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Formação profissional, profissões e crise das identidades na sociedade do conhecimento

TEMAS EM DESTAQUE

Formação profissional, profissões e crise das identidades na sociedade do conhecimento

Vera Lúcia Bueno Fartes

Rede Interativa de Pesquisa e Intervenção sobre (In)Formação, Currículo e Trabalho - REDPECT - e Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. verafartes@uol.com.br; veralf@ufba.br

O Tema em Destaque partiu do interesse de estimular a reflexão acadêmica em torno de um campo temático que foi alçado a plano elevado no debate educacional contemporâneo: o dos desafios recentemente enfrentados pelas reformas educacionais em quase todas as sociedades. No contexto brasileiro, mais especificamente, logo após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação n.9.394/1996, temos vivido períodos de expectativas e incertezas, notadamente quanto às políticas curriculares para a formação profissional nos mais variados campos do saber, com todas as decorrências que essas tensões supõem, seja em relação aos rumos a serem desconstruídos pelas instituições no que se refere aos projetos pedagógicos, seja no que diz respeito aos docentes em sua prática cotidiana de trabalho.

O que nos move, ao trazermos a público o Tema em Destaque deste número, malgrado a incompletude que o escopo de um trabalho dessa natureza exibe, é um olhar menos voltado para as incertezas e receios próprios à contemporaneidade e seus rebatimentos na prática pedagógica, do que sobre as possibilidades de "interação", tal como elucidado por Edgar Morin1 1 Morin, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990. , quando nos convida a dar conta do complexo de relações que organizam sentidos e significados diversos e provisórios da formação.

O argumento central que articula o tema escolhido é a ênfase hoje dada ao conhecimento e às "culturas epistêmicas" (Cetina2 2 Cetina, K. K. Epistemic cultures: how the sciences make knowledge. Harvard: Harvard University Press, 1999. ) no sentido de que a produção do conhecimento nunca é fixa e finita. É na dinâmica desse processo e no desenvolvimento profissional que os saberes transcendem espaços delimitados. Desse modo, a sociedade do conhecimento, como afirma Cetina, não é simplesmente uma sociedade de experts, ou uma sociedade que produz conhecimentos incessantemente, mas um espaço em que as culturas do conhecimento se interpenetram e tecem redes de capilaridade, atuando sobre a vida cotidiana (Giddens3 3 Giddens, A. A Vida em uma sociedade póstradicional. In: Beck, U.; Giddens, A.; Lash, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p.73-133. ), sobre as profissões e sobre os profissionais e suas identidades. Gera assim sentimentos antagônicos que se expressam, por um lado, na admiração pelo avanço científico e tecnológico e, por outro, no que Baumann4 4 Baumann, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. definiu como "precariedade, instabilidade e vulnerabilidade", não necessariamente entendidos como determinações da tecnologia, mas como traços característicos de uma modernidade que se liquefaz, ao diluir as certezas da ilusão moderna no descartável, na performance e na individuação.

É sabido que na pesquisa científica e na divulgação do conhecimento o processo de escolha de um tema e dos trabalhos a ele relacionados, a exemplo dos que aqui apresentamos, nunca é aleatório. Há que se considerar a pertença de quem fez tais escolhas, os caminhos percorridos na pesquisa, suas opções teórico-metodológicas e a visão de mundo que norteou a seleção dos textos, ainda que com perspectivas nem sempre consensuais, mas, por isso mesmo, enriquecedoras e vivificadoras da atuação acadêmica. É nessa acepção que entendemos a autoria e a autoridade do pesquisador para difundir o conhecimento, não como algo imposto e alheio a sua interioridade, mas como decorrência de compromissos motivados pelo desejo da descoberta, da autonomia e do estímulo ao debate.

É esse o sentido que John Beck e Michael Young conferem ao artigo que abre esta seleção e lhe dá o tom - "Investida contra as profissões e reestruturação das identidades acadêmicas e profissionais", ao considerarem as recentes transformações nas ocupações profissionais. Os autores, recorrendo ao pensamento de Basil Bernstein e de Émile Durkheim, fazem uma análise pertinente e oportuna sobre as estruturas do conhecimento e sua articulação com a formação das identidades ocupacionais, alertando para os processos de mercantilização e gerencialismo que acometem os grupos de profissionais, inclusive os da área educacional, nesses tempos de reestruturação do processo de trabalho e de reformas nas políticas curriculares. "Tanto nas universidades quanto em muitas profissões, toda uma geração de profissionais experimentou o que para alguns é um sentimento de crise e de perda", denunciam os autores em seu artigo, o que por si só resume o sentido e a justificativa do conjunto dos textos aqui apresentados.

O texto de David Guile explora a questão de fundo subjacente ao artigo de Beck e Young, discutindo as rápidas mudanças nessa aparente nova fase do desenvolvimento das sociedades capitalistas. As indagações de Guile para desenvolver o artigo "O que distingue a economia do conhecimento? Implicações para a educação" remetem às políticas econômicas e educacionais no Reino Unido e nos Estados Unidos na última década, observando que a chamada "sociedade do conhecimento", própria das economias industriais avançadas, tem exigido um nível maior de pessoas qualificadas e, por conseguinte, maiores respostas do campo da educação. No entanto, adverte o autor, falta às análises teóricas uma perspectiva filosófica e sociológica mais acurada, que dê conta dos relacionamentos sociais, das identidades e singularidades que estão imbricados nos desenvolvimentos tecnológicos, o que afeta diretamente as políticas educacionais.

Com o olhar voltado para a realidade brasileira, o texto de Celso Ferretti, "Sociedade do conhecimento e educação profissional de nível técnico no Brasil", articula-se ao de Guile na preocupação de ambos com o que se entende por "sociedade do conhecimento" e suas várias acepções e implicações para a educação. Analisando o caráter polissêmico dessa expressão, Ferretti explora alguns dos principais termos a ela correlatos que fazem referência à sociedade hoje, como "sociedade da informação" e "sociedade pós-industrial", argumentando que tais denominações desempenham um papel mais ideológico do que propriamente de caracterização científica das sociedades contemporâneas. O autor examina empiricamente essa questão mediante estudo de caso numa escola técnica, tendo como foco as recentes mudanças promovidas pela reestruturação das políticas curriculares para a educação profissional e a sua compreensão pelos docentes, acentuando os percalços da implantação dessas políticas e a importância da formação humana omnilateral como política indissociável dos conhecimentos técnico-científicos que as escolas devem propiciar aos educandos.

O artigo "Reforma da educação profissional e crise das identidades pedagógicas e institucionais" segue a mesma linha de reflexões dos textos anteriores, em especial o de Ferretti, no que diz respeito às discussões sobre a reforma da educação profissional no cenário brasileiro. A autora, Vera Fartes, parte do princípio de que tendências e pressões globais sobre a educação, marcadas pelos interesses econômicos da atualidade, não se desenvolvem em todo lugar da mesma forma e com iguais decorrências. Para tanto, analisa a reforma da educação pro-fissional em três Centros Federais de Educação Tecnológica, especialmente no que diz respeito à forma como gestores, professores e equipe técnico-pedagógica interagem e recontextualizam as políticas curriculares diante das mudanças e exigências do mundo contemporâneo e conclui que as instabilidades geradas pela reforma, se, por um lado, são desencadeadoras de crises nas identidades pedagógicas e institucionais, por outro, trazem em si um potencial de mudanças, na medida em que as dificuldades enfrentadas pelas instituições e pelos docentes que nelas atuam podem-se converter em agentes mobilizadores de novas percepções e iniciativas.

A seção completa-se com o texto de António Neto-Mendes, Jorge Adelino Costa e Alexandre Ventura - "Explicações: modos de regulação de uma actividade globalizada". Os autores abordam o caso das professoras "explicadoras", termo utilizado em Portugal, e que no Brasil corresponde às tradicionais "professoras particulares" (termo utilizado especialmente no Sudeste brasileiro) ou "professoras de banca" (assim conhecidas no Nordeste). Tema pouco explorado nas pesquisas sobre formação e profissionalização docentes no Brasil, o caso das "explicadoras" está a merecer entre nós maior visibilidade nas pesquisas, dado que essa atividade, que poderíamos chamar de semipro-fissional, por não se enquadrar nos padrões de regulação formal no mercado de trabalho docente, traz consigo a marca de uma atividade de longa data, de percursos e motivações distintos não só aqui no Brasil, mas em vários países. Constitui assim um terreno fértil para pesquisas sobre profissões exercidas em contextos em que os espaços de trabalho e de vida doméstica se misturam, projetando identidades para além daquelas construídas no âmbito das instituições formais de educação, ao mesmo tempo em que refletem e produzem "itinerâncias" pedagógicas singulares.

Ao reunir esses artigos, tivemos em mente a tessitura de uma rede de conhecimentos e perspectivas complexas, em que os "nós" que compõem essa rede são pontos de intercessão para novos campos temáticos de matizes variados. Ao mesmo tempo em que pretendemos deixar claras a relevância e atualidade do tema escolhido, realizando uma tentativa de síntese de alguns pontos da rede, concluímos que o mapeamento por inteiro do debate proposto e a determinação deste como um conjunto são tarefas inacabadas. A seleção de alguns trabalhos representativos dos estudos sobre formação profissional, profissões e crise das identidades na sociedade do conhecimento deve ser considerada como expressão de múltiplas conexões e referências imprecisas e, por isso mesmo, uma rede aberta à crítica, ao debate e a novas contribuições.

  • 1 Morin, E. Introduction à la pensée complexe Paris: ESF, 1990.
  • 2 Cetina, K. K. Epistemic cultures: how the sciences make knowledge. Harvard: Harvard University Press, 1999.
  • 3 Giddens, A. A Vida em uma sociedade póstradicional. In: Beck, U.; Giddens, A.; Lash, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p.73-133.
  • 4 Baumann, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • 1
    Morin, E.
    Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990.
  • 2
    Cetina, K. K.
    Epistemic cultures: how the sciences make knowledge. Harvard: Harvard University Press, 1999.
  • 3
    Giddens, A. A Vida em uma sociedade póstradicional. In: Beck, U.; Giddens, A.; Lash, S.
    Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p.73-133.
  • 4
    Baumann, Z.
    Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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