Open-access Desigualdades no perfil de utilização de serviços odontológicos no Brasil

Resumo

Este trabalho teve por objetivo analisar a influência de fatores socioeconômicos na desigualdade de utilização de serviços odontológicos na população brasileira. A metodologia baseou-se em um estudo seccional, com uso de dados secundários provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013. O banco de dados utilizado contém informações sobre 60.202 indivíduos maiores de 18 anos. As variáveis dependentes avaliadas foram “frequência de consulta odontológica” e “tipo de tratamento odontológico realizado na última consulta. As variáveis independentes avaliadas foram sexo, faixa etária, escolaridade, classe social mensurada através do critério Brasil e região geográfica. Na análise multivariada, foram avaliadas as odds-ratio dos desfechos a partir de um modelo de regressão logística multinominal. Percebeu-se que a população de cor/raça negra, residente na região Norte/Nordeste, de menor classe social e escolaridade apresentou maior chance de realizar acompanhamento irregular e nunca ter ido ao dentista. Além disso, este estrato populacional também apresentou maior chance de realizar procedimentos odontológicos cirúrgicos ou de urgência na última consulta odontológica. Os dados da PNS 2013 demonstram um quadro de desigualdade social no acesso a serviços odontológicos no Brasil.

Palavras-chave: Saúde bucal; Desigualdades em saúde; Acesso aos serviços de saúde; Serviços de saúde bucal

Abstract

This study aimed to examine the influence of socioeconomic factors on inequality in the use of dental services within the Brazilian population. The methodology was based on a sectional study, using secondary data from the 2013 National Health Survey (PNS, in Portuguese). The database contains information on 60,202 individuals over 18 years of age. The dependent variables were “frequency of dental appointments” and “type of dental treatment performed in the last appointment”. The independent variables were sex, age group, education, social class measured using the Brazil criterion, and geographic region. The odds-ratio of outcomes were evaluated in the multivariate analysis using a multinomial logistic regression model. It was noticed that the population subgroups comprising Blacks and those residing in the North/Northeast, with lower social class and education, had a greater chance of having irregular follow-up and never having been to the dentist. In addition, this population stratum also had a greater chance of undergoing surgical or emergency dental procedures in the last dental appointment. Data from the 2013 PNS reveal a picture of social inequality in access to dental services in Brazil.

Key words: Oral health; Health inequalities; Access to health services; Oral health services

Introdução

Durante anos a Odontologia se situou à margem das políticas públicas de saúde, com a assistência odontológica estatal refletindo um quadro de intensa exclusão do acesso e baixo impacto sobre os índices epidemiológicos, tendo em vista que o atendimento era centrado a urgências e a grupos prioritários1. Os agravos relacionados à saúde bucal dos brasileiros representam, portanto, um importante problema de saúde pública devido à sua prevalência e magnitude na população2.

Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, 55,6% dos brasileiros não tinham utilizado os serviços odontológicos nos últimos 12 meses3. Ainda em estudo realizado em um município de grande porte populacional, Carreiro et al.4 observaram que idosos, renda menor que um salário mínimo e autopercepção da saúde bucal como “regular/ruim/péssima” estavam associados a um menor acesso aos serviços odontológicos, considerando uma maior falta de acesso aos serviços odontológicos entre os mais vulneráveis socialmente. Por outro lado, Vieira et al.5 observaram que a probabilidade da não utilização desses serviços foi menor entre mulheres, adultos com cor da pele parda e naqueles com necessidades odontológicas percebidas.

Tais constatações apontam para as desigualdades em saúde, as quais se referem à presença de diferenças entre subgrupos de uma mesma população, ao passo que iniquidades são diferenças consideradas injustas a partir de um juízo de valor6. Estabelecendo relação direta com esses conceitos, o Sistema Único de Saúde (SUS) traz a equidade como um dos seus princípios doutrinários, o qual busca reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde e nas necessidades das pessoas, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e deve atender à diversidade7.

No Brasil, tem-se procurado vigorosamente, no campo da Saúde Coletiva, salientar que a superação de desigualdades em saúde exige a formulação de políticas públicas equânimes, o que implica, por um lado, reconhecer a saúde como um direito de cidadania e, por outro, priorizar as necessidades como categoria essencial para a promoção de justiça6,7. Esse contexto reflete a ainda presente necessidade de se analisar o perfil de acesso aos serviços de saúde e assim traçar estratégias para contemplar essa parcela de brasileiros buscando a equidade em saúde, tendo em vista que ainda existem desafios colocados pela realidade socioeconômica e política brasileira.

Sendo assim, faz-se necessário continuar destacando as iniquidades com relação aos serviços no que diz respeito aos aspectos sociodemográficos para reconhecer que as desigualdades são persistentes. Assim, analisar a utilização de serviços odontológicos é fundamental para avaliar o efetivo alcance da equidade e universalização do acesso à saúde, princípios do SUS.

Embora alguns estudos tenham sido conduzidos com a finalidade de verificar desigualdades no acesso a consultas odontológicas no Brasil8-10, não são observados estudos que avaliem o tipo de tratamento odontológico realizado na última consulta em estudos de abrangência nacional, sendo este um importante desfecho a ser analisado considerando que as desigualdades podem influenciar no tipo de tratamento odontológico realizado. Dessa forma, o presente estudo teve por objetivo descrever o padrão de utilização de serviços odontológicos na população brasileira a partir de fatores sociodemográficos, relacionando a periodicidade de consultas odontológicas e a distribuição do tipo de tratamento odontológico realizado na última consulta aos aspectos renda, raça, idade, região geográfica e escolaridade.

Método

Desenho de estudo e participantes

Consiste em um estudo seccional, com uso de dados secundários provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013, a qual trata-se de um inquérito domiciliar de base populacional e abrangência nacional, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. A PNS foi realizada por meio de amostragem conglomerada em três estágios. Onde os setores censitários ou conjunto de setores formam as unidades primárias de amostragem, os domicílios formam unidades de segundo estágio e os moradores de 18 anos ou mais de idade as unidades de terceiro estágio. Para mais detalhes acerca da metodologia da PNS, consultar o relatório final3.

O banco de dados utilizado contém informações sobre 60.202 indivíduos, correspondentes àqueles selecionados para a entrevista, os quais constituíam moradores com 18 anos ou mais de idade por domicílio (unidades terciárias), para as variáveis de interesse do estudo. Os dados utilizados são de acesso livre e estão disponíveis no website do IBGE11. A PNS atendeu todos os requisitos éticos para a realização de pesquisas em seres humanos de acordo com a resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012, obtendo parecer favorável nº 328159.

Variáveis de estudo

A primeira variável dependente do estudo constituiu na frequência de consulta odontológica. Para isso, foi utilizado o módulo J, que diz respeito à “Utilização dos Serviços de Saúde” da PNS. Deste módulo, utilizou-se a variável J013, a qual faz referência acerca de quando o participante consultou um dentista pela última vez. Essa variável foi categorizada em três grupos: (a) faz acompanhamento regular (compete às pessoas que consultaram um dentista “nos doze últimos meses” ou “de 1 ano a menos de 2 anos”), (b) faz acompanhamento irregular (compete às pessoas que consultaram um dentista “de 2 anos a menos de 3 anos” ou “3 anos ou mais”), e (c) nunca foi ao dentista.

Os grupos foram determinados considerando como acompanhamento regular o preconizado pela diretriz clínica do National Institute for Health and Care Excellence12, que preconiza que o intervalo mais longo entre as consultas de saúde bucal para pacientes com 18 anos ou mais deve ser de 24 meses. Por outro lado, para a composição do grupo que nunca foi ao dentista, considerou-se para esse desfecho a evidência de ausência de acesso ao atendimento odontológico ao longo da vida. Os demais indivíduos que já realizaram consulta odontológica ao menos uma vez durante a vida com periodicidade maior que 2 anos, foram considerados como acompanhamento irregular. Para esse primeiro desfecho utilizou-se uma amostra de 60.202 indivíduos.

A segunda variável dependente corresponde ao tipo de tratamento odontológico procurado pelos participantes, compreendendo os indivíduos que relataram realizar acompanhamento regular ao dentista. Foi obtida a partir da recategorização da variável U009, que corresponde ao principal motivo da última consulta ao dentista. Nesse sentido, a distribuição do tipo de tratamento odontológico resultou em: (a) consultas de prevenção/acompanhamento (limpeza, revisão, manutenção, prevenção e radiografia), (b) procedimentos cirúrgicos ou de urgência (dor de dente, extração), e (c) tratamento odontológico (problema na gengiva, tratamento de ferida na boca, aparelho ortodôntico, colocação/manutenção de prótese ou dentadura e implante dentário). Para a composição dos grupos, considerou-se que a realização de consultas de prevenção e acompanhamento consiste em um indicador do padrão de acesso e utilização periódica de serviços odontológicos13. Por outro lado, para o desfecho consultas para realização de procedimentos cirúrgicos e de urgência considerou-se que a falta de acesso a medidas preventivas e assistenciais aumenta a complexidade do problema de saúde bucal ocasionando a dor dental e a exodontia como única conduta tecnicamente possível frente à gravidade da doença ou como indicação para alívio da dor frente à impossibilidade de acesso a outros tipos de tratamento14. Os procedimentos odontológicos curativos ou restauradores foram incluídos como tratamento odontológico.

As opções em que o principal motivo da última consulta se deu apenas para fazer o orçamento ou outro motivo, foram excluídas da recategorização, resultando em dados sobre 24.151 participantes. A menor amostra para esse desfecho se dá devido a não existência de informações sobre os indivíduos que nunca foram ao dentista, ou que foram há mais de três anos.

Para a seleção das variáveis independentes, utilizou-se os fatores individuais predisponentes conforme o Modelo Comportamental de Andersen15, reconhecidas como fatores associados às desigualdades na utilização de serviços odontológicos em nível mundial: idade, sexo, raça/cor, nível educacional e socioeconômico16. Considerando as desigualdades em saúde no contexto nacional, incluiu-se também a região geográfica9. As variáveis independentes utilizadas foram: idade categorizada em faixas etárias (18-29, 30-39, 40-59, ≥60 anos), cor ou raça autodeclarada (branca, preta e parda), região de residência (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-Oeste), “Critério Brasil” categorizado em classes (A, B e C, D e E), anos de estudos categorizados (12 ou mais, 9-11, 5-8, 1-4 anos e sem instrução). O “Critério Brasil” é uma estratificação socioeconômica baseada na posse de bens e na escolaridade (anos de estudo) onde, a partir de uma ponderação, criam-se estratos socioeconômicos de A até E17.

Análise estatística

Para a análise estatística, utilizou-se o módulo de análise de dados de amostras complexas do software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences). Foram realizadas análises estatísticas descritivas através de frequência relativa, com expansão para a população brasileira residente no ano do estudo. A expansão para população brasileira se deu através de amostragem complexa. A análise descritiva dos dados utilizou a estimativa ponderada das unidades amostrais nos três estágios. Em seguida, cada observação incorporou seu peso amostral para calcular as estimativas e seus respectivos intervalos de confiança. Dessa forma, os dados foram descritos usando estimativas de prevalência para a população brasileira seus intervalos de confiança de 95% (IC95%). Realizou-se uma análise bivariada através de regressão logística multinominal, para a obtenção das razões de chance para os desfechos entre os grupos. Posteriormente realizou-se uma análise multivariada a partir de um modelo de regressão logística multinominal. Foram incluídas na modelagem inicial as variáveis com valor de p<0,2, e no modelo final foram mantidas as variáveis com valor de p<0,05, considerando o nível de confiança de 5%.

Resultados

A Tabela 1 mostra as características da população em estudo. A maior proporção de indivíduos é do sexo feminino, com idades entre 40-59 anos, de cor ou raça branca, residente no Sudeste brasileiro. Com relação à frequência odontológica, pode-se afirmar que a maioria das pessoas faz acompanhamento regular, realizando consultas de prevenção ou acompanhamento. No que se refere ao “Critério Brasil” e anos de estudo, 63,9% (IC95%: 62,9-64,8) da população pertence às classes C e B e 35,1% (IC95%: 34,2-35,9) tem entre 9-11 anos de estudo, respectivamente.

Tabela 1
Estimativas e respectivos intervalos de confiança (95%) da prevalência para as variáveis utilizadas no estudo. Brasil, 2013.

A Tabela 2 e a Tabela 3 apresentam a análise bivariada e as razões de chances para os desfechos frequência de consultas odontológicas e tipo de tratamento odontológico realizado na última consulta, respectivamente, de acordo com as variáveis independentes.

Tabela 2
Análise bivariada da frequência de consulta odontológica de acordo com as variáveis estudadas. Brasil, 2013.
Tabela 3
Análise bivariada do tipo de tratamento odontológico de acordo com as variáveis estudadas. Brasil, 2013.

A Tabela 4 apresenta a análise multivariada para o desfecho frequência de consulta odontológica. Percebe-se que a faixa de 60 anos ou mais apresenta uma maior chance de realizar acompanhamento irregular (OR=2,94; p<001), todavia tal efeito não foi observado quanto a nunca ter ido ao dentista. No tocante à cor ou raça observa-se que indivíduos de cor/raça preta possui maior chance de não realizarem acompanhamento regular (OR=1,33; p<0,001) ou nunca terem consultado um dentista (OR=2,23; p<0,001) que indivíduos de cor de pele/raça branca. Resultados semelhantes foram encontrados para indivíduos de cor de pele parda. Moradores da região Norte tem maior chance de realizar acompanhamento irregular (OR=1,40; p<0,001) e de nunca terem ido ao dentista (OR=2,58; p<0,001).

Tabela 4
Análise multivariada da frequência de consulta odontológica de acordo com as variáveis estudadas a partir de regressão logística multinominal. Brasil, 2013.

Ao considerar o indicador do “Critério Brasil” percebe-se que indivíduos das classes D e E apresentam a maior chance de realizarem acompanhamento irregular (OR=1,32; p<0,001). Apesar disso, não se observou o efeito da classe socioeconômica no aumento da chance de nunca ter realizado consulta odontológica ao longo da vida. Ao se analisar a variável anos de estudo, ou seja, o nível de instrução das pessoas, percebe-se que aquelas que são categorizadas como sem instrução possuem a maior chance de realizar acompanhamento irregular (OR=5,76; p<0,001) e nunca ter ido ao dentista (OR=23,66; p<0,001) (Tabela 4).

Com relação à Tabela 5, que diz respeito ao tipo de tratamento odontológico, percebe-se que a faixa etária de adultos de 30 a 39 anos, possui menor chance de realizar procedimentos cirúrgicos e de urgência (OR=0,82; p<0,001) que indivíduos da faixa etária de jovens de 18 a 29 anos. Já a faixa etária correspondente a 60 anos ou mais apresenta chance de realizar tratamentos odontológicos (OR=2,17; p<0,001). A cor/raça preta apresenta maior chance de realizar procedimentos cirúrgicos ou de urgência (OR=1,37; p<0,001).

Tabela 5
Análise multivariada do tipo de tratamento odontológico de acordo com as variáveis estudadas a partir de regressão logística multiomial. Brasil, 2013.

Quanto à região geográfica observa-se que indivíduos que moram na região Sul possuem menor chance de realizar consultas para tratamento odontológico (OR=0,72; p<0,001), em contrapartida pessoas que moram na região Nordeste possuem maior chance de realizar de procedimentos cirúrgicos ou de urgência (OR=1,77; p<0,001) (Tabela 5).

Ao considerar o “Critério Brasil” categorizado, às classes D e E apresentam maiores chances de realizar procedimentos cirúrgicos ou de urgência que consultas de prevenção (OR=1,41; p<0,001), enquanto indivíduos das classes B e C apresentaram maiores chances de realizar consultas para tratamento odontológico que de prevenção e acompanhamento (OR=1,33; p<0,001). Ao se analisar os anos de estudo, percebe-se que quanto menor o nível de instrução, maiores as chances de ter realizado procedimentos cirúrgicos e de urgência na última consulta odontológica, chegando a ser 6,59 vezes maior entre os indivíduos sem instrução (OR=7,59; p<0,001) (Tabela 5).

Discussão

Segundo a análise deste estudo, observa-se marcante desigualdade na utilização de serviços odontológicos onde os indivíduos pertencentes à cor/raça preta, pertencentes às classes D e E, sem instrução educacional, moradores das regiões Norte/Nordeste, e maiores de 60 anos possuem maiores chances de realizar acompanhamento irregular e/ou nunca ter ido ao dentista do que realizar acompanhamento regular.

Ainda de acordo com os dados da PNS 2013, 55,6% dos brasileiros (111,6 milhões) não fizeram uso dos serviços odontológicos nos últimos 12 meses. Ressalta-se que esse valor chega a 61,8% em negros e 63,4% em indivíduos sem instrução escolar3. Os resultados apresentados estão em concordância com apresentados na Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 1998 e de 2003 no que diz respeito à observação que os indivíduos de cor da pele branca e residentes nas regiões Sul e Sudeste utilizam mais os serviços odontológicos18. Logo, é possível observar que apesar da expansão dos serviços é nítida a persistência de uma ausência de acesso aos serviços odontológicos no país em alguns grupos populacionais19,20.

Galvão e Roncalli19, buscando avaliar a tendência das desigualdades de renda na utilização de serviços de saúde bucal pela população brasileira no período de 1998 a 2013, observaram um importante papel da renda no acesso aos serviços de saúde bucal, sendo quanto menor a renda, menor a frequência de consulta ao dentista na vida, independentemente do ano avaliado. Estes resultados, reafirmam a persistência das desigualdades no acesso aos serviços de saúde bucal mediadas pela posição econômica, consolidando o status social como fator relacionado ao acesso a recursos sociais. Assim ao se extrapolar as análises percebe-se que as desigualdades em relação ao acesso dos serviços de saúde bucal se mantêm em determinados estratos socioeconômicos e regionais.

Ao se analisar a utilização de serviços odontológicos, é fundamental avaliar o efetivo alcance da universalização do acesso à saúde. Sendo assim, observa-se neste estudo, que a região Norte e as pessoas com menor condição socioeconômica apresentam maior chance de nunca terem ido ao dentista.

Vieira et al.5 aplicaram modelagem multinível para estudar associação de determinantes contextuais e individuais com a não utilização de serviços odontológicos entre adultos residentes em capitais, usando dados da PNSB. Verificou-se que adultos que vivem em cidades com altos IDH de renda e de longevidade têm menor probabilidade de nunca ter utilizado serviços odontológicos.

Diante desses resultados, é substancial abordar a relação entre o acesso aos serviços de saúde bucal e os efeitos da dimensão social na saúde. Nesse sentido, uma medida de acesso aos serviços de saúde, corresponde à utilização desses serviços e sendo assim, a caracterização observada na análise desses dados, corrobora um “gradiente social em saúde”20. Esse paradigma espelha o modo como a saúde é sensível a fatores sociais e econômicos, ou seja, as condições de saúde seguem um gradiente social de modo que quanto maior a posição social melhor a condição de saúde2,21.

É fato que o aspecto socioeconômico é determinante para se buscar serviços odontológicos22, outrossim além se ser decisiva na busca pelo acesso aos serviços odontológicos, a renda também é decisiva na escolha pelo tratamento preventivo ou curativo. Observa-se essa afirmação ao se analisar que nenhum indivíduo pertencente à classe A não tenha visitado o dentista, também se observa o maior índice de procedimentos cirúrgicos ou de urgência nos estratos mais desfavorecidos socioeconomicamente.

Além disso, pôde-se observar que a maior prevalência de consultas de prevenção ou acompanhamento ocorreu em pacientes mais jovens, pertencentes à cor/raça branca, residentes da região Sul do país, pertencentes à classe A, ou seja, maior nível socioeconômico e com maiores níveis de instrução educacional. Em contrapartida, as menores prevalências de prevenção/acompanhamento são correspondentes às cores/raças preta e parda, regiões Norte e Nordeste, classes econômicas D e E e sem instrução escolar. Ao avaliar as chances associadas aos desfechos, observou-se que indivíduos da raça preta, moradores das regiões Norte e Nordeste e de menor nível de escolaridade possuem maiores chances de terem realizado procedimentos cirúrgicos e de urgência na última consulta odontológica.

Bonfim et al.23 demonstraram a presença de desigualdades raciais na dentição funcional entre adultos brasileiros, com um perfil mais precário para pardos do que para brancos. Paralelamente a esses resultados, Constante24 relatou que pardos e negros apresentam maior chance de frequentar o serviço público odontológico do que os brancos, reforçando a maior confiança nesse tipo de serviço por esse grupo populacional. Tais resultados confirmam que as desigualdades na disponibilidade de atendimento odontológico são mais pronunciadas nas minorias raciais, ressaltando a importância dos investimentos no serviço público odontológico, uma vez que a minoria racial procura e confia mais neste serviço, podendo ser um meio de redução das desigualdades na utilização dos serviços odontológicos entre os grupos raciais.

O comportamento das pessoas com relação à frequência de consultas odontológicas exibe um traço marcante de desigualdade, com a autoavaliação e a autopercepção em saúde bucal espelhando suas condições sociais e educacionais. Em virtude disso, é possível observar que, assim como no estudo realizado por Borges et al.25, nesse estudo observou-se a existência de uma relação direta entre a utilização de serviços odontológicos e os anos de estudo. Ainda sob esta ótica, este estudo mostrou uma relação inversamente proporcional entre a idade e a periodicidade de consultas. Observou-se que quanto menor a escolaridade do indivíduo mais marcantes as desigualdades nas chances de realizar consultas irregulares, nunca ter ido a dentista e ter realizado procedimentos cirúrgicos ou de urgência na última consulta odontológica.

O acesso reduzido aos serviços de saúde bucal por idosos no Brasil merece atenção especial, uma vez que os serviços odontológicos historicamente não priorizam esse grupo quando atuam na prevenção e promoção da saúde. O acesso restrito, diante de uma demanda acumulada de tratamento e a alta prevalência de perda dentária desacompanhada de reabilitação protética, resultado de um histórico de modelos de saúde bucal individualistas e de baixa complexidade, geram maiores taxas de edentulismo, além de cárie e doenças periodontais nesses segmentos populacionais2,26.

Os resultados apresentados sugerem que há importantes fatores sociais envolvidos no acesso aos serviços odontológicos, os quais apresentam influência positiva ou negativa sobre a tomada de atitudes e comportamentos específicos com relação à saúde bucal21,26. As desigualdades sociais podem, assim, resultar em fatores de risco comuns a doenças orais, logo a análise dos determinantes sociais em saúde confere as bases teóricas para maior otimização das atividades de promoção da saúde bucal22.

Desvantagens sociais agrupadas criam condições que marginalizam e excluem as pessoas da sociedade e limitam suas oportunidades e escolhas na vida, agravando seu senso de vulnerabilidade e exclusão27. Travassos e Castro28 afirmam que iniquidades no acesso e utilização de serviços de saúde expressam oportunidades diferenciadas em função da posição social do indivíduo.

Portanto, a desigualdade em saúde bucal é marcante e pode ser caracterizada como uma distribuição desigual do acesso a bens e serviços, que está fortemente determinada pela posição que os indivíduos ocupam na organização social. Ademais, os resultados do presente estudo indicam que as desigualdades no acesso e utilização dos serviços odontológicos no Brasil referentes a grupos sociais são grandes e podem ser consideradas ética e politicamente inaceitáveis, uma vez que revelam desvantagens de acesso e de utilização dos serviços entre os grupos sociais desfavorecidos.

A Política Nacional de Saúde Bucal, implementada em 2004, tem como diretriz principal a ampliação do acesso aos serviços odontológicos a todas as faixas etárias a partir do aumento da oferta de serviços tanto na atenção primária quanto da atenção secundária29. Todavia, no texto proposto não é mencionada como diretriz a superação das desigualdades de utilização de serviços odontológicos ou estratégias pautadas na equidade em saúde bucal.

Logo, as desigualdades na área da saúde bucal constituem um desafio atual que carece de esforços e investimentos em políticas públicas, em especial a reformulação da Política Nacional de Saúde Bucal, para a sua resolução. Diante das preponderantes iniquidades em relação aos acessos dos serviços de saúde, é necessário reconhecer a necessidade de crescentes e efetivos investimentos em saúde bucal no âmbito público para assim se continuar com os avanços concernentes a essa temática e o Brasil, então, se tornar um exemplo de universalização, integralidade e equidade nos projetos e programas de saúde bucal.

Como limitações, aponta-se que os dados coletados são passíveis do efeito do viés de memória do entrevistado ao apontar o tipo de tratamento odontológico realizado na última consulta, todavia espera-se que o efeito desse tipo de viés seja aleatório. Além disso, pontua-se que não foram incluídas na análise variáveis contextuais, que apresentam um efeito esperado do desfecho e devem ser melhor investigadas em estudos futuros.

Como potencialidades, o presente estudo apresenta resultados importantes, com abrangência e representatividade nacional do padrão de utilização de serviços odontológicos pela população brasileira. Ao demostrar não apenas desigualdades no acesso aos serviços odontológicos em nível individual, como também desigualdades quanto ao tipo de tratamento odontológico realizado, evidenciando a maior realização de procedimentos mutiladores na população socialmente desfavorecida.

Conclusão

Tendo em vista que houve uma ampliação do acesso aos serviços de saúde bucal no Brasil, é contrastante a permanência de tais iniquidades. Exemplifica-se a população de cor/raça negra, residente na região Norte/Nordeste, de menor classe social e escolaridade apresentarem maiores chances de realizar acompanhamento irregular e nunca terem ido ao dentista. Além disso, este estrato populacional também apresenta maiores chances de realizarem procedimentos odontológicos cirúrgicos ou de urgência na última consulta odontológica em detrimento de realizar tratamentos odontológicos restauradores e consultas de prevenção ou acompanhamento.

Os resultados do presente estudo reforçam a necessidade de políticas equitativas e ações que minimizem as desigualdades em saúde bucal, redução da pobreza e iniquidades regionais garantindo acesso aos subgrupos populacionais mais vulneráveis de acordo com as suas necessidades de saúde.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2020
  • Aceito
    22 Out 2021
  • Publicado
    24 Out 2021
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