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A promoção do brincar no contexto da hospitalização infantil como ação de saúde

The play promotion in the context of childhood hospitalization as a health procedure

Resumos

Este artigo objetiva analisar o significado da promoção do brincar no espaço da hospitalização de crianças para os profissionais de saúde que trabalham com esta proposta. O método se caracteriza por uma abordagem qualitativa, baseado na análise de entrevistas semi-estruturadas com 33 profissionais de saúde, de três diferentes instituições hospitalares. A promoção do brincar na ótica dos entrevistados pode ser uma ferramenta significativa para que se lidem com questões, tais como: a integralidade da atenção; a adesão ao tratamento; o estabelecimento de canais que facilitem a comunicação entre criança-profissionais de saúde-acompanhantes; a manutenção dos direitos da criança e a (re)significação da doença por parte dos sujeitos. Os achados possibilitaram discutir a promoção do brincar como ação da saúde coletiva. Conclui-se, dentre outros aspectos, que a promoção do brincar no espaço da hospitalização infantil pode contribuir para que se (re)signifique o modelo tradicional de intervenção e cuidado de crianças hospitalizadas.

Jogos e brinquedos; Criança hospitalizada; Promoção da saúde


The purpose of this article is to analyze the meaning of the promotion of play in child hospitalization settings for health professionals working with such proposal. The method is characterized by a qualitative approach, based on the analysis of the semi-structured interviews with 33 health professionals, of three different hospitals. The promotion of play in these health professional's point of view can be an important tool when working with issues such as: integral attention; adherence to treatment; the establishment of facilitating communication channels amongst health professionals, children and their parents; the enforcement of child rights; and finally, the re-significance of the disease by individuals. The findings facilitated the discussions involving the promotion of play as a collective health action. In conclusion, it was found that the promotion of play in pediatric hospital settings, can contribute to the re-signification of traditional intervention models and child hospitalization.

Play and playthings; Child hospitalized; Health promotion


ARTIGO ARTICLE

A promoção do brincar no contexto da hospitalização infantil como ação de saúde

The play promotion in the context of childhood hospitalization as a health procedure

Rosa Maria de Araújo Mitre; Romeu Gomes

Pós-Graduação do Instituto Fernandes Figueiras, Fiocruz. Av. Rui Barbosa 716, Flamengo, 22250-020, Rio de Janeiro. rmitre@iff.fiocruz.br

RESUMO

Este artigo objetiva analisar o significado da promoção do brincar no espaço da hospitalização de crianças para os profissionais de saúde que trabalham com esta proposta. O método se caracteriza por uma abordagem qualitativa, baseado na análise de entrevistas semi-estruturadas com 33 profissionais de saúde, de três diferentes instituições hospitalares. A promoção do brincar na ótica dos entrevistados pode ser uma ferramenta significativa para que se lidem com questões, tais como: a integralidade da atenção; a adesão ao tratamento; o estabelecimento de canais que facilitem a comunicação entre criança-profissionais de saúde-acompanhantes; a manutenção dos direitos da criança e a (re)significação da doença por parte dos sujeitos. Os achados possibilitaram discutir a promoção do brincar como ação da saúde coletiva. Conclui-se, dentre outros aspectos, que a promoção do brincar no espaço da hospitalização infantil pode contribuir para que se (re)signifique o modelo tradicional de intervenção e cuidado de crianças hospitalizadas.

Palavras-chave: Jogos e brinquedos, Criança hospitalizada, Promoção da saúde

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the meaning of the promotion of play in child hospitalization settings for health professionals working with such proposal. The method is characterized by a qualitative approach, based on the analysis of the semi-structured interviews with 33 health professionals, of three different hospitals. The promotion of play in these health professional's point of view can be an important tool when working with issues such as: integral attention; adherence to treatment; the establishment of facilitating communication channels amongst health professionals, children and their parents; the enforcement of child rights; and finally, the re-significance of the disease by individuals. The findings facilitated the discussions involving the promotion of play as a collective health action. In conclusion, it was found that the promotion of play in pediatric hospital settings, can contribute to the re-signification of traditional intervention models and child hospitalization.

Key words: Play and playthings, Child hospitalized, Health promotion

Introdução

A hospitalização na infância pode se configurar como uma experiência potencialmente traumática (Santa Roza, 1997). Ela afasta a criança de sua vida cotidiana, do ambiente familiar e promove um confronto com a dor, a limitação física e a passividade, aflorando sentimentos de culpa, punição e medo da morte. Para dar conta de elaborar essa experiência torna-se necessário que a criança possa dispor de instrumentos de seu domínio e conhecimento.

Nessa perspectiva, o brincar aparece como uma possibilidade de expressão de sentimentos, preferências, receios e hábitos; mediação entre o mundo familiar e situações novas ou ameaçadoras; e elaboração de experiências desconhecidas ou desagradáveis (Mitre, 2000). Para que isto aconteça faz-se necessário que reconheçamos que cada criança partilha de uma cultura lúdica. Essa cultura é formada a partir da introjeção de regras oriundas do meio social que são particularizadas pelo indivíduo (Brougére, 2002).

É esse repertório interno, formado pela absorção singular de cada sujeito, das regras do meio social que vai fornecer referências para interpretar atividades e ações diversas como brincadeira, inclusive aquelas que podem se configurar como desconhecidas ou mesmo desagradáveis. Dessa forma, o brincar surge como uma possibilidade de modificar o cotidiano da internação, pois produz uma realidade própria e singular. Através de um movimento pendular entre o mundo real e o mundo imaginário, a criança transpõe as barreiras do adoecimento e os limites de tempo e espaço.

Muitos autores – a exemplo de Kudo & Pierri (1990), Lindquist (1993), Sikilero et al. (1997), Novaes (1998) e Santa Roza (1999) – vêm apontando para a importância da presença da atividade lúdica durante o período de adoecimento e internação hospitalar de crianças. Nesse sentido, o brincar passa a ser visto como um espaço terapêutico capaz de promover não só a continuidade do desenvolvimento infantil, como também a possibilidade de, através dele, a criança hospitalizada melhor elaborar esse momento específico em que vive (Mitre, 2000).

Para que possamos discutir modos de promoção do brincar na hospitalização infantil, é preciso que exploremos os significados dessa intervenção para os profissionais de saúde envolvidos direta ou indiretamente nessas ações. Saber qual é a lógica dessa promoção e quais são os limites e as possibilidades desse tipo de ação, percebidos por esses profissionais, é de fundamental importância para que possamos avançar no estudo da sociabilidade entre criança-criança e criança-profissional de saúde; na compreensão de ethos infantil para melhor se planejar as ações da assistência e na avaliação das repercussões dessas ações a partir da ótica da criança.

A partir dessa perspectiva, o presente estudo analisa diferentes formas para a promoção do brincar no espaço da hospitalização de crianças, no sentido de pesquisar qual é o significado dessa atividade para os profissionais de saúde que trabalham com esta proposta.

Desenho metodológico do estudo

Apesar de não termos no Brasil um estatuto específico que regulamente e oriente a utilização do lúdico como recurso terapêutico, várias iniciativas podem ser detectadas, especialmente em hospitais públicos. Algumas dessas iniciativas já vêm ocorrendo e são anteriores ao movimento de humanização hospitalar, desencadeado pelo Ministério da Saúde a partir de 2000 (Brasil, 2000). Em virtude disso montamos nosso estudo, de caráter qualitativo, voltado para os significados que os profissionais de saúde têm dessas experiências.

Escolhemos para o desenvolvimento da nossa pesquisa três hospitais que realizam internação pediátrica: um hospital geral, um hospital pediátrico e um hospital materno-infantil. Essas unidades de saúde localizam-se em diferentes regiões do Brasil (Nordeste, Sudeste e Sul) e serão mantidas em sigilo, passando a ser designadas como H1, H2 e H3, não significando que a ordem dos números esteja relacionada à ordem das regiões. Esses hospitais são contemporâneos, foram inaugurados do final da década de 1960 ao princípio da década de 1970 e dispõem de 110 a 190 leitos em pediatria. Essas instituições foram selecionadas pelo fato de serem referência na área de saúde da criança em sua região; servirem como campo de ensino de graduação ou pós-graduação da área da saúde da criança; contarem em seus quadros com uma equipe multidisciplinar e por divulgarem o fato de realizarem algum tipo de atividade lúdica de cunho terapêutico.

No total foram realizadas 33 entrevistas com profissionais dessas instituições, ligados à assistência e à gestão de serviços que envolviam uma interface direta com a atividade lúdica. A escolha dos profissionais foi feita a partir de três critérios: identificação de profissionais com base em nossa observação do campo; indicação dos outros profissionais da instituição envolvidos com atividades lúdicas; e lotação em cargos de gerência diretamente relacionados com a promoção do brincar.

Privilegiamos, como técnica central de nosso estudo, a entrevista semi-estruturada. Como complementação da técnica, fizemos também observação da dinâmica das atividades promovidas pelas equipes de saúde a fim de compor o cenário cotidiano referente às respostas das entrevistas. Desse modo, buscamos uma aproximação do contexto das falas.

A análise do estudo, num primeiro momento, teve dois procedimentos: um para a observação do campo e outro para as entrevistas. No que se refere à observação, como recurso analítico, elaboramos questões a serem respondidas com os registros das observações. Nesse sentido, com esses registros, procuramos responder às seguintes questões: Como as ações aconteciam efetivamente? Como a promoção do brincar se insere nas rotinas institucionais? Como as ações se articulavam aos discursos dos profissionais entrevistados?

No que se refere às entrevistas, utilizamos uma adaptação da técnica de análise de conteúdo, modalidade temática de Bardin (1979). No conjunto de respostas relacionadas à questão acerca do significado da promoção do brincar, em primeiro lugar, identificamos as idéias centrais dos depoimentos e, em seguida, buscamos transpor o conteúdo explícito das falas (Gomes, 2002), procurando analisar os núcleos de sentido em torno dos quais giravam as idéias centrais das respostas.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, e igualmente pelos comitês das três instituições onde realizamos nosso campo.

Discutiremos, a seguir, os dados relativos a esses dois caminhos analíticos em duas seções: a organização da promoção do brincar e o significado do brincar no espaço da internação infantil na ótica dos profissionais.

A organização do brincar

Apesar dos pontos em comum, cada um dos hospitais mostrou diferentes tipos de abordagens e utilizações do lúdico no atendimento a crianças hospitalizadas. Tal observação parece apontar para as diversas possibilidades de significação que o brincar oferece.

No H1, encontramos uma proposta de utilização do brincar sistematizada através de um serviço específico de "recreação terapêutica" – nomenclatura utilizada pela instituição – em que o brincar funciona a partir de uma proposta pautada em objetivos definidos e atividades sistemáticas. Existiam profissionais, espaço físico e orçamento especificamente destinados a essa finalidade. No momento de pesquisa de campo, este serviço era estruturado, com vagas no organograma da instituição e profissionais concursados para a função.

A rotina do serviço incluía, tanto pela manhã como na parte da tarde, uma visita dos profissionais que passavam nos leitos convidando para o atendimento na sala. Os atendimentos ocorriam na sua maioria em grupo, dentro das salas de recreação, mas os pacientes restritos aos leitos eram atendidos individualmente.

As crianças liberadas a saírem de seus leitos podiam ir e permanecer o quanto quisessem na recreação, que funcionava todos os dias, inclusive aos sábados. Quando existissem procedimentos a serem realizados, os pacientes eram chamados a sair por um tempo daquele local e depois podiam retornar. Quando esses procedimentos não eram invasivos ou dolorosos, muitas vezes a enfermagem podia realizá-los, com a anuência da criança, na própria sala.

A atividade lúdica acontecia de forma livre, no sentido de as crianças escolherem de que queriam brincar, sem necessariamente existir um profissional todo tempo a seu lado. Também eram propostas atividades, tanto individuais quanto em grupo, com a participação dos acompanhantes e por vezes dos irmãos. Esse serviço também promovia atividades relacionadas a datas comemorativas e festas temáticas, focalizando a socialização e interação das crianças.

No H2 existia a proposta de uma abordagem da saúde da criança fundamentada na idéia da produção social da saúde. A instituição divulga em sua página na Internet uma preocupação em trabalhar o potencial lúdico através de brincadeiras, artes plásticas, músicas e jogos como parte de um atendimento humanizado .

Quando perguntamos especificamente sobre atividades lúdicas, nos foi apontada, em primeiro lugar, uma brinquedoteca. O local, bem mais do que um depositário de brinquedos, teria a função de servir como espaço de segurança e domínio para a criança internada, onde ela não pode sofrer procedimentos invasivos e dolorosos e escolhe o que quer fazer. A brinquedoteca era coordenada por uma profissional de nível superior, mas o atendimento em si era realizado por voluntários. No entanto, a abordagem pelo lúdico não se restringia a esse espaço.

Encontramos ações ligadas ao brincar nas práticas e abordagens de profissionais, das mais diversas categorias funcionais. O brincar era utilizado não apenas como um instrumento de se chegar à criança. Alguns profissionais realizavam seus atendimentos no próprio contexto do brincar, procurando adequar sua técnicas com a atividade lúdica, realizada muitas vezes espontaneamente pela criança.

Eram promovidas também atividades conjuntas entre setores, nas quais muitas vezes os acompanhantes também se inseriam. As atividades lúdicas eram igualmente utilizadas como estratégia para as intervenções promovidas pelos diferentes serviços da instituição. A exemplo disso, observamos a promoção de lanches temáticos para as crianças hospitalizadas, com a participação de profissionais e acompanhantes, no refeitório destes últimos, que utilizavam jogos e encenações para se trabalhar informações, hábitos e atitudes saudáveis quanto à alimentação.

Em relação à promoção do lúdico nas práticas de intervenção terapêutica, os profissionais relataram que tal ação surgiu a partir da constatação de que para se lidar com crianças seria necessária uma adequação de suas rotinas. Na busca dessa adequação, perceberam que o brincar poderia ser utilizado como uma linguagem de domínio da criança, permitindo sua maior participação no processo de tratamento.

No H2 também havia uma visível preocupação com a apresentação do espaço físico do hospital às crianças. Há alguns anos iniciou-se um projeto em que as paredes dessa instituição foram ganhando cores, personagens e brincadeiras. A preocupação não é apenas de enfeitar as paredes, mas de dar às crianças oportunidade de conhecer e desmistificar procedimentos médicos através da participação interativa e da brincadeira. Um exemplo é o de um dos corredores próximo à radiologia, que ganhou bichos que simulam estar passando por uma radiografia. Na barriga de cada um, foi pintado um quadro com tinta de lousa, permitindo que as crianças desenhem com giz nesse espaço. O objetivo, segundo o informativo da instituição, é de que pela mensagem que veiculam essas pinturas possam facilitar o preparo da criança para a atividade desenvolvida em cada setor do hospital.

No H3, a partir de demandas surgidas no dia-a-dia, alguns profissionais, no momento da pesquisa de campo, organizavam ações diversas e não interligadas na promoção do brincar.

Segundo o informativo da instituição, a preocupação com o impacto da hospitalização na criança acontecia em todos os espaços. Essa instituição tem um histórico de já ter tido atividades lúdicas como intervenção terapêutica, mas com a saída das pessoas que respondiam por essas iniciativas, isso se perdeu um pouco. O que percebemos através das entrevistas foi uma iniciativa de resgate desse tipo de intervenção por parte de alguns profissionais e gestores.

Dentre as diversas iniciativas, era destacada a implantação de uma brinquedoteca, além de outras salas de recreação e intervenções específicas com profissionais ligados à cirurgia pediátrica, oncologia pediátrica e neonatologia. Durante o nosso trabalho de campo, observamos que não existia um profissional da instituição que respondesse pela promoção do brincar na brinquedoteca e nas salas de recreação. Em geral, as atividades eram promovidas por voluntários, previamente direcionadas, sem maiores oportunidades de escolha por parte da criança.

Em outras ações utilizava-se o brinquedo, no caso específico, bonecos, para se valer de uma linguagem de fácil compreensão ao informar as crianças sobre a rotina de procedimentos a que seriam submetidas. Alguns profissionais utilizavam o lúdico como parte de suas técnicas de atendimento, numa proposta em que tentavam conciliar o objetivo de suas intervenções com a escolha de algumas atividades por parte dos pacientes.

De modo geral, as ações observadas, em sua maioria, eram todas relativamente recentes, algumas estavam no seu primeiro ano de implantação. Percebemos, através da fala dos entrevistados, que a instituição se encontrava num processo de construção de ações voltadas para a utilização sistemática do brincar.

A partir da observação das atividades promovidas nos três hospitais, podemos inferir que essa promoção segue um modelo em que o brincar é utilizado como intervenção terapêutica. Nesse modelo, a atividade lúdica tanto pode servir para que as crianças tenham acesso a uma linguagem de seu domínio, de modo a se expressarem de maneira mais ativa, quanto pode ser um espaço para que esses sujeitos possam elaborar a experiência de sua hospitalização, para que possam dar sentido a essa vivência e, ao mesmo tempo, melhor lidar com essa situação.

Apesar de os discursos dos profissionais apontarem para o predomínio do modelo da promoção do brincar como espaço terapêutico, a maneira como essa promoção é sistematizada apresenta diferenças. Há variações desde uma perspectiva presente em espaços distintos e adotada por diferentes serviços, permeando a instituição, até o desenvolvimento de ações isoladas.

Os sentidos da promoção do brincar

A utilização do brincar, como instrumento de intervenção na hospitalização de crianças, como vimos, foi o modelo presente nos três hospitais. Nesse modelo, de uma certa forma, predomina uma dimensão clínica. Entretanto, ao refletirem acerca do significado dessa promoção, os profissionais apontam para sentidos que vão além dessa perspectiva. As idéias que circulam nas falas desses profissionais podem ser mais bem compreendidas a partir de núcleos de sentidos.

O primeiro núcleo de sentido, presente nos três hospitais, é o do lúdico como algo prazeroso à criança, que traz alegria e também resgata a sua condição de "ser criança". As falas dos entrevistados demonstram isso quando dizem que: A criança mesmo acamada o tempo inteiro, [brincando] vira outra [criança] (H2/4) e, em conseqüência disso, ela vai se sentir mais próxima do normal (...) vai se afastando da doença (H3/3).

Por essa ótica, o lúdico se torna um contraponto às experiências dolorosas, à dor da hospitalização, que, segundo esses profissionais é mais do que a dor física provocada pela doença ou pelos procedimentos, trazendo aí embutido o conceito de sofrimento psíquico e existencial.

Na visão desses profissionais o brincar funciona como espaço de socialização e interação com outras crianças. Permite a criação de nova rede social e a possibilidade de sair do isolamento que a internação provoca.

Os profissionais destacam que isso muitas vezes tem repercussão nos acompanhantes, havendo uma associação entre brincar e normalidade (saúde). A criança que brinca parece não estar tão doente (mesmo que num breve espaço de tempo). O lúdico é percebido como uma possibilidade de se ganhar ou construir algo de positivo ou bom num momento de tantas perdas.

Ainda dentro desse núcleo de sentido, o brincar é visto como elemento que propicia um resgate de um contexto familiar à criança e à sua própria condição de criança. A exemplo disso, um profissional defende a presença do brincar no hospital porque [a criança] vem para o hospital, ela tem que esquecer o que está lá fora, e não é assim (H2/1); enquanto outro observa que criança é para brincar (...), se a gente deixa ela no hospital, sem essa atividade, a gente está tirando ela totalmente do contexto dela (H3/2).

Nesse sentido, a atividade lúdica aparece como pertencendo a um repertório pessoal, tanto no sentido individual quanto de grupo social (cultura lúdica). Existe, assim, um reconhecimento que aquele paciente é, antes de tudo, criança com suas singularidades e especificidades. Nessa condição, o brincar aparece como uma marca identitária.

Ainda em relação a esse núcleo de sentido, há profissionais que destacam que esse tipo de intervenção num hospital, muitas vezes, permite o acesso da criança a possibilidades e vivências que não teria em casa, quando dizem que (...) tem muitos pais que não sabem nem que precisa olhar, que precisa cantar, que precisa conversar com aquela criança (H1/6). De uma certa forma, localizam o brincar como um saber, no sentido de cultura lúdica, que seria apreendido de determinados profissionais com "competência" para isso.

Num segundo núcleo de sentido, os entrevistados dos três hospitais apontam o brincar como um facilitador para a interação entre os profissionais de saúde, crianças e seus acompanhantes. Sendo o brincar uma linguagem universal e que remete ao prazer e à alegria, ele acaba se estendendo para os familiares, para os próprios profissionais que estão ali diariamente em contato com as crianças (H2/9). Nesse clima informal, consegue-se ter uma troca melhor [entre criança e] o profissional; a relação médico/paciente fica muito mais rica (...) ela [criança] começa a acreditar mais no que a gente está fazendo (H3/3).

Em termos de relações criança-profissional de saúde, houve ainda uma associação entre brincar e afeto, fazendo do brincar um espaço de afeto e emoção também para os profissionais. Então, quando os profissionais usam o lúdico para chegar na criança, eles também estão trabalhando para eles um momento em que o desgaste da relação com uma criança doente, que é uma coisa muito sofrida para o profissional (H2/8).

O lúdico é percebido por alguns como instrumento para garantir a própria adesão ao tratamento. É visto como veículo de comunicação no sentido de levar a informação, relativa ao adoecimento e tratamento, numa linguagem acessível à criança e sua família. Bem como para mostrar procedimentos, com a possibilidade de experimentação por parte da criança. Assim, (...) o que a gente sempre procurou foi que os profissionais da casa percebessem que é importante usar o lúdico (...) para mostrar para ela como é que vai ser o tratamento dela (H2/8).

Na medida que o brincar é universal, tal atividade além de não ser exclusiva da criança, uma vez que o adulto também brinca, não é exclusiva de apenas uma categoria profissional, podendo ser um recurso interdisciplinar.

Também foi apontada a ação do brincar na relação criança-acompanhante, refazendo laços que podem estar fragmentados porque a doença desorganiza o grupo familiar (...) através do brincar é que a gente tem que refazer esses laços (H1/6).

O terceiro núcleo de sentido encontrado nos três hospitais confere ao brincar o significado de um espaço mais democrático, onde ocorre a valorização das experiências individuais e a possibilidade de escolhas. Assim, com a promoção da atividade lúdica, se possibilita à criança exercer a autonomia (...) ela pode dizer não para o brinquedo (...) porque ela não está a fim (...) ela pode optar por este brinquedo ou aquele brinquedo (H2/2).

Esse sentido nos remete a uma reflexão de que, num hospital onde a estrutura costuma ser hierarquizada, o brincar aparece como um espaço que possibilita escolhas e a livre expressão da criança.

Em relação ao impacto positivo que a utilização do lúdico provocou em algumas unidades, isso foi percebido pelo desdobramento das ações. Em um dos hospitais esse tipo de iniciativa, que começou na pediatria, (...) no momento que foi criada a unidade de Oncologia Pediátrica já foi prevista uma área de recreação, em função de um entendimento da importância que isso tem para os pacientes em tratamento (H1/4).

Num quarto núcleo de sentido, a utilização do brincar é vista como uma terapia na medida em que se configura como uma possibilidade de elaboração de experiências relativas à hospitalização, permitindo a redução da angústia e a reorganização de sentimentos. Foi citado como um instrumento capaz de tranqüilizar as crianças. (...) o lúdico faz com que ela perca o medo [do hospital] (H2/4)

Junto a esse sentido de terapia, o brincar aparece também como ação sobre o próprio corpo, promovendo o próprio equilíbrio psicossomático, regulando tensões e estresse, tendo uma ação direta no sistema imunológico, fazendo com que a criança tenha a possibilidade de retomar um equilíbrio e, na verdade, vai contribuir para saúde física também (H1/6), bem como funcionando como espaço de encorajamento.

Nesse sentido existe também uma associação entre brincar e crescimento. Tanto no sentido de estimulação do desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo, da aprendizagem; como crescimento no sentido de possibilidade de viver, manter-se vivo como ser ativo. (...) nessa hora a gente procura trazer o bebê para a recreação e ali é feito todo um trabalho de estimulação (H1/6).

Como vimos, apesar de a organização da promoção do brincar ter nos apontado um predomínio do modelo terapêutico, os discursos dos entrevistados acerca do sentido dessa promoção ampliou tal modelo, possibilitando também uma leitura sociocultural do uso do lúdico no espaço da internação infantil.

Discutindo os significados da promoção do brincar

O campo da saúde, cada vez mais, vem se redesenhando a partir de diferentes identidades subjetivas, tais como mulheres, idosos, crianças e adolescentes, dentre outras. Apoiando-se nessas identidades, esse campo procura ir ao encontro dos grupos beneficiários de suas ações (Ayres, 2002).

Para que essas ações sejam adequadas aos seus alvos faz-se necessário, dentre outros aspectos, que as demandas sejam interpretadas em suas dimensões socioculturais.

No que se refere à atenção às crianças hospitalizadas, as ações de saúde, tanto em termos de políticas como em relação ao estabelecimento de procedimentos para que tais políticas sejam postas em prática, buscando a compreensão das necessidades desses sujeitos, passam necessariamente pela interpretação sociocultural das demandas características do ser criança.

A partir dessa interpretação, a promoção do brincar na ótica dos nossos entrevistados pode ser uma ferramenta significativa para que se lidem com questões tais como: a integralidade da atenção; a adesão ao tratamento; o estabelecimento de canais que facilitem a comunicação entre criança-profissional de saúde-acompanhante; a manutenção dos direitos da criança; a (re)significação da doença por parte dos sujeitos.

Tais questões se deparam com um modelo hegemônico e hierarquizado de hospital, em que, de modo geral, os pacientes são tratados de forma padronizada (sem espaço para suas experiências pessoais), fragmentada e distanciada. Foster e Anderson (1978) falam desse processo despojador pelo qual o paciente passa ao se internar. O sujeito vai gradativamente sendo destituído de seus papéis sociais e acaba por tornar-se um "caso".

Refletindo acerca dos significados atribuídos à promoção do brincar por parte dos profissionais de saúde, poderíamos inferir que tal promoção pode, consciente ou inconscientemente, servir de contraponto a esse processo de despojamento e do distanciamento que geralmente ocorre entre criança, profissional de saúde e instituição hospitalar. Mas para que possa ocorrer tal contraponto não basta dispor de espaço físico e brinquedos. Seria preciso, antes de tudo, se repensar a cultura hegemônica da instituição hospitalar no sentido de poder flexibilizar as suas regras, assegurando um olhar e o desenvolvimento de procedimentos que contemplem a singularidade de ser criança. Nesse sentido, a promoção do brincar se torna uma das estratégias possíveis para o resgate e manutenção da condição de criança, no ambiente da internação.

Flexibilizar regras para essa promoção pode ser visto como um grande desafio para os profissionais de saúde que se vêem em meio, muitas vezes, a uma rígida hierarquização hospitalar. No entanto, como observam Strauss e colaboradores (1963), Carapinheiro (1993) e Svensson (1996), por mais que uma instituição seja altamente hierarquizada, suas normas e regras nem sempre são específicas a ponto de abranger todo o cotidiano institucional. Esses autores discutem esse conceito em relação ao processo de trabalho hospitalar. Nos apropriamos dessa discussão para pensarmos as relações ocorridas dentro da instituição hospitalar que, em geral, como em qualquer ordem social, possui lacunas que podem ser preenchidas por processos de ordem negociada.

Os nossos entrevistados são exemplos de profissionais que utilizam o brincar como um recurso de negociar abordagens que ampliam o modelo da biomedicina na assistência à criança hospitalizada. Provavelmente conquistaram essa ampliação através de um percurso de carreira diferenciado e formações diversas. Isso se reflete na maneira como se relacionam com os seus pares, atuam em equipe, se inserem na instituição e estabelecem relações com pacientes e acompanhantes.

Por outro lado, podemos pensar que o brincar se inscreve como um instrumento para se trabalhar a ordem negociada também entre pacientes, equipe e instituição. Pelo fato de ele proporcionar à criança a oportunidade de escolhas e o acesso a uma linguagem que é de seu domínio, fornece instrumentos para que se coloque como agente ativo de seu próprio tratamento.

Além de ser utilizado como uma maneira de minimizar estruturas fortemente hierarquizadas, o brincar também pode ser percebido pelos profissionais de saúde como um instrumento de facilitação no processo de trabalho para se lidar com o sofrimento.

O cotidiano desses profissionais, que trabalham em hospitais, além de demandar a utilização de componentes cognitivos complexos, é caracterizado pelo contato intenso com doenças e com a morte, o que acarreta uma conseqüente sobrecarga de trabalho mental (Pires, 1996; Pitta, 2003). Conviver diariamente com a dor, o sofrimento e a possibilidade de morte dos pacientes evoca nesses profissionais sensações e sentimentos que podem se configurar como dolorosos ou desagradáveis e que, muitas vezes, tendem a ser desconsiderados (Pitta, 2003).

Diante da dor e da possibilidade da morte, a promoção do brincar talvez possibilite aos profissionais viverem uma experiência diferente com as crianças. Nesse sentido, ao invés de se lidar apenas com a incapacidade, as limitações, podem ter a possibilidade de estabelecer um outro tipo de relação com seus pacientes, em que por meio do processo lúdico se privilegie o saudável e o prazeroso. A escolha do lúdico como instrumento de trabalho estaria vinculada ao conceito que esses profissionais têm sobre tratamento e cura.

Considerações finais

Como vimos, a promoção do brincar na hospitalização infantil pode facilitar a continuidade da experiência de vida do sujeito. Para além desse significado percebido, propomos que o brincar nesse ambiente também seja um espaço revelador da normatividade social na qual essa criança se insere. Dessa forma, a equipe de profissionais de saúde disporia de um instrumento capaz de olhar para além do substrato físico e psíquico da doença, buscando seus significados ulteriores, inscritos numa ordem cultural.

Nossos achados também nos apontam para a possibilidade da promoção do brincar no espaço da hospitalização infantil como facilitador de uma dinâmica de interações que (re)significa o modelo tradicional de intervenção e cuidado de crianças hospitalizadas.

Agradecimento

Para Suely Ferreira Deslandes pelas valiosas sugestões.

Artigo apresentado em 7/10/2003

Aprovado em 17/11/2003

Versão final apresentada em 24/11/2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    2004

Histórico

  • Aceito
    17 Nov 2003
  • Recebido
    07 Out 2003
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