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Ideias de Nietzsche* * Publicado na revista Carioca. Rio de Janeiro, 27 de Fevereiro de 1943, p. 8.

Resumo:

Após denotar conhecimento sobre a polêmica em torno de Nietzsche, objeto de "inflamadas controvérsias" entre intelectuais de direita e de esquerda, entre partidários de Hitler e inimigos do nazismo, o autor busca fazer com que o próprio leitor reflita sobre as ideias do filósofo alemão. Para tanto, após ilustrar alguns dados de sua biografia, apresenta trechos de Assim falava Zaratustra nos quais seria possível verificar que o ideal de Nietzsche era a liberdade, para si e para os outros - razão pela qual ele gozaria de grande estima "no círculo dos escritores progressistas".

Palavras-chave:
Nietzsche; filosofia; controvérsia; biografia; ideias

Abstract:

After presenting his knowledge of the controversy about Nietzsche an object of "raging discussions" between right and left wing intellectuals, between Hitler's enthusiasts and enemies of Nazism, the author leads the reader into reflecting on the ideas of the German philosopher. For such, after discussing some data of his biography, he presents excerpts from Thus Spoke Zarathustra in which it isvisible that Nietzsche's ideal was freedom for himself and others which is the reason why he is so highly esteemed "within the circle of progressive writers."

Keywords:
Nietzsche; philosophy; controversy; biography; ideas

Um dos autores mais discutidos de nosso tempo é o filósofo alemão Frederico Nietzsche. Existe, em torno dele, uma vasta literatura, e seus pontos de vista estão sujeitos as mais inflamadas controvérsias. A direita e a esquerda o têm, muitas vezes, disputado para suas fileiras. Também Nietzsche já foi condenado solenemente pelos mais destacados representantes de uma e de outra.

Se Nietzsche é endeusado por alguns partidários de Hitler, por isso não deixou de merecer a admiração e os louvores de homens como Heinrich Mann e Stefan Zweig, inimigos do nazismo e pregoeiros da democracia.

Nietzsche nasceu em Röcken, na Prússia, a 15 de outubro de

1844. Na escola, como vivia entregue aos livros, era alvo dos motejos de seus colegas. Andava com vários livros debaixo do braço, sobretudo a Bíblia, e, em muitas ocasiões, teve a oportunidade de lê-los em voz alta perante um pequeno auditório de amigos. Certa vez em que duvidaram da história de MúcioCévola, Nietzsche ascendeu um punhado de fósforo sobre a mão e deixou que ardesse até o fim sem dar o menor sinal de receio ou de dor.

Aos 18 anos perdeu a fé em Deus e se colocou abertamente contra a religião cristã. Algum tempo depois era convocado para o serviço militar, mas se viu forçado a abandoná-lo em consequência de sua débil saúde. "Da vida militar, diz Will Durant, passou ao polo oposto - à vida acadêmica de filósofo. Em vez de virar um guerreiro, virou um Ph.D.". Foi, então, nomeado para professor de Filologia Clássica da Universidade de Basel. Nesse tempo, conheceu Wagner e sua esposa e tornou-se íntimo amigo de ambos.

Quando em 1870 rompeu a guerra franco-germânica, Nietzsche apresentou-se como enfermeiro. Entretanto, teve que abandonar este posto e voltou para casa profundamente abalado de saúde.

Dois anos depois publicou as "Origens da Tragédia" em louvor a Wagner, mas não tardou a romper com o mesmo e quase renegou esta obra. Desde então foi intensa e grandiosa a produção intelectual de Nietzsche. Embora influenciado por Schopenhauer, Nietzsche colocou-se numa atitude oposta a dele, pois jamais aceitou o seu negro pessimismo. Schopenhauer é, sob certo aspecto, o filósofo da passividade budista, Nietzsche o filósofo da ação. Um prega o amor à morte, o outro o amor à vida.

Nietzsche escreveu, entre outras obras de grande alcance cultural, "A Genealogia da Moral", "Humano, demasiado humano", "Mais além do Bem e do Mal", "O Anticristo", "O Caminhante e sua Sombra". Mas, sem dúvida "Assim falava Zaratustra" é o seu trabalho mais famoso e onde Nietzsche melhor apresenta a sua maneira de pensar.

Durante os anos de sua melhor atividade mental, Nietzsche viveu na Itália, exilado voluntariamente da Alemanha onde era alvo da hostilidade geral. Em 1889, escreveu "Ecce Homo", um trabalho autobiográfico onde se veem os sinais de uma grave perturbação cerebral. De fato, neste mesmo ano, foi ele atacado pela loucura e jamais recobrou a razão. Morreu em 1900, no alvorecer doséculo XX, esquecido e desprezado pelos representantes da cultura oficial, mas deixava uma obra que deveria perdurar.

Vejamos alguns pensamentos de Nietzsche que embora não sejam o suficiente para o julgamento de sua obra, servem, entretanto, para nos dar uma ligeira visão de muitas de suas ideias.

I - Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes.

II - O homem é a corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo, perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

III - É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.

IV - Vede os bons e os justos! A quem odeiam mais? A quem lhes despedaça as tábuas dos valores, ao infrator, ao destruidor. É este, porém, o criador. O criador procura companheiros, não procura cadáveres, rebanhos, nem crentes; procura colaboradores que inscrevam valores novos ou tábuas novas. O cria- dor procura companheiros para seguir com ele; porque tudo está maduro para a ceifa. Falta-lhe, porém, as cem foices, e por isso arranca espigas, contrariado. Companheiros que saibam afiar as suas foices, eis o que procura o criador. Chamar-lhes-ão destruidores e desprezadores do bem e do mal, mas eles hão de ceifar e descansar. Colaboradores que ceifem e descansem com ele, eis o que procura o criador. Que se importa ele com rebanhos, pastores e cadáveres?

V - Dizei "inimigo", "malvado" não; dizei "enfermo" e não "infame"; dizei "insensato" e não "pecador". E tu, vermelho juiz, se dissesses em voz alta o que fizeste já em pensamento, toda a gente gritaria: abaixo esta imundície, abaixo esse verme venenoso!

VI - É verdade: amamos a vida não porque estejamos habituados à vida, mas ao amor. Há sempre o seu que de loucura no amor, mas há também sempre o seu que de razão na loucura.

VII - A revolta é a nobreza do escravo.

VIII-Estado?Queéisso?Vamos!Abriosouvidos,porquevos vou falar da morte dos povos. Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que a mentira rasteira que sai de sua boca: "Eu, o Estado sou o Povo"... é mentira. O Esta- do mente em todas as línguas do bem e do mal; em tudo quanto diz mente, e tudo quanto tem roubou-o. Vêm ao mundo homens demais; para os supérfluos inventou-se o Estado... Além onde acaba o Esta- do começa o homem que não é supérfluo, começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível. Além onde acaba o Estado... Olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-Homem?

IX - Todos os deuses morreram; agora viva o Super-Homem. X - Todos querem abeirar-se do trono: é a sua loucura - como

se a felicidade estivesse no trono! Frequentemente também o trono está no lodo.

XI - O espírito é a vida que clarifica a própria vida.

XII - Bem e mal imorredouros não existem. É preciso que incessantemente se excedam a si mesmos.

XIII - A melhor sabedoria é esquecer e passar.

XIV - A vontade liberta porque a liberdade é criadora.

XV - Tudo vai, tudo torna; a roda da existência gira eterna- mente as estações da existência. Tudo se destrói, tudo se reconstrói; eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se separa, tudo se saúda outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo.

XVI - Alma minha, afastei de ti toda a obediência, toda genuflexão e todo o servilismo; eu mesmo te dei o nome de "trégua de miséria" e de "destino".

XVII - Querer e libertar, esta é a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade.

Assim Nietzsche falava pela boca de Zaratustra. O ideal de Nietzsche era um ideal de liberdade. Ele procurava libertar a sipróprio e libertar os outros. Combatia o Estado, a religião, os preconceitos morais e todos os elementos de opressão. O Super-Homem não é mais do que a sua ideia sobre o homem livre. Dai a estima que ele goza no ciclo dos escritores progressistas.

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    Publicado na revista Carioca. Rio de Janeiro, 27 de Fevereiro de 1943, p. 8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
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