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Violência em tempo real

Violence in real time

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Violência em tempo real

Violence in real time

Everardo Duarte Nunes

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp, evernunes@uol.com.br

La violence n'est jamais réductible à l'image de la pure objectivité, tout simplement parce que ce qui est conçu ou perçu comme "violent" varie dans le temps e l'espace1.

Em 1968, dom Hélder Câmara (1909-1999)2, arcebispo de Olinda, arauto da justiça e da paz, escrevia: A violência está em toda parte, é onipresente e multiforme, brutal, aberta, insidiosa, escondida, racionalizada, científica, condensada, solidificada, anônima, abstrata, irresponsável. Em sua longa existência e em contato com a realidade social do Brasil, pôde avaliar com inegável capacidade o grau de violência política (os anos pós golpe militar de 1964), econômica e social a que estiveram sujeitos pessoas, grupos e famílias de brasileiros.

Lembro dessa passagem de dom Hélder ao ler o ensaio de Wieviorka, cujos conhecimentos sobre a violência são notórios e que, ao retomar a discussão, nos alerta que a sua abordagem não deve ser feita da mesma forma que há vinte ou trinta anos.

Sem dúvida, as múltiplas faces da violência acima apontadas não apenas continuam presentes, como assumiram formas específicas de manifestação na pós-modernidade. Não se trata de debater a questão como exposta pelo autor, mas destacar o que se pode aprender e apreender desse texto.

O artigo não traz informações estatísticas e dados sobre a violência, mesmo porque o seu objetivo é trabalhar teoricamente a questão e responder se, em um mundo que se transformou enormemente, dispomos de novos modos de abordagem e como olhamos esse fenômeno na atualidade. Certamente, essa preocupação se prende ao fato de o sociólogo, ao longo da sua carreira, ter abordado os mais diversos temas que incluem o terrorismo e o racismo no contexto de uma sociedade que se apresenta cada vez mais fragmentada e dilacerada.

Segundo alguns comentaristas de sua obra, como Freire3, a sua abordagem se inscreve no quadro de preocupações que desde os anos 70 vinham sendo desenvolvidas por Allan Tourraine e que se relacionam aos enfrentamentos que ocorrem nas sociedades pós-industriais, com seus movimentos transformadores e conflitos. Sem dúvida, houve um enriquecimento da vertente de Tourraine, na medida em que a preocupação de Wieviorka está localizada em entender processos conflitivos específicos: a violência de um modo geral e em especial a "violência urbana" na França.

A epígrafe usada neste texto é do livro Violence en France, no qual o autor procura definir e caracterizar o que se entende por violência, e para isso pergunta: Trata-se de um fenômeno observável, quantificável; de fatos conhecidos ou reconhecíveis sem contestação possível, em sua objetividade, a partir dos quais pode-se organizar a reflexão e, eventualmente, ser debatido a partir de premissas aceitas por todos? Trata-se preferentemente de representações, de percepções, de impressões e de opiniões suscetíveis de variar de um grupo social a outro, de um testemunho a outro, de um discurso a outro?1 Ao reproduzir essas passagens, tomei-as como orientadoras para ler o esclarecedor texto que foi escrito especialmente para este número da revista.

Penso que sua abordagem, como em seu livro anterior, é extremamente importante, não somente pela forma didática de apresentar o que denomina "o novo repertório da violência", mas pelo desvelamento teórico dado ao trabalho. Mais ainda, de encarar a violência em sua dupla face: objetiva e subjetiva. As ocorrências, muitas vezes expressas em frios dados estatísticos ou expostas na mídia, especialmente televisiva, não como reportagem, mas como acontecimento em tempo real, podem, em suas palavras, "encorajar condutas espetaculares", que devem ser entendidas em sua subjetividade.

A abordagem do autor é a de encarar o fato de que "A violência muda, e a mudança é também nas representações do fenômeno", especialmente por ser, também, "altamente subjetiva". Para o autor, as grandes transformações do mundo vieram na esteira do fim da Guerra Fria e, no que se refere à violência guerreira, esta se torna "limitada", ou seja, torna-se localizada. A imagem que construo, neste momento, é a de múltiplas guerras, sem que os conflitos se alastrem em uma "grande guerra"; em guerras particulares e em conflitos que se espalham gerando imensos problemas. Dados das Nações Unidas, de 2001, informam que havia 21 milhões de refugiados, hoje são 23,7 milhões, espalhados por diversos países, de diferentes credos e etnias obrigados a deixar seus países devido a situações geradas muitas vezes pela própria intolerância étnica e religiosa. O documento mostra que é o maior número de refugiados de todos os tempos. Concordo com o autor quando diz que o fim da Guerra Fria, que havia colocado expectativas de reordenamento das relações mundiais, no início da década de 1990, e mesmo de pacificação dos conflitos, não pode ser a única explicação para a violência. Mas, de forma precisa, aponta que a partir desse momento não apenas inaugura-se "um novo período de violências militares ou terroristas, mas de transformações dessas violências".

Da mesma forma, o autor analisa o papel do declínio do movimento operário e suas repercussões no quadro da violência. Nesse contexto, as especificidades de países em desenvolvimento num cenário de convivência com estruturas agrárias e fundiárias com extrema concentração da propriedade rural irão gerar e exacerbar no campo um grau de violência assustador. Mais uma vez, seu trabalho nos indica uma diferença fundamental para se entender os processos mais amplos da violência: ela é o contrário do conflito institucionalizado, ela traduz a existência de problemas sociais.

Adensando a proposta, apresenta a globalização como uma "noção útil" que, pensando os fenômenos em uma dimensão ampliada (culturais, sociais, políticos e econômicos), permite situar as questões além das fronteiras nacionais, mas não exclusivamente pelo caráter econômico.

O quadro geral proposto é completado com a inclusão da relação violência e atores, chamando a atenção para o fato de que "estes atores podem eles mesmos serem violentos".

Para analisar a complexa questão enunciada nesses processos histórico-sociais são propostas "ferramentas analíticas" que permitam abordar a violência. Certamente, para as ciências sociais essas abordagens oferecem uma oportuna revisão, necessária para se tentar entender as "novas" situações de violência. O autor inicia apontando uma abordagem clássica: seria a violência uma "conduta de crise", que levaria à "frustração relativa"? Embora interessante, a abordagem se mostrou insuficiente a partir dos anos 70. Aparece, então, a tentativa de resposta diante da violência coletiva; teses se posicionarão pelo caráter racional e instrumental da violência. Para Wieviorka, uma terceira vertente é aquela que estabelece laços entre a violência e certas culturas.

Sem dúvida, o destaque sobre o sujeito e a violência e a terrível situação – "o ator não somente destrói o outro, mas também se autodestrói" – são fundamentais no seu posicionamento diante da violência.

Como sair de uma engrenagem que cada vez mais amplia o quadro da violência? Teríamos em mãos instrumentos suficientes para compreender os processos? Se temos os instrumentos, como utilizá-los?

Recentemente, o psiquiatra brasileiro Jair Mari4 escreveu que A revitalização do país passa também pela recuperação daqueles que foram marcados pela violência. Lembrava que, no Brasil a população convive com altas taxas de homicídio, seqüestros relâmpagos, enchentes e acidentes que deixam marcas e traumas. Entender os transtornos do estresse pós-traumático (TEPT) seria um dos caminhos para, no plano psicológico e pessoal, enfrentar os efeitos da violência. E no plano da sociedade, das instituições, que medidas preventivas devem ser tomadas? O texto de Wieviorka nos ajuda a pensar a violência e por isso a oportunidade das suas observações.

Ao iniciar esses comentários, citei dom Hélder e a lembrança de seu nome, não apenas pelo seu caráter emblemático, mas também pelo fato de ter ele testemunhado e denunciado a violência, a partir década de 1960, quando a pobreza atingia cerca de 68% da população brasileira (em 2000 era de 33,5%) e no momento em que se instalava um governo de exceção, com toda a carga de violência que a ele se juntou e que se estendeu pelos anos 70, até metade dos anos 80.

Para finalizar, a sabedoria de Hannah Arendt quando diz: [...] o perigo da violência, mesmo que esta se movimente dentro de uma estrutura não extremista de objetivos a curto prazo, será sempre que os meios poderão dominar os fins [...]. A ação é irreversível, e um retorno ao status quo em caso de derrota é sempre pouco provável. A prática da violência como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento5.

Referências

1. Wieviorka M. Violence en France. Paris: Éditions du Seuil; 1999.

2. Câmara dom H. La violence: option unique? In:Moltmann J, Câmara dom H, Seeber DA, Lotz M, Gollwitzer H,Weth R et al. Discussion sur la "théologie de la revolution". Paris: Éditions du Cerf-Mame; 1972.

3. Freire J. Recensão crítica de M. Wieviorka "Violence en France" Análise Social 2000; 35(156):838-43.

4. Mari J. As marcas ocultas da violência no Brasil. Folha de S. Paulo, 23/março/2006, p. A 3.

5. Arendt H. Da violência. Brasília: Universidade de Brasília; 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    2006
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