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RESENHAS

REVIEWS

Um Sertão Chamado Brasil. Lima, Nísia Trindade. Revan: Iuperj, Ucam, Rio de Janeiro, 1999, 232 pp.

Helena Amaral da Fontoura

Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

Este livro é produto da tese de doutorado de Nísia Trindade no Iuperj - que recebeu o prêmio de melhor tese de sociologia defendida em 1997. Dividido em seis capítulos, tem como temas principais a construção da nacionalidade e a reflexão sobre a identidade dos intelectuais. A autora reflete sobre entrecruzamento das visões que intelectuais brasileiros trazem, em seus escritos, a respeito do desenvolvimento da identidade cultural de nosso país, a partir de visões polares de sertão e de litoral - este correspondendo ao desenvolvimento e aquele ao atraso. Faz com que vejamos, ainda, através de suas articulações com a produção em ciências sociais, a inadequação desta oposição binária e a pertinência de uma visão constitutiva, em que estejam incluídos ambos os pólos e todas as nuances.

No capítulo 1, a autora articula teoricamente a construção do pensamento sociológico no Brasil e suas matrizes de interpretação, sempre referida à idéia de sertão/litoral como polaridades presentes na constituição da ordem social. De acordo com sua pesquisa, há um contraste entre sertão e litoral - o litoral associado ao moderno e o sertão ao atraso -, embora esta polaridade tenha convivido com a concepção oposta de superficialidade litorânea em contraposição à autenticidade sertaneja, presente especialmente na literatura de intelectuais como Euclides da Cunha, Vicente Licínio Cardoso, Roquette Pinto, Belisário Penna e Monteiro Lobato, entre outros.

O capítulo 2 traz a representação geográfica da identidade nacional, desenvolvendo-se as idéias de processo de ocupação do território e mobilidade populacional como veículos construtores de determinadas representações sociais no processo de nation-building. Enfatiza-se a perspectiva de aproximação entre o termo sertão e a busca de uma experiência americana, em contraste com litoral e uma idéia mais européia de fronteira. Estas imagens alicerçam as construções feitas por intelectuais brasileiros que se ocuparam da construção da imagem do país desde o final do século XIX até meados do século XX.

Já no capítulo 3, a autora faz uma retrospectiva do papel desempenhado pelas expedições ao interior na produção dos intelectuais das décadas iniciais do século XX. Possibilita, assim, que localizemos as raízes de uma imaginação sociológica nas viagens ao interior realizadas, nesse período, por geólogos e engenheiros, militares e cientistas de instituições de saúde pública, atendendo a objetivos considerados estratégicos do Estado e trazendo, através de valiosos estudos etnográficos, tanto a elaboração de novas interpretações sobre o Brasil quanto a constituição de suas próprias identidades como atores sociais.

O capítulo 4 contribui para a discussão em saúde pública, ao considerar as viagens ao interior e as campanhas de saneamento rural. Aborda também a construção da imagem de 'brasil doente', enfatizando a idéia de sertão como atraso associando-o à patologia, ao abandono, ao isolamento e à essência da vida nacional. Apresentando a perspectiva higienista, que se encontra na raiz de nosso entendimento sobre saúde e conseqüentemente sobre nossas propostas de prevenção e de pesquisa, a autora examina o papel de Belisário Penna, médico sanitarista e etnógrafo que contribuiu para trazer a perspectiva do interior para a análise da construção social do Brasil. Analisa ainda a importância de Edgard Roquette Pinto, médico e antropólogo responsável pela divulgação de uma imagem dos sertões bastante influenciada pelo movimento sanitarista.

No capítulo 5, ao trazer a figura paradigmática do Jeca-tatu, examina uma concepção de personagem do sertão, uma das mais fortes representações do homem rural brasileiro, e discute sobre a capacidade de generalização de tal figura. Jeca-tatu consegue englobar, entre outros tipos, o sertanejo e o caipira, ambos símbolos nacionais representativos e muitas vezes espelhos para alguns intelectuais que se querem ver retrato do Brasil, ao se identificarem como interioranos, sertanejos ou até mesmo desterrados em sua própria terra, para usar a expressão cunhada por Sérgio Buarque de Hollanda.

Finalizando, no capítulo 6, a autora reflete sobre o Brasil e seus contrastes no período de institucionalização universitária das ciências sociais, compreendido entre 1933 e 1964, tendo como referência os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Apresenta como pano de fundo, principalmente, a análise dos conteúdos temáticos desenvolvidos e as perspectivas de abordagem no que considera o período (re)fundador das ciências sociais no país. Aqui ficam bem claras propostas de modernização e desenvolvimento apresentadas nos escritos de paulistas e cariocas, a discussão proposta pela autora quanto às representações da identidade nacional - ora mais para o discurso nacionalista (sertanejo), ora mais para o discurso modernista.

Em suas considerações finais, após abordar o sertão por diferentes perspectivas, realça a tensão permanente entre os contrastes, as desigualdades que tanto permeiam o discurso sobre o Brasil e que se refletem na ambivalência dos pensadores do tema identidade nacional, até mesmo com relação à sua própria identidade. Por exemplo, a idéia de força, obstinação e coragem sertanejas aparece muito nas investigações sociológicas que se desenvolveram após 1930, o que pode ser um indicativo de ambivalência no paradigma de sertão como atraso. A autora propõe, então, que rever nossas matrizes de pensamento social parece-me, nesse contexto, um dos caminhos necessários, nesse esforço de compreensão da sociedade e de nosso próprio papel (p. 209).

A narrativa clara, fluente, envolvente, discorre sobre aspectos relativos à construção da identidade nacional, incorporando a idéia dos muitos brasis, de contrastes, como é o caso da polaridade entre sertão e litoral - presente nas interpretações dos intelectuais - em uma perspectiva não dual, mas processual. Parabenizo a autora por ter contribuído sobremaneira para ampliar o entendimento sobre a construção social de nosso país.

Gestão e Avaliação de Risco em Saúde Ambiental. Brilhante, Ogenis M. & Caldas, Luiz Querino de A. (coords.). Editora Fiocruz, 1999, Rio de Janeiro, 155 pp.

Marta Pimenta Velloso

Coordenação de Saúde do Trabalhador, Diretoria de Recursos Humanos, Fundação Oswaldo Cruz.

Nas últimas décadas a situação do meio ambiente tem preocupado as autoridades governamentais e os cidadãos em geral, tanto nos países industrializados quanto nos de economia periférica. O crescente processo de industrialização, que vem ocorrendo desde o século passado, somado ao desenvolvimento de novas tecnologias de produção e à grande quantidade de produtos lançados no mercado, tem causado danos à saúde do homem e aos ecossistemas. Estes produtos são denominados contaminantes ambientais e constituem o principal fator de risco tecnológico, abrangendo o meio ambiente em um sentido irrestrito, podendo levar a conseqüências desastrosas para a população do planeta. Entretanto, tais fatores são passíveis de intervenção tanto em suas ocorrências quanto em suas conseqüências. Por outro lado, os fatores de risco naturais, ocasionados pelos distúrbios da natureza, só podem ser controlados após terem ocorrido, isto é, em suas conseqüências.

Os riscos tecnológicos têm causado muitas transformações em nosso planeta: no nível local, nos grandes centros urbanos - pela contaminação por radiação, produtos químicos e névoa ácida - e no nível global - pela destruição da camada de ozônio e pelo efeito estufa. Considerando o risco tecnológico sob o qual se encontra a população do planeta, torna-se patente a necessidade de implementar políticas públicas globais visando a um meio ambiente saudável, como pressuposto de vidas saudáveis. A criação de uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável, baseada na Resolução no 44/228, adotada pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1989), é enfatizada na Agenda 21. A terra e os seus recursos naturais - os solos, os minérios, a água e a biota - estão organizados em ecossistemas que oferecem uma grande variedade de condições essenciais para a manutenção da integridade dos sistemas que preservam a vida e sustentam a capacidade produtiva do meio ambiente. A expansão das atividades econômicas, por não obedecer aos padrões de um desenvolvimento sustentável, vem destruindo os recursos naturais. Porém, para atender as necessidades humanas de maneira sustentável, é essencial avançar no sentido de se utilizar mais eficaz e eficientemente os recursos da terra. Assim, a Agenda 21 estabelece, como um dos seus objetivos, melhorar e fortalecer os sistemas de planejamento, gerenciamento e avaliação da terra e dos seus recursos, até o ano 2000.

Gestão e Avaliação de Risco em Saúde Ambiental induz à reflexão sobre as transformações que vêm ocorrendo no meio ambiente e sobre as conseqüências para a saúde humana e ecossistemas, quando analisadas de forma integrada, à luz dos fatores ambientais, sociais e econômicos. Apresenta, em quatro capítulos, uma abordagem integrada das metodologias aplicadas à gestão e à avaliação do risco ecológico e humano, de acordo com o objetivo fundamental da Agenda 21 - preservar os recursos naturais da Terra.

No primeiro capítulo - Gestão e avaliação da poluição, impacto e risco na saúde ambiental -, Ogenis Magno Brilhante comenta a evolução dos conceitos de saúde pública e ambiente, considerados isoladamente desde o final do século passado até a década de 1990, quando a saúde passou a ser vista de forma integrada e interdependente dos fatores ambientais, estabelecendo então o conceito de saúde ambiental. Até o final do século XIX, a política relativa ao meio ambiente se restringia à saúde pública, estando seu campo de atuação limitado à prevenção e ao controle das doenças infecciosas. Em 1993, Hancock formulou um modelo de gestão economicamente sustentável, baseado na idéia de que a atividade econômica não deveria utilizar os recursos renováveis (plantas, animais e solo), além dos seus limites de sustentabilidade. Além disso, tal atividade não deveria poluir o ar e os ecossistemas aquáticos a ponto de perderem a capacidade de recomposição. Nesse modelo a economia deveria ser não só ambiental, como também socialmente sustentável, conceito esse que incluía o princípio da eqüidade, isto é, a saúde não dependeria apenas da geração e distribuição eqüitativa de riquezas, mas também de um meio ambiente viável.

O autor descreve o modelo de controle da poluição proposto por Gilard (1979), que tem como princípios o reaproveitamento dos resíduos não assimilados naturalmente pelo meio ambiente, a modificação do processo de produção de produtos não reutilizáveis e a participação do público. Os resíduos, quando não assimilados ou reaproveitados, transformam-se em lixo, provocando o tipo de poluição que desperta reação na população, que, por sua vez, pode contribuir, reivindicando uma legislação específica. A mobilização do público também pode influenciar no sentido de modificar o processo de produção de resíduos não assimiláveis pelo ambiente, reduzindo a quantidade de lixo e, conseqüentemente, a poluição ambiental.

A poluição de um determinado local, quando não evitada ou controlada, pode transformar-se em um problema global - risco tecnológico. O processo de avaliação de impacto ambiental (AIA), integrado ao estudo de impacto ambiental (EIA), evidencia os efeitos negativos da poluição sobre a qualidade do solo e da água (perda da biodiversidade, erosão), a qualidade do ar (smog, diminuição da camada de ozônio, efeito estufa), a paisagem, a saúde e o bem-estar humano, mostrando a necessidade de um gerenciamento ambiental em escala planetária.

O processo de avaliação de risco (AR) é exposto como um importante instrumento de política ambiental. Entretanto, os procedimentos adotados nos estudos da avaliação de risco devem considerar o meio ambiente como um sistema integrado, e não como uma fragmentada coleção de riscos individuais. Com o intuito de alcançar a integração efetiva da avaliação de risco ao gerenciamento ambiental, o congresso norte-americano, em 1990, nomeou uma comissão encarregada de consolidar os diversos procedimentos existentes de 'avaliação de risco' e de propor uma nova estrutura de 'gestão de risco'. Entre as principais conquistas de tal comissão ressalta-se a de ter formulado um procedimento de gerenciamento integrado de risco, incluindo mecanismos capazes de propiciar um desenvolvimento sustentável, ou seja, o reconhecimento das interações existentes na saúde ambiental, na qualidade de vida e na compreensão dos processos pelos quais nossa sociedade cria mudanças (benéficas ou adversas) a longo prazo. O autor, então, apresenta e comenta as etapas (problema/contexto, riscos, opções, decisão, ações e avaliação) relacionadas ao procedimento do gerenciamento integrado de risco, proposto pela referida comissão.

No segundo capítulo - Procedimentos integrados de risco e gerenciamento ambiental: processos e modelos -, Horst Monken Fernandes e Lene Holanda Sadler Veiga chamam a atenção para os riscos que o meio ambiente vem sofrendo ao longo dos últimos anos. As mudanças climáticas e a redução do nível de ozônio na atmosfera ocuparam espaço considerável nos meios de comunicação, mostrando que a vinculação do homem ao meio ambiente é mais complexa do que a sua simples exposição aos produtos tóxicos. Ressaltam que as intervenções antropogênicas no meio ambiente devem abranger a saúde humana e a ecologia.

Durante o processo de avaliação de risco, na relação específica risco/benefício, geralmente o fator econômico é mais considerado do que a saúde do homem. E no caso ecológico, o risco é quase desconsiderado. Apesar de não estar diretamente relacionado à saúde humana, seu impacto ocasiona uma série de problemas que pode deteriorar a qualidade de vida do homem, como extermínio de uma comunidade de predadores por pesticidas, extinção local de espécies animais e vegetais, substituição de peixes de alto valor comercial por populações menos valiosas, alteração na capacidade de um ecossistema em depurar certo tipo de rejeito e mudança nas composições físico-químicas do ambiente.

Segundo os autores, a abordagem das conseqüências das intervenções antropogênicas no ambiente deve agregar diferentes aspectos do conhecimento. Esta visão integrada, reconhecida como "avaliação de risco e gestão em poluição ambiental", é desenvolvida através de metodologia baseada nos princípios de gestão ambiental, na elaboração de cenários e modelos conceituais, na avaliação de risco para à saúde humana e ecossistemas e nos instrumentos de gestão alternativa/avaliação de custo.

No terceiro capítulo - Risco potencial em toxicologia ambiental -, Luiz Querino de A. Caldas explica os objetivos da toxicologia ambiental. Esta ciência, abrangendo um estudo inter e multidisciplinar, analisa o efeito causado pelas interações tóxicas de substâncias químicas nos ecossistemas e sua capacidade de afetar a fisiologia normal de organismos vivos. O risco potencial é definido como o estudo das probabilidades de fontes perigosas para a saúde e o meio ambiente capazes de ocasionar danos, doenças ou morte aos seres vivos, quando em concentrações superiores àquelas não assimiláveis por eles. Já a avaliação de risco, considerada como os primeiros passos no desencadeamento dos processos decisórios, advém do conhecimento da relação causa/efeito e dos possíveis danos causados pela exposição a determinado agente químico. As etapas que constituem o processo da avaliação de risco (identificação do perigo, avaliação de exposição, estimativa de risco, dose de exposição, caracterização do risco e gerenciamento do risco) são descritas, em detalhes, sinalizando para os limites do seu processamento.

O autor lembra a importância da percepção de risco pela população como aspecto relevante para o estudo de risco. Esta percepção tem sido manifestada pelas organizações não-governamentais contra os danos ecológicos e humanos causados pela exposição de agentes nocivos à saúde. Ressalta que os acidentes ecológicos - como a contaminação por dioxina em Seveso (Itália), por mercúrio na baía de Minamata (Japão), por metais pesados (mercúrio, cádmio e chumbo) nos rios amazônicos (Brasil), por bifenilas poli-halogenadas em Michigan (EUA) - têm alertado o interesse público para a proteção das comunidades.

No quarto capítulo - Avaliação de risco para a saúde humana e ecossistemas -, Lene Holanda S. Veiga e Horst Monken Fernandes apresentam a proposta preconizada pela Agência de Proteção Ambiental Americana (U.S. EPA, 1989) utilizada para avaliar o risco da poluição do meio ambiente. A metodologia, que instrumentaliza a referida proposta, incorpora o conceito de dose para poluentes não-radioativos, já aplicado na área de radioproteção. De forma genérica, a dose é definida como a quantidade de substância incorporada ou absorvida pelo organismo e por ele metabolizada (WHO, 1978), ou, no caso da radiação, como a energia média da radiação depositada pela radiação ionizante no elemento de matéria m Icru (1980). Assim, na avaliação da dose, é fundamental a quantificação da exposição a um contaminante ou radiação. Mas, lembram os autores, o uso de valores genéricos de limites de concentração como unidade de controle para contaminantes, às vezes, apresenta-se ineficiente - por exemplo, quando vários contaminantes estão presentes em concentrações próximas aos valores-limites, o efeito combinado pode ser substancialmente pior do que quando apenas um contaminante excede esse valor. Destacam a diferença entre os riscos produzidos pelos poluentes sistêmicos - causadores de efeitos tóxicos (método de avaliação baseado no conceito de dose) - e poluentes carcinogênicos - causadores de câncer. Finalizando o capítulo, os autores expõem o processo de avaliação de risco para a saúde humana, distinto às duas categorias de efeitos adversos - sistêmico e carcinogênico - e ainda explicam a estimativa e aplicação da metodologia para efeito da avaliação de risco ecológico.

Revue Prevenir 33 - Qualité de Vie: santé, ecologie, environnement. Bley, Daniel & Vernazza-Licht, Nicole (orgs.). Coopérative d'édition de la vie mutualiste (CVM), Marseille, 1997, 224 pp.

Elizabeth Uchôa

Laboratório de Epidemiologia e Antropologia Médica, Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz.

O número 33 da Revue Prevenir reúne vinte e três textos sobre questões relativas ao conceito de qualidade de vida, apresentando uma reflexão teórica e metodológica de grande importância. Como definir o conceito de qualidade de vida? Quais são seus elementos constitutivos? Quais os critérios utilizados para a construção de um modelo de avaliação e para a definição de indicadores? Essas questões norteiam grande parte dos artigos que constituem o volume.

O encontro entre contribuições de médicos, enfermeiros, advogados, geógrafos, historiadores, ecologistas, filósofos, sociólogos e antropólogos reflete a complexidade do tema, garante a riqueza da obra e torna difícil a tarefa de apresentá-la de forma resumida. Considerando a grande diversidade de pontos de vista, de focos de interesse e de abordagens disciplinares - característica fundamental do conjunto de textos deste número da Revue Prevenir - comentarei brevemente cada um dos textos que o compõem.

O editorial, escrito por Dominique Durand, Daniel Blay e Nicole Vernazza-Licht, destaca a distorção criada por um modelo de qualidade de vida enraizado no mundo ocidental - urbanizado, rico e polarizado sobre alguns valores significativos neste contexto - e sua pretensa aplicabilidade universal. Os autores propõem uma linha de reflexão que se prolonga através das quatro seções que compõem este número da revista. A dialética entre o universal e o particular bem como a articulação entre o objetivo e o subjetivo apresentam-se como os elementos essenciais dessa reflexão.

A primeira seção contém apenas um artigo, assinado por Daniel Bley e Nicole Vernazza-Licht, dois antropólogos que coordenam o número. Os autores discutem as dificuldades inerentes à definição do conceito de qualidade de vida e ressaltam sua ampla utilização tanto pelos mais diversos especialistas quanto pela população geral e pela imprensa. Situado na interface entre o biológico, o social e o cultural, o conceito de qualidade de vida seria multidimensional e exigiria uma abordagem multidisciplinar. Afirmam os autores que a apreensão do conceito em sua globalidade implicará esforços das ciências médicas e ambientais para transcender limites disciplinares e focalizar a articulação entre a saúde e o ambiente.

A segunda seção reúne sete textos em torno de questões conceituais e metodológicas relativas ao conceito de qualidade de vida. No primeiro artigo, a antropóloga Annie Hubert discute a possibilidade de se avaliar em termos quantitativos um conceito intrinsecamente subjetivo como o é o de qualidade de vida. Referindo-se ao campo da alimentação e da imagem do corpo, a autora discute o reducionismo dos modelos que identificam o ideal, objetivamente definido por parâmetros médicos, e o vivido, subjetivamente construído. Segundo Hubert, os problemas decorrentes das medidas de qualidade de vida seriam uma conseqüência direta das dificuldades de definir o conceito. A autora sugere que a contribuição da antropologia seria, nesse contexto, de grande valor. No artigo seguinte, o ecologista Bernand Brun discute o fundamento biológico do conceito de qualidade de vida. Segundo o autor, mesmo sob a ótica da biologia evolucionista, a questão da qualidade de vida não se limitaria à oferta de condições materiais definidas de maneira objetiva, ela é necessariamente marcada pela subjetividade. No terceiro artigo, Henri Picheral analisa as relações entre espaço e qualidade de vida. Considerando que a satisfação de necessidades e de aspirações constituem a base da qualidade de vida, o autor enfatiza a necessidade de se desenvolver um modelo de análise espacial que leve em conta a articulação entre o objetivo (bens, serviços, ambiente, geofísico) e o subjetivo (representações). No texto seguinte, Pascale Steinchen, advogada, focaliza a evolução das relações entre o direito ao ambiente e a qualidade de vida. De acordo com a autora, concebido inicialmente como simples componente da qualidade de vida, o ambiente progressivamente adquiriu a autonomia. Entretanto, de forma paradoxal, o reconhecimento do direito ao ambiente não foi acompanhado do desenvolvimento de instrumentos jurídicos para garantir a sua defesa. No quinto artigo, Philippe Mioche, historiador, analisa, com base em três grandes períodos cronológicos, a relação entre trabalho real e as representações do trabalho. Para ele, as transformações das condições reais de trabalho não são acompanhadas de uma transformação imediata de suas representações, podendo estas últimas afetar a qualidade de vida de forma não negligenciável. O texto seguinte reúne definições e significados atribuídos ao termo qualidade de vida por pesquisadores e professores da área de ecologia (Bookony, Greppin, Vicari, Paccagnela, Devust, Hens e Lefrèvre-Witier). O último texto da seção é a uma entrevista com Isabelle Grimaud e Claude Monleau sobre a criação e os objetivos do curso Ambiente, Ecologia e Sociedade em Marseille.

A terceira seção contém nove textos focalizando mais particularmente a relação entre qualidade de vida e saúde. Alain Leplège e Anne Marciniak, no primeiro artigo, afirmam que, mesmo havendo consenso entre os pesquisadores sobre a necessidade de levar-se em conta a qualidade de vida na avaliação dos serviços de saúde, alguns problemas conceituais continuam a permear a abordagem das relações entre qualidade de vida e saúde. A primeira delas seria a ausência de fundamentos teóricos das medidas de qualidade de vida, e a segunda seria relativa aos limites dos modelos atualmente disponíveis quando se trata de apreender a percepção dos pacientes. O modelo médico, na opinião dos autores, atribui um peso excessivo ao aspecto funcional, ignorando a diversidade de valores atribuídos pelos indivíduos ao exercício de determinadas tarefas, as variações interculturais e os ajustamentos que podem intervir para preservar uma certa qualidade de vida. Leplège e Marciniak chamam a atenção para o fato de que o modelo médico postula um nível ótimo de funcionamento humano ao qual aspirariam todos os homens, mas que, muitas vezes, sob o pretexto de recolher percepções dos pacientes, as pesquisas construídas a partir deste modelo continuariam apenas a refletir julgamentos profissionais. Para que os pacientes possam verdadeiramente expressar suas opiniões, nos lembram os autores, é preciso que as perguntas dos questionários reflitam suas reais preocupações. Leplège e Marciniak sugerem a substituição do conceito de qualidade de vida pela noção de saúde subjetiva, que lhes parece mais adequada.

Pasqual Auquier, Marie-Claude Simeoni e Hélène Mendizabal, autoras do seguinte artigo, discutem os fundamentos teóricos das medidas de qualidade de vida ligada à saúde, seus objetivos e suas aplicações. Expõem também as grande linhas de construção e validação de uma medida de qualidade de vida. As autoras ainda se interrogam sobre a adequação do emprego em saúde da terminologia qualidade de vida. Suzanne Rameix desenvolve o seu artigo em torno de três questões principais: por que construir este instrumento de medida que é a qualidade de vida? Em que situações pode ser utilizado? Quais as dificuldades éticas que surgem nestas situações? A autora lembra que, com a quantificação da ciência no século XVII, houve uma ruptura entre os fatos e os valores, tal abordagem teria revelado seus limites e favorecido o surgimento, no século XX, de uma tendência a reintroduzir a dimensão qualitativa em um mundo quantificado. A medida de qualidade de vida teria surgido, nesse contexto, como uma possibilidade de quantificação da qualidade. A autora discute as diversas situações em que as medidas de qualidade de vida têm sido utilizadas (para avaliar e otimizar um tratamento; escolher um entre vários tratamentos; avaliar a qualidade de vida futura para tomar decisões relativas à limitação, à interrupção ou à abstenção de tratamento; planejar a distribuição de recursos e a organização dos sistemas de saúde) e conclui que mesmo se justificado e necessário, o emprego deste instrumento cria alguns dilemas éticos, exigindo portanto, uma vigilância severa no nível individual e político. O artigo de Catherine Déchamp-Le Roux denuncia a tendência atual em confundir tecnologia médica e qualidade de vida. A autora afirma que o conceito de qualidade de vida está longe de ser padronizado e não corresponde a nada objetivável.

Ela é extremamente crítica em relação ao QALY, instrumento que mede os anos ganhos ponderados pela qualidade de vida. Segundo Déchamp-Le Roux, a aritmética dos QALY favoreceria aqueles que já são favorecidos, hierarquizando a vida e podendo acentuar as desigualdades naturais e sociais.

Os dois textos seguintes referem-se a duas entrevistas, uma com Jean Marc La Piana, outra com Cristian Brunet. La Piana é médico e responsável por La Maison, unidade independente, não hospitalar, que acolhe pacientes com Aids, cujo objetivo principal é a qualidade de vida no fim da vida. Ele ressalta que, nesse contexto, qualidade de vida tem muito pouco a ver com escalas de medida, é mais uma questão de relação com o outro e de respeito ao outro. Cristian Brunet, professor de anatomia e cirurgião, é entrevistado sobre suas atividades de pesquisa. Brunet explica que seus trabalhos de investigação buscam aumentar a segurança dos veículos e, em particular, aumentar o conforto dos indivíduos que devem permanecer assentados enquanto dirigem visto que o ser humano não foi feito para permanecer assentado durante muito tempo.

O artigo seguinte, escrito por Marie-Odile Carrère, Gérard Duru, Béatrice Fervers e Hans-Martin Späth, focaliza aspectos práticos e teóricos relacionados à avaliação econômica em saúde. A avaliação econômica, segundo os autores, tem por objetivo fundamentar decisões relativas à distribuição de recursos; se ela é indispensável na área da saúde, é também nesta área que ela é mais problemática. Na primeira parte do trabalho são examinados os métodos mais utilizados na avaliação econômica e, em particular, os métodos de avaliação de qualidade de vida em saúde. Na segunda, os autores se interrogam sobre as teorias subjacentes a esses métodos. Concluem afirmando que, apesar de inúmeras dificuldades tanto no plano teórico quanto no prático, a avaliação econômica é indispensável. Entretanto, é preciso ser consciente dos limites de certos conceitos e lembrar que os resultados da avaliação econômica não devem ser utilizados de forma mecânica; eles ajudam orientar as decisões, mas não devem substituí-la.

O artigo de Bernard Barraqué focaliza a questão do barulho e a necessidade de abordá-lo a partir de uma perspectiva qualitativa. Para o autor, as abordagens quantitativas e objetivas desenvolvidas no contexto da saúde pública não resolvem os novos problemas surgidos em conseqüência do aumento do barulho do trânsito e da vizinhança; neste caso, o barulho não se refere à saúde, como no caso da surdez conseqüente ao trabalho, mas à qualidade de vida. O artigo de Claude Lallemand discute a complexidade do problema de saturnismo infantil em Lyon. Segundo o autor, a persistência de alojamentos antigos com muros recobertos com tinta à base de chumbo, sua utilização por famílias vulneráveis sócio e economicamente e as gravíssimas conseqüências sobre a saúde das crianças acarretam um problema multidimensional que exige intervenções também multidimensionais (médicas, sociais e ambientais).

A quarta seção reúne seis textos. O primeiro, escrito por Jean Pierre Besancenot, discute as relações entre clima, saúde e qualidade de vida. Segundo o autor, o clima é um elemento determinante da saúde e da qualidade de vida, ressaltando, entretanto, que o impacto de determinado clima sobre o organismo não corresponde de maneira exata à percepção do prazer e conforto que ele proporciona; em alguns casos a distância entre um e outro pode ser enorme. O autor discute ainda o impacto do avanço da tecnologia, do progresso da medicina e das transformações surgidas com o passar dos anos sobre relação clima/saúde. Gérard Bourgeat explora, em seu artigo, a noção de conforto térmico. Ele emprega a teoria das representações sociais e o método de análise de semelhanças, com o objetivo de explicitar idéias, opiniões e atitudes que compõem esta representação. Como ponto de partida, distingue a noção de conforto térmico da de temperatura ambiente, enfatizando que, em muitos casos, os parâmetros físicos têm papel mínimo sobre o sentimento de sentir-se bem.

Serge Clément se interessa pela percepção que as pessoas idosas têm de seu envelhecer. O autor denuncia a existência de uma tendência contemporânea de associar, muito facilmente, envelhecimento a invalidez. Tal tendência negligenciaria a atitude de 'desengajamento' que permite à pessoas idosas recentralizarem seus interesses, de modo a preservar o que lhes parece essencial de acordo com o seu modo de viver. Baseado em entrevistas com idosos e com pessoas ao seu redor, o autor conclui que as pessoas desenvolvem suas próprias referências do que constitui o envelhecer bem; são diversas as trajetórias possíveis. Quatro tipos ideais de envelhecer são apresentados.

Jean Marie Marconot reflete sobre as conseqüências econômicas, sociais e simbólicas da inundação de Nimes de 1988 e sobre suas relações com o passado e com o futuro. Visando ao alcance e à preservação da qualidade de vida da população, o autor aponta como essencial o estabelecimento de um debate entre a ecologia e a economia.

Os dois últimos artigos da seção focalizam o impacto de transformações econômicas sobre as relações sociais e a qualidade de vida de populações africanas. O trabalho de Séverin Cécile Abega focaliza as relações entre qualidade de vida e alimentação. A partir da confrontação entre três tipos de sociedades e de suas características sociais e econômicas, analisam-se o valor cultural dos alimentos e as conseqüências da introdução de uma nova escala de valores. Hélène Pagezy discute, em seu artigo, a evolução na África central de dois indicadores de bem-estar (número de filhos e prestígio social) em conseqüência das importantes transformações que caracterizam o continente africano.

A leitura global do número, algumas vezes, nos frustra. Algumas colocações são repetitivas, alguns textos, muito específicos e outros, demasiado gerais. Entretanto, a pluralidade e heterogeneidade de contribuições constituem a riqueza do conjunto de textos. A diversidade de especialistas e abordagens convergindo em torno do tema é um convite para repensarmos os fundamentos teóricos da definição, a operacionalização e as implicações sociais, éticas e políticas da utilização do conceito de qualidade de vida. Sua leitura é obrigatória para aqueles que se interessam pelo tema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2000
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