Resumo
Analisar os usos das mídias digitais realizados pelos sujeitos pressupõe considerar que artefatos sociotécnicos estão conformados por relações e significados de gênero, classe social e sexualidade. Proponho, neste texto, investigar, por meio de uma etnografia digital e multissituada, como eixos de diferenciação modulam os usos e apropriações das redes sociais digitais por mulheres pobres, habitantes da periferia da cidade do Rio de Janeiro e de outras regiões do país.
Mídias digitais; Eixos de diferenciação; Etnografia digital; Relações de gênero e sexualidade; Classe social
Abstract
Analyzing the uses of digital media made by subjects presupposes considering that sociotechnical artifacts are shaped by relationships and meanings of gender, social class and sexuality. In this text, I propose to investigate, through a digital and multi-situated ethnography, how axes of differentiation modulate the uses and appropriations of digital social networks by poor women, inhabitants of the periphery of the city of Rio de Janeiro and other regions of the country.
Digital media; Axes of differentiation; Digital ethnography; Gender and sexuality relations; Social class
Introdução
Este artigo se constrói a partir de um estudo acerca dos usos sociais das mídias digitais por mulheres das classes populares brasileiras, realizado no contexto pós-2010, em que houve maior popularização dessas tecnologias no Brasil. A pesquisa foi concretizada entre os anos de 2011 e 2017, quando algumas políticas de governo1 1 Em 2010, com vistas a expandir o acesso aos mais pobres, o Governo Federal criou o Programa Nacional de Banda Larga, cujo objetivo era atingir 40 milhões de domicílios conectados à rede mundial de computadores em 2014. O projeto, gerenciado pela Secretaria de Telecomunicações do Ministério das Comunicações, tinha como objetivo desonerar redes, terminais de acesso, assim como smartphones. Também fazia parte das intenções da proposta expandir a rede pública de fibra óptica administrada pela Telebrás e implementar a chamada banda larga popular, oferecendo internet na velocidade de 1 Mbps ao valor de R$ 35 mensais. Os objetivos da proposta inicial não foram alcançados em sua totalidade, e, em 2014, havia um abismo de mais 10 milhões de pessoas em relação à meta prevista. Na prática, a expansão da banda larga no Brasil ocorre, historicamente, de forma privada por meio dos oligopólios das operadoras de telefonia. Esse modelo de negócios das empresas se deu através do acesso à internet pelo telefone celular em pacotes de serviço. foram instituídas de forma a ampliar o acesso para a população pobre do país. Naquele contexto, a incipiente expansão da banda larga e a intensificação dos usos da internet realizados via smartphones impactaram a conexão dos mais pobres, o que afeta, em consequência, as mulheres dessa pesquisa.
A investigação proposta tem como objetivo compreender, por meio de uma etnografia digital e multissituada (Pink, 2016PINK, Sarah et alii (org.) Digital ethnography: principles and practice. Los Angeles, London Sage, 2016.; Hine, 2020; Marcus, 2001MARCUS, George. Etnografía en/del sistema mundo: el surgimiento de la etnografía multilocal. Alteridades (11), [S.l.], 2001, pp.111-127.), como dimensões de gênero, sexualidade e classe social se expressam na maneira como um grupo de mulheres utiliza as mídias com acesso à internet. Busco, com este texto, mapear o diagrama de relações estabelecidas entre eixos de diferenciação (Brah, 2006BRAH, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376.), dimensões sociotécnicas e de subjetividades. Considero que abordar esses marcadores sublinha sistemas de significação e representação que alocam certas categorias de poder, como culturais, elaborando usos e apropriações específicos da rede.
O site no qual foram realizadas observações e a partir do qual se constituiu uma rede offline de pesquisa foi o Bolsa de Mulher, que foi criado no ano de 2000 e alcançou popularização no Brasil em 2010, mesmo momento em que as usuárias e interlocutoras dessa pesquisa começaram a ter maior acesso individualizado à rede. É importante mencionar que se tratou de uma geração de mulheres que não se constituía enquanto netcitzens, nos termos de Nancy Baym (2010)BAYM, Nancy. Personal connections in the digital age. Cambridge, Polity, 2010., cidadãs digitais. Minhas interlocutoras acessaram a internet tardiamente, de forma muito posterior à sua comercialização inicial em solo nacional, em 1994, momento em que um grupo seleto de pessoas teve possibilidade de usufruir da conexão, sujeitos das elites brasileiras.
As conexões iniciais dessas mulheres aconteceram, primeiramente, em meio ao ambiente de trabalho - em intervalos de expediente, horários de almoço - e em lan houses2 2 Lan house consiste em um estabelecimento comercial onde os visitantes podem utilizar um computador individual para acesso à internet. Via de regra, o uso está condicionado ao pagamento por hora de acesso. Entre os anos de 2005 e 2008, período no qual os computadores e a banda larga tornaram-se mais acessíveis, a quantidade de usuários de lan houses aumentou bastante. Com a popularização das ferramentas de acesso, esses ambientes se tornaram menos frequentados e passaram a diversificar seus serviços, reforçando o oferecimento de fotocópias de documentos e impressões. Embora tenham perdido público, em países como o Brasil, de grande desigualdade de acesso, as lan houses ocupam ainda um lugar relevante na promoção da inclusão digital para pessoas com acesso restrito. , de forma temporária e rápida. Posteriormente, pós-2010, após o barateamento dos equipamentos e serviços de acesso, a conexão ocorria em casa, por meio de um computador compartilhado com toda a família, e, mais recentemente, pós-2013, via telefone celular, fundamentalmente por meio dos smartphones.
O Bolsa de Mulher não existe mais, e seu encerramento aconteceu no contexto em que o uso do celular como ferramenta principal de acesso se consolidou. A decadência da plataforma aconteceu de maneira concomitante ao desenvolvimento de outras redes sociais. As falhas de carregamento, a dificuldade de navegabilidade e a ausência de sensação de privacidade frente aos outros usuários são aspectos que fizeram as mulheres da pesquisa migrarem do site do Bolsa de Mulher para espaços como o Facebook, e, mais recentemente, o Whatsapp.
Lançar luz a esse passado recente de usos dessas ferramentas tecnológicas, de forma a construir um registro histórico de pesquisa, permite-nos entender como grupos historicamente subalternizados têm se apropriado desses aparatos, bem como inspira a criação de novas agendas de investigação.
Os usos não estão somente submetidos a dinâmicas algorítmicas pré-formatadas, mas são multifacetados. No caso de minhas interlocutoras, como veremos a seguir, eles evidenciam uma agência conduzida por estratégias de como lidar com experiências subalternas e o que elas teriam de tradicional e limitador: a manutenção da pobreza, os papeis tradicionais de gênero, o reforço de uma sexualidade normativa e violências nutridas por processos de discriminação.
Nas tramas da rede: as interlocutoras e as ferramentas de pesquisa
O campo empírico da pesquisa se constituiu a partir do espaço on-line e em direção ao off-line, ou seja, a trama dos sujeitos em rede conduziu ao campo "fora"3 3 Coloco aspas aqui pois "fora", neste caso, não significa em campos desconectados; as relações são engendradas pela tecnologia, e, dessa forma, não há dentro ou fora, online ou off-line. Trata-se, sim, de uma tentativa de marcar o campo circunscrito geograficamente. da internet.
O Bolsa, como as interlocutoras costumavam chamá-lo, era tanto um portal de notícias direcionado para questões que envolviam, nos termos de seus criadores, "assuntos do universo feminino", quanto uma rede social. O site expunha conteúdo sobre beleza, relações afetivas, saúde, sexo, família e vida profissional, bem como permitia a criação de um perfil a partir do qual as usuárias e usuários podiam participar de fóruns de debate e formar redes de interações.
O site se tornou o espaço digital ou site de campo (Burrel, 2009) a partir do qual foi possível acompanhar os fluxos das usuárias por diferentes plataformas e recompor suas redes de interações. Sua sede se originou em São Paulo e logo migrou para a cidade do Rio de Janeiro, o que explica por que, inicialmente, a publicidade foi direcionada à capital carioca e ao próprio estado do Rio. Uma vez que as propagandas de estímulo ao acesso eram transmitidas em meio à programação da TV local e no MSN Messenger4 4 O chamado MSN consistia em um programa de troca de mensagens instantâneas que foi substituído, posteriormente, pelo Skype e pelas ferramentas mais atuais, vinculadas à agenda do telefone celular, como, por exemplo, o Whatsapp. , tornava-se corriqueiro encontrar mulheres desse espaço no campo de pesquisa. Dessa forma, meu campo off-line foi realizado em regiões como a Baixada Fluminense e a Zona Oeste da capital carioca, territórios que abarcavam o público dessa investigação.
Ainda assim, o Bolsa contava também com usuárias de diversas regiões do país, o que me permitiu, portanto, manter o campo off-line no Rio e expandir a rede de contatos para outras cidades e espaços urbanos. Dessa forma, a geografia tradicional passou a se associar ao que Scott McQuire (2008)MCQUIRE, Scott. The media city: media, architecture and urban space. London, Sage, 2008. chamou de espaço relacional, que, diferentemente da noção de espaço circunscrito geograficamente, trata-se de espaço criado em rede, compartilhado e experienciado, no caso desta pesquisa, pelas próprias usuárias do site.
A noção de espaço relacional, é importante dizer, não somente foi fundamental para compreender as aberturas nos horizontes de relações entre as mulheres, garantidas pela dinâmica conectada, como se constituiu enquanto relevante ferramenta metodológica, uma vez que permitiu a compreensão da dimensão local e "global"5 5 Utilizo global entre aspas com intuito de reforçar o caráter expansivo da rede, no entanto, esta pesquisa se limita a compreender relações que se estabelecem entre uma rede de mulheres brasileiras que, portanto, comportam aspectos locais, mas que caracterizam, naquele contexto, as mulheres das classes populares do Brasil. dos aparatos de conexão. De acordo com McQuire (2011MCQUIRE, Scott. A Casa Estranhada. Revista EcoPós, Rio de Janeiro-RJ, 2011, pp.195-232.:230), é justamente na abertura do espaço relacional que podemos sentir os "direcionamentos ambíguos que afetam a falta de atratividade dos nossos lares, a urbanidade das nossas cidades e as nossas próprias identidades".
Nos termos da proposta aqui apresentada, a observação do espaço relacional do Bolsa abriu condições para que fosse possível compreender a vinculação entre essas mulheres, decorrentes de suas inquietações com a esfera doméstica e local, com suas relações com o Rio de Janeiro e com a própria condição de ser mulher nesses ambientes.
O espaço relacional criado em rede compreendia uma expansão que se consolidava como uma mancha geográfica ampla, mas que, ao mesmo tempo, guardava elementos unificadores entre as mulheres da pesquisa. Dito de outro modo, dimensões de gênero, classe social, renda, origem familiar, religião, tipo de ocupação profissional e experiências afetivas eram aspectos partilhados pelas interlocutoras - tanto as da capital carioca quanto as de outras regiões do território brasileiro. Acompanhar o fluxo da rede permitiu acessar a construção desses processos de identificação entre essas mulheres.
Nesse sentido, o espaço relacional da internet comportou inferir o caráter ambíguo da conexão entre elas: ao mesmo tempo que a rede tem seu aspecto contingente, mais aberto e poroso, capaz de projetar o sujeito para um contato ampliado com outros territórios, ela pode ser conduzida e experenciada como espaço de pertencimento, ambiente familiar e constituído a partir de relações locais estabelecidas por essas mulheres.
A rede de interações formada a partir do Bolsa de Mulher ganhou relativa autonomia em relação à plataforma na qual inicialmente esteve alocada. Estabelecidos vínculos de contato, parte das usuárias criou grupos em outras redes consideradas mais eficientes em termos técnicos e mais garantidoras de privacidade, como o Facebook e, mais adiante, o Whatsapp, ambas plataformas incorporadas à pesquisa. O contato off-line, no Rio, manteve-se por meio de duas incursões etnográficas - uma em 2011 e outra em 2013. On-line, expandiu-se para o acesso a interlocutoras que habitavam cidades de Minas Gerais, Acre, São Paulo e Bahia.
As usuárias do Bolsa apresentaram um perfil socioeconômico, educacional e cultural divergente daquilo que era dito pela própria plataforma. O site insistia em afirmar, por meio da apresentação de gráficos e marcadores, que o público que o compunha era de mulheres que ocupavam a faixa de renda das classes A e B, que estavam alocadas em carreiras de sucesso profissional e que habitavam, principalmente, o estado de São Paulo. No entanto, como a pesquisa verificou, as interlocutoras jovens, na faixa dos 18 aos 35 anos, eram maioria e estavam iniciando a vida profissional - quando já alocadas profissionalmente, buscavam sua estabilidade financeira. Era comum morarem com os pais em regiões periféricas e se dividirem entre dois ou três empregos e, quando conseguiam cursar a Universidade, estavam vinculadas ao ProUni6 6 O ProUni trata-se de um programa do governo federal, criado em 2004, pelo Ministério da Educação. O programa concede bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior. Para concorrer ao financiamento, o candidato deve comprovar renda bruta familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa. Para as bolsas parciais (50%), a renda bruta familiar deve ser de até três salários mínimos por pessoa. ou ao FIES7 7 O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) foi um programa criado em 2001 pelo Ministério da Educação cujo objetivo era financiar a graduação na educação superior de estudantes matriculados em instituições privadas. O programa auxilia o estudante pagando a mensalidade do curso e o reembolso ao governo acontece depois da formatura, quando o estudante já está empregado. .
Ao contrário da orientação do próprio site, de pensar classe social como sinônimo de renda, é importante mencionar que a noção de classe que norteia este texto e que orientou a pesquisa é refletida via experiência, ou seja, como algo dinâmico, histórico, que pressupõe processos de identificação entre os sujeitos e não restrito a estratificação por meio dos rendimentos. Essa definição se inspira na obra de E. P. Thompson, para quem as determinações objetivas se impõem sobre seres históricos, ativos e conscientes, o que complexifica a realidade social, projetando a classe para além de aspectos restritos a vida econômica.
Essa opção teórica determina também a utilização que faço do termo classes populares, com vistas a expandir o enquadramento por renda para um grupo social de mulheres que partilham de uma mesma origem socioeconômica e, mais do que isso, de trajetórias similares, acessos compartidos a bens culturais e educacionais, históricos familiares. Assim como Thompson (1987THOMPSON, Edward. A formação da classe operária Inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.:9), "não vejo a classe como uma '"estrutura'", nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas".
Quer seja nas interações por meio da plataforma ou no contexto das entrevistas realizadas, essas mulheres desejavam constituir, mesmo que em meio às adversidades, uma carreira ou um ofício. Também era recorrente reflexões sobre a esfera afetiva, relacionamentos amorosos e a constituição ou não de família e do casamento. Elas apresentavam como característica comum o fato de morarem em regiões periféricas e subúrbios e eram, em grande medida, a primeira geração de sua família a tentar romper com a trajetória dos pais, caracterizada por trabalhos manuais e subalternizados8 8 Dentre as profissões que apareciam entre pais e mães de minhas interlocutoras estão funções como: empregada doméstica, segurança, vendedor de caldo de cana, operário da indústria, enfermeiras e professoras e professores da educação infantil. .
Também identifica-se, tanto nos discursos do site quanto na própria postura de minhas interlocutoras, um intuito de empoderamento, orientado por desejos de ascensão e consumo, e conduzido pela busca por maior autonomia em relação à família e a possíveis parceiros afetivos. Conquistar casa própria, bens materiais e viagens, educar-se, desenvolver uma carreira profissional e encontrar um(a) parceiro(a) junto do qual fosse possível construir maior relação de igualdade apareciam nesses horizontes de desejo como aquilo que poderia compor a figura de uma "mulher poderosa". Esta última, não somente reforçada por práticas e discursos dos sujeitos e do Bolsa de Mulher, mas também por livros de autoajuda9 9 Um exemplo dos discursos da "mulher poderosa", aquela bem sucedida profissionalmente, mas que também não deixa de se resolver na esfera afetiva e amorosa, era comum entre os livros de autoajuda direcionados a esse público e lidos pelas próprias interlocutoras de pesquisa. Dentre os títulos mais famosos, figuram: O que toda mulher inteligente deve saber (2011); Comer, rezar, amar (2008); Por que os homens amam as mulheres poderosas? (2009), etc. , por discursos governamentais10 10 Podemos mencionar aqui a obra A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide, lançada em 2011 por Marcelo Neri, que foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de 2012 até 2014 e ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de 2013 e 2015. O intuito do livro é reforçar a ideia de que a melhoria das condições de vida dos pobres brasileiros geraria o surgimento de uma nova classe média no Brasil. Essas ideias de ascensão social, vinculadas à imagem de um sujeito que pode consumir, foi a tônica de discursos governamentais daquele contexto. e por produtos culturais daquele contexto11 11 Como produto cultural daquele contexto, podemos mencionar como exemplo a novela "Cheias de Charme", transmitida pela Rede Globo no horário das 19h, em 2012, cujo roteiro se pautava na vida das empreguetes, termo que mistura "empregada doméstica" com "piriguetes". Na trama, as três amigas montaram um grupo musical e ficaram famosas ao apresentar nas letras de música o cotidiano das mulheres dedicadas a cuidar da casa dos outros e a fazer faxina. A novela retratava a trama cotidiana que enredava os dilemas que essas mulheres enfrentavam, fundamentalmente, acerca de múltipla jornada de trabalho. É importante mencionar que as empreguetes, esforçadas em compor uma boa aparência refletida nos esmaltes coloridos e nos cabelos alisados, fazem sucesso com um vídeo divulgado na internet. A novela foi uma das primeiras a apresentar, em contexto brasileiro, a rede online como possibilidade de construção de celebridades instantâneas. , para mencionar alguns exemplos.
O ethos motivacional e empreendedor do sujeito que dá conta de si e da própria trajetória, absorvido e propagado pelas interlocutoras, não pode, porém, ser enquadrado como resultado simples de um processo dominação capitalista mais amplo ou de mero anseio fútil e atravessado por uma ideologia neoliberal de consumo.
De acordo com Marilena Chauí (2013), existiria uma propagação por toda a sociedade do ideário liberal da competência e da racionalidade de mercado como promessa de sucesso, discursos esses que, para a filósofa, acabam por ser incorporados pelas próprias camadas populares, chamadas por ela de "novos trabalhadores", em discordância explícita com a perspectiva da existência de uma "Nova Classe Média" no Brasil.
Para o que Jesse Souza (2012)SOUZA, Jesse de. Os Batalhadores Brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012. chamou de batalhadores brasileiros ao fazer referência a esse mesmo estrato social - e grupo no qual poderíamos alocar as mulheres aqui analisadas -, projetar o futuro remete também à possibilidade de não voltar a viver situações de extrema vulnerabilidade e insegurança, às quais seus pais estiveram submetidos. Para dar conta de um contexto de acirramento de um momento do capitalismo, pautado pela flexibilidade e pela derrocada dos direitos trabalhistas, os sujeitos dessa pesquisa encontram amparo em uma forma coletiva online de positivar a narrativa em torno das suas origens, de seu sofrimento e de seu futuro.
É nesse sentido que, para este artigo, adoto uma perspectiva mais afeita à dimensão das diferenças na composição dos eixos que se somam no reforço de uma experiência de vida subalternizada. De acordo com Avtar Brah, a posição de classe assinala certas comunalidades de relações sociais e se articula com outros eixos de diferenciação, como o próprio gênero, o racismo, o heterossexismo:
Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como "mulheres da classe trabalhadora", "mulheres camponesas" ou "mulheres imigrantes". Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões [...] O signo "mulher" tem sua própria especificidade constituída dentro e através de configurações historicamente específicas de relações de gênero. Seu fluxo semiótico assume significados específicos em discursos de diferentes "feminilidades" onde vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais históricas particulares (Brah, 2006BRAH, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376.:341).
Dessa forma, não se trata de repetir, como aponta Joan Scott (1989), a ladainha "classe, raça e gênero", que, segundo a autora, sugere uma paridade inexistente na realidade social entre esses três elementos. Abordar, no caso desta pesquisa, as mulheres das classes populares brasileiras não sugere que esse grupo seja homogêneo e, na prática dos sujeitos, as identificações criadas entre elas não podem ser reduzidas às somas das experiências individuais. Trata-se, de outro modo, de um processo de significação no qual experiências comuns são construídas em torno de eixos de diferenciação - classe, gênero, sexualidade, acesso a bens culturais, dimensões educacionais - que são investidos de significados particulares.
Isso posto, podemos apontar que o acesso ao campo da pesquisa se deu por meio da estruturação de uma etnografia digital e multissituada (Marcus, 2001MARCUS, George. Etnografía en/del sistema mundo: el surgimiento de la etnografía multilocal. Alteridades (11), [S.l.], 2001, pp.111-127.; Hine, 2004; Pink, 2019) que combinou estratégias etnográficas de copresença, interações locais, entrevistas e observações dos espaços off-line e on-line de pesquisa.
A etnografia digital busca um diagrama investigativo que se concentra nas pessoas, em suas formas de se relacionar e na maneira como se apropriam dessas ferramentas tecnológicas. Nos termos colocados por George Marcus (2001MARCUS, George. Etnografía en/del sistema mundo: el surgimiento de la etnografía multilocal. Alteridades (11), [S.l.], 2001, pp.111-127.:118), a investigação multissituada "é projetada em torno de cadeias, caminhos, tramas, conjunções ou justaposições de locais em que o etnógrafo estabelece alguma forma de presença".
Nos grupos estabelecidos em rede, observei interações, postagens, composição de perfis, trocas síncronas e assíncronas de mensagens, fóruns de debate, compartilhamento de imagens, vídeos e áudios. Esse material foi organizado, comentado e decodificado, juntamente à elaboração de um caderno de campo capaz de abarcar tanto a pesquisa pelas plataformas, quanto aquela realizada na cidade do Rio.
A temporalidade etnográfica digital rompe dicotomias (Cárdenas, 2020CÁRDENAS, Jorge Alberto Meneses. Etnografía digital multisituada: jóvenes universitários y universitarias estudiando desde casa en tiempos de covid-19. Cadernos de Campo (29), Araraquara-SP, 2020, pp.1-19. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe175177
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
), na medida em que o distante e o próximo vinculam-se como esferas complementares. Da mesma forma, as entrevistas, fundamentalmente realizadas on-line, por meio de plataformas digitais, seja por ferramentas de áudio, vídeo ou por meio de trocas de mensagens escritas, podem ser deslocadas de seu aspecto síncrono e assumir a composição de uma conversa de acompanhamento (Facioli, 2013FACIOLI, Lara R. R. Conectadas: uma análise de práticas de ajuda mútua feminina na era das mídias digitais. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2013.), que me permitiu estreitar os vínculos com as jovens da pesquisa e tornou possível acompanhá-las por anos, ao longo de meu mestrado e de meu doutorado12
12
É importante trazer à baila também que, seja com base em entrevistas, em conversas de acompanhamento ou em observações, a exposição de todo o material colhido em campo passou pelo consentimento dos sujeitos. De forma a considerar as audiências visíveis e invisíveis da rede, bem como seu aspecto de tornar o conteúdo facilmente persistente, localizável e replicável (Boyd, 2014), evitei utilizar trechos literais postados pelas interlocutoras em suas redes privadas.
.
A apresentação dessa etnografia digital considerou os aspectos que, segundo Cristine Hine (2020) compõem o que chamou de uma pesquisa etnográfica realizada em meio à Internet 3E - em inglês representada pelas palavras embedded, embodied, everyday Internet e traduzidas por corporificada, incorporada e cotidiana.
Esse tipo de pesquisa mostra, portanto, a maneira pela qual os dispositivos se tornam atores da paisagem doméstica e cotidiana, atuando como um domínio cultural significativo em si mesmo - nas rotinas, nos rituais e nas relações. Uma tecnologia, nesse sentido, não consiste em agente externo que impacta o social, ela é um componente de circunstâncias culturais dinâmicas.
"Eu prefiro as amigas do Bolsa": fronteiras urbanas, espaços excludentes e mídias digitais
"Eu prefiro as amigas do Bolsa. Falo muito mais do que acontece comigo, com elas, do que com amigas daqui ou com parentes", disse-me Mara em conversa realizada em sua casa, no Rio de Janeiro.
Ao ser questionada sobre o que o verbo preferir apontava, Mara elaborou uma vasta reflexão sobre como a rede a fazia se sentir acolhida e sobre como o anonimato permitia expor questões que envolviam a intimidade, a sexualidade e suas relações amorosas, de forma a escapar do contexto hostil em que considerava viver: "aqui tem muita fofoca, as pessoas te conhecem, te olham torto, inventam história".
Mara tinha 35 anos, dois filhos e era moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Desde que nasceu, habitava Paciência, bairro que, segundo piada corrente no local, exigia "muita paciência para viver ali", uma vez que era longe da Zona Sul e do Centro e contava com estruturas de trabalho, moradia e lazer precárias. Esse aspecto fica evidente com a própria chegada tardia da fibra óptica de internet no local, o que mobilizou, por muito tempo, um uso da rede via rádio13 13 A internet via rádio funciona através das ondas de radiofrequência que carregam o sinal até o computador ou celular. Assim como o rádio comum, precisa de torres de transmissão e antenas para recepção do sinal. Já a internet disponibilizada por fibra óptica chega à casa dos usuários por meio da instalação de cabos que conduzem o sinal até o local onde será utilizado. Esta última garante melhor sinal e maior velocidade no acesso em relação à primeira. que impedia o compartilhamento de fotos e vídeos, com qualidade e agilidade.
Em nossas conversas, Mara dedicou-se a falar sobre os sonhos interrompidos de realizar um curso superior, por conta da maternidade prematura: "eu sempre quis fazer faculdade, mas não consegui. Me casei muito cedo e depois vieram as crianças".
Há muitos anos, Mara trabalhava como instrumentista em um consultório dentário na Barra da Tijuca. Em nosso último contato, ela ainda morava com a mãe - que, após um acidente, havia desenvolvido falta de memória e problemas motores -, além da irmã, do sobrinho pequeno e de seus dois filhos, uma adolescente de quinze anos e um garoto de sete. A irmã também trabalhava para ajudar no orçamento, mas, segundo Mara, era ela quem arcava com os gastos principais da família.
Visitar pela segunda vez o campo de pesquisa no Rio de Janeiro, no ano de 2013, momento em que o uso do celular se consolidava no cotidiano de minhas interlocutoras, significou entender que, onde quer que se estivesse, por maiores que fossem os conflitos e as interações na metrópole, era possível estabelecer contato com espaços de compartilhamento de experiências e informações via internet. O computador, antes compartilhado por toda a família e alocado na sala de casa, em 2013, foi substituído pelo uso individualizado e móvel do celular. Ao realizar a segunda visita a Mara, percebi o computador já obsoleto, colocado de escanteio, na mesma sala. Segundo Mara, não funcionava mais.
Mara conheceu o Bolsa em meio às tentativas de encontrar um lugar onde pudesse trocar experiências sobre seu divórcio, sem os julgamentos locais que, segundo ela, atravessavam sua condição de mãe solteira e divorciada. As possibilidades de se ocultar ou de selecionar quem adicionar ou não às dinâmicas de sociabilidade faziam da internet um ambiente distensionador, ou seja, no qual era possível encontrar conforto para as pressões vividas no trabalho, na vida familiar, no bairro, na esfera dos afetos. De acordo com Miskolci (2012)MISKOLCI, Richard. Gramática do Armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente In: PELÚCIO, Larissa et al. Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia. Marília, Cultura Acadêmica, 2012, pp.35-55., os critérios de seleção, típicos das relações mediadas, rompem com a tese de que a internet seria uma versão atualizada e recente de centros comunitários. Nela, temos maior controle sobre aquilo que incomoda, bloqueamos e deletamos quando não queremos mais ter contato com alguém e podemos escolher, com maior segurança, as pessoas às quais direcionaremos nossa atenção e nossas postagens.
No caso de Mara, as relações de gênero, classe e condições de moradia, que são constituídas pelo fato de ser mulher, mãe, divorciada e habitante de Paciência, auxilia-nos a refletir acerca do que alertou Iara Beleli, em sua pesquisa sobre o Par Perfeito, site de busca de parceiros para homens e mulheres. Grande parte das vezes, a busca por autopreservação enreda os sujeitos conectados, de forma que eles constroem estratégias que tentam delimitar, apesar dos limites das ferramentas tecnológicas, o que vai ser visto e por quem. Segundo a autora,
É mais fácil revelar a intimidade quando sabemos que nossas identidades estão supostamente protegidas de pessoas que circulam em nosso cotidiano. Isso não significa uma separação radical entre on-line e off-line, antes, subverte as limitações espaço-temporais (Levy, 1999). Essa subversão permite revelações de desejos que dificilmente seriam expostos de maneira direta em um primeiro encontro face a face (Beleli, 2012BELELI, Iara. Amore online. In: PELÚCIO, Larissa et al. (org.) Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia. Marília/São Paulo, Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2012, pp.56-73.:59).
No Bolsa de Mulher e, principalmente, nos grupos criados pelas usuárias em outras plataformas, Mara parecia à vontade para falar tanto de questões que envolviam seu passado, o próprio casamento e os problemas enfrentados com o ex-parceiro, usuário de drogas, quanto sobre o engajamento na busca de um novo namorado.
Dessa forma, fica evidente, no uso que Mara fazia da rede, que a privacidade e o controle sobre a informação eram centrais na performance conectada. Como mostram Zizi Papacharissi e Paige Gibson (2011), a privacidade em rede não é sinônimo de ausência de compartilhamento, pelo contrário, representa a escolha possível do que será compartilhado, de forma a atribuir sentido à dinâmica de conexão, à relação com a comunidade que se integra e à própria identidade. Diagramar a privacidade permite a manutenção de laços - no caso, com as amigas do Bolsa - e consente a elaboração de uma dinâmica colaborativa em que falar sobre dimensões de intimidade é o eixo central desses vínculos.
Para Papacharissi e Gibson, o arranjo em torno da privacidade envolve dimensões de classe social e aspectos culturais de domínio da ferramenta tecnológica, características de sujeitos nativos digitais ou ambientados com os aparatos técnicos. No caso das mulheres da pesquisa, usuárias recentes das mídias digitais, as tensões no local de moradia ou, como veremos adiante, em ambientes familiares, conduziram às estratégias de privacidade, o que implicou construírem o conhecimento sobre as redes em meio a própria experiência cotidiana de conexão.
A tecnologia digital como espaço a partir do qual é possível criar outras redes de relações e também acessar a cidade é aspecto percebido no caso de outras duas interlocutoras da pesquisa, Joyce e Luana, jovens e lésbicas. Nascida em 1995, Joyce tinha 20 anos quando nos encontramos, e vinha de uma origem familiar pobre. O pai trabalhava como segurança em uma empresa e a mãe era empregada doméstica. O desejo de seu pai de cursar graduação em História fez com que ele a apoiasse em suas escolhas profissionais e a conduzisse ao curso de Pedagogia, o qual ela integrava no momento de nossa interlocução.
O incentivo para que Joyce construísse uma carreira não se estendia às questões amorosas: "para os meus pais eu devo ser hétero, crentona, ter filhos e viver para o meu marido... (risos)". A criação em meio à família evangélica, fez com que Joyce passasse parte da infância e adolescência frequentando a igreja, porém, o fato de se relacionar com mulheres e de sentir o preconceito nesses espaços a fez se afastar dos cultos.
Joyce frequentava a faculdade, ministrava aulas particulares - com as quais conseguia consumir produtos e serviços que a família não podia lhe disponibilizar - e saía com um grupo de amigos que eram, em sua maioria, gays e lésbicas, nem todos assumidos em seus contextos familiares. "Sair daqui é fundamental", afirmou Joyce ao falar sobre os motivos que a faziam não gostar de circular em Mesquita, onde residia na Baixada Fluminense. Flanar por outras localidades era uma forma de escapar do escrutínio das pessoas da família e da igreja que frequentava e poder viver sua sexualidade e seus flertes com maior autonomia e tranquilidade.
Segundo ela, era no Whatsapp que as coisas começavam "a acontecer", uma vez que era ali que o grupo - ativo "o dia todo", em seus termos - não somente adicionava novas pessoas LGBTQIA+, com vistas a intensificar as redes de amizade e sociabilidade, como também trocava mensagens sobre o cotidiano. Em grupo, os jovens falavam sobre questões afetivas e discutiam acerca dos lugares possíveis de serem frequentados para conversar, beber e conhecer gente. O Whatsapp, naquele momento, ao contrário de outras redes sociais e do próprio Bolsa de Mulher, permitia privacidade por vincular os sujeitos da rede por meio da agenda do celular. A proteção garantida ali era ampliada frente aos grupos construídos em outras plataformas.
Tanto para Joyce, quanto para Luana, outra interlocutora da pesquisa, com 23 anos, habitante de Nova Iguaçu, um dos lugares bastante frequentados no Rio de Janeiro era o posto 9 da praia de Ipanema, na Zona Sul, região reconhecida por reunir o público LGBTQIA+ da cidade, tanto jovens da própria Zona Sul, quanto aqueles advindos de outras regiões. Estes últimos preferiam permanecer no posto a ir para as baladas fechadas da região. Ficar na praia, ver o pôr do sol, comprar uma bebida e circular pela Farme de Amoedo constituía roteiro possível para jovens gays e lésbicas de regiões mais periféricas e distantes.
Luana também tinha intensa circulação pela cidade e, por meio da internet, mobilizava informações sobre os lugares que frequentava; embora afirmasse não gostar de aplicativos de relacionamento, utilizava principalmente o Facebook para saber de eventos gay friendly14 14 O termo gayfriendly é utilizado para definir espaços, instituições, marcas ou pessoas que são abertas, acolhedores ou se relacionam bem com a comunidade LGBTQIA+. No caso das festas frequentadas por Luana, ser gayfriendly significava que seriam espaços onde não corriam o risco de serem afetadas por algum tipo de violência ou discriminação. da capital carioca. No dia em que nos encontramos para o casamento de Patrícia, Luana havia acabado de encontrar uma garota que estava conhecendo em um shopping da Barra e, no dia seguinte, tinha planos de ir a uma festa na Lapa.
Desde quando começou a se relacionar com mulheres, Luana contou para a família sobre sua sexualidade e passou a conviver com a resistência de sua mãe e de seu irmão. Para eles, a homossexualidade era vista como doença, passível de ser curada por meio da devoção a Deus e da dedicação à Igreja. Com intuito de evitar embates familiares, Luana decidiu não tocar no assunto de seus afetos e de sua sexualidade em casa. Também por essa razão, suas namoradas não se relacionavam as pessoas de sua família.
O sonho de morar em outra região também aparecia em suas reflexões sobre desejos de mobilidade e ascensão e se somavam a reclamações sobre os preconceitos enfrentados no cotidiano de moradia: "ser gay no lugar de moradia é complicado, eu fui à Parada LGBT lá de Nova Iguaçu uma vez. Não me sinto à vontade. Os olhares de fofoca me incomodam um pouco, mas só nesses lugares. É difícil mesmo, é dar a cara a tapa todos os dias".
A fala de Luana problematiza uma visão corrente de que grupos sociais subalternizados não articulariam dimensões de honra e vergonha como elementos simbólicos que regulam comportamentos e definem identidades de sujeitos. Essa afirmação permite retomar a pesquisa de Cláudia Fonseca (2000)FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre, Editora da UFSC, 2000. em torno das relações entre família, fofoca e honra entre bairros pobres da cidade de Porto Alegre. Segundo a autora, a relação com esses imaginários de status não é composta somente por posições de classe social e por aspectos da vida econômica. São dinâmicas que envolvem relações de gênero e que fazem com que homens e mulheres disponham de diferentes simbologias por meio das quais expressam prestígio.
Não existe noção particular de honra ligada à moça solteira. Enquanto a imagem pública do homem tem vários pontos de apoio, a da mulher gira quase exclusivamente em torno de suas tarefas domésticas na divisão do trabalho: ela deve ser uma mãe devotada e uma dona-de-casa eficiente [...]. Ao casar, a mulher tem esperança de alcançar não somente uma certa satisfação afetiva, mas também um status respeitável. Imagina-se sempre que se uma mulher está só é porque não consegue arranjar um homem. Ademais, a mulher sem marido perturba a paz da comunidade; ela desafia a virilidade dos homens e atiça o ciúme das mulheres. A presença de um marido como tutor da sexualidade feminina resolve o problema (Fonseca, 2000FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre, Editora da UFSC, 2000.:18).
As jovens apresentadas nesse momento mostraram que suas experiências e relações questionam os roteiros tradicionais de gênero e sexualidade, o que desestabiliza suas imagens e suas reputações entre os grupos do contexto de moradia. Seja Mara, que se divorciou e tem criado sozinha os dois filhos, sejam Luana e Joyce que, apesar de seus anseios por relações afetivas, apresentavam uma sexualidade fora da norma e que desorganiza o circuito familiar, tal-qualmente os círculos religiosos que frequentavam.
Para elas, a rede disponibilizava um conjunto de ferramentas de acesso e de espaços de sociabilidade que permitiam lidar com as relações locais, com as fronteiras distantes e que podiam, no limite, expandir possibilidades de trânsito para longe dos ambientes de hostilidade.
Nesse caso, a rede também rearticula a construção de grupos em que sentimentos de vergonha e rejeição podem ser substituídos por vínculos de identificação e reconhecimento. Pela rede, as jovens criam interações por meio das quais se honrar da própria sexualidade e da própria trajetória volta a ser possível.
De acordo com Scalon e Oliveira (2012)SCALON, Céli; OLIVEIRA, Pedro Paulo. A percepção dos jovens sobre desigualdades e justiça social no Brasil. Interseções (14), Rio de Janeiro-RJ, 2012, pp.408-437., a juventude tende a associar suas posições de classe ao local de moradia. Apesar de os jovens de classe popular mostrarem, segundo a autora, "muita confiança na educação e no esforço pessoal para a superação das desigualdades" (Scalon; Oliveira, 2012SCALON, Céli; OLIVEIRA, Pedro Paulo. A percepção dos jovens sobre desigualdades e justiça social no Brasil. Interseções (14), Rio de Janeiro-RJ, 2012, pp.408-437.:408), a espacialidade aparece como significativa para a atribuição de um lugar social.
Quando vinculamos essa dimensão de classe às de gênero e, principalmente, de sexualidade, percebemos que ocorrem novas configurações de relações e de (des)identificação com os locais de moradia. A percepção sobre estar em um ambiente acolhedor onde se sentir à vontade seja algo importante de ser vivenciado, parece mais difícil de ser alcançado a depender dos mecanismos de normalização e exclusão, que atribuem lugares sociais marginalizados às mulheres da pesquisa.
Nesse sentido, a mídia digital aparece como uma ferramenta que auxilia na elaboração de estratégias que projetam as mulheres para fora dos espaços de moradia, seja para estabelecerem comunidades online - nas quais conversar sobre si, sobre experiências e vivências constitua a tônica -, seja para o acesso às informações sobre outros lugares da cidade, nos quais habitar o próprio corpo e viver a própria sexualidade não cause desconfortos e violências.
A conexão via internet, apesar de atravessada por dinâmicas algorítmicas e de controle abordadas pelas teorias das redes (Zuboff, 2018; Silveira, 2016), constitui-se enquanto espaço de sociabilidade "preferido" pelas mulheres dessa pesquisa, como aponta a fala que nomeia o subtítulo desta sessão: "eu prefiro as amigas do Bolsa". Essa preferência, quando pensada em seu sentido social, evidencia que, para grupos historicamente subalternizados, a rede permite negociar as fronteiras da privacidade, do visível, do ocultado, de forma a equacionar sentimentos de vergonha e de inadequação.
Mais do que isso, preferir a dinâmica conectada se vincula à possibilidade de construção de experiências colaborativas e mais polissêmicas, frente àquelas disponibilizadas pela família e pelos bairros de origem, nas quais certa dimensão de honra ainda está vinculada a papéis tradicionais de gênero e vivências normativas de sexualidade.
"O AMOR nos uniu. Me RECUSO a aceitar que o AMOR nos afaste": mídias digitais, relações de gênero e os vínculos entre mulheres
Em Gender on the Line: Women, the Telephone, and Community Life (1992), Lana Rakow se debruça sobre as relações existentes entre as mulheres de uma comunidade da região rural dos Estados Unidos e o telefone. Suas reflexões nos auxiliam a pensar sobre os usos de ferramentas tecnológicas realizados por mulheres, com base em relações de gênero.
A autora também nos conduz a estabelecer a continuidade existente entre diferentes momentos históricos e técnicos. Em outros termos, as mídias digitais com acesso à internet não inauguram formatos inéditos de relações e de subjetividades, de forma que é preciso realizar uma compreensão de períodos anteriores, atravessados por outras dimensões sociotécnicas e seus usos. Ou seja, a maneira como as mulheres mobilizam as tecnologias digitais se vincula a um passado cujo conjunto de relações já atravessava a utilização do próprio telefone, da televisão e/ou do rádio.
Rakow aponta o telefone como uma tecnologia de gênero e, embora tenha produzido antes de Teresa de Lauretis, nos remete à discussão da teórica feminista sobre a tecnologia como produtora de subjetividades generificadas. Para Lauretis (1994:228), "gênero ocorre através das várias tecnologias discursivas com poder de controlar o campo do significado social e assim produzir, promover e implantar representações".
Em consonância com essa reflexão, Rakow (1992)RAKOW, Lana F. Gender on the line: women, the telephone, and community life. Chicago, University of Illinois Press, 1992. nos conduz a compreender como o telefone foi incorporado a um mundo de gênero e, portanto, constituiu-se em aparato sociotécnico por meio do qual as relações de gênero são organizadas, vivenciadas, realizadas e reforçadas, tanto no interior da família e da comunidade quanto em ambientes políticos. Por meio do telefone, as mulheres da pesquisa de Rakow realizavam um uso capaz de promover a manutenção de relacionamentos de apoio entre mulheres, bem como desenvolver importantes funções de cuidado, de trabalho doméstico e de conservação de vínculos entre as pessoas da comunidade. Para Rakow (1992:154):
Se as mulheres se distinguem, na crença popular, como "falantes de telefone", precisamos nos perguntar por que as mulheres sentem a necessidade de falar ao telefone, que trabalho elas estão fazendo, que oportunidades ou limitações tem moldado suas vidas, e o que ser mulher significa para elas e para os outros. Nesse sentido, o telefone é sintoma, possibilidade, arma, companheiro, ferramenta e linha de vida. Para as mulheres de Prospect [a comunidade estudada pela autora], o telefone alterou suas formas de vida privada, enquanto um mundo maior de participação pública estava além de seu alcance.
O aspecto recente dos usos dessas ferramentas comunicacionais por mulheres foi exposto por Heloisa Buarque de Hollanda (2018)HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2018. ao refletir sobre o que chamou de "nova onda" do movimento feminista, ou seja, o feminismo jovem caracterizado pela mobilização política por meio de plataformas digitais com acesso à internet. A autora mostrou que o grau de descentralização das redes abriu um vasto campo de estratégias de engajamento. Esse movimento midiático construiu um novo padrão de comunicação que a autora denominou de "polinização cruzada", caracterizado pela consulta mútua e pela retroalimentação (Hollanda, 2018HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2018.:44), principalmente entre grupos de mulheres que se organizam politicamente.
Podemos afirmar que, no que diz respeito aos movimentos feministas, é patente sua relação histórica com as tecnologias informacionais e comunicacionais, desde o contexto do advento do telefone, mas também do rádio e da própria televisão. Estas últimas, mídias de broadcasting, apresentam como característica a produção verticalizada de conteúdo, ao contrário da estrutura horizontalizada da internet, que permite ao próprio consumidor criar páginas e redes. Em que pese a especificidade da internet como ferramenta comunicacional, como aponta Pauline MacLaran (2015)MACLARAN, Pauline. Feminism's fourth wave: a research agenda for marketing and consumer research. Journal of Marketing Management (31), Londres, 2015, pp.1732-1738., todas as chamadas "ondas"15 15 "onda"", aqui, aparece entre aspas, pois compreendemos que se trata de uma metáfora que permite ordenar e construir um fio lógico entre diferentes momentos e vertentes dos movimentos feministas. Trata-se de uma abstração didática que não dá conta de abarcar a diversidade de pautas, demandas e conflitos no interior de um mesmo momento histórico e contexto. Preferimos pensar em termos de uma forma rizomática, como aponta Sueli Gomes Costa (2009:11), pois pressupõe entender que esses movimentos podem estar "entrelaçados, mudar de rumo, seguir e não seguir em diferentes sentidos, podem mesmo retroceder". do movimento feminista se apropriaram dos meios de comunicação e a publicidade e estabeleceram, em torno dessas dinâmicas, negociações, embates e disputas. A autora mostra como o próprio movimento sufragista, de fins do século XIX e início do século XX, via as campanhas de marketing como uma força positiva para divulgação das pautas do movimento, o que conduzia lideranças à participação de campanhas publicitárias diversas difundidas pelos meios de comunicação.
Como aponta o subtítulo deste momento do texto, com palavras grafadas propositalmente em caixa alta16 16 Na linguagem estabelecida na internet, utilizar palavras e frases em caixa alta diz respeito a tentativa de dar ênfase no que está sendo dito. A depender do contexto, pode indicar que a pessoa está falando alto ou gritando com o interlocutor ao qual se destina a mensagem. pela própria interlocutora da pesquisa, em fala no grupo do WhatsApp, os relacionamentos afetivos compõem parte da tônica das sociabilidades estabelecidas pelas redes sociais de mulheres do Bolsa de Mulher e dos grupos formados no Facebook e no WhatsApp.
Uma das mulheres do grupo, Flávia, heterossexual, na época com 28 anos, expôs que o grupo estava inativo há alguns dias e, como parte das integrantes estava namorando, a jovem inferiu que o silêncio estava justificado pelas relações amorosas alcançadas. "Me RECUSO a aceitar que o AMOR nos afaste" indicava que, uma vez que ele figurasse como temática central no vínculo entre elas, sem as conversas em torno dos relacionamentos amorosos, os grupos do Bolsa poderiam perder significado ou mesmo desaparecer.
Leila, interlocutora da pesquisa, 24 anos, moradora de uma cidade pequena no Estado de Minas Gerais, relatou, em entrevista pelo próprio Facebook, o que a conduziu ao Bolsa de Mulher:
Minha história no Bolsa começou pelo MSN, quando abria aquela página de notícias e sempre aparecia uma página com dicas legais para mulheres, notícias interessantes do mundo feminino, moda, essas coisas. E resolvi me cadastrar para ter acesso às outras coisas do site, como os fóruns de discussão. Vi que seria uma excelente oportunidade para eu falar como eu gosto, dar minha opinião sem regras e debater. E também aconselhar quando necessário, porque me acostumei a fazer isso depois que me recuperei de meu último namoro. Isso de trocar ideias sobre relacionamentos, como lidar, como superar problemas, é algo que me atraiu no site.
A rede de sociabilidade do Bolsa mobilizava como pauta fundamental as relações amorosas. Via de regra, essas redes eram conduzidas, por um lado, por discursos e matérias elaborados pela própria plataforma e seus profissionais, cuja expertise se construía nas áreas do marketing, da psicologia ou do coaching17 17 O termo Coaching indica uma atividade de formação pessoal em que um instrutor (coach) ajuda o seu cliente (coachee) a "evoluir" em alguma área da sua vida. Os discursos de coaching apresentam conteúdo motivacional e estão ligados a ambientes corporativos e de negócios, embora também existam modalidades de coaching que visam ao desenvolvimento pessoal nas mais variadas áreas da vida, incluindo os afetos e as relações amorosas. É importante mencionar que a prática do coaching não é, necessariamente, vinculada à formação acadêmica no âmbito da psicologia ou nele embasada; a atividade foi tão comumente mobilizada por digital influencers que conduziu à criação, como contraponto, de páginas que se dedicam a promover o chamado anti-coaching ou coaching do fracasso. O coaching se vincula à noção de um capitalismo de performance em que o indivíduo é capaz de formar a si mesmo, e o excesso de conteúdo motivacional e otimista sobre a vida e as emoções gerou, em rede, memes e discursos críticos que problematizam a atividade, assim mesmo como a falta de formação acadêmica e profissional de seus ministrantes e das pessoas envolvidas. . Por outro lado, as dinâmicas de ajuda-mútua e de aconselhamento emocional aconteciam nos usos feitos da rede, ancorados por vivências e experiências pessoais. Os namoros, casamentos, o sexo, o fato de estarem solteiras e tudo aquilo que pudesse esbarrar em dinâmicas afetivas e sexuais eram assuntos centrais nas sessões do site e nas mensagens trocadas.
Textos postados nos fóruns do site ou em grupos formados em outras redes, com pedidos como "meninas, preciso de um conselho sobre o meu namoro", "alguém tem uma dica sobre como lidar com namorado ciumento?", "hoje eu estou um pouco triste em relação ao meu casamento, vocês podem de ajudar com isso?", deixam evidente o conjunto de expectativas depositadas nesses coletivos de encontro, bem como uma dinâmica que Juliana do Prado (2015)PRADO, Juliana do. Dos consultórios sentimentais à rede: apoio emocional pelas mídias digitais. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2015. chamou de redes de apoio ou aconselhamento emocional.
Essas relações, quando construídas por meio das mídias digitais, caracterizam-se, para a autora, por maior agência por parte dos sujeitos, na busca pela resolução de seus problemas e na construção de sentidos e moralidades, cuja origem extrapola as próprias redes digitalmente formadas. A busca por apoio e aconselhamento, assim como nos mostra a pesquisa de Rakow, remonta a um contexto anterior à internet e pode ser localizada em meio às colunas de consultas em jornais, revistas, programa de televisão e rádio, no contexto brasileiro18 18 Um exemplo de programa cujo conteúdo se destina a abordar resolução de problemas nas esferas familiar, afetiva e local é o Casos de Família. Um profissional da psicologia, bem como a plateia participam opinando e fazendo perguntas para as pessoas cujos casos estão sendo tratados no programa. .
"Tudo o que sei aprendi em revistas e na internet, hoje em dia, jogo tudo no mestre google (risos)", me disse Kátia, usuária do Bolsa do Acre, referindo-se a espaços onde ela buscava informações sobre como lidar com questões amorosas e também com dimensões do cotidiano, como a vida em família, o trabalho, a maternidade. Kátia relatou que, antes da internet aparecer como possibilidade de adquirir informações, no momento de sua adolescência, era leitora assídua da Revista Capricho19 19 A Revista Capricho foi lançada em 1952 pelo fundador da Editora Abril, Victor Civita, e era direcionada ao público feminino e jovem. Com circulação quinzenal, em formato pequeno, seu conteúdo inicial era composto por fotonovelas, na época chamadas de "Cinenovelas". Além da cinenovela, a revista apresentava histórias de amor desenhadas em quadrinhos. Em novembro de 1952, a revista passou a ser editada mensalmente e a abordar outros tópicos como: moda, beleza, comportamento, contos e variedades. No final da década de 1990, a marca Capricho investiu em outros produtos de consumo, como fragrâncias, maquiagens, material escolar, mochilas, lingerie e roupas. Nos anos 2000, a publicação passou a utilizar a internet como uma nova plataforma de interação com seus leitores. , aspecto que indica uma continuidade entre diferentes aparatos informativos, mobilizados por essas pessoas. A rede aparece em substituição as colunas de revistas impressas, o que conduziu, inclusive, esses periódicos a aderirem ao formato digital.
É comum nas plataformas on-line direcionadas para o público feminino aspectos que nos conduzem ao que Eva Illouz (2016)ILLOUZ, Eva. No coração pulsante da cultura: entrevista com Eva Illouz. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar (6), São Carlos-SP, 2016, pp.299-308. chamou de cultura da autoajuda. Ou seja, trata-se de um conjunto de informações e discursos, na forma de receituários, cujo objetivo seria disponibilizar ferramentas para o sucesso em diversas áreas da vida, fundamentalmente, nos afetos.
No Bolsa de Mulher, encontram-se temáticas que visavam orientar um conjunto de medidas a serem adotadas pelas consumidoras, com vistas a alcançar determinado objetivo: "4 coisas devem acontecer entre vocês dois para saber se achou a pessoa certa"; "quatro maneiras de deixá-lo arrepiado com provocações no ouvido"; "5 alimentos e produtos que deixam a mulher excitada por conta de seus odores"; "8 segredos para aumentar o desejo e melhorar muito o sexo"; "5 comidas que podem te deixar com ansiedade"; "Como fazer o encontro perfeito para o relacionamento durar mais de uma noite"; "5 verdades que ninguém te conta quando você compra sua primeira casa"; entre outros.
Todas essas listas de sugestões para o cotidiano feminino foram retiradas de diferentes sessões do site. Elas apontam que tais plataformas pensam o público feminino não somente como um segmento de consumo, mas dentro de um conjunto de pressupostos normativos que alocam as mulheres no roteiro socialmente construído em torno de: ter uma relação afetiva de sucesso; ter uma boa forma física expressa no corpo magro; adquirir um comportamento adequado no cotidiano e nas relações interpessoais; e desempenhar funções na esfera doméstica, ligada à casa e a família, filhos e marido.
Segundo Illouz (2016)ILLOUZ, Eva. No coração pulsante da cultura: entrevista com Eva Illouz. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar (6), São Carlos-SP, 2016, pp.299-308., a cultura da autoajuda não está presente somente nas obras literárias produzidas com esse conteúdo, mas encontra ressonância na vida cotidiana e constitui importante objeto de análise, na medida em que está alocada na interface entre realidade e fantasia. Esses discursos produzem a ficção do sujeito que dá conta de si e da própria transformação, de acordo com sua vontade e com a disciplina de corresponder a estes receituários.
A cultura terapêutica contemporânea da autoajuda, nesse sentido, é performativa, na medida em que "ela nos leva a fazer coisas" (Illouz, 2016ILLOUZ, Eva. No coração pulsante da cultura: entrevista com Eva Illouz. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar (6), São Carlos-SP, 2016, pp.299-308.:307), e ela é, ao mesmo tempo, "informal e quase rudimentar da nossa experiência social, mas também um esquema cultural profundamente internalizado, que organiza a percepção do eu e dos outros, a autobiografia e a interação interpessoal" (Illouz, 2011ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.:74).
Embora as relações amorosas conduzam parte dos usos realizados por mulheres, de redes como o Bolsa, não foi a internet nem essas mesmas redes que impuseram às mulheres a responsabilidade pela relação afetiva ou a própria centralidade dela em processos de sociabilidade. O que a rede parece viabilizar é o contato com pessoas desconhecidas e alheias ao círculo de origem, com vistas a compartilhar experiências sobre questões que envolvem conflitos amorosos, aspectos sobre práticas sexuais, dentre outros assuntos de foro íntimo. Nesse sentido, as mídias digitais integram um esquema de relações cotidianas de gênero que as antecede, bem como facilitam processos de aconselhamento afetivo entre mulheres, colapsando fronteiras entre público e privado.
O trabalho de Judy Wajcman (2015)WAJCMAN, Judy. Pressed for time: the acceleration of life in digital capitalism. Chicago, The University of Chicago Press, 2015. nos conduz a refletir sobre como a inserção de diversas tecnologias no espaço da casa, da intimidade e do cotidiano, ao contrário dos postulados que depositavam confiança no potencial tecnológico, não transforma, de partida, relações de gênero.
O exemplo mobilizado pela autora, com a inserção no ambiente doméstico, de tecnologias como a máquina de lavar ou o micro-ondas, que prometiam facilitar o trabalho desempenhado, fundamentalmente, por mulheres, mostrou que, ao contrário de promover divisão equitativa das funções, as direcionou para outras atividades. Esse fenômeno manteve a sobrecarga de tarefas e deixou intocáveis aquelas desempenhadas por homens como, por exemplo, o cuidado com o jardim e as atividades ao ar livre. A casa tecnológica da classe média, estudada por Wajcman, levou as mulheres a passarem mais tempo cuidando dos filhos, do marido e do lar.
Da mesma forma que a máquina de lavar não é capaz de transformar o desemprenho de funções de gênero - que englobam, por exemplo, a divisão do trabalho doméstico - o uso do telefone celular, vinculado às redes sociais e ao acesso à internet, não tem o poder de alterar as relações amorosas vivenciadas pelas mulheres da pesquisa. A intimidade e o amor, bem como os seus significados, estão impregnados de variáveis conjunturais, "onde as relações de poder institucionalizadas dentro e fora das relações íntimas desempenham um papel determinante" (Neves, 2007NEVES, Ana Sofia Antunes das. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do “amor confluente” ou o retorno ao mito do “amor romântico”. Revista Estudos Feministas (15), Florianópolis-SC, 2007, pp.609-627.:623).
Como fruto de significações históricas e culturais, o amor é um produto social e discursivo que, no caso desta pesquisa, desempenha um papel central na formação das relações heterossexuais e na sociabilidade entre mulheres nas redes do Bolsa. Mais do que resolver dimensões afetivas e estabelecer negociações em torno das relações amorosas vivenciadas, a rede se tornou espaço de construção de vínculos entre as mulheres.
De acordo com Maria Chaves Jardim (2019)JARDIM, Maria Chaves. Para além da fórmula do amor: amor romântico como elemento central na construção do mercado do afeto via aplicativos. Política & Sociedade (43), Florianópolis-SC, 2019, pp.46-76. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2019v18n43p46
https://doi.org/10.5007/2175-7984.2019v1...
, ao citar o pensamento de Luhman, o amor pode ser definido como um fenômeno histórico, um código social compartilhado pelos sujeitos. Nesse sentido, para Jardim (2019JARDIM, Maria Chaves. Para além da fórmula do amor: amor romântico como elemento central na construção do mercado do afeto via aplicativos. Política & Sociedade (43), Florianópolis-SC, 2019, pp.46-76. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2019v18n43p46
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:55), "os meios de comunicação, a literatura, a televisão, as novelas, os filmes e mais recentemente, a internet, são meios simbólicos que codificam o amor". Em outros termos, esses aparatos culturais apreendem o sentimento e os comportamentos acerca do amor que estão colocados em dinâmicas na esfera social e o reforçam, por meio de linguagem, imagens, sons e símbolos. Dessa forma, não existiria espontaneidade no amor e na relação afetiva, como nos faz crer o discurso do amor romântico, mas o uso de códigos e de autocontrole, aspectos que exigem socialização, aprendizagem, vivências e compartilhamento desses mesmos códigos.
Nesse sentido, a internet e os circuitos de sociabilidade se mostraram espaços de aprendizagem, construção e trocas acerca de repertórios afetivos entre mulheres. Na medida em que os irresolutos mal-estares da esfera afetiva voltavam sempre a aparecer na sociabilidade desempenhada, a rede, mais do que resolver questões, como a própria cultura da autoajuda e do aconselhamento se propõe a fazer, mostrou-se espaço de compartilhamento de experiências acerca das vivências afetivas. A dinâmica em rede transforma a prática individualizada da autoajuda, do sujeito em contato com o discurso em formato de receituário amoroso, em prática de ajuda-mútua, vivenciada com o coletivo.
É interessante notar como a manutenção do vínculo entre elas é reforçado como algo positivo, valioso e que merece ser mantido, em detrimento de este vinculo ter ou não efeitos e desdobramentos na vida cotidiana, nas decisões na esfera do relacionamento ou em um aprendizado emocional e controle afetivo. A intenção de adquirir repertórios emocionais para lidar com essas temáticas torna-se eixo significante de identificações e vem acompanhado de diálogos que reforçam a importância do grupo e da relação entre as próprias mulheres:
Eu já disse, após muuuuuitas decepções, que nunca mais chamaria ninguém de amigo. E aí, por ironia do destino, procurando uma receita (sou uma ameba na cozinha), caio de paraquedas no Bolsa de Mulher e "conheço" essa turma seleta de meninas, que me fazem arrepiar os cabelinhos do braço quando chamo de AMIGAS. Minhas amigas do Rio, de Minas, São Paulo, Acre (ca-ra-le-o), minhas parceiras! Amo vocês!
A fala acima, postada em fórum de discussão no site, aponta que quanto mais a rede se mostra capaz de sustentar espaços de compartilhamento de informações, de trocas afetivas, de apoio e de aconselhamento emocional, mais ela é vista como uma dinâmica constitutiva de amizade e de parcerias entre mulheres.
Considerações finais - as contribuições de uma analítica dos usos das mídias digitais
Nos últimos anos, cresceu o número de pesquisas que se debruçaram sobre os usos feitos pelos sujeitos das mídias digitais, em determinados contextos. Embora essa perspectiva não seja nova no campo dos estudos de mídias - uma vez que os estudos de recepção, já nos anos 80, buscavam lidar com a cadeia comunicativa e a atribuição de sentido dado pelos sujeitos aos discursos midiáticos (Hall, 1980HALL, Stuart. Encoding/decoding. In: HALL, Stuart et alii. Culture, Media, Language. London, Hutchinson/CCCS, 1980, pp.117-128.; Morley, 1996MORLEY, David. Televisión, Audiencias y estudios culturales. Amorrortu, Buenos Aires, 1996.) - no que diz respeito às mídias digitais com acesso à internet, a estrutura conectiva só tornou possível uma Sociologia Digital, que envolve pensar, dentre outros fatores, nos usos e apropriações dos aparatos sócio técnicos realizados pelos sujeitos, após 2010 (Miskolci; Balieiro, 2018MISKOLCI, Richard; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Sociologia digital: balanço provisório e desafios. Revista Brasileira de Sociologia (6), Porto Alegre-RS, 2018, pp.132-156. DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.237
https://doi.org/10.20336/rbs.237...
).
Aos poucos, os estudos mais generalistas sobre ciberespaço e cibercultura, em solo nacional, deram lugar a investigações empíricas cuja compreensão que se consolidava era a de que a internet agrupa uma série de práticas, plataformas, usos e relações sociais específicas. Esse desenvolvimento afirma aspectos propostos por Dutton (2013)DUTTON, William H. Internet studies: the foundations of a transformative field. In: DUTTON, William H. (org.) The Handbook of Internet Studies. Oxford University Press, [S.l.], 2013, pp.2-25. ao ressaltar, dentre os múltiplos focos de investigação sobre a internet, a necessidade de atentarmos para os usos contextuais. Trata-se de se debruçar sobre a maneira como pessoas, grupos, comunidades e regiões usam a internet de uma forma particular, e sobre quais grupos políticos, econômicos e sociais esses padrões de uso apoiam.
Nesse sentido, em diálogo com a perspectiva da modelagem social da tecnologia, (Wajcman, 1999; Mackenzie, 1999; Sassen, 2002SASSEN, Saskia. Towards a sociology of information technology. current sociology (50), [S.l.], 2002, pp.365-388.; 2017), tentei construir um diagrama analítico que observa as condições materiais dentro das quais essas tecnologias operam, considerando que as ferramentas tecnológicas são aparatos moldados em um processo social que envolve técnica, mercado, cultura e pessoas.
Como registro histórico de pesquisa, tentei contribuir com uma analítica dos usos das mídias digitais, em um momento histórico do contexto brasileiro em que essas tecnologias estavam se solidificando entre estes sujeitos das classes populares, fundamentalmente, entre mulheres. A ferramenta tecnológica concretizou a possibilidade de expressão individual, empoderamento e protagonismo; erodiu também as fronteiras estabelecidas entre público e privado, o que projetou ainda mais para a chamada esfera pública automatizada (Pasquale, 2017PASQUALE, Frank. A esfera pública automatizada. Líbero (39), São Paulo-SP, 2017, pp.16-35.) ou técnico-midiatizada (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. São Paulo, Autêntica, 2021.), a vida íntima e os afetos.
Esse formato de sociabilidade conectada repercutiu entre indivíduos de baixa renda e, principalmente, entre sujeitos de grupos historicamente subalternizados, na medida em que a internet passou a se configurar como instrumento de visibilidade para questões que, sem o acesso a essas ferramentas, poderiam ficar relegadas a ambientes mais restritos ou serem resolvidas em espaço locais de interação que, como tentei apontar, não se mostraram acolhedores para os sujeitos em questão.
Busquei contribuir com o diagrama de reflexões sobre os usos dessas ferramentas sociotécnicas, de forma a apontar como as dimensões que atravessam o circuito de sociabilidades entre mulheres conectadas se inserem em conjunturas pautadas por relações de gênero, classe social, sexualidade e relações com o espaço e fluxo urbano.
A rede não permite romper fronteiras objetivas de desigualdades, mas possibilita um processo de sociabilidade capaz de projetar as mulheres para ambientes e relações distanciadas dos locais de moradia, fortemente atravessados por tensões na esfera íntima e por disputas em torno da honra e da vergonha. Pelas mídias digitais, tornou possível criar um espaço no qual estar solteira, construir a própria trajetória e criar sozinha o próprio filho não sejam motivos de estranhamento ou de julgamentos do coletivo. Da mesma forma, o cotidiano conectado permitiu construir estratégias de fluxo e trânsito com vistas a experenciar a própria sexualidade.
Por meio desses aparatos sociotécnicos, as mulheres criaram vínculos afetivos e emocionais capazes também de promover um ambiente de aconselhamento e ajuda-mútua em torno da esfera dos relacionamentos afetivos. Embora, na rede formada entre elas, as falas reiterem o circuito de machismos ao qual estão submetidas, o vínculo estabelecido se mostrou constitutivo de relações de amizade e parceria. Mais do que isso, a conexão permitiu estabelecerem um circuito de trocas que substitui, em larga medida, o próprio consultório terapêutico, o que permite questionar, tanto a ideia de que a rede comporta relações de menor profundida, quanto a tese de que a tecnologia afastaria as pessoas
Pelo contrário, ainda que um dos maiores objetivos dos usos da rede do Bolsa de Mulher - de estabelecer diálogos e trocas em torno das questões amorosas para encontrar, então, uma parceria afetiva - tivesse de alguma maneira sido alcançado, isso não implicou o enfraquecimento dos laços constituídos entre essas mulheres, mas os fortaleceu e as conduziu a uma dimensão mais reflexiva sobre a própria vida, a própria intimidade e as próprias relações de gênero às quais estavam inseridas. No limite, em rede, essas jovens puderam experenciar certa expansão de repertórios afetivos e, embora não tenham, naquele momento, intitulado-se feministas, apresentavam preocupações orientadas para uma vivência mais democrática e igualitária acerca de como vivenciar o amor e a sexualidade.
Abranger esses usos em nossas análises possibilita, por meio da relação entre humanos e máquinas, compreender as estratégias mobilizadas na conexão de grupos sociais diversos e sujeitos que não ocupam, necessariamente, o ideal do indivíduo conectado, autônomo e plenamente ambientado em dinâmicas tecnológicas. No caso das mulheres, especificamente, podemos mencionar uma agenda investigativa possível de ser aberta e aprofundada sobre os usos realizados por, por exemplo, donas de casa, idosas que vivem sozinhas, jovens que precisam recorrer a um aborto, adolescentes que se informam sobre a vida reprodutiva, mulheres em situação de violência doméstica, dentre outras apropriações possíveis da ferramenta.
Essas tessituras e entrelaçamentos que conectam sujeitos e mobilizam afetos, parcerias e apoios emocionais entre as mulheres do Bolsa promoveram suporte em meio a uma realidade subalternizada na qual nada parecia "fácil para ninguém", como aponta frase dita por interlocutora, que abre e nomeia este artigo. Os usos iluminam, nesse sentido, não somente nossos arrolamentos com a própria ferramenta tecnológica, mas falam sobretudo acerca da relação que mantemos umas com as outras e com o contexto social do qual fazemos parte.
AGRADECIMENTOS
A construção de redes de interlocução sempre se mostrou fundamental no processo de desenvolvimento das reflexões de pesquisa. Gostaria de agradecer, para este texto em particular, as leituras atentas e generosas de Felipe Padilha e Simone Gomes.
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Em 2010, com vistas a expandir o acesso aos mais pobres, o Governo Federal criou o Programa Nacional de Banda Larga, cujo objetivo era atingir 40 milhões de domicílios conectados à rede mundial de computadores em 2014. O projeto, gerenciado pela Secretaria de Telecomunicações do Ministério das Comunicações, tinha como objetivo desonerar redes, terminais de acesso, assim como smartphones. Também fazia parte das intenções da proposta expandir a rede pública de fibra óptica administrada pela Telebrás e implementar a chamada banda larga popular, oferecendo internet na velocidade de 1 Mbps ao valor de R$ 35 mensais. Os objetivos da proposta inicial não foram alcançados em sua totalidade, e, em 2014, havia um abismo de mais 10 milhões de pessoas em relação à meta prevista. Na prática, a expansão da banda larga no Brasil ocorre, historicamente, de forma privada por meio dos oligopólios das operadoras de telefonia. Esse modelo de negócios das empresas se deu através do acesso à internet pelo telefone celular em pacotes de serviço.
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Lan house consiste em um estabelecimento comercial onde os visitantes podem utilizar um computador individual para acesso à internet. Via de regra, o uso está condicionado ao pagamento por hora de acesso. Entre os anos de 2005 e 2008, período no qual os computadores e a banda larga tornaram-se mais acessíveis, a quantidade de usuários de lan houses aumentou bastante. Com a popularização das ferramentas de acesso, esses ambientes se tornaram menos frequentados e passaram a diversificar seus serviços, reforçando o oferecimento de fotocópias de documentos e impressões. Embora tenham perdido público, em países como o Brasil, de grande desigualdade de acesso, as lan houses ocupam ainda um lugar relevante na promoção da inclusão digital para pessoas com acesso restrito.
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Coloco aspas aqui pois "fora", neste caso, não significa em campos desconectados; as relações são engendradas pela tecnologia, e, dessa forma, não há dentro ou fora, online ou off-line. Trata-se, sim, de uma tentativa de marcar o campo circunscrito geograficamente.
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O chamado MSN consistia em um programa de troca de mensagens instantâneas que foi substituído, posteriormente, pelo Skype e pelas ferramentas mais atuais, vinculadas à agenda do telefone celular, como, por exemplo, o Whatsapp.
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Utilizo global entre aspas com intuito de reforçar o caráter expansivo da rede, no entanto, esta pesquisa se limita a compreender relações que se estabelecem entre uma rede de mulheres brasileiras que, portanto, comportam aspectos locais, mas que caracterizam, naquele contexto, as mulheres das classes populares do Brasil.
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O ProUni trata-se de um programa do governo federal, criado em 2004, pelo Ministério da Educação. O programa concede bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior. Para concorrer ao financiamento, o candidato deve comprovar renda bruta familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa. Para as bolsas parciais (50%), a renda bruta familiar deve ser de até três salários mínimos por pessoa.
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O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) foi um programa criado em 2001 pelo Ministério da Educação cujo objetivo era financiar a graduação na educação superior de estudantes matriculados em instituições privadas. O programa auxilia o estudante pagando a mensalidade do curso e o reembolso ao governo acontece depois da formatura, quando o estudante já está empregado.
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Dentre as profissões que apareciam entre pais e mães de minhas interlocutoras estão funções como: empregada doméstica, segurança, vendedor de caldo de cana, operário da indústria, enfermeiras e professoras e professores da educação infantil.
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Um exemplo dos discursos da "mulher poderosa", aquela bem sucedida profissionalmente, mas que também não deixa de se resolver na esfera afetiva e amorosa, era comum entre os livros de autoajuda direcionados a esse público e lidos pelas próprias interlocutoras de pesquisa. Dentre os títulos mais famosos, figuram: O que toda mulher inteligente deve saber (2011); Comer, rezar, amar (2008); Por que os homens amam as mulheres poderosas? (2009), etc.
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Podemos mencionar aqui a obra A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide, lançada em 2011 por Marcelo Neri, que foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de 2012 até 2014 e ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de 2013 e 2015. O intuito do livro é reforçar a ideia de que a melhoria das condições de vida dos pobres brasileiros geraria o surgimento de uma nova classe média no Brasil. Essas ideias de ascensão social, vinculadas à imagem de um sujeito que pode consumir, foi a tônica de discursos governamentais daquele contexto.
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Como produto cultural daquele contexto, podemos mencionar como exemplo a novela "Cheias de Charme", transmitida pela Rede Globo no horário das 19h, em 2012, cujo roteiro se pautava na vida das empreguetes, termo que mistura "empregada doméstica" com "piriguetes". Na trama, as três amigas montaram um grupo musical e ficaram famosas ao apresentar nas letras de música o cotidiano das mulheres dedicadas a cuidar da casa dos outros e a fazer faxina. A novela retratava a trama cotidiana que enredava os dilemas que essas mulheres enfrentavam, fundamentalmente, acerca de múltipla jornada de trabalho. É importante mencionar que as empreguetes, esforçadas em compor uma boa aparência refletida nos esmaltes coloridos e nos cabelos alisados, fazem sucesso com um vídeo divulgado na internet. A novela foi uma das primeiras a apresentar, em contexto brasileiro, a rede online como possibilidade de construção de celebridades instantâneas.
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É importante trazer à baila também que, seja com base em entrevistas, em conversas de acompanhamento ou em observações, a exposição de todo o material colhido em campo passou pelo consentimento dos sujeitos. De forma a considerar as audiências visíveis e invisíveis da rede, bem como seu aspecto de tornar o conteúdo facilmente persistente, localizável e replicável (Boyd, 2014BOYD, Danah. It's complicated: the social lives of networked teens. Londres, Yale University Press, 2014.), evitei utilizar trechos literais postados pelas interlocutoras em suas redes privadas.
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A internet via rádio funciona através das ondas de radiofrequência que carregam o sinal até o computador ou celular. Assim como o rádio comum, precisa de torres de transmissão e antenas para recepção do sinal. Já a internet disponibilizada por fibra óptica chega à casa dos usuários por meio da instalação de cabos que conduzem o sinal até o local onde será utilizado. Esta última garante melhor sinal e maior velocidade no acesso em relação à primeira.
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O termo gayfriendly é utilizado para definir espaços, instituições, marcas ou pessoas que são abertas, acolhedores ou se relacionam bem com a comunidade LGBTQIA+. No caso das festas frequentadas por Luana, ser gayfriendly significava que seriam espaços onde não corriam o risco de serem afetadas por algum tipo de violência ou discriminação.
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"onda"", aqui, aparece entre aspas, pois compreendemos que se trata de uma metáfora que permite ordenar e construir um fio lógico entre diferentes momentos e vertentes dos movimentos feministas. Trata-se de uma abstração didática que não dá conta de abarcar a diversidade de pautas, demandas e conflitos no interior de um mesmo momento histórico e contexto. Preferimos pensar em termos de uma forma rizomática, como aponta Sueli Gomes Costa (2009:11), pois pressupõe entender que esses movimentos podem estar "entrelaçados, mudar de rumo, seguir e não seguir em diferentes sentidos, podem mesmo retroceder".
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Na linguagem estabelecida na internet, utilizar palavras e frases em caixa alta diz respeito a tentativa de dar ênfase no que está sendo dito. A depender do contexto, pode indicar que a pessoa está falando alto ou gritando com o interlocutor ao qual se destina a mensagem.
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O termo Coaching indica uma atividade de formação pessoal em que um instrutor (coach) ajuda o seu cliente (coachee) a "evoluir" em alguma área da sua vida. Os discursos de coaching apresentam conteúdo motivacional e estão ligados a ambientes corporativos e de negócios, embora também existam modalidades de coaching que visam ao desenvolvimento pessoal nas mais variadas áreas da vida, incluindo os afetos e as relações amorosas. É importante mencionar que a prática do coaching não é, necessariamente, vinculada à formação acadêmica no âmbito da psicologia ou nele embasada; a atividade foi tão comumente mobilizada por digital influencers que conduziu à criação, como contraponto, de páginas que se dedicam a promover o chamado anti-coaching ou coaching do fracasso. O coaching se vincula à noção de um capitalismo de performance em que o indivíduo é capaz de formar a si mesmo, e o excesso de conteúdo motivacional e otimista sobre a vida e as emoções gerou, em rede, memes e discursos críticos que problematizam a atividade, assim mesmo como a falta de formação acadêmica e profissional de seus ministrantes e das pessoas envolvidas.
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Um exemplo de programa cujo conteúdo se destina a abordar resolução de problemas nas esferas familiar, afetiva e local é o Casos de Família. Um profissional da psicologia, bem como a plateia participam opinando e fazendo perguntas para as pessoas cujos casos estão sendo tratados no programa.
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A Revista Capricho foi lançada em 1952 pelo fundador da Editora Abril, Victor Civita, e era direcionada ao público feminino e jovem. Com circulação quinzenal, em formato pequeno, seu conteúdo inicial era composto por fotonovelas, na época chamadas de "Cinenovelas". Além da cinenovela, a revista apresentava histórias de amor desenhadas em quadrinhos. Em novembro de 1952, a revista passou a ser editada mensalmente e a abordar outros tópicos como: moda, beleza, comportamento, contos e variedades. No final da década de 1990, a marca Capricho investiu em outros produtos de consumo, como fragrâncias, maquiagens, material escolar, mochilas, lingerie e roupas. Nos anos 2000, a publicação passou a utilizar a internet como uma nova plataforma de interação com seus leitores.
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A construção de redes de interlocução sempre se mostrou fundamental no processo de desenvolvimento das reflexões de pesquisa. Gostaria de agradecer, para este texto em particular, as leituras atentas e generosas de Felipe Padilha e Simone Gomes.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
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Recebido
11 Out 2022 -
Aceito
23 Mar 2023