Resumo
Neste artigo, discuto a feminização da imigração portuguesa para uma capital amazônica, Belém, entre 1850 e 1930, na perspectiva dos estudos feministas que levam em conta as categorias de classe social, gênero, sexualidade e raça. Meu objetivo é analisar a experiência das mulheres imigrantes a partir do fluxo de deslocamento, do trabalho e dos arranjos domésticos, questionando a noção de passividade e de acompanhante que lhes é atribuída, bem como a subordinação de seu trabalho. Concluo pontuando que a hierarquia de gênero e sexualidade reforça estereótipos que subalternizam a imigração feminina na História e na Historiografia. Por sua vez, a racialização positivada do corpo da mulher branca europeia foi acionada como contraponto às brasileiras. Metodologicamente, realizo o jogo de escalas da micro-história, associando à análise quantitativa o estudo de redes sociais.
Amazônia; Feminização da imigração; Portuguesas; Trabalho; Arranjos domésticos
Abstract
This article discusses the feminization of Portuguese immigration to an Amazonian capital, Belém, between 1850 and 1930, from the perspective of feminist studies that take into account the categories of gender, sexuality and race. My objective is to analyze the experience of immigrant women through the flux of travel, work and domestic arrangements, questioning the notion of passivity and companionship attributed to them, as well as the naturalization and subordination of their work. I will conclude by pointing out that the hierarchy of gender and sexuality reinforces stereotypes that subordinate female immigration both in history and in historiography. In turn, the positive racialization of the white European woman's body was activated as a counterpoint to Brazilian women. Methodologically, I investigate different scales of microhistory, associating the study of social networks with quantitative analysis.
Feminization of immigration; Portuguese women; Amazon; Work; Domestic arrangements
A presença feminina foi intensa no amplo processo migratório que teve lugar no final do século XIX e início do XX, estimulado pela industrialização e comercialização. No entanto, essa presença costuma ser minimizada ou invisibilizada. Desde a década de 1970, com a ampliação de pesquisas na área da História das Mulheres, essa invisibilidade foi colocada em debate. Para que novos dados entrem em cena, ou que seja lançada uma nova abordagem sobre velhos dados, muitas vezes é necessário haver uma guinada teórica e política na perspectiva de quem os produz (Lutz, 2010LUTZ, Helma Gender. The Migratory Process. Journal of Ethnic and Migration Studies, 36(10), 2010, pp.1647-1663 [10.1080/1369183X.2010.489373 - acesso em: 05 maio 2020].).
Autoras como Morokvasic, ainda na década de 1980, reiteravam que “Birds of Passage are also Women” (Morokvasic, 1984), acentuando o fluxo e a diversidade da migração feminina, chamando a atenção para a forma negligente como pesquisadores e políticas de Estado tratavam as mulheres migrantes, desconsiderando o volume de seu fluxo, o valor de seu trabalho na economia ativa e reiterando o caráter passivo de seus deslocamentos (Morokvasic, 1984). A emergência da categoria de gênero nas pesquisas, assim como as de classe, raça e sexualidade, possibilitou o questionamento do modelo de imigração de massa centrado no trabalhador masculino integrado ao capitalismo moderno. Esse modelo pressupõe a ideia do homem jovem que migra em busca de oportunidades e que, quando casado, é seguido pela esposa e pelos/as filhos/as que “o acompanham”, sendo ele o único provedor da família (Kofman, 1999KOFMAN, Eleonore. Female "Birds of Passage" a Decade Later: Gender and Immigration in the European Union. International Migration. Review, 33(2), 1999, pp.269-299 [ https://doi.org/10.1177/019791839903300201 - acesso em: 14 out. 2022].
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).
Mesmo quando os números mostravam o processo crescente de feminização da imigração intercontinental ou transoceânica, o protagonismo das mulheres costumava ser ignorado. Elas eram representadas como imigrantes involuntárias, acompanhantes de seus parentes e maridos, estes sim, tidos como protagonistas. Ainda que migrassem sozinhas, ou com seus filhos/as, justificavam-se seus deslocamentos não por sua agência, mas para seguir e/ou reunir-se a um familiar provedor já residente no país de destino, reforçando sua subalternidade e seu papel passivo e coadjuvante no processo. O que se esquecia nessa abordagem é que “em muitos processos de migração em massa, as mulheres eram, em diversas situações, os próprios migrantes primários” (Lutz, 2010LUTZ, Helma Gender. The Migratory Process. Journal of Ethnic and Migration Studies, 36(10), 2010, pp.1647-1663 [10.1080/1369183X.2010.489373 - acesso em: 05 maio 2020].:1648).
Essa percepção acerca da imigração feminina deve ser discutida em conjunto com a noção assimétrica de gênero e trabalho, marcada pela hierarquia entre a atividade masculina vista como produtiva, remunerada e pública, em contraponto à feminina, representada como não-produtiva, associada às tarefas domésticas, à reprodução e ao cuidado. Nessa lógica, as atividades das mulheres não são encerradas na economia ativa, nem consideradas trabalho, posto que são percebidas como uma extensão de sua natureza (Vergès, 2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu editora, 2020.; Lisboa, 2007LISBOA, Tereza Kleba. Fluxos imigratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro de 2007, pp.805-821 [ https://doi.org/10.1590/S0104-026X2007000300017 - acesso em: 20 set. 2023].
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).
No Brasil, desde os estudos pioneiros de Souza-Lobo (2021SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 3ed., São Paulo, Fundação Perseu Abramo/Editora Expressão Popular, 2021 [1991]. [1991]) sobre a divisão sexual do trabalho e a separação das atividades produtivas e reprodutivas até as pesquisas sobre care workers que expõem a desvalorização das atividades associadas ao cuidado, a epistemologia feminista vem denunciando a segmentação e precarização do mercado por gênero (Hirata, 2016 HIRATA, Helena. Trabalho, gênero e dinâmicas internacionais. Revista da ABET, 15(1), jan.-jun. 2016, pp.9-21 [ https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/31256 - acesso em: 12 ago. 2022].
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). Por sua vez, o uso da categoria de interseccionalidade potencializado pelas feministas negras (Crenshaw, 1989 Crenshaw, Kimberlé W. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of discrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago, Legal Forum, 1989, pp. 139-167 [ http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf - acesso em: 18 mar. 2020].
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; Davis, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.) e a ênfase na relação entre gênero e raça, que no Brasil se traduzem nos estudos pioneiros de Lélia Gonzalez e sua discussão sobre mulheres negras e a naturalização do lugar das domésticas (Gonzalez, 2020 [1979]), trouxeram novos olhares à temática do trabalho e da migração. Essas categorias são ferramentas importantes para pensar, por exemplo, a racialização e sexualização dos corpos das imigrantes portuguesas ‒ brancas e europeias ‒ no mundo do trabalho, atualizada no discurso eugênico de médicos e sanitaristas sobre o/a imigrante e sua relação com a disciplina e a higiene em contraponto ao/a trabalhador/a nacional (Fontes, 2016FONTES, Edilza Joana de Oliveira. Preferem-se português (as): Trabalho, cultura e movimento social em Belém do Pará (1885-1914). Belém, EDITAED, 2016.).
A relação assimétrica entre gênero e trabalho e a subalternidade atribuída às atividades femininas têm diversos desdobramentos e armadilhas. Sayad chama a atenção para o fato de que a imagem do imigrante está estritamente associada ao trabalho, sendo imigração e trabalho quase um pleonasmo (Sayad, 1998). Desse modo, se as mulheres não são vistas como trabalhadoras, também não são como imigrantes, se revestindo dessa condição apenas quando estão no papel de acompanhantes de um homem, este sim, trabalhador, logo, imigrante. Expressões como “trabalhadores migrantes e suas famílias” reforçam a dicotomia entre trabalho produtivo e reprodutivo, reiterando a invisibilidade e o não reconhecimento do trabalho feminino (Morokvasic, 2014MOROKVAŠIC, Mirjana. Gendering Migration. Migracijske i etnicke, 30(3), 2014, pp.355-378 [10.11567/met.30.3.4 - acesso em: 09 maio 2020].).
Problematizar a naturalização do trabalho feminino e reiterar que as mulheres não vinham a reboque dos homens permite enxergar a migração sob outra dimensão; afinal, a migração interna (dentro de uma mesma nação) ou a migração externa (entre nações distintas) é uma prática social, que pode ser espontânea ou forçada, e envolve o deslocamento e a fixação geográfica em um novo território, distinto administrativa e politicamente do local de origem do/a migrante (Lisboa, 2007LISBOA, Tereza Kleba. Fluxos imigratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro de 2007, pp.805-821 [ https://doi.org/10.1590/S0104-026X2007000300017 - acesso em: 20 set. 2023].
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). No entanto, mesmo que seja realizada por um indivíduo, a migração costuma ser uma prática de caráter coletivo, envolta em redes sociais de solidariedade e de apoio (Pessar, 1999PESSAR, Patricia R. The Role of Gender, Households, and Social Networks in the Migration Process: A Review and Appraisal. In: HIRSCHMAN, Charles; KASINITZ, Philip; DEWIND, Joshua (ed.). The Handbook of International Migration: The American Experience. New York, Russell Sage Foundation, 1999, pp.51-70.). Assim, mesmo naqueles fluxos migratórios em que as mulheres apareciam em menor número, isso não as fazia menos presentes e ativas no processo, se consideramos que a migração ocorria por meio de redes sociais nas quais esposas, mães, irmãs e tias constituíam-se em suportes fundamentais para o deslocamento. Ao assumirem diversas funções de planejamento, cuidado, produção e sustento da casa e da família no local de origem, as mulheres viabilizavam a migração masculina. Desse modo, a participação feminina era fundamental no processo, mesmo quando elas não eram as imigrantes diretas (Brettell,1991BRETTELL, Caroline. Homens que partem, mulheres que esperam: consequências da emigração numa freguesia minhota. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.; Matos et al., 2018).
Essa dimensão da imigração como uma prática coletiva desloca o olhar da teoria neoclássica que costuma pensá-la como um processo forjado pela macroeconomia e pela decisão do indivíduo racional autônomo, tendo por base a flutuação do mercado e das políticas de Estado. As questões econômicas e políticas são importantes, mas têm que ser pensadas em conjunto com as relações pessoais e a tradição no processo de migração (Castles; Miller, 1998). Nessa linha de abordagem, os estudos de redes sociais e de apoio são ferramentas metodológicas importantes, pois permitem o diálogo entre o contexto estrutural econômico e político e as escolhas, os interesses e as necessidades de homens e mulheres envoltos em relações de parentesco, amizade e conterraneidade. Esses laços interpessoais são fundamentais para a formação de um deslocamento em cadeia, possibilitando trocas que se prolongam ao longo do tempo (Imízcoz, 2004 IMÍZCOZ. José Maria. Actores, redes, processos: reflexiones para uma historia más global. Revista da Faculdade de Letras (5), Porto, 2004, pp.115-140 [https://ojs.letras.up.pt/index.php/historia/article/view/505 - acesso em: 13 nov. 2007].
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) e que permitem a permanência dos fluxos migratórios, mesmo quando a conjuntura econômica fica adversa, como ocorreu no Pará, com a crise da economia da borracha.
Com essas questões em perspectiva, analisarei a feminização da imigração portuguesa para a capital do estado do Pará, Belém, na época da economia gomífera, entre os anos de 1850 e 1930, observando o fluxo de deslocamento, o trabalho e os arranjos domésticos das mulheres imigrantes. Para tanto, trabalharei metodologicamente na perspectiva do jogo de escalas entre a abordagem macro, centrada na análise quantitativa e serial de fontes como passaportes e registros consulares, e a abordagem micro, pautada na busca onomástica, artifício metodológico próprio à micro-história que possibilita, por meio dos nomes das pessoas, encontrá-las em vários documentos e conhecer suas experiências (Ginzburg, 1989; Davis, 1997DAVIS, Natalie Zemon. Nas Margens: três mulheres do século XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.).
Desse modo, o corpo documental da pesquisa é multifacetado e formado principalmente pelos registros de passaporte do distrito do Porto, por ser esse o principal local de origem daqueles que migraram não apenas para o Pará como também para o Brasil (Alves, 1993ALVES, Jorge. Os brasileiros: emigração e retorno no Porto oitocentista. Porto, Faculdade de Letras da UP, 1993.)1 1 Os passaportes eram emitidos pelos Governos Civis de Portugal. Para esta pesquisa, foram levantados 18.308 registros de passaporte do distrito do Porto, entre os anos de 1850 a 1930. Os registros de passaporte encontram-se em livros digitalizados que estão disponíveis no site do Arquivo Distrital do Porto. Os livros foram baixados; os registros, coletados e organizados em banco de dados modelo Access. O acesso a essa documentação é livre pois os documentos encontram-se no site dos arquivos e disponíveis para download. . A essa fonte, somaram-se os livros de registro de imigrantes mantidos pelo Consulado Português no Pará2 2 Para esta pesquisa, foram levantados 12.035 registros nos Livros do Consulado Português do Pará entre os anos de 1834 a 1930. Esses livros eram mantidos pelo Consulado para controle da imigração e atualmente estão sob custódia da Biblioteca do Grêmio Literário Português do Pará. Os livros foram digitalizados e podem ser acessados livremente no site do Centro de Memória da Amazônia. Assim como os passaportes, os registros foram organizados em banco de dados modelo Access. , os processos de passaporte de Lisboa3 3 Os processos de pedido de passaporte foram consultados no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, no Fundo do Governo Civil de Lisboa, entre os anos de 1889 e 1900. e os jornais paraenses4 4 Os jornais pertencem ao acervo da Hemeroteca da Fundação Cultural Tancredo Neves (CENTUR). . As fontes acima arroladas são tradicionalmente utilizadas pela História das Mulheres, desde pelo menos a década de 1970, por permitir o acesso ao universo dos populares, suas práticas e representações (Rago, 2014RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. 4ed., São Paulo/Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2014.). Não é uma tarefa fácil rastrear a trajetória de pessoas, particularmente se elas não têm renda, patrimônio, inserção política e social, como a maior parte das mulheres imigrantes (Mahler; Pesar, 2006). Por isso a importância de se utilizarem fontes que permitem a análise quantitativa e nominal para chegar a um número mais amplo de pessoas (Menezes; Matos, 2017MENEZES, Lená Medeiros; MATOS, Maria Izilda Santos de. Gênero e imigração: mulheres portuguesas em foco (Rio de Janeiro e São Paulo - XIX e XX). São Paulo, E-manuscrito, 2017.).
Ao trabalhar com a História das Mulheres no período desta pesquisa, deparei-me com a intensa presença da migração nacional e estrangeira na composição da população amazônica, com destaque, entre os estrangeiros, para os portugueses. Contudo, ao consultar a bibliografia sobre o tema, chamou a atenção o volume menor de trabalhos sobre esses imigrantes quando comparado a outras nacionalidades, o que fica ainda mais evidente em relação às mulheres. Isso ocorre não apenas para a Amazônia como também para outras localidades brasileiras (Boschilia, 2017BOSCHILIA, Roseli. As mulheres imigrantes portuguesas sob o véu da invisibilidade: Um balanço historiográfico. In: BENEDUZI, Luiz Fernando; DADALTO, Maria Cristina (org.). Mobilidade humana e circularidade de ideia: Diálogos entre a América Latina e a Europa. Veneza, Ca Foscari, 2017, pp.41-54.). Por sua vez, é importante lembrar que o movimento migratório se inverteu na atualidade, quando cada vez mais brasileiras migram para Portugal (França; Oliveira, 2021 FRANÇA, Thais; OLIVEIRA, Stefanie Prange. Mulheres brasileiras imigrantes como estraga-prazeres: revelando racismo no "amigável" em Portugal. cadernos pagu (63), 2021 [ http://dx.doi.org/10.1590/18094449202100630001 - acesso em: 18 ago. 2022].
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). Discutir a imigração do passado, quando eram as portuguesas a vir para o Brasil, pode nos ajudar a contextualizar e abrir o leque das experiências migratórias e historicizar antigos e novos discursos estigmatizantes, preconceituosos e racializados com relação às mulheres brasileiras.
Fluxo e feminização da imigração
Os países europeus, com distintos níveis de industrialização, tiveram altas taxas migratórias ao longo do século XIX e início do século XX. Nesse período, cerca de 48 milhões de imigrantes deixaram o continente, o que correspondeu a cerca de 12% da população europeia. Em países economicamente dinâmicos e industrializados como a Inglaterra, a imigração alcançou 41% da população. Esse percentual foi um pouco menor, mas acima dos 20%, em países como Itália (29%), Espanha (23%) e Portugal (30%) (Massey, 2003MASSEY, Douglas. Patterns and Processes of International Migration in the 21st Century. Conference on African Migration in Comparative Perspective, Johannesburg, South Africa, 2003.).
Com relação a Portugal, grande parte da imigração teve o Brasil como destino principal. Isso porque, além da relação colonial que marcava o passado das duas nações, a segunda metade do século XIX foi um período intenso de mudanças traduzidas pelo final institucional da escravidão e da monarquia no Brasil, bem como pela implantação da Primeira República, com a consolidação da mão de obra livre, ainda que em condições de precarização do trabalho. Foi um período de intensa urbanização e industrialização, que se traduziu no incentivo às migrações internas e externas, gerando aumento e mudança no perfil da população (Matos; Borelli, 2012MATOS, Maria Izilda; BORELLI, Andrea. Espaço feminino no mercado produtivo. In: PINSKY, Carla Bassanezzi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2012, pp.126-147.). Esse movimento ocorreu em todos os estados brasileiros, ainda que em ritmos distintos. O Pará, por exemplo, foi, durante vários anos, o segundo estado brasileiro a receber o maior fluxo de imigrantes portugueses, atrás apenas da capital, Rio de Janeiro. Essa posição do estado estava associada ao aumento da exportação da borracha, a partir do ano de 1870, propiciando maior liquidez à sua economia.
Entretanto, como venho destacando, esse processo não deve ser resumido às flutuações de mercado. A imigração precisa ser também compreendida no universo das redes sociais envolvendo parentes, conterrâneos e conhecidos, que viabilizavam a manutenção dos deslocamentos, mesmo nos momentos de crise econômica. Desse modo, entende-se como, mesmo após a derrocada da economia da borracha a partir de 1910, a migração portuguesa para o estado do Pará se manteve pelo menos até o ano de 1930, quando Getúlio Vargas assume o poder e seu governo estabelece uma série de medidas restritivas à imigração para o Brasil.
Para se ter uma ideia, no levantamento dos passaportes dos/as imigrantes oriundos/as do distrito do Porto com destino ao estado do Pará, houve uma entrada de 492 pessoas em 1900, ano que compreende o período de ascensão da borracha e de intenso fluxo migratório. Em meio à crise econômica do estado, esse número caiu para 445, em 1910; voltou a subir para 521, em 1911; e, novamente, caiu para 314, em 1912. Os números do distrito português de Aveiro, que também está entre os de maior migração para o Brasil, não foram diferentes. Em 1910, houve uma entrada de 888 aveirenses no estado do Pará. Esse número subiu para 934, em 1911; e caiu para 516, em 1912 (Tavares, 2020). Quanto ao fluxo de outro importante distrito português, Braga, o perfil se manteve, sendo registrada uma entrada de 119 imigrantes no ano de 1910; ampliando para 234 em 1911; e caindo para 173, em 1912. Portanto, nos três importantes distritos portugueses de imigração para o Brasil, o fluxo chegou a aumentar no ano de 1911, quando já se percebia a derrocada da economia da borracha. Embora se verifique uma queda a partir daí, ela não chega a ser tão acentuada, e os deslocamentos se mantêm expressivos e constantes. É bem verdade que o fluxo despenca durante a Primeira Guerra Mundial, mas volta a crescer após o fim do conflito, embora não tenha chegado ao patamar dos números registrados nos anos iniciais do século XX.
Isso mostra que, embora a economia seja um fator importante que impulsiona a imigração, ela tem que ser compreendida em conjunto com outras práticas para que se entenda de que forma, a despeito da crise e da flutuação do mercado, os deslocamentos seguiram ocorrendo. Afinal, as pessoas continuavam acionando contatos, atualizando redes de trabalho e de moradia que permitiam a manutenção da migração.
Além das questões que envolvem o fluxo migratório, há ainda que se considerar o perfil dos/das imigrantes que se deslocaram para o Estado na virada do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, período marcado pelo aumento da imigração de mulheres. Vale destacar que esse aumento não ocorreu apenas para o Pará, como se observa em trabalhos sobre os estados de São Paulo (Freitas, 2016 FREITAS, Nelly de . Retrato de mulheres migrantes: o perfil socioeconômico e as trajetórias das imigrantes madeirenses no Estado de São Paulo, 1886-99 [online]. História (33), Franca, 2016, pp.288-306 [ https://doi.org/10.1590/1980-436920140002000014 - acesso em: 9 set. 2020].
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; Matos et al., 2018) e do Rio de Janeiro (Sarmento; Menezes, 2020). Na verdade, esse crescimento é um fenômeno global, não apenas das mulheres portuguesas mas de mulheres de diversas nacionalidades que intensificaram os deslocamentos migratórios dentro do continente europeu, assim como os transoceânicos, caracterizando um processo nominado pelas especialistas de feminização da migração, que ocorre ao longo do século XX (Lutz, 2010LUTZ, Helma Gender. The Migratory Process. Journal of Ethnic and Migration Studies, 36(10), 2010, pp.1647-1663 [10.1080/1369183X.2010.489373 - acesso em: 05 maio 2020].). Para se ter a dimensão desse processo no estado do Pará, quando se calcula a razão de sexo dos/as imigrantes do distrito do Porto, observa-se que, nos anos de 1841 a 1850, havia a entrada de 99 homens para cada mulher que migrava. Já nos anos de 1891 a 1900, essa proporção foi de 17 homens para cada mulher; chegando à entrada de nove homens para cada mulher, entre os anos de 1911 e 1920; e de apenas dois homens para cada mulher, entre os anos de 1921 e 1930.
Destacar o aumento significativo da imigração feminina é importante para problematizar a invisibilidade das mulheres no processo da imigração de massa que tem lugar no capitalismo moderno. Elas migravam cada vez em maior número, não sendo coadjuvantes ou se deslocando a reboque de um marido ou parente. Boa parte delas, na verdade, nem era casada ou era de menor idade. Nos dados relativos apenas ao distrito do Porto, a maioria das imigrantes tinha acima de 18 anos, e, dentre as que declararam o estado civil, o percentual de mulheres solteiras e casadas atingiu o mesmo patamar de 46%, seguido das viúvas (8%) e divorciadas (0,2%).
Quando se amplia a amostra para os dados dos registros do consulado do Pará, o número de mulheres solteiras é ainda mais significativo, chegando a cerca de 77% dos registros, lembrando que a maioria delas também tinha idade superior a 18 anos. As casadas corresponderam a cerca de 15%, seguidas das viúvas (9%) e divorciadas (1%).
Os números acima, referentes à condição conjugal das imigrantes, corroboram a intensa presença de mulheres adultas na condição de solteiras, viúvas e divorciadas. Elas estavam tão presentes nos deslocamentos quanto as casadas, o que torna ainda mais questionável a assunção que limita a imigração das mulheres à condição de acompanhantes de um cônjuge ou parente.
Algumas imigrantes deslocavam-se com seus/suas filhos/as, mas não era o perfil da maioria. Nos passaportes do distrito do Porto, poucas foram as mulheres que se declararam solteiras que embarcaram com filhos/as (10%), enquanto esse percentual foi maior entre as viúvas (33%) e nulo entre as divorciadas. Já nos registros consulares, as mulheres solteiras que viajaram acompanhadas de filhos/as apresentaram um percentual um pouco maior do que o do distrito do Porto (16%). No entanto, o de mulheres viúvas com filhos/as caiu (11%). Entre as divorciadas, 50% delas migrou com sua prole.
Os dados apontam que as imigrantes solteiras, viúvas e divorciadas embarcavam, em grande parte, sozinhas, sem filhos/as, cônjuge ou familiar, mas, ainda assim, a literatura sobre imigração continua referindo-se a elas como se viessem para “seguir” ou se “reunir” a um homem provedor já estabelecido, fosse pai, irmão, cunhado ou marido. O que se omite nesse argumento é que, muitas vezes, esse provedor é a própria imigrante, ou mesmo uma outra mulher, mãe, irmã ou conhecida já residente no Brasil, que viabilizava a viagem e a permanência na cidade de destino.
É importante ressaltar que, a despeito de utilizar a condição “solteira” presente na documentação, entendo os limites que essas fontes oficiais encerram ao não considerarem como casadas aquelas mulheres que viviam relações conjugais não institucionalizadas pela Igreja e/ou pelo Estado. O fato de o documento atestar a condição de solteira dessas imigrantes não significa que elas não possuíssem relações conjugais. Era comum em Portugal, ao lado das famílias legitimadas pelo matrimônio, a existência do que Scott (2002:13) denomina “famílias possíveis”, chefiadas “por mulheres sós (solteiras, viúvas, com maridos ausentes)”, vivendo em domicílios juntamente com sua prole natural, ou mesmo, em relações de concubinato. Assim, não seria difícil encontrarmos mulheres solteiras migrando, com ou sem filhos/as. Desse modo, ainda que registradas como solteiras, essas mulheres poderiam viver em meio às “famílias possíveis”.
Seguindo a argumentação, o que importa destacar é que, se um homem migra sozinho, imagina-se que ele o faça em busca de trabalho e melhor condição de vida, enquanto que, se uma mulher migra sozinha, ainda que solteira, viúva ou divorciada, imagina-se que o objetivo é reunir a família. Ora, mesmo que a mulher migre para se reunir à família, mesmo que ela não seja a primeira de sua rede de parentesco a migrar e que precise do apoio de alguém próximo para se estabelecer no local de destino, seja esse alguém um cônjuge ou parente, isso não significa que ela não esteja se deslocando a trabalho ou em busca de melhor condição de vida. Da mesma forma, se uma mulher casada se desloca para encontrar o marido já residente no Brasil, ela também está migrando a trabalho e visando exercer sua profissão; afinal, as atividades femininas, ainda que não remuneradas, são fundamentais à manutenção e ao sustento familiar, mesmo que não sejam reconhecidas enquanto tal pela relação assimétrica e subalternizada da divisão sexual do trabalho pautado por relações sexuais de poder.
As mulheres e seus diversos deslocamentos
A experiência migratória das mulheres portuguesas aqui analisadas, muitas vezes, não se resumia a um único deslocamento de Portugal para o Brasil. Para além de um roteiro pautado em uma saída e uma entrada, parte dessas mulheres realizou várias viagens entre os dois países, uma prática que não se restringia apenas àquelas com posse mas também às trabalhadoras pobres.
Esses vários deslocamentos podem ser rastreados a partir da análise dos pedidos de passaporte e dos registros consulares. As mulheres viajaram sozinhas ou com seus filhos/as e parentes, assumindo a responsabilidade e as exigências do processo de imigração, como a obrigatoriedade de documentação e a viabilização de recursos para a viagem e o registro dos familiares junto aos órgãos competentes. Essas mulheres tinham diferentes marcadores sociais de idade, atividade e condição conjugal.
É o caso da costureira Carina Augusta Esteves. Ela era natural do distrito de Viana do Castelo. Ela chegou pela primeira vez em Belém, no ano de 1920, com 42 anos de idade, trazendo consigo a filha de 18 anos. Carina realizou pelo menos quatro viagens entre o Pará e Portugal. Já a viúva Maria da Encarnação Pereira fez cinco viagens. Maria era doméstica, nascida no distrito de Vizeu. Ela era pobre e, já na condição de viúva, migrou para o Pará com diversas idades: 39, 40, 42, 45 e 46 anos. A primeira viagem registrada data do ano de 1906. Maria da Encarnação se deslocava com a mãe idosa - que em 1906 tinha 80 anos de idade - e seus quatro filhos: o mais velho, Francisco, com 18 anos, e a mais nova, Diozinda, com 7 anos. Maria da Encarnação morava em Belém e, por ser pobre, era abonada pelo cônsul, não tendo que pagar as taxas relativas ao seu registro e de seus familiares. Nem sempre as mulheres viúvas viajavam com parentes. Eduarda Isabel fez quatro viagens entre Portugal e o Pará, sem acompanhante. Ela era lavadeira e sua migração ocorreu no ano de 1915. Posteriormente, com 40, 42 e 44 anos de idade, repetiu esse deslocamento, sendo o último registro datado de 1925.
Os registros de mulheres realizando várias viagens era também uma realidade para as solteiras como Marcelina Emília Pereira. Ela era doméstica e realizou sete viagens entre Portugal e o Pará, quando tinha 59, 60, 61, 62 63, 64 e 67 anos de idade. Marcelina era do distrito do Porto e morava em Belém. Algumas mulheres solteiras viajavam com seus/suas filhos/as, reforçando a ideia de que, embora fossem registradas como solteiras, podiam viver ou ter vivido em condição de concubinato. Essa era a situação de Emília Veloso Dias, natural do distrito de Braga. Emília era solteira, mãe solo e trabalhava como costureira. Morava em Belém, com sua filha Aurora, de 30 anos. Assim como a mãe, Aurora também exercia a profissão de costureira. Depois de migrar para o estado, em 1927, com 54 anos de idade, Emília realizou mais duas viagens para Portugal com sua filha. O nome do pai de Aurora não constava nos registros.
Não era incomum encontrarmos mais de uma geração de mulheres da mesma família se deslocando para o Pará ao longo dos anos, mostrando o trânsito e a agência dessas imigrantes. A viúva Ana da Conceição Costa era do distrito de Coimbra. No ano de 1896, já viúva e com 35 anos de idade, migrou para o estado do Pará com seus seis filhos. Passados 31 anos, em 1927, encontro-a novamente retornando de uma viagem a Portugal, junto com suas duas filhas: Maria das Dores Costa, com 38 anos de idade, e Irene Idafina da Costa, com 23 anos de idade. Ambas eram solteiras e domésticas. Mãe e filhas não pagaram o registro no consulado português, o que era concedido para pessoas sem recursos.
Poderia multiplicar os exemplos, mas o importante aqui é mostrar a diversidade de idade, atividade e condição conjugal das imigrantes; registrar seus nomes, seus vários deslocamentos; e problematizar com suas práticas a suposta passividade feminina no processo migratório.
Os motivos das viagens raramente eram mencionados nos documentos. Em alguns processos de passaporte, as imigrantes afirmavam que vinham para o estado para “tratar de negócios da casa”, “exercer sua profissão”, “procurar meios de ocupação”. No entanto, na maior parte dos documentos essas informações não estavam presentes. Contudo, pode-se inferir que a permanência de membros da família em Portugal, as intercorrências envolvendo a doença do/da imigrante ou de parentes, as celebrações familiares como batizados, casamentos ou mesmo falecimentos podem justificar os vários deslocamentos das mulheres. Devem-se somar a essas possibilidades a melhoria nas condições de transporte ocorrida com o advento da navegação a vapor; o aumento da segurança dos navios; a diminuição do tempo de viagem; e a ampliação da previsibilidade da chegada (Alves, 1993ALVES, Jorge. Os brasileiros: emigração e retorno no Porto oitocentista. Porto, Faculdade de Letras da UP, 1993.).
De qualquer forma, independentemente das melhorias nos transportes, ainda eram várias as adversidades enfrentadas pelas imigrantes nos deslocamentos, o que reforça ainda mais a agência das mulheres que realizaram diversas viagens cruzando o Atlântico. Refiro-me às leis portuguesas que eram restritivas em relação à migração feminina, obrigando as casadas a pedirem autorização ao marido para migrar e, as solteiras, com menos de 21 anos, ao pai. Essas leis retiravam a autonomia e institucionalizavam a subalternidade das mulheres em relação aos seus cônjuges e familiares. Somem-se a isso os valores negativos agregados às mulheres que migravam, acreditando-se que, longe do controle e da vigilância da família, elas iriam “se perder” ou tornar-se-iam “produtos usados”, imagem que reverberava também em suas famílias. Considerava-se um atestado de pobreza autorizar a emigração de uma filha sob o risco de se tornar menos desejável como potencial esposa (Brettell, 1991BRETTELL, Caroline. Homens que partem, mulheres que esperam: consequências da emigração numa freguesia minhota. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.).
A despeito do conjunto das dificuldades na legislação e dialogando com estereótipos negativos, várias mulheres imigrantes realizaram não apenas uma, mas diversas viagens entre os dois países. Mulheres trabalhadoras de distintas gerações que garantiam o sustento de si e de seus familiares, quebrando barreiras, preconceitos de gênero e questionando com suas práticas a condição de imigrantes involuntárias.
Mulheres e trabalho
Saindo dos deslocamentos e procurando compreender o mundo do trabalho das mulheres imigrantes, é possível perceber as várias atividades exercidas por elas, as representações relativas ao trabalho e as dificuldades de se estabelecerem no local de destino.
Começo a análise partindo da experiência de uma imigrante portuguesa de 17 anos de idade, Margarida Liffrry Dupant, que sabia ler, escrever e costurar. Sua história chegou até mim pelo estudo de Araújo (2023) sobre as práticas de mulheres portuguesas no Pará. Margarida foi vítima de defloramento quando já residia em Belém. Um processo crime foi aberto para verificar a queixa e por meio dele, soube que ela migrou para o Pará, no ano de 1910, período de crise da economia gomífera, acompanhada de um tio e com o propósito de morar com sua mãe, Maria Rita, que já vivia em Belém com o amásio, Francisco. Margarida teve desavenças com a mãe e, depois de um tempo, deixou de morar na casa materna. Passou a residir com o tio, mas permaneceu na residência dele por pouco tempo, pois logo empregou-se como criada na casa de uma família. Posteriormente, também saiu dessa casa para procurar trabalho em lojas e oficinas de costura da cidade (Araújo, 2023).
A história de Margarida nos remete à dimensão de como uma mulher, nesse caso jovem e solteira, migrou acompanhada de um tio para vir morar com a mãe e, posteriormente, conseguiu emprego como criada e costureira para se sustentar. O fato de migrar com um familiar e vir encontrar a mãe já estabelecida no Brasil cairia naquela condição discutida aqui, de que Margarida teria vindo “reunir-se à família”. Porém, o que se percebe de sua trajetória é que, a despeito de viajar com um parente e ter vindo encontrar a mãe que residia em Belém, Margarida trabalhou como criada e possuía o ofício de costureira. Ou seja, o fato de vir reunir-se à família, ou mesmo o de viajar com um parente, não retirava dela o protagonismo da migração e do seu sustento. Margarida migrou em busca de melhor condição de vida e de trabalho. Sua experiência reitera como essas mulheres não eram coadjuvantes e, mesmo quando se deslocavam para se “reunir” à família, trabalhavam e não ficavam necessariamente na dependência de um provedor ou realizavam uma imigração passiva e involuntária, apenas à mercê das decisões de parentes ou marido, estes sim, tidos como imigrantes universais que sempre iniciavam a cadeia de deslocamentos.
Seguindo a linha de estudos que nos ajudam a conhecer o universo do mundo do trabalho das mulheres portuguesas residentes em Belém, destaca-se a pesquisa de Fontes (2016)FONTES, Edilza Joana de Oliveira. Preferem-se português (as): Trabalho, cultura e movimento social em Belém do Pará (1885-1914). Belém, EDITAED, 2016. que analisou os anúncios de emprego nos jornais paraenses, entre os anos de 1884 e 1914. A autora observou a preferência por mulheres portuguesas nas ofertas de trabalho doméstico como amas de leite e criadas. Fontes discute a relação dessa preferência com as teorias de branqueamento, progresso e civilização, representada pelos povos europeus, na perspectiva das teorias eugenistas. Nessa abordagem, a mulher portuguesa era associada à higiene e à pureza, em contraponto à mulher negra e parda, vista como libertina, contagiosa e com maus hábitos, o que mostra como os critérios raciais permeavam o mercado de trabalho na capital paraense.
Assim como Fontes (2016)FONTES, Edilza Joana de Oliveira. Preferem-se português (as): Trabalho, cultura e movimento social em Belém do Pará (1885-1914). Belém, EDITAED, 2016., levantei uma série de anúncios de emprego onde a preferência por estrangeiras, em particular espanholas e portuguesas, estava presente. Anúncios como o do jornal Folha do Norte, oferecendo o serviço de ama de leite, onde se lia: “quem precisar pode procurar no botequim à travessa São Matheus, canto da rua Riachuelo, é portuguesa e chegada no último vapor da Europa. Garante-se limpeza e conducta” (Folha do Norte, (3) 1900:6). Ser chegada recentemente da Europa parecia atribuir uma certa autenticidade à imigrante, como se sugerisse ainda estar nela presente o frescor da civilidade dos ares europeus, sem estar contagiada pelo atraso e pela insalubridade dos trópicos e dos cortiços tão combatidos pela visão higienista e pelo movimento sanitarista (Freire, 2009FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920). Rio de Janeiro, FGV, 2009.). Por vezes, o anúncio não determinava a nacionalidade da empregada pretendida, mas deixava evidente a racialização dos corpos desejados (Ahmed, 2015AHMED, Sara. Race as sedimented history. Postmedieval: a journal of medieval cultural studies, 6(1), 2015, pp.94-97 [Race as sedimented history (bpb-us-e2.wpmucdn.com) - acesso em: 23 mar. 2020].), como nesta oferta de emprego para ama seca: “precisa-se de uma, que seja branca e carinhosa, em casa do dr. Olympio Chermont, 112, estrada de Nazareth” (Folha do Norte, (1) 1900:6). Da mesma forma que o anúncio anterior, fica a ideia de que a mulher branca é carinhosa, criando uma imagem ausente, um contraponto, o Outro representado pela mulher negra e parda, descrita nos jornais paraenses como libertina, mal criada, que vivia em famílias mal estruturadas e em cortiços contagiosos (Fontes, 2016FONTES, Edilza Joana de Oliveira. Preferem-se português (as): Trabalho, cultura e movimento social em Belém do Pará (1885-1914). Belém, EDITAED, 2016.).
Vale lembrar que, após a escravidão, as portuguesas foram incorporadas como empregadas domésticas sendo consideradas “trabalhadeiras, dedicadas, limpas e honestas” (Matos, 2013MATOS, Maria Izilda Santos. Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano - São Paulo séculos XIX e XX. Bauru/São Paulo, EDUSC, 2013.:89). Essa lógica enquadrava-se na necessidade de se construir, na sociedade capitalista, uma nova ética do trabalho, agregando-lhe valores positivos e ordenadores da sociedade e da moral. Nessa perspectiva, o/a imigrante era fundamental por, supostamente, carregar os valores da sociedade europeia civilizada, encerrando por sua origem um comportamento morigerado, sóbrio e laborioso.
A racialização da imigrante portuguesa e sua condição de branca e europeia atravessa sua situação de classe e gênero (Brah, 2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), janeiro-junho de 2006, pp.329-376 [scielo.br/j/cpa/a/B33FqnvYyTPDGwK8SxCPmhy/?format=pdf - acesso em: 25 fev. 2021].). Elas vão dialogar com os preceitos e ideais que reforçam a ideologia positiva do trabalho e que contrapõem de forma vantajosa e preconceituosa a trabalhadora imigrante à nacional. Com isso, em várias localidades brasileiras onde a presença de imigrantes era acentuada, a preferência por mulheres brancas acabou por concentrar as mulheres negras em postos menos valorizados e remunerados (Matos; Borelli, 2012MATOS, Maria Izilda; BORELLI, Andrea. Espaço feminino no mercado produtivo. In: PINSKY, Carla Bassanezzi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2012, pp.126-147.).
Nem sempre era possível saber a atividade exercida pelas mulheres imigrantes. Nos passaportes e nos registros consulares, o campo referente à ocupação feminina frequentemente ou não era preenchido, ou era registrado com a expressão “serviços domésticos”, que servia como uma espécie de guarda-chuva para indicar todo tipo de função realizada dentro ou fora do domicílio. Era como se as atividades femininas associadas ao universo doméstico e ao cuidado fossem naturalizadas, a ponto de não ser necessário mencioná-las, ainda que fossem remuneradas. Essa prática limitou as informações sobre as ocupações femininas, mas, ainda assim, foi possível mensurá-las. Desse modo, nos registros de passaporte do distrito do Porto, entre as atividades citadas, sobressaíram-se: domésticas (334), costureiras (37), serventes (18), criadas (08), lavadeiras (04), proprietárias (4), estudantes (3), cozinheiras (2), gaspeadeiras (2), empregadas comerciais (2) e trabalhadoras (7). Nos registros consulares, além das atividades acima referidas, houve a presença de uma parteira.
Vê-se, portanto, que as representações e práticas no mundo do trabalho reforçam a dicotomia e a experiência das mulheres nas atividades domésticas e de cuidado, em um sistema hierárquico e assimétrico entre os sexos, que muitas vezes potencializa a precarização e feminização da pobreza (Vergès, 2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu editora, 2020.; Hirata, 2016 HIRATA, Helena. Trabalho, gênero e dinâmicas internacionais. Revista da ABET, 15(1), jan.-jun. 2016, pp.9-21 [ https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/31256 - acesso em: 12 ago. 2022].
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; Lisboa, 2007LISBOA, Tereza Kleba. Fluxos imigratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro de 2007, pp.805-821 [ https://doi.org/10.1590/S0104-026X2007000300017 - acesso em: 20 set. 2023].
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). Em relação às imigrantes portuguesas, ao menos no jogo narrativo dos anúncios de jornais, foram construídas representações positivas no mundo do trabalho quando comparadas às trabalhadoras nacionais. Representações apoiadas no discurso sanitarista, higienista e eugênico da época que racializava os corpos femininos, associando as mulheres negras e brasileiras a imagens negativas de maus tratos, preguiça e contágio de doenças.
Mulheres, moradia e arranjos domésticos
Muitas mulheres portuguesas trabalhavam e moravam em estâncias, com quartos conjugados, junto a outros conterrâneos e migrantes nacionais. Com a urbanização, o aumento populacional, a precarização dos serviços e o alto custo de vida, os aluguéis eram caros, e as estâncias, os cortiços e as vilas tornaram-se a moradia da população pobre.
Ao analisar os registros consulares, foi possível encontrar referências a mulheres portuguesas pobres, em sua maioria lavadeiras e/ou domésticas, que viviam muito próximas, na mesma rua ou no mesmo número de casa, mesmo não sendo parentes, sugerindo a residência em estâncias que possuíam vários quartos. Essa era a situação de várias portuguesas que viviam à avenida Almirante Tamandaré. Elas eram solteiras ou viúvas com uma média de idade que variava entre 25 e 51 anos, sendo algumas delas oriundas do mesmo distrito português. Parte delas tinha filhos/as, como a lavadeira Maria da Encarnação, viúva, com 33 anos de idade, do distrito de Vizeu. Ela tinha dois filhos: Américo, com 3 anos, e Virgínia, com 2 anos. Maria da Encarnação não pagou o registro no consulado por ser pobre. O mesmo ocorreu com a lavadeira Eduarda Izabel, viúva com 40 anos de idade. Ela não sabia ler nem escrever, também oriunda do distrito de Vizeu. Eduarda chegou pela primeira vez a Belém no ano de 1915. Inscreveu-se no consulado do Pará no ano de 1924 e não pagou os custos da inscrição “por ser viúva e pobre”. No ano de 1923, Eduarda fez nova inscrição no consulado português, já com 42 anos de idade e ainda residindo à Avenida Almirante Tamandaré. Por fim, destaco o registro da doméstica Leopoldina Ferreira Alcantara, solteira, com 25 anos de idade, que não sabia ler nem escrever, sendo natural do distrito de Lisboa. Leopoldina morava em Belém, na Avenida Almirante Tamandaré, quando fez sua inscrição no consulado, no ano de 1920. No registro ela declarou ter chegado ao Pará pela última vez, no ano de 1911, vinda de Lisboa. O registro de Leopoldina foi gratuito e ela voltaria para Portugal “repatriada pela Liga Portuguesa de Repatriação”, instituição que auxiliava o retorno dos menos favorecidos.
A moradia dessas imigrantes em áreas próximas estava associada ao processo de concentração da população pobre em locais menos centrais da cidade ou com menor infraestrutura, como a Avenida Almirante Tamandaré, mas também está ligada à busca de moradia próxima a pessoas da mesma origem para potencializar as redes sociais, o que ocorria não apenas entre os/as portugueses/as como também entre os migrantes nacionais. Essas redes podiam minimizar os riscos e viabilizar a moradia, o emprego e a permanência no local de destino (Cancela, 2022). No entanto, essa proximidade podia também gerar situações de conflitos.
Ao ficar viúva, Ignes Marin, de 34 anos de idade, foi morar com sua filha, Alice dos Santos, com 16 anos, na estância de um conterrâneo, Francisco Henrique Serafim, de 22 anos. A mãe, Ignes, trabalhava como cozinheira na casa de uma família. Após algum tempo, Francisco foi acusado do defloramento de Alice. Todas as pessoas da referida estância eram naturais da mesma freguesia portuguesa, São Vicente da Raia, distrito de Vila Real, e todas elas testemunharam a favor de Alice, o que foi fundamental para que Francisco, uma vez denunciado o defloramento, fosse pressionado a se casar com ela (Araújo, 2023). A conterraneidade pode ter sido importante na viabilidade de alugar um quarto na estância onde residiam diversos patrícios da mesma freguesia, facilitando a proximidade, a intimidade e a confiança. A mesma confiança que foi quebrada pelo defloramento de Alice também acionou redes de apoio e de pressão.
Para além da moradia das imigrantes em ruas, estâncias e casas próximas, muitos foram os arranjos domésticos observados nas fontes, envolvendo mães solos (Finamori; Batista, 2022FINAMORI, Sabrina; BATISTA, Maria Alice Magalhães. Categorias Empíricas e Analíticas: Mães-Solo e Monoparentalidade Feminina. Mediações (27), Londrina, set.-dez. 2022, pp.1-19 [10.5433/2176-6665.2022v27n3e46283 - acesso em: 12 ago. 2022].), como no caso de Ignes e sua filha Alice. A partir dos registros consulares foi possível rastrear diversos arranjos domiciliares formados por mães e filhas; irmãs solteiras; avós, mães e filhas/os, a exemplo das irmãs Lucinda Lopes e Margarida Lopes, oriundas do distrito de Castelo Branco. Lucinda era a irmã mais velha e tinha 32 anos de idade. Chegou em Belém no ano de 1915 e trabalhava como serviçal. Sua irmã mais nova, Margarida, tinha 29 anos de idade quando chegou em Belém um ano depois, em 1916, e, como a irmã, conseguiu emprego como serviçal. Elas moravam juntas à avenida São Jerônimo. É provável que, uma vez estabelecida com moradia e emprego, Lucinda tivesse a oportunidade de chamar a irmã mais nova para viver em Belém e de apoiar o início de sua permanência na cidade, morando na mesma casa e arrumando-lhe um emprego como serviçal.
Havia situações em que as irmãs migravam juntas, como Ana e Lídia Dias de Resende. Ambas eram solteiras e domésticas. Ana tinha 24 anos de idade, e Lídia, 21 anos. Elas eram do distrito de Aveiro e migraram para o Pará no ano de 1908. Eram órfãs e residiam juntas em uma casa no Largo da Trindade.
Os exemplos acima remetem a situações de moradia envolvendo irmãs. Outras composições também se multiplicaram, como as de mãe e filha vivendo na mesma casa trabalhando. Essa era a situação de Margarida dos Santos, que, no ano de 1925, trabalhava como serviçal, era solteira e estava com 68 anos de idade. Ela vivia com sua filha, Julia, viúva, de 34 anos de idade, que também trabalhava como serviçal. Elas eram do distrito de Vizeu. Destaco ainda o arranjo doméstico de Ana Joaquina de Jesus, uma viúva de 57 anos de idade, oriunda do distrito do Porto, que morava com sua filha, Olinda da Silva Tavares, com 33 anos de idade. Ambas eram viúvas e exerciam a profissão de lavadeiras. Elas não tinham recursos e não pagaram a inscrição no consulado português do Pará. Vale ressaltar que, a despeito da falta de recursos, Ana e Olinda realizaram diversas viagens entre o Pará e Portugal, sempre viajando juntas.
Por fim, cito o arranjo doméstico da família de Ricardina dos Anjos Rodrigues, solteira, com 64 anos, nascida no distrito de Bragança. Ela chegou pela primeira vez em Belém no ano de 1899, era doméstica e morava na Vila do Mosqueiro. Com ela, no ano de 1925, residia a filha Germana da Assunção Fernandes, solteira, 37 anos de idade, e os netos, Amadeu, com 16 anos, e Alice, com 13 anos. A situação da família de Ricardina é bem emblemática. Ricardina era uma mulher declarada solteira, que tinha uma filha de 37 anos de idade, também solteira e com dois filhos/as que residiam com ela e a avó. Duas gerações de mulheres solteiras, trabalhadoras, vivendo juntas e fazendo suas vidas na América, sendo responsáveis pelo cuidado e sustento da prole.
Essas mulheres compuseram arranjos domésticos pautados pela parentalidade feminina e pela responsabilidade de mães solos, reforçando a autonomia das imigrantes e as redes de apoio, trabalho e moradia acionadas por elas para se estabelecerem em Belém, mesmo no período de crise da economia da borracha, mostrando como as redes sociais são ferramentas importantes para se entender a migração para além das flutuações do mercado.
Considerações finais
Os estudos sobre imigração feminina estão inseridos na História Social das Mulheres e nas abordagens centradas nos estudos de gênero, sexualidade e raça.
Na primeira parte do trabalho, mostrei como as vivências das mulheres aqui reunidas alertam para a necessidade de se olhar a imigração europeia de massa para o Brasil, no final do século XIX e nas primeiras três décadas do século XX, de forma menos generalizada, deslocando-a da imagem uniforme do homem branco e trabalhador. A feminização da imigração foi um processo crescente, e as mulheres participaram da imigração de massa, mesmo quando não eram as imigrantes diretas e ficavam em Portugal mantendo o cuidado e a subsistência familiar enquanto parentes e cônjuges migravam. Utilizei metodologicamente a micro-história em seu jogo de escalas entre análises que levam em conta dados quantitativos e questões macropolíticas e econômicas, mas que não encerram automaticamente a experiência das pessoas a esses processos, trazendo à tona a importância das redes sociais para compreender a imigração não como uma prática do indivíduo racional e atomizado das teorias liberais, mas como um processo coletivo, traduzido em redes de apoio entre familiares e conhecidos, nas quais as mulheres costumam ter papel central.
A experiência de diversos deslocamentos entre os dois lados do Atlântico vivida pelas imigrantes portuguesas foi discutida na segunda parte do trabalho. Diferentemente do que se imagina, a imigração não necessariamente se encerrava em uma única saída e entrada entre os portos portugueses e brasileiros. Mulheres com diversos marcadores sociais se deslocaram não apenas uma mas diversas vezes entre Portugal e o estado do Pará, muitas delas trabalhadoras sem posse, enfrentando as incertezas da viagem e as representações negativas que giravam em torno daquelas que se afastavam de suas freguesias e de suas famílias de origem. Mais uma vez, com suas inúmeras viagens, o protagonismo das mulheres na imigração que venho reiterando neste trabalho é reafirmado.
Na terceira parte, analisei o mundo do trabalho das imigrantes, problematizando o fato de as atividades femininas não serem reconhecidas enquanto trabalho inserido na economia ativa e questionando a dicotomia entre trabalho produtivo e reprodutivo, público e doméstico. Mostrei como a divisão sexual do trabalho e as imposições assimétricas de gênero não apenas concentram as atividades femininas no trabalho doméstico e de cuidado como descaracterizam a mulher enquanto trabalhadora. A associação das mulheres à família e à casa teve desdobramento direto na sua invisibilidade enquanto imigrante ativa que se deslocava em busca de recurso e sustento. A imagem de acompanhante e de imigrante involuntária, que por tanto tempo foi associada às mulheres, nos ajuda a entender o porquê, a despeito dos dados que mostravam o aumento global da imigração feminina na formação capitalista moderna, de os estudos sobre o tema não tratarem das mulheres. Na contramão dessa abordagem, mostrei como as mulheres são imigrantes e trabalhadoras pois “o trabalho do cuidado e limpeza é indispensável e necessário ao funcionamento do capitalismo racial e neoliberal” (Vergès, 2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu editora, 2020.:17), ainda que seja invisível e mal pago. Por sua vez, o trabalho está relacionado a um corpo racializado que, no caso das portuguesas, foi representado positivamente pelas teorias eugenistas que, de forma assimétrica e preconceituosa, contrastavam as imigrantes brancas, associadas à civilidade, à pureza e à higiene, às nacionais e negras, estereotipadas como libertinas e perigosas.
Na quarta e última parte, recompus os diversos arranjos domiciliares das mulheres imigrantes, pautados pela monoparentalidade feminina traduzida pela moradia de mães e filhas, irmãs solteiras e mães, filhas e netos/as. Mulheres conterrâneas vivendo próximas, na mesma rua, estância ou casa. A monoparentalidade era uma realidade nessas famílias que tinham nas mulheres a responsabilidade pelo sustento da prole, em suas várias gerações, reforçando a autonomia do sustento e a busca por melhor condição de vida, deslocando a associação das imigrantes à condição de dependência de parentes e cônjuges.
A partir das questões e experiências aqui tratadas, acredito que este trabalho possa contribuir com a inserção da Amazônia nos estudos da história da imigração brasileira. Uma história que não parta do imigrante universal, mas que considere a experiência feminina não apenas de forma descritiva mas problematizando-a teoricamente a partir da abordagem dos estudos feministas de gênero e de sexualidade, que permitem repensar a própria concepção de imigração associada ao masculino e ao trabalho dito produtivo; a racialização dos corpos das mulheres na relação assimétrica entre nacionais e estrangeiras; e, finalmente, a convivência monoparental feminina quebrando padrões de parentalidade centrados na família nuclear.
Como já referido, o movimento migratório na atualidade inverteu. São os brasileiros e as brasileiras que estão migrando intensamente para Portugal, e, na relação geopolítica assimétrica, multiplicam-se as situações de xenofobia que, com relação às mulheres brasileiras, se expressam na estigmatização, racialização e sexualização de seus corpos (França; Oliveira, 2021 FRANÇA, Thais; OLIVEIRA, Stefanie Prange. Mulheres brasileiras imigrantes como estraga-prazeres: revelando racismo no "amigável" em Portugal. cadernos pagu (63), 2021 [ http://dx.doi.org/10.1590/18094449202100630001 - acesso em: 18 ago. 2022].
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). Ao recuarmos no tempo e girarmos o olhar para as mulheres portuguesas imigrantes neste artigo, podemos perceber como as experiências migratórias de ontem e de hoje se aproximam no que diz respeito à feminização da pobreza e à precariedade do trabalho e como as representações sobre os corpos brancos e europeus das portuguesas já se apresentavam de forma distinta e hierárquica em relação às mulheres negras e brasileiras. Com isso, ampliamos o leque de estudos sobre as experiências migratórias femininas, tomando os marcadores sociais de classe, gênero, sexualidade e raça em sua historicidade e em seus contextos, e não de forma essencializada (Kergoat, 2010KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos CEBRAP (86), São Paulo, 2010, pp.93-103 [ https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005 - acesso em: 06 out. 2015].
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; Brah, 2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), janeiro-junho de 2006, pp.329-376 [scielo.br/j/cpa/a/B33FqnvYyTPDGwK8SxCPmhy/?format=pdf - acesso em: 25 fev. 2021].).
É difícil, após nos aproximarmos das histórias aqui pontuadas, continuar enxergando as mulheres como imigrantes passivas ou vindo a reboque das decisões e dos caminhos traçados por um parente ou cônjuge. A feminização da imigração nos desafia a repensar a forma como as diferenças e as distinções hierárquicas são construídas não apenas na imigração mas também na produção acadêmica sobre o tema.
Referência bibliográficas
- AHMED, Sara. Race as sedimented history. Postmedieval: a journal of medieval cultural studies, 6(1), 2015, pp.94-97 [Race as sedimented history (bpb-us-e2.wpmucdn.com) - acesso em: 23 mar. 2020].
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- Olinda da Silva Tavares. Ano 1921: inscrição 3175; Ano 1923: inscrição 370; Ano 1924: inscrição 2930; Ano 1925: inscrição 819
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- Germana da Assunção Fernandes. Ano 1925: Inscrição 1990; Ano 1927: Inscrição 2148.
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1
Os passaportes eram emitidos pelos Governos Civis de Portugal. Para esta pesquisa, foram levantados 18.308 registros de passaporte do distrito do Porto, entre os anos de 1850 a 1930. Os registros de passaporte encontram-se em livros digitalizados que estão disponíveis no site do Arquivo Distrital do Porto. Os livros foram baixados; os registros, coletados e organizados em banco de dados modelo Access. O acesso a essa documentação é livre pois os documentos encontram-se no site dos arquivos e disponíveis para download.
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2
Para esta pesquisa, foram levantados 12.035 registros nos Livros do Consulado Português do Pará entre os anos de 1834 a 1930. Esses livros eram mantidos pelo Consulado para controle da imigração e atualmente estão sob custódia da Biblioteca do Grêmio Literário Português do Pará. Os livros foram digitalizados e podem ser acessados livremente no site do Centro de Memória da Amazônia. Assim como os passaportes, os registros foram organizados em banco de dados modelo Access.
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3
Os processos de pedido de passaporte foram consultados no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, no Fundo do Governo Civil de Lisboa, entre os anos de 1889 e 1900.
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Os jornais pertencem ao acervo da Hemeroteca da Fundação Cultural Tancredo Neves (CENTUR).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
04 Jul 2023 -
Aceito
14 Nov 2023