

Os sócios-empresários foram decisivos para conter as ameaças contra a ocupação, no entanto, logo depois, tornaram-se uma ameaça. Contando com sua posição de apoio técnico-jurídico e com a legitimidade assim construída, o advogado passou a assombrar os moradores com as supostas evidências de uma suposta ameaça de remoção. Dizia que, dessa vez, não seria possível resistir. Como advogado, recomendava: melhor seria que todos abandonassem o terreno.

A notícia sobre uma possível remoção se espalhou rapidamente. Rumores sobre história semelhante ocorrida em outra ocasião passaram a circular, dando conta de que os mesmos sócios da empresa de ônibus teriam apoiado a formação de uma outra ocupação e, uma vez estabelecida a posse sobre a área, simularam uma ameaça de remoção para convencer as pessoas a saírem do terreno para, em seguida, tomarem posse do local.

Fábio tratou de averiguar essa história. Dessa vez, mobilizou outros pontos de sua extensa rede de relações e chegou ao advogado popular de uma conhecida organização social que atuava nos movimentos de moradia da área central: das bordas da cidade para o centro da capital. O advogado popular confirmou a suspeita dos ocupantes: não havia qualquer ameaça de remoção contra o Jardim Milão. A ameaça eram os sócios da empresa. A coordenação decidiu pela sua expulsão do grupo de apoiadores.

Mas este não foi o fim dessa história. Mais uma vez, o PCC compareceu como árbitro do conflito em torno da terra. Segundo nossos interlocutores, os sócios tentaram reaver sua posição apelando aos homens do PCC na região, confirmando boatos acerca das nebulosas conexões da empresa com os negócios ilegais. A disputa entre a ocupação e a empresa de ônibus acabou em uma troca de ideias mediada pelo Comando. Os irmãos ratificaram a decisão da ocupação: os sócios da empresa de ônibus foram expulsos do grupo de apoiadores, mas conservaram os lotes adquiridos enquanto tais.

O mercado da urbanização

Uma vez estabelecida a posse sobre a terra, ainda que provisoriamente, tem início uma série de investimentos e intervenções com o objetivo de torná-la habitável. No Jardim Milão, entraram em ação tratores e escavadeiras para a realização da terraplanagem da área, para a canalização e o aterramento do córrego, para a demarcação das ruas e lotes. Teve início a compra e a instalação de postes de madeira para sustentar a rede elétrica, a implantação do encanamento para garantir o acesso à água e o despejo do esgoto; também o entra e sai de caminhões com as britas destinadas ao melhoramento das ruas. Tudo isso sendo feito por meio de acordos e arranjos com os mais variados operadores desse mercado da urbanização, que fazem da precariedade urbana o seu negócio, oferecendo gambiarras de todo o tipo com a promessa de melhoria – nunca suficiente – na qualidade de vida daqueles que vivem nesses territórios em formação.

Centrais na constituição desse mercado, diferentes operadores do Estado atuam como os reguladores dessas transações, ditando ritmos e custos. Afinal, são eles os detentores da autoridade de, na prática, permitir ou não a realização dos serviços contratados. Policiais militares e ambientais,11 11 Pelas configurações ambientais próprias da região, situada aos pés do Parque Estadual da Cantareira, em meio a áreas de proteção ambiental entremeadas nessa zona de expansão urbana, a dimensão ambiental é uma questão central nos conflitos fundiários da região. Policiais e fiscais ambientais são presenças constantes nas ocupações, seja nas ações de fiscalização e repressão ou de negociação (extralegal) das condições de sua permanência. Nem sempre foi possível precisar essa presença nos relatos de nossos interlocutores, nos quais os operadores do Estado aparecem, via de regra, de forma mais genérica. guardas municipais, também fiscais da prefeitura aparecem implicados nesse mercado por meio de extorsões e cobranças em troca da “vista grossa” sobre a realização das intervenções na terra. Assim, a cada intervenção planejada, é preciso avaliar os termos e as condições de sua realização com esses operadores públicos. É no fazer e refazer constante em torno das materialidades urbanas que se torna possível observar a trama de atores, as relações de poder e as formas de transação de mercadorias políticas (Misse, 2006MISSE, M. (2006). Crime e violência no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris.) inscritas na urbanização desses territórios em formação nas franjas da cidade.

No Jardim Milão, uma das primeiras intervenções realizadas foi o aterramento de parte do córrego que isolava a área para a construção de uma rua que pavimentou o acesso à ocupação e a conectou aos bairros do entorno. Patrícia, membra da associação de moradores, foi quem nos relatou a operação: por meio de um acordo com as lideranças locais, um empresário da região que trabalha com descarte de entulhos de obras passou a destinar para a ocupação os caminhões que buscavam uma área (irregular) de descarte, criando um aterro temporário no local. Por meio desse arranjo, ao mesmo tempo em que os caminhões tinham acesso a um local para realizar o descarte, a ocupação garantia os entulhos necessários para a realização do aterro. Patrícia lembra que foram necessários muitos caminhões de entulho para aterrar a área e possibilitar que se tornasse uma rua de acesso – o que fez do arranjo um negócio bastante lucrativo ao responsável por organizar o bota-fora: o valor do descarte, cobrado por caminhão, era de 140 reais, e foram muitos caminhões.

A operação foi bem-sucedida, e a rua de acesso ao Jardim Milão foi aberta. Mas, apesar dos pagamentos feitos a policiais ambientais da região para a realização do serviço (tanto pela associação de moradores quanto pelo empresário, cuja natureza do trabalho já demanda tais acertos), vez ou outra, os trabalhos precisaram ser suspensos diante de uma batida policial inesperada – seja por policiais que não faziam parte do esquema, seja como uma forma de aumentar os valores negociados. Como resultado, a existência de um bota-fora clandestino no local deu origem a uma das várias denúncias com as quais o advogado precisou lidar nesse período.

Em seguida, tiveram início as obras de terraplanagem da área para viabilizar a abertura das ruas internas e a demarcação dos lotes, operação que custou 60 mil reais aos ocupantes. Na sequência, foram realizados os acessos (irregulares) à água e à energia elétrica, bem como a instalação do encanamento para coleta de esgoto. Tudo realizado de maneira sempre descontinuada, no tempo dos arranjos e acordos possíveis com os operadores do Estado, afinal, o pagamento da mamadeira12 12 Termo utilizado por uma de nossas interlocutoras para indicar o pagamento do suborno a agentes do Estado para a realização das melhorias na ocupação. nem sempre significa garantia de que o serviço vai ser realizado. As histórias das intervenções urbanas no Jardim Milão são atravessadas pelos relatos em torno das ações de agentes do Estado que ora permitiam o trabalho de terraplanagem da área, ora o suspendiam; ora faziam vista grossa para o aterramento do córrego, ora o interditaram, sendo necessárias novas negociações para sua liberação. Em certas ocasiões, faziam a apreensão do material de trabalho de um ocupante para o liberarem, em seguida, sem registro do Boletim de Ocorrência, em mais uma demonstração de força que compõe os jogos de poder em torno das negociações das mercadorias políticas. São acordos sempre circunstanciais, que oscilam entre a tolerância, o acerto negociado, a extorsão e a repressão.

A operação que permitiu o acesso do Jardim Milão à rede de abastecimento de água é mais um exemplo do modo como funciona esse mercado da urbanização. Foi viabilizado a partir da ligação (irregular) realizada na rede pública de dois bairros vizinhos. Cada uma das ligações abastece uma parte da ocupação. O serviço foi contratado diretamente com funcionários da Sabesp,13 13 A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é uma empresa de economia mista, cujo principal acionista é o Governo do Estado de São Paulo, que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no Estado. em troca de um pagamento que girou em torno de 2 mil a 3 mil reais por ponto. Além da ligação inicial, os funcionários também são responsáveis pelos reparos e refazimentos constantes que precisam ser realizados para a manutenção do acesso. Por vezes, eles atendem ao chamado no horário de expediente e chegam à ocupação com o caminhão e todo o equipamento da companhia, que passa a ser utilizado de maneira privada. Para isso, os funcionários abrem as “fichas de atendimento”, uma operação rotineira da empresa, mas nelas registram outras ocorrências, como “vazamento”, por exemplo. Assim, são liberados para trabalhar no que, na prática, se tornará um ponto de ligação irregular na rede pública de abastecimento. A cada novo reparo ou refazimento, novas cobranças são feitas. Nestes casos, não são os agentes da ordem os responsáveis pelas cobranças extralegais aos ocupantes para o acesso aos serviços públicos, mas os próprios funcionários da empresa pública (ou de empresas terceirizadas), que privatizam e comercializam a infraestrutura e a tecnologia pública de forma irregular. Em determinadas ocasiões, o mesmo funcionário responsável pela ligação irregular é aquele que, ao longo de seu expediente, vai fechar o ponto clandestino apenas para cobrar, novamente, a sua religação.

Em todos esses arranjos, a associação de moradores, representante da ocupação, figura como compradora e gestora desses serviços, responsável por sua contratação e, também, por garantir a sua efetiva realização. Para tanto, muitas vezes, entram novamente em cena os apoiadores e seus recursos, acionados para barganhar as melhores condições para a contratação e realização dos serviços: sejam os empresários por meio de seu capital político e suas conexões nebulosas, como visto, seja o policial militar, que consegue negociar melhores condições com seus colegas ou mesmo contornar as denúncias e impedir uma batida policial durante a realização de um serviço, seja o advogado – que tanto apoia as negociações como é o responsável por enfrentar as denúncias no âmbito legal quando os acordos extralegais caem por terra.

Nos meandros dessa “urbanização por melhorias” (Lacerda, 2023LACERDA, L. G. (2023). A produção do espaço em ato: tensões e disputas nas fronteiras urbanas da metrópole paulista. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.), observamos a formação de um mercado que se constitui na intersecção entre a necessidade e a precariedade, fazendo delas uma oportunidade de negócios por meio de serviços que são ofertados de forma fragmentada, e no varejo são operados e regulados por atores vários, de dentro e de fora do Estado. É todo um processo de produção e gestão das materialidades urbanas que aciona uma trama de atores implicada no mercado que se estrutura em torno da – e que estrutura a – provisão de infraestrutura e de serviços urbanos engendrada nessas “zonas cinzentas”, onde o formal-informal, o legal-ilegal, o lícito-ilícito se embaçam e se conectam, dando materialidade aos territórios em formação nas franjas da cidade.

Desdobramentos

Nos heterogêneos arranjos por meio dos quais se constituem os territórios populares estão cifrados os modos como a expansiva mercantilização dos territórios e as formas de vida configuram os processos da produção e da gestão do espaço urbano, reproduzindo clivagens, desigualdades e exclusões, plasmadas na situação de insegurança habitacional dos moradores desses territórios. Uma situação de insegurança que é explorada e gerida como oportunidade de negócios e expansão de poder sobre territórios e populações por uma rede variada de atores. Os homens do PCC figuram como mais um dentre eles, mobilizando seus recursos de poder – poder armado.

No Jardim Milão – e em outras ocupações do entorno – os homens do PCC atuam como uma espécie de fiadores nas relações mercantis tramadas em torno da posse da terra. Mas não é só isso. Há situações nas quais os agentes vinculados aos circuitos criminais também ocupam uma posição de liderança na promoção de ocupações, fazendo da terra e da moradia mais uma frente de expansão de seus negócios. Em diferentes gradações e modalidades de presença, lideranças da região afirmam não ser mais possível organizar uma ocupação de terra sem a presença de um irmão. Rumores dão conta da presença de homens do PCC encabeçando algumas associações de moradores, ou indicando pessoas de sua confiança para o cargo, de modo a incidir sobre a distribuição dos lotes e a gestão do cotidiano local. Em outras histórias, aparecem comprando lotes em ocupações da região, onde começam a subir pequenos edifícios com apartamentos voltados exclusivamente para aluguel. São relatos que reverberam histórias e rumores semelhantes que circulam em outros cantos da cidade, revelando uma presença crescente dos homens do PCC operando os negócios de terra e de moradia nos diferentes territórios populares da cidade, com impactos, ainda a serem mais bem identificados e compreendidos, sobre as formas de produção e gestão do espaço urbano e as condições de vida criadas a partir delas.

O Estado aparece implicado nesses processos por meio dos diferentes operadores públicos em ação nos territórios: policiais, guardas municipais, fiscais e funcionários administrativos e dos serviços públicos que estão, continuamente, negociando as condições de permanência e consolidação de determinados territórios, bem como a destruição de outros. Nos agenciamentos locais, em que espaços e mercados são produzidos e geridos, podemos rastrear a produção nas margens do Estado (Das e Poole, 2004DAS, V.; POOLE, D. (2004). Anthropology in the margins of the State. Santa Fé, School of American Research Press.), zona indeterminada em que ficam embaçadas, quando não suspensas, as diferenças entre a lei e o extralegal, mas que também oferece pistas para entender e também rastrear o modo como ordem e ordenamentos urbanos são engendrados nesse jogo de luz e sombra próprio dos modos como os agentes do Estado operam em contextos situados (Das e Poole, 2004DAS, V.; POOLE, D. (2004). Anthropology in the margins of the State. Santa Fé, School of American Research Press.. Pois, então, é desse terreno incerto que se alimentam formas renovadas de clientelismo urbano: as fronteiras de expansão dos mercados são, também, territórios de disputa por clientelas políticas.

Em meio a esses jogos de poder e de interesses, o Jardim Milão parece ter sido bem-sucedido em suas negociações e acordos, bem como nas escolhas de seus aliados, ou apoiadores. Nas eleições municipais de 2020, as lideranças da ocupação deram início a uma corrida em busca de um candidato para quem pudessem oferecer os votos da ocupação em troca de apoio institucional do, assim esperado, futuro parlamentar no processo de regularização fundiária do Jardim Milão. Diferentes membros da associação de moradores apareceram com diferentes indicações. No mesmo período, um conhecido vereador de São Paulo, com atuação histórica na zona sul da capital, passou a se fazer mais e mais presente em bairros da zona norte, territorializando suas redes nas subprefeituras e a partir de territórios como as ocupações de terra.

O trabalho do vereador já era conhecido de Patrícia, membra da associação de moradores cujos familiares residiam em um bairro onde o parlamentar já possuía histórica atuação. Foi ela a responsável por introduzi-lo na ocupação e, principalmente, por convencer os demais membros a endossar o acordo político, o que foi feito com a ajuda de um ex-assessor do vereador, então alocado na subprefeitura da região do Jardim Milão. Para mostrar as boas intenções do político, o assessor começou a mobilizar a máquina pública em benefício da ocupação antes mesmo da eleição: abriu diálogo com a Sabesp para a regularização do abastecimento de água e passou a atuar favoravelmente nos processos administrativos contra a ocupação que tramitavam na subprefeitura. Não à toa, rapidamente, o citado vereador se tornou o candidato oficialmente indicado pela associação.

O vereador saiu vitorioso das eleições de 2020, dando início a mais um mandato. A partir de então, no Jardim Milão, o parlamentar já recebeu o mérito por ter viabilizado a regularização do acesso à água, pelas obras de pavimentação atualmente em andamento, bem como pela instalação da rede de esgoto, em curso no ano de 2023. Ao mesmo tempo, o caminho para a tão almejada regularização fundiária tem sido pavimentado. Em 2022, o Jardim Milão recebeu a visita do subprefeito da região e do então secretário municipal de habitação, com as promessas de entrega do tão sonhado título de propriedade aos ocupantes até o final da atual gestão municipal. Em 2023, foi a vez do prefeito de São Paulo se dirigir até as bordas da cidade para visitar a ocupação de pouco mais de 200 lotes, reafirmando o compromisso de reconhecer o Jardim Milão – e todos os arranjos, acertos e desacertos firmados entre os mais diferentes atores que lhe deram origem – como um território formal da maior metrópole do país.

É mais um capítulo de percursos que se abrem a outras tantas questões, a serem tratadas em outro momento, que oferecem pistas para entender as relações de poder inscritas nos modos de produção dos mercados e ordenamentos urbanos.

Nota de Agradecimento

Agradeço à Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, a bolsa de Pós-Doutorado Nota 10 (Processo SEI E-26/200.178/202) concedida a mim, Larissa Lacerda, que garantiu as condições de elaboração deste artigo.

Referências

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  • YIFTACHEL, O. (2009). Critical theory and 'gray space': mobilization of the colonized. City, v. 13, n. 2-3, pp. 246-263.

Notas

  • 1
    Para evitar a identificação dos lugares, vamos nos referir à extensa e heterogênea zona norte paulistana de modo genérico. O mesmo vale para o nome da ocupação de que iremos tratar, bem como de nossos interlocutores, todos fictícios.
  • 2
    Os dados etnográficos apresentados neste artigo são fruto da pesquisa de doutorado de Lacerda (2023)LACERDA, L. G. (2023). A produção do espaço em ato: tensões e disputas nas fronteiras urbanas da metrópole paulista. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo., desenvolvida entre 2018 e 2022.
  • 3
    Esta é uma agenda de pesquisa trabalhada em nossos coletivos de pesquisa. A elaboração deste artigo é amplamente devedora das discussões desenvolvidas nos seminários de pesquisa desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, sob coordenação da professora Vera Telles, e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – LabCidade (FAU-USP), sob coordenação das professoras Raquel Rolnik e Paula Santoro. A nosso/as colegas e parceiro/as, nossos agradecimentos.
  • 4
    Retomamos, aqui, questões trabalhadas por Telles (2022)TELLES, V. S. (2022). "Notas sobre las relaciones entre mercados, poder y violencia". In: BARTELT, D. D.; AGUIRRE, R.; NAVARRETE, M. P. (orgs.). Poderes fácticos: captura del Estado, redes criminales y violencia en América Latina. Ciudad de Mexico, Fundacion Heinrich Böll, pp. 135-146. em outro contexto de discussão.
  • 5
    Para uma análise detalhada e circunstanciada dessa empresa, sua escala de atuação e seus modos operatórios, ver Milano, Petrella e Pulhez (2021).
  • 6
    Em itálico, os termos mobilizados por nossos interlocutores. Muitas vezes, reproduzem noções compartilhadas pelo senso comum, que circulam e dão sentido a práticas e relações nos territórios periféricos da cidade. Os irmãos fazem referência aos indivíduos reconhecidos por sua vinculação ao PCC.
  • 7
    Os debates e a troca de ideias, ou somente as ideias, compõem os procedimentos e protocolos instituídos pelo PCC na gestão da ordem e dos sentidos de justiça elaborados no âmbito do chamado mundo do crime, mas que se expandiram para muito além dele. São espaços de deliberação e de mediação de conflitos realizadas de modo agonístico e sempre situacional. Em nosso campo, a diferença entre eles parecia estar relacionada à gravidade da situação em pauta: no debate, há mais irmãos envolvidos, e as provas e testemunhos são requisitados até a decisão final ser proferida; já na troca de ideias, são tratadas questões consideradas de menor gravidade em uma conversa na qual o irmão responsável – provavelmente, o disciplina local – tem autonomia para decidir sobre o caso. Por certo, essas distinções são muito mais analíticas do que práticas, pois, na realidade cotidiana, o acionamento e a configuração de um ou outro podem variar em suas formas.
  • 8
    A pesquisa etnográfica nas ocupações foi desenvolvida entre 2018 e 2022, contando com visitas periódicas aos territórios e entrevistas, bem como por meio do acompanhamento do grupo de WhatsApp do Jardim Milão, o qual a autora passou a compor em agosto de 2018.
  • 9
    Um processo estudado em minúcias na pesquisa de doutorado de Débora Ungaretti (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), em desenvolvimento, a quem agradecemos a permanente e generosa interlocução.
  • 10
    Para se ter uma ideia da dimensão desse processo, em um raio de 2,5 quilômetros, traçado a partir de determinado ponto do Rodoanel, foram identificadas 28 novas ocupações entre abril de 2015 e setembro de 2021.
  • 11
    Pelas configurações ambientais próprias da região, situada aos pés do Parque Estadual da Cantareira, em meio a áreas de proteção ambiental entremeadas nessa zona de expansão urbana, a dimensão ambiental é uma questão central nos conflitos fundiários da região. Policiais e fiscais ambientais são presenças constantes nas ocupações, seja nas ações de fiscalização e repressão ou de negociação (extralegal) das condições de sua permanência. Nem sempre foi possível precisar essa presença nos relatos de nossos interlocutores, nos quais os operadores do Estado aparecem, via de regra, de forma mais genérica.
  • 12
    Termo utilizado por uma de nossas interlocutoras para indicar o pagamento do suborno a agentes do Estado para a realização das melhorias na ocupação.
  • 13
    A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é uma empresa de economia mista, cujo principal acionista é o Governo do Estado de São Paulo, que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2023
  • Aceito
    23 Abr 2024
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