"Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?" perguntava a madrasta de Branca de Neve ao espelho mágico. Essa magia parece ter se ressignificado na tela-espelho mágico, essa lente que nos vê e nos permite ver tudo melhor e mais longe do que jamais poderíamos imaginar há 20 anos. A internet foi criada em 1969, mas apenas há duas décadas começou a se disseminar. Desde meados da década de 1990 vivemos em um mundo em que as relações interpessoais são crescentemente mediadas digitalmente: smartphones, tablets e computadores portáteis tornaram-se equipamentos de uso cotidiano na vida das pessoas que, por meio deles, trabalham, se socializam, flertam, criam relações amorosas e políticas.
A disseminação das relações mediadas criou uma nova realidade social e subjetiva, borrando fronteiras entre público e privado, pessoal e político, que se revelam inextricavelmente associados. A sociedade em rede é descrita por Manuel Castells (2011) como o resultado da junção de três grandes transformações - as consequências das conquistas dos movimentos sociais da década de 1960, em particular o feminismo; a revolução da tecnologia da informação a partir da década de 1970; e a reestruturação econômica da década de 1980, em especial a diminuição do estatismo.
A internet conecta o privado e o público, de modo que seus usos têm se tornado fundamentais aos estudos de gênero e sexualidade, pois se levamos a sério a asserção feminista "o pessoal é político" - popularizada a partir da década de 1960 -encontramos nas mídias digitais contemporâneas um novo campo de investigação sobre o social. Cada vez mais "somos no mundo" por meio das redes sociais online, mas somos "em processo", em uma constante transformação pelos fluxos nos quais nos inserimos e dos quais somos também resultado. Trata-se de um cenário de clara relevância para os estudos feministas, de gênero e sexualidade e, cabe ressaltar, para toda teoria social contemporânea.
Um dos avanços teórico-conceituais nesse campo de estudos é a tendência à superação da oposição real-virtual que marcou as primeiras tentativas de compreender essas novas sociabilidades. A vida na era das mídias digitais se dá em um continuum on-offline (Miller & Slater, 2003), esfumaçando as fronteiras entre o que está aqui - suposto real - e o que está lá - "na nuvem", suposto virtual (Leitão & Gomes, 2011). Como em uma dança, corpos, vestimentas, gestos e musicalidade se entrelaçam para compor esse continuum. A mudança de percepção pode não ter consolidado um novo vocabulário conceitual (Baym, 2010) - alguns artigos deste dossiê ainda utilizam o termo ciberespaço - mas ele tem sido ressignificado pela experiência e pela evidência empírica de que as relações online não constituem um espaço apartado das relações face a face, tampouco descorporificado.
As pesquisas reunidas neste dossiê mostram um cenário marcado pela corporalidade, distinto da centralidade do texto que vigorou nas primeiras pesquisas sobre a Internet, fenômeno analisado por Eva Illouz (2007) como a "textualização de si". Do advento dos scanners no final da década de 1990, aparelhos que permitiam digitalizar fotos, passando pelas câmeras digitais na década seguinte, atualmente plenamente inseridas nos telefones celulares, chegamos ao selfie, retrato cabal de uma era em que somos incitados a produzir imagens próprias e compartilhá-las em diferentes mídias sociais.
Ao contrário do que se pensava vinte anos atrás, o avanço tecnológico não nos libertou do corpo, antes o colocou em evidência, incitando novos olhares de cada um sobre si mesmo. O chamariz do corpo, primeiro comunicado sobre nós antes mesmo de emitirmos uma palavra (Butler, 2006), é o centro da sociabilidade online em quaisquer formas de busca, seja de reconhecimento individual ou pertencimento a grupos dentro e fora do maistream.
Em contraste com a era das mídias de massa, o antigo broadcasting do rádio e da televisão, as mídias digitais permitem - desde o advento da internet 2.0 na virada do milênio - e até incitam seu público a ter um papel ativo não apenas na comunicação, mas na criação de conteúdo (Athique, 2013). Se na era do rádio, da TV e do cinema, mídias verticais em massa, havia uma distinção entre emissores e receptores, na era das mídias digitais, baseadas nas redes horizontais de comunicação, os usuários são um público ativo que confere a cada um em particular a sensação de ser protagonista de sua própria vida e de seus ideais.
O corpo-foto, o corpo-vídeo e o corpo em streaming em um vídeo conferência fizeram-nos mais atentos a nossa própria aparência. Não por acaso, as poses de pessoas comuns nos instantâneos nunca se aproximaram tanto das propagandas e a crescente nitidez das lentes - cada vez mais potentes - tiveram que ser amenizadas por uma profusão de filtros e mecanismos de correção. A "purificação" dos corpos no contexto de algumas expressões políticas feministas contemporâneas podem ser lidas de distintas perspectivas (Sibilia; Ferreira; neste dossiê) - a nudez é uma forma de contestação política, mas na intertextualidade das mídias podem ser vistas como espetáculo.
Tecnologias comunicacionais e corporais estão intrinsecamente associadas e revelam bem mais do que uma aliança mercadológica, mostrando um hiato importante entre as representações sociais e os desejos de reconhecimento. De forma articulada, há uma continuidade histórica no uso da tecnologia para manipular limites morais e restrições sociais outras em busca de mais agência e liberdade, especialmente na esfera dos afetos, dos amores, da sexualidade. A relação entre tecnologia, agência e segredo ganhou um novo capítulo com a emergência da Internet. O suposto anonimato criou condições para se revelar online desejos socialmente proscritos, culminando na rápida adesão de pessoas em busca de parceiros do mesmo sexo, de mulheres heterossexuais em um jogo lúdico de prazer e liberdade na procura por um parceiro segundo seus próprios critérios, assim como permitiu o reconhecimento da porosidade das relações conjugais entre homens e mulheres, engendrando relações baseadas em diferentes formas de segredo.
Este dossiê agrega investigações que têm em comum um olhar voltado para a análise sobre os significados das mediações tecnológicas na vida de pessoas em contextos variados e de como as relações mediadas são atravessadas por diferenças de gênero, sexualidade, étnico-raciais, geracionais e regionais, criando regimes de visibilidade, cujas gramáticas, mesmo distintas, se articulam na produção de moralidades. O uso dessas tecnologias, em vários artigos, aponta para a busca de se desvencilhar de normas morais que restringem seus desejos (Miskolci, Pelúcio, Schaeffer, Beleli, neste dossiê), assim como o engessamento dos significados de tradição e modernidade (Sibilia, Ferreira, neste dossiê), de urbano e rural, além de problematizar noções de juventude (Adelman et alii, neste dossiê).
Ao contrário das visões deterministas e distópicas sobre o impacto da tecnologia nas relações sociais, as mídias digitais não diminuíram a sociabilidade, antes a ampliaram e a aprofundaram, permitindo conhecer mais pessoas, comunicar-se com elas com mais frequência e intensificar laços pessoais. Entre alguns grupos sociais socialmente subalternizados por seu gênero, sexualidade, origem étnico-racial ou idade a conexão em rede tem facilitado as discussões políticas.
Todos os artigos e as respectivas investigações que os originaram nos levam a refletir sobre a demanda contemporânea por reconhecimento e a nova gramática do pertencimento. Online/off-line, todos querem ser aceitos, admirados, reconhecidos, o que torna compreensível a prática de postar fotos e textos que sejam "curtidos" no Facebook, criar perfis desejáveis nos sites e aplicativos para busca amorosa e sexual, angariar seguidores em plataformas de discussão política ou ainda marcar estilos de vida. Como afirma Zafra (neste dossiê), as redes sociais operam como delimitadoras das formas de representação identitária e moldam até mesmo as relações intersubjetivas. Para além das vertentes de estudos de movimentos sociais que incorporaram parcialmente as mídias em busca de novidade, como se as plataformas pudessem engendrar o que hoje não passa de uma nostalgia da revolução, talvez seja profícuo tentar compreender como as redes sociais serviram para a expressão de conflitos políticos e sociais que permaneciam silenciados e/ou invisíveis nas relações cotidianas off-line.
Boa parte dos textos aqui reunidos reflete sobre as consequências da Revolução Sexual iniciada no final da década de 1960. O pessoal é político até onde não se expressa nos termos de demandas articuladas por partidos e/ou movimentos sociais tradicionais. Essas demandas, de outra ordem, rompem com a verticalidade das produções midiáticas e da antiga política,permitindo aos sujetitos conectados tornarem-se protagonistas. Relacionar-se com uma audiência faz da interatividade a mágica da tela-espelho, na qual somos vistos e, a partir dos outros, somos reconhecidos.
Iara BeleliRichard Miskolci
Referências bibliográficas
- ATHIQUE, Adrian. Digital Media and Society: An Introduction. Cambridge: Polity Press, 2013.
- BAYM, Nancy K. Personal Connections in the Digital Age. Cambridge: Polity Press, 2010.
- BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.
- CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol I. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
- ILLOUZ, Eva. Intimidades congeladas. Buenos Aires: Katz editores, 2007.
- LEITÃO, Débora K.; & GOMES, Laura G. "Estar e não estar lá, eis a questão": pesquisa etnográfica no Second Life. Cronos - Revista do Programa de Pós-Graduação da UFRN, vol. 12, nº 2, 2011, pp.23-38.
- MILLER, Daniel & SLATER, Don. The Internet An Ethnographic Aprpoach. Oxford: Berg, 2003.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2015