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Por uma epistemologia do ponto de vista feminista interseccional dissidente: reflexões a partir do processo de avaliação por pares do manuscrito “Da constituição e causalidade na pesquisa feminista nas Relações Internacionais”

A call for a dissident intersectional feminist standpoint epistemology: reflections from the peer review process of the manuscript “On constitution and causality in feminist research in International Relations”

Resumo

Os estudos sobre as interfaces entre a filosofia da ciência feminista e as Relações Internacionais são ainda escassos nas publicações acadêmicas no Brasil. O artigo “Da constituição e causalidade na pesquisa feminista nas Relações Internacionais”, publicado no presente número da revista Cadernos Pagu, se insere nessa temática ainda pouco abordada ao propor o debate ontológico fundado na noção de poderes causais do realismo filosófico crítico para analisar as articulações entre distintas perspectivas feministas nas RI. Neste texto, em consonância com o intuito desta seção, Bastidores da produção do conhecimento feminista, de responder à crescente demanda por ciência aberta, abordo o processo de avaliação por pares do manuscrito, do qual participei como avaliadora. Ainda no âmbito da filosofia da ciência, reflito sobre a avaliação por pares enquanto parte do processo de construção do conhecimento a partir da proposta de uma epistemologia do ponto de vista feminista interseccional dissidente.

Palavras-chave
Filosofia da ciência feminista; Relações Internacionais; Epistemologia do ponto de vista feminista interseccional dissidente; Avaliação por pares; Produção do conhecimento feminista

Abstract

Studies on the interfaces between feminist philosophy of science and International Relations are still scarce in academic publications in Brazil. The paper “On constitution and causality in feminist research in International Relations”, published in the current issue of the journal Cadernos Pagu, inserts in this little addressed theme by proposing the ontological debate based on the notion of causal powers of critical philosophical realism to analyse the articulations between different feminist perspectives in IR. In this text, in line with the aim of this Section Bastidores da produção do conhecimento feminista [Behind the scenes of the production of feminist knowledge] to respond to the growing demand for open science of this section, I discuss the peer review process of the manuscript, in which I participated as a reviewer. Still within the scope of the Philosophy of Science, I reflect on peer review as part of the process of knowledge construction, based on the proposal of a dissident intersectional feminist standpoint epistemology.

Keywords
Feminist Philosophy of Science; International Relations; Dissident intersectional standpoint feminist epistemology; Peer review; Feminist knowledge production

Introdução

O campo feminista é um campo vibrante e dinâmico de pesquisa e construção de conhecimento, que certamente tem muito a contribuir para o estudo das Relações Internacionais e para as ciências sociais e humanas de forma mais ampla. Enquanto um campo crítico e aberto, mostra-se permanentemente transformado pelos diálogos internos e externos que o afastam do dogmatismo e do fechamento em si, como demonstram os debates sobre o gênero travados e a pluralidade de vertentes que passam a integrá-lo crescentemente nas últimas décadas. Certamente essa abertura não acontece sem tensões – de fato, as pressupõe, algo que faz parte da própria dinâmica da construção do conhecimento feminista.

Indo além, o campo feminista, como destaca Margaret Rago, propõe uma nova relação entre teoria e prática ao entender seus agentes epistêmicos como inseridos no coração do mundo a partir de suas particularidades, e não isolados, isentos e imparciais. Surge assim uma percepção sobre a produção do conhecimento como um processo construído pela interação e pelo diálogo crítico entre indivíduos que contrastam seus diversos pontos de vista e alteram suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto. Com isso, segundo a autora, “reafirma-se a ideia de que o caminho se constrói caminhando e interagindo” (Rago, 1998RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana; GROSSI, Miriam (org.). Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis, Ed. Mulheres, 1998.:12).

Uma incursão profunda no campo feminista costuma passar pelo estudo e pela compreensão das ontologias e epistemologias que o constituem, em sua diversidade, considerando a pluralidade de vertentes que o integram e que lhe conferem um caráter distintivo de contestação aos entendimentos tradicionais androcêntricos sobre a ciência.

Sendo assim, minha inserção no campo tem sido marcada pelos estudos da filosofia da ciência feminista, que, além de basilares, se colocam como extremamente engajadores e estimulantes, embora sejam ainda pouco debatidos e publicados nas rodas acadêmicas brasileiras. Como apontava Rago ainda em fins dos anos 1990, “em geral, o próprio debate nos vem pronto, traduzido pelas publicações de autoras do Hemisfério Norte” (Rago, 1998RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana; GROSSI, Miriam (org.). Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis, Ed. Mulheres, 1998.:3). Ainda em suas palavras: “Há quem diga, aliás, que a questão interessa pouco ao ‘feminismo dos trópicos’, onde a urgência dos problemas e a necessidade de rápida interferência no social não deixariam tempo para maiores reflexões filosóficas” (Rago, 1998RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana; GROSSI, Miriam (org.). Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis, Ed. Mulheres, 1998.:3). De lá para cá, nesse sentido, pouca coisa mudou.

Em virtude disso, ter recebido o convite da Revista Cadernos Pagu para avaliar o manuscrito Da constituição e causalidade na pesquisa feminista nas Relações Internacionais por meio da avaliação por pares foi não apenas uma oportunidade de contribuir para uma revista de reconhecida importância e fundamental papel histórico na academia feminista brasileira como também de me engajar no debate e participar de um diálogo bastante instigante e frutífero sobre o tema proposto no trabalho.

Para além disso, no presente texto, pretendo convergir com os propósitos da seção Bastidores da produção do conhecimento feminista, da Cadernos Pagu, de atender as crescentes demandas contemporâneas por “ciência aberta” a partir de um formato autoral, assim como de expor a abertura e a divulgação científica propostas em seus métodos avaliativos, inaugurando uma nova prática de partilhas, impulsionando a transparência científica (Padovani; Simões; Feltrin, 2022PADOVANI, Natália Corazza; SIMÕES, Julian; FELTRIN, Rebeca. Bastidores da produção do conhecimento feminista, a nova seção da cadernos pagu. cadernos pagu (65), 2022 [ https://doi.org/10.1590/18094449202200650000 - acesso em 14 maio 2024].
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) e ampliando ainda mais seu impacto à ciência brasileira e ao diálogo internacional.

Com esse intuito, ainda sob a ótica da filosofia da ciência feminista, lanço uma reflexão ontológica e, principalmente, epistemológica sobre o processo de avaliação por pares do manuscrito, fundada em uma perspectiva do ponto de vista feminista interseccional dissidente. Por fim, com o objetivo de conferir, aos breves apontamentos aqui apresentados, uma dimensão prática e potencializar a contribuição pretendida, proponho a inserção na íntegra dos pareceres de avaliação emitidos por mim, assim como das Cartas de Resposta às Revisoras e Editoras apresentadas pela autora.

O ponto de vista feminista interseccional dissidente

Na tipologia de Jacquie True (2017)TRUE, Jacqui. Feminism and Gender Studies in International Relations Theory. Oxford Research Encyclopedia of International Studies, 30 nov. 2017 [ https://oxfordre.com/internationalstudies/view/10.1093/acrefore/9780190846626.001.0001/acrefore-9780190846626-e-46 - acesso em 29 mar. 2024].
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sobre as diferenças ontológicas nos estudos feministas de Relações Internacionais, sugerida e utilizada como base no manuscrito avaliado, me insiro na variação/perspectiva que se distancia de concepções binárias de gênero para explorar masculinidades e feminilidades plurais na política global, percebendo o gênero em suas articulações com outras categorias de opressão, como raça, etnicidade, nacionalidade, classe e sexualidade. Penso nas intersecções tanto em nível micro como macrossociológico e, de acordo com Collins (2000)COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. 2ed., New York and London, Routledge, 2000., Kergoat (2010)KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos (86), 2010, pp.93-103 [ https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005 - acesso em15 maio 2024].
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, e LugonesLUGONES, Maria. Toward a Decolonial Feminism. Hypatia, 25(4), 2010, pp.742-759 [ https://doi.org/10.1111/j.1527-2001. 2010.01137.x - acesso em 15 maio 2024].
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(2005), de forma entrelaçada, histórica, dinâmica e complexa, recusando a ideia de categorias fixas e separáveis e em posições estáveis de poder. Para além disso, parto do entendimento de que as intersecções inextrincáveis de gênero com outros eixos de opressão possuem status não apenas ontológico mas epistemológico, como abordei em publicação recente (Guimarães Reynaldo et al., 2023GUIMARÃES REYNALDO, Renata et al. Women of the Revolution and a Politics of Care: A Gendered Intersectional Approach on an Initiative to Address Socioenvironmental Problems in a Marginalized Community in Southern Brazil. Gender, Work & Organization, 30(6), 2023, pp.2130-2154 [ https://doi.org/10.1111/gwao.13054 - acesso em 15 maio 2024].
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), bastante inspirada nas formulações de Chandra Mohanty (2003)MOHANTY, Chandra T. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidarity. Durham, London, Duke University Press, 2003..

Abre-se caminho, assim, para uma perspectiva do ponto de vista capaz de pensar a reflexividade – entendida como a interação transformadora entre a/os sujeita/os envolvida/os e inserida/os no processo de pesquisa a partir de suas posições, seus lugares e suas motivações – em termos interseccionais. Nesse sentido, uma epistemologia do ponto de vista feminista interseccional, como aqui apresentada, ao questionar profundamente as articulações intrínsecas não apenas entre distintos eixos de opressão mas também entre saber e poder, denuncia a parcialidade de todas as formas de conhecimento; se preocupa com a não reprodução de opressões e subordinações; contesta as relações de poder entre Norte e Sul no interior do campo; e propõe a ruptura com as hierarquias que privilegiam matrizes teóricas de feministas hegemônicas do Norte Global.

Partindo desses entendimentos, centra-se no diálogo, na abertura, na horizontalidade, na construção de coalizões e solidariedades a partir das diferenças, sem invisibilizá-las, tendo como base ética o compromisso feminista dissidente com o enfrentamento das condições de opressão das mulheres em suas diversidades, posicionalidades e intersecções, considerando sua interconexão com as estruturas e relações sociais mais amplas.

A epistemologia do ponto de vista interseccional ora proposta se insere no que denomino ‘feminismos dissidentes’, entendidos como o conjunto de vertentes feministas de contestação tanto ao feminismo hegemônico e sua perspectiva universalizadora Ocidental quanto às articulações entre distintos eixos de opressão que conformam a matriz global de poder da ordem mundial contemporânea - destacadamente gênero, raça e classe.

Tal proposta se coaduna com o reconhecimento do ponto de vista feminista como um projeto em aberto, em acordo com o entendimento de Sandra Harding (2015)HARDING, Sandra. Objectivity and diversity: another logic of scientific research. Chicago/London, University of Chicago Press, 2015., inclusive para que feministas de distintas culturas encontrem ferramentas críticas em suas próprias tradições para conduzirem suas alternativas de enfrentamento a crenças profundamente arraigadas sobre as relações apropriadas entre ciência e sociedade, conhecimento e experiência.

Sendo assim, inserida nesta perspectiva epistemológica, me situo no campo feminista a partir dos contextos brasileiro e latino-americano, nos quais as intersecções entre distintas e simultâneas formas de opressão, antes mesmo de serem nomeadas, estavam presentes há muito tempo nas experiências sociais das mulheres, forçando-as a tomá-las em conta e fazer frente a elas nos níveis teóricos, práticos e políticos, como destaca Vigoya (2016)VIGOYA, Mara Viveros. La interseccionalidad: una aproximación situada a la dominación. Debate Feminista (52), 2016, pp.1-17 [ https://doi.org/10.1016/j.df.2016.09.005 - acesso em 15 maio 2024].
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Assim, marcada pelo meu lugar como uma acadêmica brasileira e latino-americana posicionada no campo feminista dissidente, busco a valorização epistêmica de suas perspectivas, ao mesmo tempo em que questiono os fundamentos eurocêntricos do campo.

Dado o exposto, com base nos pressupostos epistemológicos apresentados, na sequência reflito sobre a avaliação por pares como parte do processo de construção do conhecimento feminista.

Sobre a publicação em periódicos e o processo de avaliação por pares

O reconhecimento das melhores pesquisas acadêmicas passa frequentemente pela publicação de artigos em periódicos reconhecidos e bem classificados, como os Cadernos Pagu, por meio do crivo do processo de avaliação por pares. Tal processo, se conduzido de forma hierárquica, fechada e não dialógica, tem o potencial de obstruir a prática coletiva de construção do conhecimento e não raro contribui para a perpetuação de violências epistêmicas salvaguardadas pela anonimidade.

Neste texto, apresento uma breve reflexão epistemológica sobre o processo de avaliação por pares e sobre a relação entre avaliadora e autora, no campo feminista e para além dele, a partir das complexidades e posicionalidades necessárias a um feminismo situado na academia brasileira, latino-americana, do Sul – global e metafórico.

Para isso, de forma reflexiva e situada, com fundamento na ideia de uma perspectiva do ponto de vista intersecional dissidente, como já mencionado, ressalto a importância de um processo de avaliação por pares atento às relações de poder que se estabelecem na atribuição dos papéis de quem irá avaliar e quem será avaliada, e que também seja capaz de propor avanços nas discussões e ponderações a partir das diferenças, sem invisibilizá-las, negá-las ou invalidá-las, mas partindo delas para o aprofundamento da reflexão conjunta. Uma avaliação por pares dialógica e não hierárquica, embora não isenta de tensões – como expressão do próprio campo –, garante a abertura e o caráter autorreflexivo dos feminismos em suas relações tanto internas quanto nas interfaces com outras áreas de conhecimento.

Para além disso, um processo de avaliação por pares situado na academia do Sul, brasileira e latino-americana, precisa reconhecer a importância das discussões e reflexões ainda pouco conduzidas em nossos contextos, além de visibilizar e validar os conhecimentos produzidos por nós, a partir de nossas diversidades e tensões, sem deixar que as diferenças e posicionalidades nos interditem enquanto pensadoras feministas. Como resultado, a valorização de teorias e reflexões contextualizadas que levem em conta nossas complexidades e contradições terão maior potencial para cumprir o compromisso ético feminista dissidente de enfrentamento das condições interseccionadas de opressão das mulheres. Ganha-se assim também o potencial de subverter a tendência dominante de se replicar teorias produzidas no Norte Global e de entender suas autoras como as teóricas referentes ou maiores produtoras de conhecimento válido e qualificado, para romper com o corrente fluxo de teorias do Norte para o Sul – o que se observa marcadamente nas teorias feministas de RI.

Nesse sentido, cumpre ressaltar que a Revista Cadernos Pagu, com base no entendimento de que a produção do conhecimento, da qual faz parte a emissão de pareceres de avaliação, acontece inescapavelmente por meio de diálogos coletivos e debates teórico-analíticos, propõe, na presente subseção Comentários críticos da seção Bastidores, a visibilização das partilhas entre autoras e pareceristas de suas posições, perspectivas e abordagens. Com isso, possibilita-se o reforço ao caráter dialógico e situado da produção do conhecimento científico (Padovani; Simões; Feltrin, 2022).

Além disso, em suas instruções para a avaliação por pares, a revista destaca a importância de que os artigos submetidos e avaliados apresentem abordagens articuladas com os contextos sociais e as relações políticas nos quais se inserem. Além disso, orienta o detalhamento dos comentários e a sugestão tanto de modificações específicas quanto de referências bibliográficas, com o objetivo de aprofundar as reflexões e ampliar a qualidade dos trabalhos e, com isso, fortalecer os estudos feministas e de gênero no país e em seus diálogos internacionais. Incentiva ainda a ampliação do leque de referências teóricas para os estudos de gênero por meio da citação de autoras e autores para além do eixo anglo-saxônico, demonstrando o intuito de impulsionar uma produção própria, autóctone, situada, localizada, contextualizada a partir de nossas realidades concretas e, simultaneamente, de enfrentar a primazia de teóricas e teóricos do Norte Global nos estudos feministas e de gênero.

Com base nessas orientações, e conduzido a partir da epistemologia do ponto de vista interseccional apresentada, o processo de avaliação ora tratado foi atravessado pelas tensões entre distintas vertentes feministas, não apenas na discussão sobre a reflexão ontológica conduzida no manuscrito mas também, e de forma reflexiva, na própria relação entre avaliadora e autora que ela revela, sem que tais tensões – repisa-se, constitutivas do próprio campo feminista – tenham impossibilitado o diálogo ou a publicação do artigo.

No transcurso do caminho de avaliação em suas distintas etapas, as trocas foram profundas, instigantes e baseadas na horizontalidade e na abertura dialógica. Como resultado, foram intensificadas tanto a presença de referências feministas dissidentes – destacadamente latino-americanas e brasileiras – quanto a contribuição do inovador debate proposto pela autora. Além disso, todo o processo de avaliação foi pautado pelo comprometimento com o aperfeiçoamento do artigo e com sua publicação enquanto efetiva produção e divulgação de conhecimento feminista sobre filosofia da ciência no Brasil, reforçando o campo feminista nas Relações Internacionais e mais amplamente. Assim, a avaliação por pares se mostrou impulsionada pela construção coletiva de conhecimento feminista e pelo reconhecimento não invalidador das diferenças entre perspectivas para reconhecer a importância de uma formulação teórica própria, abrindo caminhos para discussões futuras e para o aprofundamento da reflexão sem suplantar contradições.

Considerações finais

Dado o exposto, ressalto a contribuição que o campo feminista dissidente pode legar às reflexões sobre a construção do conhecimento científico por meio do olhar epistemológico ora proposto para a avaliação por pares enquanto parte do processo de construção do conhecimento.

Faço aqui ainda a observação de que, apesar das bases coletivistas dos feminismos dissidentes, não raro a escrita acadêmica consiste em um processo solitário. Em virtude disso, a avaliação por pares, sob essa ótica, acaba se tornando uma oportunidade valiosa de condução de uma prática acadêmica conjunta e compartilhada, além de permanentemente autorreflexiva, autodesconstrutiva e reconstrutiva.

Uma avaliação por pares fundada em uma epistemologia feminista dissidente pode se tornar, portanto, mais do que uma validação da acurácia teórica, do rigor teórico ou da qualidade da reflexão conduzida, mas um verdadeiro processo de articulação entre conhecimento teórico e prático para a construção de conhecimento a partir de bases coletivas, plurais, em propósito de aprofundamento reflexivo a partir das diferenças teóricas, ontológicas, epistemológicas, sem interditá-las.

Pode, assim, deixar de servir como um “filtro”, que condiciona o conhecimento válido à concordância com o entendimento de quem chegou à posição de avaliar, para se tornar um processo em que autoras e autores, assim como avaliadoras e avaliadores, se disponibilizem, o quanto possível, para uma construção dialógica, aberta, horizontal, transformadora, situada e potencializadora, capaz de contribuir para a construção de um campo feminista dinâmico, vibrante e comprometido com o enfrentamento de opressões interseccionadas.

Caminhando para o final desta reflexão, passo a um segundo momento da proposta aqui elaborada. Em congruência com os propósitos da seção Bastidores da Cadernos Pagu, nada me pareceu um aporte mais direto e honesto à ciência aberta do que apresentar na sua íntegra os pareceres de avaliação emitidos por mim em duas rodadas de avaliação, assim como as Cartas às Revisoras e Editoras, que foram escritas pela autora em resposta a cada um deles.

Acredito que assim, ao dar transparência ao processo de construção de avaliação por pares, seja possível visibilizar e tornar tangível o potencial de contribuição que o campo feminista, sob uma ótica dissidente, interseccional e posicionada, pode legar às RI e às Ciências Sociais e Humanas de forma mais ampla. Espero, com isso, poder agregar aos apontamentos epistemológicos iniciais aqui apresentados, em especial no que se refere à postura não hierárquica e posicionada de aprendizado capaz de resultar em mudanças e ganhos substantivos na pesquisa a ser publicada.

Primeiro parecer de avaliação

Agradeço a oportunidade de ler e dialogar com o artigo "Da constituição e causalidade na pesquisa feminista nas Relações Internacionais", que traz uma temática relevante, inovadora e ainda pouco abordada na academia brasileira, ao refletir sobre as contribuições das análises feministas para a disciplina de Relações Internacionais com base em uma articulação desses dois campos de conhecimento com a filosofia da ciência. Espero que os comentários abaixo possam contribuir para as reflexões e revisões no processo de construção da versão final do texto.

No primeiro parágrafo, ao mencionar a produção acadêmica que considera outros corpos feminizados e subalternizados, considero importante inserir como exemplificação as contribuições de feministas dissidentes, ou do Sul, destacadamente latino-americanas e brasileiras.

No segundo parágrafo, ao mencionar a pluralização das formas de produção de conhecimento pelas feministas, afirma-se que se transcendeu “o ponto de vista das mulheres, para problematizar as várias interseccionalidades do gênero com outras modalidades de opressão e subalternização (Ballestrin, 2021; Gill; Pires, 2019; Sjoberg, 2021; Weber, 2015). Hoje fala-se de epistemologias decoloniais e pós-coloniais, queer, liberais, empiricistas, do ponto de vista, pós-modernas, interseccionais, institucionais entre várias outras possibilidades. Como resultado desse pluralismo epistemológico e dos condicionamentos da produção de conhecimento característicos de cada epistemologia, coexistem diferentes abordagens metodológicas para investigar problemáticas de interesse das feministas das RI, sejam elas de natureza quantitativa (Caprioli, 2004; Hudson et al., 2014; Reiter, 2015), sejam de natureza qualitativa e hermenêutica (Ackerly et al., 2006; Tickner, 2005)”. Nesse trecho, seria necessário explicar de que forma a problematização das interseccionalidades transcende o ponto de vista das mulheres. Quais seriam as distinções ou relações entre a perspectiva do ponto de vista das mulheres e as perspectivas interseccionais? De que forma a perspectiva do ponto de vista das mulheres foi transcendida pelas perspectivas interseccionais? Quais seriam as relações ou distinções entre elas? Considero também importante, ao lado de cada epistemologia mencionada, citar referências centrais, como forma também de adicionar, ao quadro de referências, mais contribuições dos feminismos dissidentes.

Na sequência, menciona-se um pluralismo epistemológico que resultaria na coexistência de diferentes abordagens metodológicas. Seria importante desenvolver mais esse ponto referente à relação entre epistemologia e metodologia, em especial relacionando enfoques qualitativos e quantitativos às suas bases epistemológicas.

Ao contrário do que se apresenta como argumento do artigo na Introdução, não me parece que superar a aparente dicotomia entre causalidade e constitutividade, ao entender a explicação como simultaneamente causal e constitutiva, seria suficiente para compreender, tampouco pacificar, as disputas epistemológicas e metodológicas nos feminismos das RI. Nesse sentido, deixo os seguintes questionamentos: verificar a ligação entre constituição e causalidade por meio da identificação das causalidades nas estruturas seria suficiente para afirmar que existe uma ontologia comum e superar o cisma epistemológico no campo feminista? Seria de fato possível superar ou pacificar disputas entre perspectivas epistemológicas e suas respectivas ontologias em vertentes tão distintas quanto, por exemplo, o feminismo indígena e decolonial, de um lado, e liberal, de outro?

Na página 2, ao se mencionar alguns pontos gerais sobre o que se denomina 'epistemologias críticas' e 'epistemologias empiristas', afirma-se que "essas diferenças ontológicas, epistemológicas e metodológicas não implicam uma incompatibilidade, mas tão somente a necessidade de reconfigurar o debate para reconhecer as contribuições de cada tradição feminista na disciplina para a geração de explicações". O argumento de que não existe incompatibilidade entre essas perspectivas, no entanto, não é devidamente embasado e aprofundado no texto. Também seria necessário esclarecer melhor a relação entre as perspectivas epistemológicas, metodológicas e ontológicas no campo.

De modo geral, a Introdução apresenta uma apresentação compreensiva do conteúdo e da estrutura do texto. Precisa, no entanto, apresentar a metodologia adotada e clarificar o objetivo do artigo.

Para conduzir a reflexão proposta, a seção Constituição e causalidade: entre a filosofia da ciência e as RI precisa apresentar, ainda que de forma breve, os mencionados debates teórico-metodológicos que marcam as Relações Internacionais, bem como suas bases epistemológicas e ontológicas, articulando-os com a discussão sobre as explicações causais e constitutivas no âmbito da filosofia da ciência. Seria também bastante elucidativo, a partir desse quadro, relacionar a dicotomia entre causalidade X constituição com dicotomias equivalentes, como as já apresentadas explicação X compreensão, empirista X hermenêutica, e outras bem mais debatidas no campo das RI, como positivista X pós-positivista, racionalista X reflexivista.

Enfrentar o debate ontológico vai além de desafiar a dicotomia causalidade X constituição ou de refletir sobre o enfoque dos estudos no nível individual, em agência ou estrutura, como parece sugerir o texto. Torna-se fundamental, para a análise desenvolvida, o entendimento das ontologias e epistemologias subjacentes às perspectivas feministas empiristas e hermenêuticas apresentadas. Nesse sentido, para atingir o objetivo pretendido, seria necessário lidar fundamentalmente com as tensões ontológicas entre percepções tão distintas quanto o perspectivismo decolonial e o empirismo feminista, para então analisar a possibilidade de superar eventuais incompatibilidades e encontrar uma base ontológica comum – caso seja uma busca possível.

As três diferenças ontológicas que informam as várias vertentes feministas apresentadas por Jacqui True apresentam um bom ponto de partida para essa reflexão, mas precisam ser melhor desenvolvidas e explicadas para então servirem como base para a discussão sobre a possibilidade ou impossibilidade de se compatibilizar as distintas ontologias para superar o argumento da incomensurabilidade.

Carta às Editoras e Revisoras

Prezadas Editoras,

Primeiramente, gostaria de agradecer pela oportunidade não só de receber comentários tão valiosos sobre meu artigo como também pela possibilidade de reapresentá-lo com base nas sugestões das revisoras anônimas. Entendo que o feedback geral, apesar da recomendação por revisões mais profundas, centra-se na necessidade de polir determinados argumentos, tornando-os mais claros e representativos da defesa que pretendo fazer.

Nessa nova versão, atendi às principais demandas das revisoras (as quais detalho com mais vagar na sequência desta carta), quais sejam: 1. O estabelecimento de uma pergunta de partida e a especificação da metodologia filosófica para respondê-la; 2. O enquadramento do debate ontológico a partir da proposta de Jacqui True (2017)TRUE, Jacqui. Feminism and Gender Studies in International Relations Theory. Oxford Research Encyclopedia of International Studies, 30 nov. 2017 [ https://oxfordre.com/internationalstudies/view/10.1093/acrefore/9780190846626.001.0001/acrefore-9780190846626-e-46 - acesso em 29 mar. 2024].
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, perfazendo o debate epistemológico e metodológico a partir das implicações metodológicas; 3. A centralização da contribuição na articulação entre ontologias de construção social e ontologia da explicação por meio da concepção de poderes causais. Essas intervenções atendem ao desiderato de reposicionar o debate filosófico das explicações constitutivas e causais na pesquisa feminista, sublinhando como elas estão interligadas de maneiras que não se subsumem aos cismas epistemológicos e metodológicos. Na verdade, ao invocar a ideia de poderes causais, um movimento que vem sendo feito na literatura de metateoria fundada no realismo crítico de Roy Bhaskar, enfatizo a inter-relação entre constituição e causalidade, as quais, a meu ver, são indissociáveis nas análises feministas. Demonstro, outrossim, que as feministas de diferentes vertentes compartilham entendimentos semelhantes não somente a respeito do tema da constituição-causalidade como também da ontologia da construção social. Avanço esse argumento e o aprofundo, vez que, na versão anterior, ele escapou a um detalhamento mais robusto.

Evidentemente, por motivos de espaço, limitei-me a inserir referências e notas de rodapé em temas que não eram centrais para o meu argumento, mas que, conforme solicitado pelas revisoras, contribuem para situar a discussão para leitoras fora da disciplina de Relações Internacionais. Ademais, mantenho anonimizadas as autorreferências nas quais discuti, com mais vagar, questões das teorias feministas nas RI e seu embate com o mainstream; e as disputas epistemológicas e metodológicas internas, que criam cismas incompatíveis com a prática de pesquisa feminista.

No mais, espero que essa nova versão atenda às expectativas não só das revisoras mas, sobretudo, das editoras. A Cadernos Pagu é uma revista de alto prestígio e qualidade, e espero corresponder às expectativas.

Cordialmente,

A Autora

Revisora #1

Antes de tudo, gostaria de agradecer pela leitura cuidadosa e parcimoniosa do texto. Os questionamentos suscitados em sua avaliação foram de extrema relevância para a composição dessa nova versão do texto. No que segue, comentarei os pontos centrais das modificações realizadas, argumentando sempre que necessário. Divido-os em comentários gerais e comentários específicos.

Comentários gerais:

Incorporei sua sugestão de utilizar a proposta de Jacqui True (2017)TRUE, Jacqui. Feminism and Gender Studies in International Relations Theory. Oxford Research Encyclopedia of International Studies, 30 nov. 2017 [ https://oxfordre.com/internationalstudies/view/10.1093/acrefore/9780190846626.001.0001/acrefore-9780190846626-e-46 - acesso em 29 mar. 2024].
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das três visões de ontologia dos feminismos nas RI para reorganizar a escrita do texto e minimizar discussões paralelas que, a despeito de interessantes, não caberiam, dada a limitação de espaço. Nesse sentido, optei por eliminar a seção que resgatava a narrativa sobre epistemologias e metodologias feministas nas RI e incorporei os pontos centrais na seção sobre ontologias feministas nas RI. Utilizando True, destaquei como ontologias, epistemologias e metodologias se interligam e aproveitei a visão da autora para contrastá-la com outras interpretações sobre os feminismos nas RI. Chamei a atenção para como as feministas empiristas não se veem distantes das ontologias utilizadas pelas feministas críticas, principalmente no que tange à ideia de construção social. Isso me permitiu avançar com mais vagar na seção que visa discutir as ontologias feministas vis-à-vis as explicações constitutiva e causal, aprofundando a ideia de poderes causais.

Cabe destacar que a discussão a que me proponho está centrada nas ontologias da explicação que se valem da concepção de poderes causais e em como elas se manifestam na análise feminista. Traduzi esse objetivo na forma de uma pergunta de pesquisa apresentada nos parágrafos finais da Introdução, com vistas a facilitar não só o entendimento da leitora acerca do que pretende o artigo como também a polir questões metodológicas e de argumentação.

Comentários específicos:

Interseccionalidade e transcendência do ponto de vista

A versão inicial do texto continha uma informação que causava confusão quanto ao seu significado. Quando me referi ao ponto de vista das mulheres e sua relação com a interseccionalidade, minha ideia inicial foi trazer a ideia de complexidade das interações do gênero com outras clivagens sociais na produção de novas modalidades de opressão e subalternização que escapam ao enfoque exclusivo no gênero. O uso da palavra ‘transcender’ implicou uma rota que não era meu percurso original: na verdade, ela implicou uma discussão que segue pela linha dos debates entre Nancy Hartsock (1997) e Susan Hekman (1997) na revista Signs. Embora seja algo interessante, não me parece que haja lugar no texto. Optei por modificar a escrita de modo a deixá-la clara, qual seja, enfocar na problematização do gênero frente às interseccionalidades com raça, classe, colonialismo, sexualidade, idade, status quo. Note que introduzi referências tanto da literatura interseccional como pós-colonial latino-americana e africana (ver Ossome, 2020; Yacob-Haliso, 2018).

Pluralismo epistemológico e escolhas metodológicas

Como mencionado nos comentários gerais, optei por condensar o resgate das trajetórias epistemológicas e metodológicas dos feminismos nas RI a partir da discussão ontológica proposta por True (2017)TRUE, Jacqui. Feminism and Gender Studies in International Relations Theory. Oxford Research Encyclopedia of International Studies, 30 nov. 2017 [ https://oxfordre.com/internationalstudies/view/10.1093/acrefore/9780190846626.001.0001/acrefore-9780190846626-e-46 - acesso em 29 mar. 2024].
https://oxfordre.com/internationalstudie...
. Essa foi uma necessidade dados os constrangimentos de tamanho do texto. Ademais, não houve prejuízo, tendo em vista que a principal preocupação é lidar com as ontologias feministas vis-à-vis a discussão sobre explicação constitutiva e causal, tema esse que foi extensivamente apresentado na seção sobre os pressupostos filosóficos da explicação nas RI.

Pacificação das disputas epistemológicas e metodológicas

Concordo com sua leitura de que, do modo como o artigo se apresentava na versão anterior, o objetivo de pacificar disputas epistemológicas e metodológicas soava, no mínimo, ingênuo. Ademais, reconheço que essa foi uma forma inadequada de apresentar meu objetivo central: tratar das ontologias feministas e da explicação. A reflexão ontológica a que me proponho permite ver os pontos de contato entre as diferentes epistemologias e metodologias adotadas pelas feministas em RI, principalmente quando se levam em conta os léxicos da construção social do gênero, do seu caráter de efeitos materiais e simbólicos, da sua natureza discursiva e do seu elemento relacional. Ao discutir essas ontologias frente às concepções de explicação, pretendo demonstrar como não há impedimentos filosóficos à conciliação entre diferentes perspectivas de mobilizar as ontologias feministas e construir explicações. Advogo, ainda, que constituição e causalidade estão interconectadas na pesquisa feminista, algo que é reconhecido tanto por feministas críticas como empiristas.

Porém, o desafio de “pacificação” depende, sobremaneira, das próprias feministas como comunidade epistêmica. Hoje, é reconhecido que as epistemologias críticas e as metodologias de matriz hermenêutica assumem lugar de proeminência nas RI Feministas (Hudson et al., 2014; Reiter, 2015; Tickner, 1997; 2005), inclusive no Brasil (Autora). A questão é que o enfoque nessas diferenças acaba por mascarar os empreendimentos explicativos das feministas, nos quais se notam pontos importantes de convergência. Mais ainda: eles desafiam o cânone na medida em que rompem com a dicotomia constituição vs. causalidade e estabelecem, em seu lugar, a ideia de constituição e causalidade. Isso por si só significa uma virada significativa na maneira como a pesquisa científica em RI é conduzida, principalmente em um momento em que o apelo para modelos rígidos de causalidade acaba por eliminar elementos estruturais e contextuais das construções sociais, das ideias, dos discursos e das normas.

Tensões entre feminismos

As tensões entre feminismos se dão por diferentes razões ontológicas, epistemológicas e metodológicas. No campo da ontologia, porém, há mínimos comuns entre perspectivas aparentemente opostas, como os feminismos decoloniais e empiristas, nomeadamente no que tange ao reconhecimento do gênero como construção social. Evidentemente, isso não resolve tensões centradas na colonialidade do poder e dos projetos epistemológicos do Ocidente, mas não creio que seja esse o problema dos feminismos, dado que a virada empirista não significou uma preferência por seus modos de conceber e produzir conhecimento. Como apontado anteriormente, os feminismos nas RI, a níveis nacional e internacional, são caracterizados por uma predominância das abordagens críticas, o que forçou as feministas empiristas a reconsiderarem a maneira como incorporam o gênero em suas pesquisas – daí a asserção de Caprioli (2004) de que qualquer indicador de gênero precisa levar em consideração as condições sociais de construção do próprio gênero.

Porém, mais importante para a discussão em tela, e considerando a especificação do problema de pesquisa em torno da questão da explicação, a possibilidade de pensar a explicação feminista como constitutiva e causal não proíbe a convergência, ao menos nessas ontologias. Outrossim, o próprio recurso às linguagens que envolvem mecanismos causais, construções sociais e poderes causais por feministas críticas e empiristas denotam um entendimento da explicação como constitutiva e causal. Em contrapartida, uma tentativa de unificação ontológica em torno de um denominador único sobre o significado do gênero na pesquisa feminista é uma empreitada fadada ao fracasso – vide a tentativa de Keohane (1989) de estabelecer a epistemologia do ponto de vista como a epistemologia mais adequada para os feminismos, dada a sua capacidade de, segundo a leitura do autor, subsumir-se ao modelo de produção de conhecimento do mainstream (entendido nos moldes da obra de KKV). Entendo que a pluralidade de ontologias permite a realização dos diversos projetos feministas e que esses projetos, como Enloe e Sjoberg apontam, caracterizam-se justamente por combinar, de maneiras criativas e engenhosas, explicações causais e constitutivas, revelando, assim, como as hierarquias de gênero estruturam as sociedades e produzem efeitos dos mais diversos, inclusive na dimensão internacional.

Questões menores:

  1. Os termos escritos erroneamente foram devidamente corrigidos;

  2. A frase baseada na referência de Ylikoski (2017:34-35) foi reescrita, esclarecendo que a parte final da oração se refere a explicações constitutivas;

  3. Incluíram-se referências para cada uma das epistemologias feministas elencadas, visando prover a leitora com caminhos para aprofundar discussões específicas;

  4. Apresentei brevemente, por meio de duas notas de rodapé, a trajetória dos grandes debates teóricos dos binários positivista vs. pós-positivista, racionalista vs. reflexivista.

Revisora #2

Primeiramente, gostaria de agradecer pelos feedbacks fornecidos e pelas referências indicadas para a discussão sobre contrafactuais.

De fato, o texto carecia de uma pergunta de pesquisa que sinalizasse do que se trata a discussão e que orientasse o debate que transcorre nas seções posteriores à Introdução. Especifiquei essa pergunta em um formato que esclarece não só a centralidade do debate sobre a ontologia da explicação como também enfatiza a dimensão filosófica do trabalho. Dessa forma, situei a metodologia filosófica alicerçada nas discussões de filosofia da ciência como instrumental para conduzir minha argumentação.

Quanto à discussão de contrafactuais, incluí em formato de nota de rodapé uma breve explicação do que se trata essa discussão na atualidade, tanto nas RI como na filosofia da ciência (ver Woodward, 2003). Como não se tratava de um tema central à discussão, e considerando ainda as limitações de tamanho do texto, optei por esse caminho.

Espero que, com essas modificações, o texto atenda às suas expectativas. Mais uma vez, agradeço pelo tempo devotado e pelo feedback.

Segundo parecer de avaliação

Parabenizo a autora pelos substanciais avanços na versão revisada do artigo e agradeço a oportunidade de aprofundar o diálogo e as reflexões a partir dele. O texto tem potencial para uma discussão bastante relevante e, ainda em grande medida, pouco enfrentada na academia brasileira, para a qual espero contribuir com os comentários abaixo.

O texto está muito bem escrito e adequadamente construído em termos gramaticais e ortográficos. Sugere-se, no entanto, uma revisão final de texto para corrigir pequenos detalhes – como o uso da contração "numa" – e assim adequá-lo às normas formais da língua portuguesa. Ademais, nos aspectos referentes ao conteúdo, mais adiante, sugere-se a inclusão de algumas explicações e conceitos para aprimorar sua clareza, coerência e objetividade.

No Resumo, chamo a atenção para a necessidade de apontar os resultados alcançados, seguindo as diretrizes da revista, assim como de rever a afirmação geral de que as epistemologias feministas críticas apostam em abordagens hermenêuticas para analisar os fenômenos internacionais (nesse sentido, ver Kurki; White, 2013:23).

Na sequência, apresento questões para revisão ao longo do artigo:

  1. Segundo a Carta às Editoras e Revisoras, a “articulação entre ontologias de construção social e ontologia da explicação por meio da concepção de poderes causais” é central para a reflexão proposta; contudo, não aparece claramente mencionada, conceituada ou devidamente explicada no texto, o que se mostra fundamental para atingir o objetivo do trabalho. Penso que as explicações apresentadas de modo geral na Carta são essenciais e precisariam constar no artigo para elucidar seus fundamentos e sua proposta.

  2. Embora sejam mencionadas brevemente no parágrafo anterior à conclusão, as noções de ‘ontologia da explicação’ e de ‘poderes causais’ precisam ser antecipadas, melhor definidas e mais desenvolvidas no texto para esclarecer a relação entre ontologia e epistemologia-metodologia proposta, assim como seus fundamentos teóricos. Surgem, a partir deste ponto, algumas questões: Qual a relação entre ontologia da explicação e epistemologia-metodologia? Não seria o debate apresentado na seção Constituição e causalidade: entre a filosofia da ciência e as RI um debate epistemológico? O argumento seria a favor de dar um caráter ontológico à causação e à primazia a uma certa concepção de ontologia (como faz Kurki, por exemplo, baseada no realismo filosófico)? Essas são questões fundamentais a serem tratadas mais detidamente na argumentação.

  3. Na Introdução, a autora apresentou o problema de pesquisa e fez uma breve menção à metodologia. O problema, no entanto, já apresenta na pergunta pressupostos que antecipam os resultados. Uma sugestão seria reformulá-lo pensando no questionamento que precedeu a formulação proposta. Quanto ao quadro metodológico, precisa ser melhor definido para apresentar, já no início do texto, os pressupostos epistemológicos, metodológicos (abordagem e o(s) método(s) no qual se baseia) e teóricos do artigo.

  4. Na menção às três formas de diferença ontológica com base no entendimento de Jacquie True, a terceira categoria apresentada parece divergir da proposta da autora, que trata, nesse ponto específico, das diferenças ontológicas entre a construção e reprodução do gênero por meio de estruturas materiais ou por meio de processos discursivos. Nesse sentido, importante rever também o parágrafo sobre a terceira ontologia de True na página 7 – a qual acaba sendo abordada no início do parágrafo seguinte.

  5. Também na página 7, colonialismo e capitalismo são colocados em equivalência com gênero, raça, classe e sexualidade. Em que se funda essa equivalência? Qual a relação entre capitalismo e classe? Qual a relação entre colonialismo, raça (e nacionalidade)?

  6. Na página 8, sugiro explicar melhor a afirmação de que a ontologia do gênero “se subordina às preocupações de epistemologia e metodologia”.

  7. Penso que seja também necessário aprofundar e fundamentar no texto o argumento de que existe uma ontologia da explicação que une as diferentes perspectivas feministas em RI, no qual se fundamenta a proposta de superação da divisão entre explicações constitutivas e causais – superação essa que parece residir justamente no entendimento das noções de poderes causais e, possivelmente, de causação como ontologia, com base no realismo filosófico. A partir disso, a noção de causalidade relacionada à ideia de constituição precisa ser melhor desenvolvida no sentido de explicar de que forma a proposta do realismo filosófico tomada como base pretende responder a questões trazidas pelas distintas concepções ontológicas no campo feminista. Esse aprofundamento na reflexão se faz necessário especialmente considerando as distintas ontologias de perspectivas, como as pós-estruturalistas, neomarxistas (Kurki avança a reflexão nesse sentido sem enfoque no campo feminista) e principalmente – o que me parece ser o ponto de maior tensão – as decoloniais e seu profundo questionamento à ciência moderna Ocidental, à colonialidade do saber e ao eurocentrismo da filosofia Ocidental, com base na existência de distintos mundos com distintas ontologias (nesse sentido, ver a obra de Maria Lugones).

  8. A afirmação de que a ontologia de construção social é comum às análises feministas não aparece devidamente fundamentada no texto, o que precisaria enfrentar mais profundamente as distinções ontológicas entre as perspectivas feministas para argumentar mais consistentemente o que seria esse ontos compartilhado. Existe de fato uma ontologia compartilhada ou o artigo parte da ontologia do realismo filosófico como proposta? O posicionamento ontológico, epistemológico e teórico da autora na pesquisa parece algo fundamental a ser explicitado.

  9. Com base nos pontos 7 e 8 supracitados, a definição de ‘ontologia da explicação’ anteriormente sugerida deve ser acompanhada e relacionada à definição de ‘ontologia de construção social’. Nesse sentido, a ‘ontologia de construção social’ que a autora argumenta ser compartilhada no campo feminista equivale à ‘ontologia da explicação’ que une as distintas perspectivas feministas? Ou seriam concepções e argumentos diferentes?

Parabenizo mais uma vez a autora pelos avanços na segunda versão do texto e espero que minhas considerações possam contribuir para uma maior clareza e articulação dos argumentos na condução da discussão proposta, com o intuito também de ampliar o alcance e impacto do artigo nos campos feministas e de Relações Internacionais.

Carta às Editoras e Revisoras

Estimadas Editoras,

Mais uma vez, agradeço-lhes por todo o esforço nesse processo de avaliação. Recebi com muito entusiasmo os comentários das revisoras e reconheço que eles foram fundamentais não só para esclarecer pontos que mereciam maior reflexão teórica como também para me encorajar a investir no debate sobre realismo crítico, que ainda se encontra desconhecido na literatura de Relações Internacionais no Brasil.

Nessa nova versão, as mudanças mais substantivas envolvem, precisamente, um engajamento mais aprofundado com a noção de poderes causais tal como desenvolvida no realismo crítico em RI. Isso me permitiu argumentar de modo mais firme o problema ontológico da explicação, que é o centro analítico do artigo. Ademais, enfatizei essa preocupação e esse objetivo na Introdução e em outras partes do texto, evitando que objetivos paralelos estivessem em concorrência – nomeadamente, a discussão da ontologia da construção social (que elaboro com mais vagar em outro artigo) e da ontologia da explicação (que é o meu interesse nesse texto).

No resto desta carta, discuto com mais vagar os pontos suscitados pela Revisora 2. Em meu entendimento, as modificações sugeridas aprofundaram os debates, conferindo-lhes mais densidade, tal como requerido pela Cadernos Pagu. Espero que essa nova versão possa ser aceita para publicação.

Cordialmente,

A Autora.

Respostas aos comentários da Revisora 2

Comentário geral

Primeiramente, gostaria de agradecer pela leitura atenta e cirúrgica do texto. Sua revisão não só contribuiu para o aprofundamento de questões que seguiam pendentes no texto como também – e mais importante – encorajaram-me a investir no debate do realismo filosófico. Praticamente todas as suas recomendações foram incluídas no texto (sinalizadas em amarelo nessa nova versão) na medida do que permitia o limite de palavras da Cadernos Pagu. Algumas discussões se sobrepuseram, nomeadamente aquelas que tangenciavam temas muito próximos, como, por exemplo, as ontologias da construção social. Abaixo, seguem as respostas para seus pontos específicos.

Ponto 1: Articulação entre ontologias da construção social e da explicação

De fato, esse tema foi melhor tratado na carta-resposta anterior do que no texto. De forma a explicitá-lo logo de partida, debrucei-me sobre a questão de pesquisa (também reformulada nessa versão para evitar a afirmação do consequente) com mais vagar, visando iluminar as pontes entre ontologia da explicação e as ontologias feministas. Desenvolvo esse argumento com mais vagar nos pontos 6, 8 e 9 desta revisão. De modo semelhante, aprofundei a discussão na seção final.

Ponto 2: Antecipação das questões ontológicas

Como citado no ponto anterior, antecipei as discussões brevemente com um esclarecimento mais direto através de: 1. Menção direta ao realismo filosófico e a poderes causais; 2. Uma definição breve de poderes causais. Dessa forma, objetivei delimitar minha discussão em torno de uma proposta ontológica, evitando, assim, o caráter vago da exposição anterior, que não deixava suficientemente claro o meu objetivo de articular ontologia, epistemologia e metodologia no que tange à explicação.

Ponto 3: Problema de pesquisa

Como mencionado no ponto 1, alterei a pergunta de pesquisa de modo a: 1. Sinalizar a conciliação, mas sem informar já as respostas; 2. Sinalizar o caminho pelo qual farei essa conciliação – qual seja, o caminho filosófico. Creio que, dessa forma, as discussões seguintes estejam melhor justificadas. Ademais, elas me permitiram evidenciar de maneira mais firme e legítima a proposta de um diálogo com o realismo filosófico – ponto 8 do parecer da Revisora, ao qual retornarei mais adiante.

Ponto 4: Terceira ontologia de Jacqui True

Confesso que não estou certa de que entendi exatamente a questão da terceira ontologia de Jacqui True. A princípio, pareceu-me que, depois da exposição da terceira ontologia, a frase inicial do parágrafo seguinte sinalizava uma divergência daquilo que é dito por True (2017), nomeadamente, de que as relações de gênero são reproduzidas primariamente por estruturas materiais em vez de por discursos. Originalmente, esse parágrafo visava sintetizar as diversas abordagens ontológicas, mas compreendo que, por vir na sequência da terceira ontologia, a escrita soou como uma continuidade ontológica do que afirmam as feministas empiricistas. Reescrevi esse trecho para eliminar tal ambiguidade e enfatizei, na descrição da terceira ontologia, a rejeição aos recursos discursivos de análise.

Ponto 5: Equivalência capitalismo e colonialismo

De fato, a forma como estavam descritos esses macrofenômenos acabou por gerar uma equivalência equivocada. Na versão atual, corrigi essa informação de modo a situar capitalismo e colonialismo como chaves analíticas estruturais.

Ponto 6: Ontologia subordinada a epistemologia e metodologia

A intenção original da frase referia-se ao fato de que, nos debates entre feministas empiricistas e críticas (Caprioli; Tickner; Davies; True; Reiter), a ontologia responde aos desideratos da epistemologia e da metodologia mais do que a uma reflexão sobre as próprias ontos que interessam ao feminismo. Isso é bastante evidente no debate do gênero como variável em trabalhos quantitativos: em vez de o gênero como ontos preceder o debate epistemológico e, sobretudo, metodológico, o que ocorre é uma acomodação ontológica do gênero dentro de determinadas visões de conhecimento e, principalmente, método. Em certa medida, esse debate – que também se estende aos embates entre feministas críticas e o mainstream de RI – acaba por privilegiar questões epistemológicas e metodológicas, de modo que a ontologia aparece como questão de fundo subordinada às primeiras. Isso não causa nenhuma surpresa quando se considera que as RI são relativamente avessas a debates ontológicos – um legado, inclusive, da filosofia positivista, que é econômica em termos de considerações ontológicas e metafísicas (Bevir, 2008; Kurki; Wight, 2013).

De todo modo, como a frase em questão mais causava confusão do que esclarecimento, optei por eliminá-la no texto sem prejuízo à discussão.

Pontos 6 e 8: Poderes causais

Primeiramente, gostaria de agradecer mais uma vez por encorajar-me a esclarecer e fortalecer a discussão sobre poderes causais. Nas primeiras versões do texto, essa discussão aparecia de maneira tímida, justamente por haver um certo receio sobre a incursão em um debate filosófico que ainda é, em larga medida, desconhecido na literatura de RI no Brasil. Optei por especificar essa contribuição em diferentes partes do texto e elaborei-a com mais vagar na terceira seção. Mobilizei Bhaskar (2008) e Kurki (2007; 2008) para discutir os entendimentos sobre poderes causais a partir do realismo crítico. Dessa forma, a discussão feminista se tornou mais sólida, uma vez que a base filosófica da ontologia da explicação foi apresentada de forma transparente.

Defendo que a chave para a reconfiguração do debate ontológico entre constituição e causalidade reside na ideia de poderes causais. Como aponto no texto, os poderes causais fazem parte da estrutura social, de modo que os efeitos por eles produzidos nos dizem não só quais são as causas dos fenômenos de nosso interesse como também informam as propriedades das estruturas de gênero. Ademais, ao propor uma concepção de causa que inclui elementos materiais e imateriais, a noção de poderes causais permite acomodar as diferentes práticas das feministas, sobretudo daquelas que percebem um incômodo no estilo humeano de causação.

Em meu entendimento, a abertura a noções de causas materiais e imateriais atende às diversas ontologias dos feminismos nas RI. Elas legitimam como elementos explicativos as normas, os discursos, as ideias, as construções sociais e, mais importante, atribuem-lhes capacidade explicativa. Em um momento em que cada vez mais se questionam explicações “descritivas” (ver Carolyn E. Holmes et al., 2023, sobre o tema da pesquisa descritiva), reconfigurar o debate em torno da ontos da explicação é fundamental para demonstrar a relevância das práticas de pesquisa feminista para a disciplina de RI. Embora alguns setores possam julgar esse apelo como desimportante, parece-me que é essencial esclarecer nossas práticas tanto internamente (como pesquisadoras feministas de diferentes matrizes intelectuais) quanto externamente (sobretudo diante de ataques desferidos contra as contribuições dos feminismos).

Finalmente, no que tange à ontos comum da construção social, eliminei essa referência para evitar interpretações que pareçam subsumir toda a pesquisa feminista a essa terminologia. Como Kurki ressalta na citação direta da terceira seção, discursos, normas e práticas sociais possuem, elas mesmas, poderes causais. Ainda que exemplifique com a questão da construção social, isso não significa ignorar as demais possibilidades ontológicas, menos ainda subsumir a diversidade analítica dos feminismos a esse rótulo. Penso que, dessa forma, a contribuição do debate se torna mais ampla dentro dos feminismos, em vez de se circunscrever a um grupo específico de feministas.

Ponto 7: O questionamento decolonial ao eurocentrismo

Em diversas outras avaliações que recebi em outros textos, a questão sobre como os feminismos decoloniais e pós-coloniais aderem a debates com fundamentações oriundas da Europa é suscitada. De fato, é possível que, para muitas feministas associadas a essa corrente, minha proposta soe como mais uma imposição eurocêntrica de uma concepção filosófica pretensamente universalista. Talvez para estas feministas eu não tenha uma resposta convincente. Creio, porém, que minha resposta dialogue com as feministas que aderem ao que Acharya (2014; 2021; 2023) sugere ao tratar das RI Globais: as visões de diferentes povos e histórias locais devem ser incorporadas à disciplina não como forma de suplantar o mainstream, mas sim como forma de suplementar, em uma lógica de “e”, não de “contra”. Evidentemente, isso não significa aceitar visões e teorias que sustentem práticas discriminatórias, mas sim que os conceitos, as epistemologias e as teorias do Sul Global não necessariamente precisam se colocar de forma antagônica ao dito Ocidente.

Nesse sentido, como sinalizo no texto, acredito que a ideia de constituição e causalidade pode ser aplicada a trabalhos alicerçados em perspectivas pós-coloniais e decoloniais, tal como tentei exemplificar brevemente a pedido das revisões anteriores. Penso que evocar a ideia de poderes causais permite fugir do dogma filosófico neopositivista, ao passo que fornece um arsenal ontológico, epistemológico e metodológico suficientemente útil e amplo para essas correntes feministas. Porém, para que isso seja, de fato, verificado, são necessários trabalhos empíricos (e, outrossim, teóricos) que aprofundem essas reflexões. Infelizmente, esse objetivo extrapola aquilo que pretendo no âmbito deste artigo.

Cabe ressaltar que o realismo crítico emerge, tanto na filosofia de Bhaskar como nas intervenções metateóricas em RI, como uma filosofia emancipatória, cujo objetivo é reconhecer as limitações das formas de produção de conhecimento associadas ao neopositivismo e fornecer, em resposta, uma abordagem filosófica e metateórica capaz de apreciar a pluralidade de formas de conceber o internacional, pensar o conhecimento em RI e suas formas de produção. Não por acaso, o realismo crítico nas RI advoga o “oportunismo” epistemológico e metodológico para defender a legitimidade das diversas formas de conhecimento na disciplina. Embora sua base seja fundada em uma filosofia de matriz europeia, negar esse caráter emancipatório é prejudicial para a realização do pluralismo na disciplina. A meu ver, as críticas decoloniais ao eurocentrismo se justificam quando tratamos de projetos pretensamente universalistas, que se posicionam acima de todo e qualquer projeto filosófico alternativo. Não me parece ser esse o caso do realismo crítico – e, definitivamente, não é o que defendo no artigo. Porém, mais uma vez, o quanto os meus argumentos convencerão os diferentes setores feministas é algo que só poderemos avaliar diante dos debates ensejados com base na proposta de poderes causais – se ela serve para realizar os objetivos feministas; se ela, de fato, é suficientemente aberta para não se impor como uma metateoria universalista; se a sua justificativa assenta novas bases filosóficas para compreendermos os significados de “explicar” no contexto das pesquisas feministas. Esse é um desafio que se desdobra a partir desse artigo, e que eu, particularmente, penso ser passível de equacionamento com leituras decoloniais – e sobretudo do movimento das RI Globais.

Ponto 9: Ontologias da construção social e da explicação

Aqui há dois argumentos: a ontologia de construção social presume que, mais do que afirmar que o gênero é socialmente construído, os mecanismos pelos quais tais construções se dão precisam ser explicados para que o rótulo ‘construção social’ não seja esvaziado de significado. Nesse sentido, ele se articula com a ontologia da explicação na medida em que dizer que algo é socialmente construído presume explicar como essa construção se realiza, mais especificamente: detalhando as propriedades daquilo que é construído; evidenciando os mecanismos dessa construção; analisando como essa construção constitui a realidade social e nela produz efeitos. Esse é o argumento de Hacking (1999), que sinalizo na Introdução do artigo.

Nessa nova versão, porém, esclareço que as ontologias da explicação fundadas na ideia de poderes causais adquirem relevância ao reconfigurar os significados das diversas ontologias feministas em torno do entrelaçamento entre constituição e causalidade. Nesse sentido, elas não se restringem tão somente às ontologias de construção social, frequentemente associadas ao construtivismo. Na verdade, a noção de poderes causais ressignifica a ontologia da explicação de modo a acomodar as variadas práticas da pesquisa feminista. Ademais, ela provê uma base mais firme para a relação entre constituição e causalidade do que as tradicionalmente associadas à leitura de Wendt.

Como meu enfoque é nos poderes causais como eixo argumentativo para a ideia de constituição-e-causalidade na pesquisa feminista, optei por centrar meu debate em torno dessa questão, evitando a bifurcação que mais desviava o tema do que demonstrava seu apelo para os feminismos nas RI. Entendo que, dessa forma, pude me debruçar sobre a contribuição central da discussão, além de fundamentá-la em torno do realismo filosófico.

Questões menores:

  1. Fiz uma revisão gramatical e ortográfica dessa nova versão, evitando oralidades como “numa”;

  2. Reescrevi o resumo de modo a adequá-lo às normas da revista e evitando, outrossim, afirmações contenciosas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024
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