Resumo
O objetivo foi analisar a distribuição espacial da má oclusão (MO) em adolescentes, estimar a prevalência e avaliar os fatores associados. Estudo com dados de 5.558 adolescentes entre 15 e 19 anos de idade do inquérito - SB São Paulo 2015. O desfecho foi a MO. As variáveis independentes foram os aspectos sociodemográficos, acesso aos serviços odontológicos, cárie e perdas dentárias. Foram incluídos 162 municípios do estado de São Paulo e aplicadas técnicas de estatística espacial. Foram realizados modelos de regressão logística hierarquizada. A prevalência de MO foi de 29,3%. Houve um padrão de espalhamento entre os tipos de MO e correlação espacial positiva (p<0,05). Adolescentes não brancos (OR=1,32, IC95%: 1,24-1,42), com menor tempo de estudo (OR=1,30, IC95%: 1,22-1,42) e com dentes extraídos por cárie (OR=1,40, IC95%: 1,03-1,88) tiveram mais chances de apresentarem MO. O acesso dos adolescentes à consulta odontológica não contribuiu para reduzir a chance de apresentar a MO, independentemente de a consulta ao dentista ter ocorrido há menos (OR=2,02, IC95%: 1,65-2,47) ou há mais de um ano (OR=1,63, IC95%: 1,31-2,03). Assim, a ocorrência de MO é desigualmente distribuída no estado de São Paulo, e associada a condições sociodemográficas de acesso à consulta e perda dentária por cárie.
Palavras-chave: Má Oclusão; Epidemiologia; Acesso aos Serviços de Saúde
Abstract
The scope of this study was to analyze the spatial distribution of malocclusion (MO), estimate the prevalence and evaluate the associated factors in adolescents. It was a study with results of 5,558 adolescents aged 15 to 19 from the São Paulo Oral Health (SB) 2015 survey. The outcome was MO. Sociodemographic aspects, access to dental services, dental caries and tooth loss were the independent variables. A total of 162 municipalities in the state of São Paulo were included and spatial statistics techniques were applied. Hierarchical logistic regression models were performed. The prevalence of MO was 29.3%. There was a spread pattern between the types of MO and positive detachment (p<0,05). Non-white adolescents (OR=1.32, 95%CI: 1.24-1.42), with less years of schooling (OR=1.30, 95%CI: 1.22-1.42), with teeth extracted due to caries (OR=1.40, 95%CI: 1.03-1.88) were more likely to have MO. Adolescent access to dental consultation did not contribute to reducing the chance of developing MO, regardless of whether the dental consultation occurred less (OR=2.02, 95%CI: 1.65-2.47) or more than one year before (OR=1.63, 95%CI: 1.31-2.03). Thus, the occurrence of MO is unequally distributed in the state of São Paulo and associated with sociodemographic conditions, access to consultations and tooth loss due to caries.
Key words Malocclusion; Epidemiology; Access to Health Services
Introdução
A má oclusão (MO) pode ser compreendida como todos os desvios dos dentes e dos maxilares, decorrentes da má posição individual dos dentes, discrepância osteo-dentária ou má relação dos arcos dentais no sentido sagital, vertical e/ou transversal1. Mundialmente a prevalência de MO entre crianças e adolescentes chega em torno de 56%, sendo a maior prevalência na África (81%) e Europa (72%), seguida da América (53%) e Ásia (48%)2. No Brasil, o levantamento nacional de saúde bucal, conhecido como “SB Brasil”, ocorrido em 2010, utilizou o Índice de Estética Dental (DAI) para avaliar anomalias dento-faciais. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos de idade, observou-se a prevalência 37,6% de MO neste segmento populacional3, sendo 17,5% na forma severa e muito severa4.
A MO influencia as interações sociais e psicossociais5-7, visto que já foram encontradas evidências da relação entre um sorriso desarmonioso e a percepção de constrangimento nas relações afetivo-familiares8-10, comprometimento da fonação e da deglutição11,12, além da possibilidade de desencadear cefaleias13, impactando negativamente na qualidade de vida dos adolescentes6,14,15. No país, o levantamento estadual realizado em São Paulo, conhecido como “SB São Paulo”, no ano de 2015, revelou que a má oclusão afetou pelo menos uma das atividades diárias dos adolescentes, tais como: comer, falar, escovar os dentes, dormir, sorrir sem constrangimento, manter o estado emocional, desempenhar as atividades sociais e desfrutar do contato com as pessoas6.
Diferentes fatores estão associados à MO entre os adolescentes, como etnia16,17, condições econômicas e sociais16,18,19, hábitos deletérios17,20, traumas dentários19, cárie21,22, perda de dentes4,16, e acesso aos serviços odontológicos16. É geralmente aceito que a etiologia da MO seja multifatorial, envolvendo condições genéticas e ambientais23.
Dessa forma, é interessante incluir no estudo a interação de fatores individuais com contextos ambientais, explorando a distribuição geográfica da doença ou agravo24-26. A identificação de padrões geográficos permite conhecer a tendência da concentração do problema de saúde bucal, podendo apontar para regiões de iniquidades de acesso ao cuidado26-30. Apesar de os estudos epidemiológicos conduzidos no estado de São Paulo, avançarem na compreensão dos fatores associados à MO4,6, inexistem investigações que tenham aplicado métodos geográficos para a identificação da distribuição da MO no estado, o que pode colaborar para o mapeamento de territórios que necessitam de ampliação e qualificação dos serviços públicos odontológicos.
Em face do exposto, os objetivos deste estudo foram conhecer o padrão de distribuição espacial da MO no estado de São Paulo, Brasil; estimar a prevalência; e identificar os fatores sociodemográficos, de acesso a consultas e clínicos bucais associados a esta condição dentária.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo transversal e analítico, o qual utilizou dados secundários, oriundos do banco de dados da Pesquisa Estadual de Saúde Bucal - SB São Paulo 201531. O levantamento epidemiológico considerou como domínio para o plano amostral as seis Macrorregiões do Estado de São Paulo (São Paulo Capital, Região Metropolitana de São Paulo e 15 Departamentos de saúde). Na primeira etapa, foram sorteados 178 municípios e a capital do estado (Unidades Primárias de Amostragem - UPA). Na segunda, foram sorteados 390 Setores Censitários (Unidade secundárias de Amostragem - USA), sendo 2 setores para 177 municípios e 36 setores para a cidade de São Paulo, respeitando em cada momento a probabilidade proporcional ao tamanho populacional.
Todos os domicílios dos setores censitários sorteados foram percorridos e os moradores elegíveis examinados e entrevistados. A técnica de esgotamento com tamanho mínimo de amostragem foi utilizada para cada UPA. Assim, o tamanho da amostra foi baseado na estimativa da frequência, variabilidade do problema a ser investigado e a margem de erro aceitável. Essas estimativas provêm dos resultados do SB Brasil 2010, referentes à cidade de São Paulo e interior do Sudeste. Maiores informações sobre o plano e tamanho amostral podem ser obtidas no relatório final do levantamento31.
A população base do inquérito consistiu de 5.558 pessoas pertencentes ao grupo etário de 15-19 anos do SB São Paulo 201531. A calibração adotada teve como referência o modelo proposto pela Organização Mundial de Saúde32, calculando-se a concordância entre cada examinador e os resultados obtidos pelo consenso de equipe. O coeficiente Kappa ponderado para cada examinador considerou o limite mínimo aceitável de 0,653.
Variável dependente
O inquérito utilizou somente os critérios do Índice de Estética Dental (Dental Aesthetic Index - DAI) relacionados à relação interarcos, que diz respeito aos aspectos estabelecidos no relacionamento entre o arco dentário superior e inferior, nos sentidos sagital (overjet maxilar e mandibular anterior e à relação molar anteroposterior) e vertical (mordida aberta vertical anterior)17.
Para as análises, foi considerado como variável dependente todos os tipos de MO mensurados no SB São Paulo 201531 (overjet mandibular/maxilar e mordida aberta vertical). O overjet maxilar foi mensurado da distância horizontal da face vestibular dos incisivos inferiores até a borda incisal do incisivo superior mais vestibularizado com o auxílio de sonda CPI da OMS32. Para incisivos de oclusão em topo, a medida foi considerada zero. O overjet mandibular foi registrado quando o incisivo inferior se apresentava protruído, vestibularmente, em relação ao incisivo superior oposto. A medida foi realizada da mesma forma que na arcada superior. Foi considerada presença de overjet maxilar quando maior que 3 mm (aumentado), e overjet mandibular quando menor que 1 mm (diminuído). A mordida aberta vertical foi considerada presente quando havia ausência da sobreposição vertical entre pares de incisivos opostos, mensurada pela sonda CPI como >0 mm33.
Variáveis independentes
As variáveis independentes foram classificadas em três níveis (distal, intermediário e proximal). Nível distal: Idade ≤17 anos (Mediana) >17 anos e Sexo (Feminino/Masculino). Também foi considerado neste nível a Cor de pele/raça conforme as cinco categorias de classificação (Branco, Preto, Pardo, Amarelo e Indígenas) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dicotomizado em Branco/Não Branco. Ainda, foi incluído Renda familiar (≤R$ 1.500 (Mediana) >R$ 1.500; Tempo de estudo ≤10 anos (Mediana) >10 anos. Nível intermediário: Consultou o dentista (Não/Sim); Quando consultou o dentista (Menos de 1 ano/Mais de um ano/Nunca foi ao dentista)31. A condição de saúde bucal foi mensurada de acordo com o Índice CPOD (Contagem de dentes cariados, perdidos e obturados). Foi considerado no nível intermediário o número de dentes cariados e obturados (Nenhum/1 ou mais). No nível proximal foi considerado o número de dentes extraídos por cárie (Nenhum/1 ou mais) devido à estreita relação desta condição bucal com a má oclusão entre adolescentes brasileiros4.
Análise espacial
Para a análise espacial, os adolescentes foram agrupados entre os 162 municípios participantes do estudo. Empregou-se a malha do estado de São Paulo, disponível no site do IBGE (shapefile file: https://downloads.ibge.gov.br/downloads_geociencias.htm). Para tanto, foram considerados os limites municipais definidos pelo IBGE (2010) em escala cartográfica de 1:500.000, além das bases cartográficas do Departamento de Informática do SUS (Datasus)/Ministério da Saúde para as macrorregiões de saúde. Em seguida, foram utilizados métodos para avaliação espacial de dados de área. Primeiro, avaliou-se a existência de agrupamento espacial no conjunto de dados através do Índice de Moran Global (IMG), e, em seguida, o padrão pelo Índice de Moran Local (IML).
Todas as análises foram realizadas pelos programas TerraView (versão 4.2.2.) e GeoDa (versão 1.4.6). Por meio de um banco de dados alfanumérico, produzido pelo levantamento de informações e posterior compilação por município, realizou-se um procedimento de conexão de bancos de dados com o mapa vetorial da divisão político-administrativa dos municípios do estado de São Paulo com base no atributo Código do Município, “chave-primária” utilizada na conexão. Os dados foram “plotados” em mapas e, para projeção das imagens, foi utilizado o sistema SIRGAS 2000 com coordenadas geográficas.
Análise estatística
A análise foi realizada com base em um modelo teórico com abordagem hierárquica34. Modelos de regressão logística ponderada hierarquizada foram utilizados para analisar as associações entre a presença das más oclusões e as variáveis independentes. Para a entrada das variáveis no modelo foram consideradas no bloco distal as variáveis independentes: idade, sexo, cor de pele/raça, renda familiar e tempo de estudo; no bloco intermediário, uso de serviço odontológico e experiência de cárie, e no bloco proximal o número de dentes extraídos por cárie. As variáveis foram testadas nos modelos de modo sequencial, sendo a significância estatística adotada de α=0,05 e a qualidade de ajuste avaliada pelo Akaike Information Criterion (AIC) e -2 Log L (log likelihood). Quanto menor os valores de AIC e -2 Log L, melhor é o ajuste do modelo. Foram estimados os odds ratio e os respectivos intervalos de 95% de confiança para cada uma das variáveis. Por fim, realizou-se a regressão com as variáveis que apresentaram valor de p<0,20. No modelo final, somente foram mantidas as variáveis independentes com nível de significância de 5%. As análises foram realizadas com auxílio dos softwares R (R Core Team, Áustria, 2019).
Resultados
Considerando os 5.558 adolescentes, foram observados: média de idade de 16,7 (±1,5) anos; em sua maioria, do sexo masculino (56,3%); autodeclarados brancos (59,7%); com renda familiar de R$ 501 a R$ 1.500 (31,2%); foi algum vez ao consultório odontológico (94,0%); e que consultou o dentista de um a dois anos pela última vez (25,1%). Ainda, 29,3% dos adolescentes apresentaram algum tipo de MO (overjet maxilar/mandibular e ou mordida aberta vertical) conforme apresenta a Tabela 1.
Avaliou-se a distribuição espacial das variáveis relacionadas à MO em adolescentes pelo IMG. O índice apresentou padrão espacial agrupado com significância estatística. A análise exploratória espacial caracterizou a correlação espacial positiva, mostrando como os valores estão associados ao espaço. Todos os indicadores de MO apresentaram autocorrelação global positiva, indicando presença de dependência espacial global significativa para MO em adolescentes entre os municípios do estado de São Paulo.
Em face do exposto, seguiu-se à análise do padrão de correlação espacial pelo IML. As Figuras 1, 2 e 3 representam os municípios que apresentaram significância estatística ao nível de 0,05 para a MO em adolescentes. Observa-se um padrão de espalhamento da MO pelo estado de São Paulo, para a variável Overjet Maxilar. Já as variáveis Overjet Mandibular e Mordida Aberta Vertical apresentaram aglomerados para algumas regiões. O Overjet Maxilar apresentou o menor número de municípios com correlação espacial (n=25/15,43%), seguida de Mordida Aberta Vertical (n=32/19,75%) e Overjet Mandibular com o maior número de municípios e com correlação espacial (n=40/24,69%).
Na análise de regressão logística multivariada, apresentada na Tabela 2, são expostas as análises de associação com a presença de algum tipo de MO (analisando os três tipos em conjunto). Observa-se que adolescentes não brancos e com menor tempo de estudo (≤10 anos) têm, respectivamente, 1,32 (IC95%: 1,24-1,42) e 1,32 (IC95%: 1,22-1,42) vezes mais chance de apresentar MO (p<0,05).
O acesso dos adolescentes ao cirurgião-dentista não diminuiu a chance de apresentar a MO, independentemente de o tempo da última consulta ter sido menor ou maior do que um ano, como mostram os resultados de 2,02 (IC95%: 1,65-2,47) ou 1,63 (IC95%: 1,31-2,03), respectivamente, quando comparado com os adolescentes que nunca foram ao dentista (p<0,05). Em relação à maior chance, adolescentes com dentes extraídos por cárie têm 1,40 (1,03-1,88) vez mais chance de apresentar MO (p<0,05).
Discussão
Os resultados presentes apontam que há uma distribuição heterogênea de MO, (considerando overjet maxilar/mandibular, e/ou mordida aberta vertical) entre os adolescentes do estado de São Paulo, associada às condições sociodemográficas, de acesso às consultas odontológicas, e de perda dentária por cárie.
A prevalência de MO encontrada neste estudo é maior que nos estudos conduzidos no país. Em Minas Gerais, pesquisa realizada com 1.612 adolescentes identificou que 5,2% apresentavam overjet maxilar, 4,9% apresentavam overjet mandibular e 7,6% mordida aberta vertical18. Outro estudo identificou a presença de má oclusão entre 763 adolescentes, destes, 19,6% relacionados ao overjet maxilar, 0,4% ao overjet mandibular, e 4,2% à mordida aberta vertical17.
Cabe esclarecer que a proeminência dos dentes anteriores é devido ao posicionamento anteroposterior acentuado da maxila em relação a base do crânio (overjet maxilar). O overjet maxilar acentuado pode ser causado por displasia óssea, ou por movimento anterior do arco superior e do processo alveolar, ou mesmo combinação destes dois fatores. Diferentemente do overjet maxilar, o overjet mandibular é considerado como a protrusão acentuada da mandíbula devido ao seu crescimento discrepante, ou por excesso de retrusão maxilar, ou combinação de ambos. O tratamento do overjet maxilar e/ou mandibular para a relação normal anteroposterior dependerá de uma análise facial, oclusal e cefalométrica35. Por sua vez, a mordida aberta vertical é caracterizada pela ausência de sobreposição dos dentes anteriores e está associada à distorção da fala e/ou posição alterada da língua e presença de hábitos deletérios36.
Observa-se, portanto, que a abordagem preventiva e o manejo da má oclusão demandam uma clínica integrada e individualizada, sendo imperativo a identificação de subpopulações acometidas para o planejamento de intervenções assertivas.
Assim, a análise espacial respondeu à referida necessidade. Na análise, foi possível compreender o comportamento geográfico da MO que tende a seguir o fenômeno de agrupamento, tendo uma distribuição diferente entre as condições analisadas. O que denota a heterogeneidade nas formas como estão concentrados os tipos de MO entre os adolescentes, e, por consequência, a organização da oferta do tratamento ortodôntico e respectivas ações preventivas devem considerar as localidades apontadas nos mapas deste estudo.
De forma geral, as análises espaciais das condições de saúde bucal dos adolescentes do estado de São Paulo vêm revelando áreas de maior polarização dos problemas bucais37,38. Estudo conduzido com os dados dos adolescentes, participantes do levantamento estadual “SB São Paulo 2015”, demonstrou que os maiores valores do número médio de dentes permanentes cariados, ausentes e obturados (Índice CPO-D) estavam concentrados em cinco das dezessete regiões de saúde do estado38. Da mesma maneira, a MO revelou uma distribuição de aglomerados entre os municípios paulistas (overjet maxilar concentrado em 25 municípios, e overjet mandibular em 40 municípios), demonstrando que estas alterações dentárias também estão distribuídas e aglomeradas em diversas regiões de saúde, demandando maior organização da rede de atenção à saúde bucal para assistir os acometidos.
É possível que a distribuição heterogênea, identificada na análise espacial, seja um reflexo dos determinantes sociais locais. Quando o espaço geográfico é observado como um local onde ocorrem doenças e agravos à saúde, é possível considerar que fatores relacionados às condições de vida, como desenvolvimento econômico local, acesso a bens e serviços básicos, podem produzir mudanças no estilo de vida e nas condições de saúde da população39. Em suma, o desenvolvimento socioeconômico das regiões traz consequências para a saúde bucal em cada segmento populacional e pode justificar a presença da discrepância de condições de saúde bucal da população localizada em diferentes regiões geográficas29.
Interpretando os resultados, observou-se que os adolescentes que foram ao dentista há menos ou há mais de um ano apresentaram maiores chances de apresentar MO quando comparados com aqueles que não foram ao dentista nos últimos anos. No entanto, pode-se considerar que nem todas as necessidades são atendidas durante a consulta. Provavelmente, os adolescentes que precisam de tratamento comparecem com mais frequência à consulta odontológica e, inclusive, necessitam de tratamento ortodôntico40. Levanta-se, ainda a hipótese de que as consultas odontológicas podem resultar em encaminhamentos à especialidade de ortodontia, porém, sem resolutividade devido à possível dificuldade de acesso aos serviços públicos mais especializados41. Ainda, pode ser deduzido que adolescentes que não acessam o serviço odontológico há mais de um ano não participam de intervenções preventivas e são menos expostos às orientações dos profissionais, sendo propensos a acumular problemas de saúde bucal42.
A aglomeração da MO, identificada na análise espacial, sugere que não é uniforme a distribuição da especialidade de ortodontia no estado de São Paulo. Considerando os serviços públicos, pode-se deduzir que as realidades regionais parecem produzir modos distintos de organização e gestão dos sistemas de saúde, impactando na qualidade do acesso universal à assistência à saúde bucal. A falta de acesso a serviços odontológicos públicos e a ausência ou ineficiência da distribuição dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), que ofertam a especialidade de ortodontia, pode ser um fator agravante para a MO. A especialidade de ortodontia pode ser ofertada no CEO43, no entanto, no estado de São Paulo, de 144 CEO participantes do 1º ciclo de Avaliação Externa do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade dos Centros de Especialidades Odontológicas (AE/PMAQ-CEO), apenas 11,2% tinham protocolos de encaminhamentos para esta especialidade44.
Além da necessidade de ampliação da ortodontia no CEO do estado de São Paulo, outros aspectos também precisam ser considerados. Dados de um estudo qualitativo, promovido no sul do país e conduzido por meio de entrevistas com ortodontistas vinculados aos serviços públicos de saúde recomendou que a ampliação de acesso a esta especialidade seja atrelada também a alguns princípios, dentre eles, investimento no trabalho preventivo realizado pela Atenção Primária à Saúde, práticas clínicas que reconheçam a importância do trabalho em equipe e uma formação do ortodontista baseada em responsabilidade ética-política, que considere os aspectos sociais dos usuários37,38.
Entre os fatores clínicos investigados, a associação entre perdas dentárias por cárie e a MO foi significativa, mantendo-se no modelo hierarquizado e corroborando achados de outros estudos4,16. Essa associação faz sentido, uma vez que a perda dentária precoce pode comprometer a manutenção do contato proximal, modificar a sobressaliência anterior, provocar mordida cruzada, ou mesmo diminuir as circunferências dos arcos e, assim, contribuir para o apinhamento na dentição permanente45.
Adicionalmente, a MO foi significativamente maior entre os indivíduos não brancos e com menor tempo de estudo, semelhante aos resultados reportados na literatura4,46. Diferenças na prevalência de MO em grupos étnicos podem ser explicadas pelas características genéticas41-43. No país, a variabilidade genética é um fato consequente da miscigenação de povos, o que pode influenciar ainda mais a prevalência da MO.
De forma inédita, foi demonstrado que o padrão de distribuição da MO não é aleatório entre os adolescentes do estado de São Paulo, e que esta alteração bucal é mediada por fatores dinâmicos de aspectos sociodemográficos, de acesso aos serviços odontológicos, e clínicos bucais. Embora um delineamento transversal não elucide as causalidades da alteração bucal, a análise espacial utilizada colaborou para a identificação de fatores ambientes associados à MO. Essa consideração motivou o presente estudo, embora não seja possível compreender adequadamente o motivo da disposição dos padrões de agrupamento identificados para os tipos de MO, entretanto, reconhecer a existência destes padrões é o primeiro passo para explorar as relações do ambiente com a prevalência da MO.
Por fim, sugere-se que os gestores de saúde atentem nas diferenças entre as regiões do estado, para planejar mais adequadamente as ações de saúde voltadas para os adolescentes. Faz-se necessário considerar o mapeamento epidemiológico apresentando no presente estudo e priorizar as regiões identificadas com as maiores prevalências de MO. Ademais, reforça-se que, para o tratamento e prevenção da MO, é imperativo que haja integração entre a atenção primária em saúde e a atenção odontológica especializada.
Conclusão
O estudo identificou heterogeneidade espacial de MO entre os adolescentes do estado de São Paulo. Adicionalmente, a MO foi associada a adolescentes não brancos, com menor tempo de estudo, que foram ao dentista há menos e há mais de um ano, e que tiveram, pelo menos, um dente extraído por cárie.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
-
Recebido
21 Fev 2022 -
Aceito
17 Out 2022 -
Publicado
19 Out 2022