Resumos
O presente artigo questiona o papel da mídia diante da epidemia do HIV/Aids. Toda a discussão é travada à luz da bioética, tentando sempre apreender os dilemas morais subjacentes nas mensagens de prevenção do HIV/Aids. Pautar se a mídia considerou os rumos da epidemia na medida em que essa ia se modificando; refletir se as campanhas educativas do HIV/Aids ponderavam as assimetrias de gênero, a sexualidade e os processos de socialização.
Mídia; Bioética; HIV; Moralidades; Mulheres; Políticas em saúde; Educação em saúde
The present article tries to question the mission of the media before the epidemic of HIV/AIDS. The whole discussion is supposed, in the light of the bioethics, to try to apprehend the tenor of the messages transmitted in the context of the disease. To discuss if the media had considered the different ways of the epidemic while they were being modified; to think if the HIV/AIDS educative campaigns had considered the gender differences, the sexuality and the socialization process.
Media; Bioethics; HIV; Moralities; Women; Politics in health; Education in health
TEMAS LIVRES FREE THEMES
O papel da mídia na prevenção do HIV/Aids e a representação da mulher no contexto da epidemia
The paper of the media in the prevention of HIV/AIDS and the woman's representation in the context of the epidemic
Erli Helena GonçalvesI; Renata VarandasII
INúcleo de Estudos e Pesquisa em Bioética da Universidade de Brasília UnB AOS, Q 8 Apto 406, 70660-082, Brasília DF. erlli6@hotmail.com
IICentro Universitário de Brasília UniCEUB, Radiobrás/NBR notícias
RESUMO
O presente artigo questiona o papel da mídia diante da epidemia do HIV/Aids. Toda a discussão é travada à luz da bioética, tentando sempre apreender os dilemas morais subjacentes nas mensagens de prevenção do HIV/Aids. Pautar se a mídia considerou os rumos da epidemia na medida em que essa ia se modificando; refletir se as campanhas educativas do HIV/Aids ponderavam as assimetrias de gênero, a sexualidade e os processos de socialização.
Palavras-chave: Mídia, Bioética, HIV/Aids, Moralidades, Mulheres, Políticas em saúde, Educação em saúde
ABSTRACT
The present article tries to question the mission of the media before the epidemic of HIV/AIDS. The whole discussion is supposed, in the light of the bioethics, to try to apprehend the tenor of the messages transmitted in the context of the disease. To discuss if the media had considered the different ways of the epidemic while they were being modified; to think if the HIV/AIDS educative campaigns had considered the gender differences, the sexuality and the socialization process.
Key words: Media, Bioethics, HIV/AIDS, Moralities, Women, Politics in health, Education in health
Introdução
Será discutido, no artigo, qual foi papel da mídia no contexto da epidemia do HIV/Aids. Se as mensagens veiculadas (faladas, escritas ou televisivas), nas décadas de 1980-1990 e em 2001, estavam envoltas de estereótipos; se processos de socialização de mulheres e homens interferiram no teor das comunicações. De posse da informação de que a epidemia estava assumindo um perfil heterossexual de contaminação e o número de mulheres infectadas estava aumentando, a mídia teria trabalhado tal temática alertando a população para o direcionamento que a doença assumia?
Esta abordagem tem como objetivo principal realizar uma reflexão sobre a complexidade moral que envolve a criação e a veiculação das campanhas educativas de prevenção do HIV/Aids; explorar as leituras subjacentes às mensagens, investigar moralidades que permeiam os anúncios de prevenção e, ainda, discutir como a mídia tratou as questões de gênero ao enfocar a doença.
Considerações metodológicas
Foi utilizada a técnica de análise de conteúdo juntamente com a prática da análise de discurso para esquadrinhar a fala oferecida pela mídia nas campanhas de prevenção ao HIV/Aids, os facilitadores e impeditivos morais que poderiam estar imbricados nas mensagens e que obstruíram ou impulsionaram as mulheres de se visibilizarem perante o possível risco de contaminação. Tal técnica atinge plenamente seu objetivo, pois, procura conhecer aquilo que está por trás das palavras... (Bardin, 1979).
Essa abordagem foi travada à luz da bioética e permitiu apontar os pontos positivos e negativos das campanhas de prevenção do HIV/Aids, traçando um perfil de como a mídia tem pautado as moralidades ocultas nas mensagens, no sentido de evitar a disseminação da doença. A relevância do estudo reside em contribuir para o redirecionamento da atual conjuntura comunicativa, no que diz respeito aos esclarecimentos à população sobre a epidemia do HIV/Aids.
Esclarece-se que foi feito um levantamento no Ministério da Saúde, redes de televisão, rádio e mensagens escritas para a elaboração do artigo. Posteriormente essas informações foram conjugadas às adquiridas no sentido de desenvolver a dissertação de mestrado: Da gramática dos sonhos e da realidade uma leitura bioética das campanhas educativas governamentais de prevenção ao HIV/Aids e sua aplicabilidade às mulheres casadas (2002). A pesquisa, após a defesa, foi enviada ao Ministério da Saúde para posterior aproveitamento. Hoje, com este artigo (com dados acrescidos/atualizados), procura-se ainda alertar os formuladores de políticas públicas e operadores da comunicação, de que o teor/condução da mensagem tem um papel fundamental no contexto da doença, no sentido de prevenir ou fazer o evitamento da mesma, como se a doença não pudesse atingi-lo.
Um olhar crítico sobre a mídia no contexto do HIV/Aids
A palavra comunicação vem do latim communicatio, que significa tornar comum, ou seja, o processo fundamental para o ser humano viver socialmente. Seria um sistema de código simbólico complexo com significado próprio (Sánchez, 1999). Posto isso, seria importante ressaltar como se dá a recepção da mensagem. Na abordagem do autor, para que a mensagem seja captada seria necessário que o receptor parecesse sensível a ela, portanto, uma pessoa não poderia receber um comunicado de outra se estivesse aquém da sua capacidade individual (Trayer apud Sánchez,1999).
Portanto, ao abordar a problemática do HIV/Aids, o que se pretende neste artigo é indagar, à luz da bioética, qual o papel da mídia na prevenção da epidemia. Se a comunicação tem um papel fundamental como processo educador; qual seria o seu desempenho na mídia falada, escrita e televisiva? Em que medida as práticas sexuais têm sido alteradas e/ou estagnadas devido à interferência da mídia? Qual a contribuição da comunicação no sentido de esclarecer e/ou prevenir o contágio? Estaria a mídia procurando adequar a linguagem no mesmo sentido da progressão da doença? Os processos de socialização estariam sendo des-construídos/re-construídos diante da possibilidade de contaminação? As questões de gênero estariam sendo pautadas no contexto da doença pela mídia?
Lazar (1999) comenta que o processo de socialização depende de uma apreensão de fatores, tais como: valores, informação, crenças, regras, formas de envolvimento social que são imbricadas cotidianamente no ator social, ou seja, esse processo, enquanto instrumento de regulação social, permite a economia de sanções externas. Assim sendo, seguramente, pode-se afirmar que a informação está estreitamente ligada ao poder (Bandeira, 1999). Questiona-se, então, se a mídia através da informação estaria usando este poder no sentido de as pessoas alterarem e/ou discutirem suas práticas sexuais com seus parceiros? Ou ainda, se a re-ordenação do imaginário social no tocante às relações afetivas-sexuais estariam sendo debatidas?
As mulheres hoje encabeçam as estatísticas da contaminação (Parker, 1996). Já que o mapa da epidemia sinaliza a "feminização, pauperização [...] da epidemia de HIV/Aids", conforme aponta Paulo Teixeira, coordenador do Programa Nacional de DST e Aids (2003), qual seria o motivo de a linguagem de mídia ainda não ter sido apresentada decisivamente neste campo? No caso do Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, observou-se entre os homens [...] no período de 1994-98 um percentual de crescimento de 10,2% das notificações, enquanto nas mulheres este crescimento foi de 75,3% (Ministério da Saúde, 2003). A doença, apesar de apresentar um significativo crescimento entre as pessoas mais pobres, está concentrada nos grandes centros produtores de riquezas. Contudo, a desigualdade social, a assimetria de gênero, a falta de acesso aos bens, como educação, saúde e informação, ainda são fatores de grande vulnerabilidade para esta população.
Segundo Garrafa e Prado (2001), o conceito vulnerabilidade compõe uma série de interpretações, sendo a mais utilizada... o lado mais fraco de um assunto ou questão ou o ponto pelo qual alguém pode ser atacado, prejudicado ou ferido... Ou seja, segundo os autores, a palavra vulnerabilidade está intimamente ligada ao contexto de fragilidade, desproteção, desfavor e até mesmo abandono. O que, na opinião de Kottow (2003), demandaria a necessidade de proteção dessas pessoas pelo fato de estarem vulneráveis circunstancialmente. Este posicionamento vem de encontro à tese defendida por Garrafa e Porto (2003), de que seria eticamente defensável a utilização de ... práticas intervencionistas, diretas e duras, que instrumentalizem a busca da diminuição das iniqüidades.
Na percepção de Gonçalves (2002), a lassidão com que a mídia vem tratando a situação de vulnerabilidade das mulheres brasileiras torna-se intrigante pelo papel que esta desempenha sobre a população. No início da epidemia, a mídia, como principal formadora de opinião, manteve-se inerte em relação ao crescente número de vítimas infectadas pelo HIV/Aids, negligenciando a existência da transmissão por via heterossexual (Parker & Galvão, 1996). Motivo pelo qual, pretende-se articular, com os meios de comunicação, um discurso bioético, suficientemente poderoso no sentido de fazer os responsáveis pelas campanhas de prevenção do HIV/Aids se indignarem diante desta situação, uma vez que a imagem feminina encontra-se fragilizada e estigmatizada pela mídia no contexto da doença.
Parker & Galvão (1996) afirmaram que, de maneira geral, a mídia, no princípio da doença, se ausentou da discussão sobre a disseminação do vírus nas mulheres. Em alguns momentos, chegou a distorcer ou mesmo deixou de esclarecer a forma com que a transmissão da epidemia de fato acontecia, levando os pesquisadores a concluírem que, em torno da doença existia um silêncio no tocante à possível contaminação da mulher. Tal atitude acabou impossibilitando que as mensagens transmitidas causassem o impacto neste grupo. Assim, ficou obscurecida e camuflada a possibilidade de contaminação entre as mulheres.
Na abordagem de Campbell (1999), a imagem das mulheres veiculada pela mídia no início das campanhas educativas para prevenção do HIV/Aids as colocava, claramente, como responsáveis pela transmissão da doença e/ou como controlistas na contenção desta. A autora pontua que, embora o esforço da mídia para evitar contágio fosse louvável e necessário, isso ameaçava e ainda reforçava a idéia de que somente as mulheres seriam responsáveis por um sexo mais seguro, principalmente, pelo fato de campanhas semelhantes não terem trabalhado, desde o início da epidemia, a questão da responsabilidade masculina na prevenção do HIV/"Aids.
Esse fato, na argumentação de Campbell (1999), não aconteceu somente no Brasil; foi um fenômeno mundial. Segundo seus estudos, no início da epidemia, a mídia desprezava a transmissão da doença por via heterossexual ou, pelo menos, a negligenciava. Na argumentação da estudiosa, em 1988, sabia-se claramente que as mulheres poderiam ser infectadas por meio de contato heterossexual. A mídia, no entanto, pouco fez e tornou-se uma fonte de considerável imprecisão e distorção desconsiderando o risco do contato heterossexual, principalmente para as mulheres.
Uma série de editoriais publicados pelo The New York Times retratava uma visão distorcida da transmissão da epidemia, deixando de esclarecer como ela de fato acontecia. Tal posição impossibilitava que as mensagens causassem o impacto de uma necessidade evidente de prevenção ao HIV/Aids entre as mulheres. Nesse sentido, os debates que ocorriam não contemplavam as assimetrias de gênero, pois as diferenças destas, nunca foram mencionadas, embora a epidemia entre as mulheres já diferisse consideravelmente da dos homens. Dessa forma, minimizavam-se os riscos de uma possível infecção pelo vírus entre o grupo de mulheres (Gonçalves, 2002).
Campbell (1999) abordou o quanto os equívocos da mídia obscureceram e camuflaram a epidemia entre as mulheres. A pesquisadora citou o exemplo ocorrido em janeiro de 1988, quando foi divulgado um artigo pela revista Cosmopolitan, que amenizava os riscos de contaminação pelo contato heterossexual, chegando a afirmar que, certamente, as mulheres que haviam se contaminado não deveriam ter praticado sexo vaginal, e sim, anal. Na avaliação do psiquiatra que escreveu o artigo, dr. Gould, essas mulheres não admitiam ter praticado sexo anal. Dessa forma, o psiquiatra colocava em xeque a questão da transmissão sexual por via vaginal, criando uma falsa segurança a respeito desse risco de transmissão.
Gonçalves (2002) aponta que outra maneira de a mídia focalizar as mulheres em relação à epidemia estava direcionada às mulheres do chamado grupo de risco, ou seja, as profissionais do sexo ou prostitutas que sempre estiveram ligadas ao estigma de que espalhavam doenças. Isto aconteceu na época da sífilis e repetiu-se com a epidemia do HIV/Aids. Há no imaginário social a estreita relação entre prostituição, doenças e imoralidade (Berer, 1997). No caso específico, o HIV/Aids traz consigo um valor moral preponderantemente pejorativo de desregramento, em que as pessoas, no caso as profissionais do sexo, não só contrairiam a doença, mas seriam ainda fonte de contágio. Essa possibilidade só se tornaria viável por serem elas promíscuas, imorais. Como pano de fundo está o pressuposto de que essas mulheres são desviantes da norma estabelecida, afinal, elas são mulheres que têm vários parceiros, sendo classificadas como mulheres da vida, ou seja, transgressoras. A infração dessas mulheres consiste em pautar publicamente que praticam sexo com mais de um parceiro. Dessa forma, baseando-se no pensamento de que as prostitutas espalham doenças, as primeiras campanhas educativas de prevenção tomaram essa direção. Contudo, a mídia e os gestores de políticas públicas em saúde, negligenciaram o fato de que os usuários (os homens) pudessem disseminar a doença em suas casas, com suas companheiras (no caso, com suas esposas e namoradas).
Um outro enfoque sobre o HIV/Aids entre mulheres esteve fortemente vinculado à questão da transmissão vertical, em que as mães eram e, em alguma medida ainda são, tratadas como vetores para o contágio de seus filhos, e não como pessoas que necessitavam de acompanhamento de saúde, por serem portadoras do vírus (Campbell, 1999). Em outras palavras, a atenção que era destinada às mulheres grávidas as colocava também, como responsáveis sobre o controle da epidemia e/ou disseminação da doença. A cegueira que se abateu sobre as campanhas educativas, em enxergar a mulher como um ser que precisava de assistência, fez com que se priorizasse o bebê e, ainda, responsabilizava a mulher, e somente ela, pela transmissão do vírus, negando o contato paterno e seu possível envolvimento com o filho. Sempre foi apresentado para a mãe que era um dever dela evitar o contágio, esquecendo-se que essa responsabilidade seria muito onerosa para aquela que gera, que sempre deseja um filho saudável. A idéia de desvincular o pai do processo de responsabilidade corroborou significativamente com os mecanismos legitimadores desta situação, em que só a mãe seria responsável pela saúde do bebê. A medicalização das mulheres, principalmente do ciclo grávido-puerperal, e a obrigatoriedade dos exames no pré-natal são geralmente colocados para preservar a criança (Gonçalves, 2002).
Em decorrência disso, o desvelamento da epidemia e das formas de contágio dava-se mais por um caráter denunciatório e responsabilista do que propriamente preventivo. Eram vinculadas às mulheres manchetes tais como: "Mãe amamentando passa Aids para o bebê"; "Prostitutas infectadas espalham Aids"; deixando claro o quanto as mulheres estavam ligadas à epidemia como transmissoras em potencial. Uma situação comprovada pelos dizeres de um pôster, para prevenção da transmissão vertical, que responsabilizava a mãe pela doença do bebê: "Ela tem os olhos do pai e a Aids da mãe". Isso comprova claramente a dissociação entre a maternidade e o exercício da sexualidade para mulheres (O'Leary apud Campbell, 1999).
No Brasil, especificamente, a mídia trabalhou mais no sentido de amedrontar do que propriamente de educar (Parker & Galvão, 1996). O caráter analítico das campanhas estava direcionado aos grupos de riscos: prostitutas, homossexuais e usuários de drogas (Barbosa, 1999). O trabalho no sentido de focalizar e delimitar a doença nos grupos de risco encobria um novo quadro traçado pela epidemia: alcançava os heterossexuais e, por conseguinte, as mulheres. Dessa forma, os veículos de comunicação disseminavam a idéia de que a Aids era uma doença moral, melhor dizendo, da imoralidade. A conotação direcionada às pessoas consideradas vulneráveis à epidemia transmitia a concepção de que elas estavam submetidas a grupos de risco, seja por uma doença, no caso dos hemofílicos, seja por comportamento sexual, ou ainda, por serem dependentes de drogas (Ayres et al., 1999).
Ao mesmo tempo, as campanhas estavam envolvidas em temor e preconceito, deixando no seu tecido pedagógico, uma imensa lacuna. Um bom exemplo dessa situação pode ser comprovada nas mensagens divulgadas pela mídia brasileira, com o signo: "A Aids vai pegar você" (Parker & Galvão, 1996). Os estudiosos sinalizaram a existência desse contexto pontuando que no final dos anos 80, por exemplo, uma campanha governamental amplamente criticada com enfoque no homem, associava o risco oculto de contágio com o rosto de uma mulher junto com o slogan ingênuo "Quem vê cara não vê Aids". Portanto, o aumento de casos de contaminação pelo HIV/Aids entre heterossexuais associado à vulnerabilidade das mulheres diante da contaminação, unidos, ainda, à concepção de comportamento de risco, demonstravam a incômoda necessidade de mudar a linha argumentativa das campanhas educativas (Parker & Galvão).
Porém, isso demandava tempo e novas construções sociais. Em outro estudo realizado por Parker & Galvão (1996), os autores já apontavam que as histórias de prevenção no combate à Aids organizadas pelo Governo Federal eram levadas a efeito tardiamente e, em sua maioria, de forma questionável. Os pesquisadores argumentavam que as imagens das mulheres veiculadas pela mídia nos últimos dez anos não condiziam com a imagem real da mulher brasileira, fazendo com que o público-alvo não se sentisse atingido, além de estimular as práticas de prevenção somente para proteger o homem.
Nesse sentido, a consideração dos estudiosos sobre as campanhas educativas ajuda a entender o caráter escorregadio e lúbrico destas. Insistentemente, focalizavam a sensualidade e enfatizavam mais fortemente o lado lascivo do que o preventivo (Parker & Galvão, 1996), de onde pode-se concluir que, a erotização nas campanhas brasileiras fica mais destacada do que as mensagens educativas, no sentido de prevenir o contágio pelo HIV/Aids (Gonçalves, 2003).
Ainda neste contexto, seria importante frisar que as campanhas educativas no exterior carregavam consigo a idéia de que sexo mais seguro só seria possível se as mulheres tomassem iniciativa para que isto acontecesse, ou seja, se elas fossem as responsáveis pela adoção de um comportamento que não está ao seu alcance prescrever. Campbell (1999) defende que as campanhas na mídia são importantes por afetarem a consciência do público sobre a proteção contra o HIV e o uso de preservativos, mas acredita que campanhas que aconselham as mulheres a usarem preservativos ou para convencer seus parceiros a usá-los são inerentemente sexistas, especialmente quando os homens não são aconselhados da mesma forma, explicando a idéia de controlismo.
Na campanha educativa de prevenção ao HIV/Aids, que ocorreu no Carnaval de 2001, "Acima do bem e do mal", veiculada pelo Ministério da Saúde, o Brasil deu um passo importante no sentido de responsabilizar o homem pelo o uso do preservativo, algo até então não trabalhado. Contudo, ficou nítida a associação da festa: a erotização e estreita ligação da mulher afro-descendente a este acontecimento, distanciando a mulher brasileira de se identificar com essa imagem. Esse estigma prejudica a mulher negra e, ainda, reforça o imaginário social de que Carnaval é sinônimo de sexo. Fato que induz a mulher brasileira a não se visibilizar diante do risco de contaminação e ainda leva a população a acreditar que o perigo do contágio só ocorre nas festas carnavalescas, uma vez que passado o Carnaval cerca-se de silêncio em torno da questão e as campanhas deixam de ser exibidas (Gonçalves, 2002). Conclui-se, diante do exposto, a urgência e importância de consultar estudiosos das áreas de sexualidade, gênero, bioética, sociologia, antropologia, entre outros e, não só, operadores da comunicação e gestores públicos para discutir e definir as campanhas educativas do HIV/Aids suas implicações e aplicabilidades a população.
Considerações finais
Embasado na proposição de uma bioética intervencionista defendida por Garrafa (2003) e no princípio de proteção de Kottow (2003), por serem defensáveis do ponto de vista ético, é que se busca apresentar, paralelamente ao argumento, que os meios de comunicação não podem se eximir da função de debater os processos de socialização de mulheres e homens, as questões de gênero, a sexualidade, para que a prevenção do HIV/Aids seja realmente completa nesse âmbito.
Para Garrafa (2003), a essência da bioética é a liberdade, porém, com compromisso, com responsabilidade. Sustentado nessas afirmações, acredita-se que a mídia deva compactuar não somente com a arte de criação, mas com os dilemas morais que envolvem a temática e provocar o enfrentamento desses conflitos. Julga-se que dessa forma seria possível firmar uma cumplicidade entre os meios de comunicação e o debate sobre os rumos da epidemia que estão envoltos de conflitos morais pontuando sempre a vulnerabilidade das mulheres, os processos de socialização e a moralização que as circundam, na observância criteriosa de que as mulheres são as mais afetadas pela contaminação. Cabe à mídia, então, colocar-se como ferramenta impactante na des-construção de valores morais que impedem as mulheres de se proteger.
Portanto, uma das incumbências dos meios de comunicação seria tentar superar distâncias entre os destoantes universos de dois comunicadores, fazendo com que o afastamento presente, tanto físico quanto de conhecimento de conteúdo, supere diferenças iniciais e com isso permita uma aproximação das duas realidades. Em outras palavras, a mídia tem de aproximar o teor das mensagens educativas e as imagens à realidade da mulher brasileira.
A mídia tem como obrigação promover informação de qualidade já que esta desempenha um papel social diante da população; papel que é um dos requisitos mais importantes em uma sociedade informada: a formação de opinião (Sánchez, 1999). Para a discussão desta problemática é que se propõe a utilização do arcabouço teórico da bioética, aliado à mídia, no sentido de informar e des-construir impeditivos que não permitam que mulheres sejam visualizadas, levando sempre em consideração o rumo da doença, pois, entende-se que pautar os dilemas morais seria um dos instrumentos legítimos para discutir os mecanismos que cerceiam a transparência das mensagens.
Colaboradores
EH Gonçalves trabalhou na concepção, na metodologia, na redação final e na pesquisa bibliográfica; R Varandas, na pesquisa em arquivos dos meios de comunicação, de campanhas educativas no início da doença no contexto mundial.
Artigo apresentado em 7/5/2004
Aprovado em 19/7/2004
Versão final apresentada em 19/8/2004
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jun 2007 -
Data do Fascículo
Mar 2005
Histórico
-
Aceito
19 Ago 2004 -
Recebido
07 Maio 2004 -
Revisado
19 Jul 2004