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Fina Sintonia: Notas sobre "Velhos e novos males da saúde no Brasil"

Monteiro, Carlos Augusto. Velhos e novos males da saúde no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec & NUPENS/USP, 1995. 359 páginas.

Velhos e novos males da saúde no Brasil - Carlos Augusto Monteiro (org.).

São Paulo: Ed. Hucitec & NUPENS/USP, 1995.

359 páginas.

O acaso me fez ler há pouco numa resenha uma idéia atribuída a Michel Foucault, e, embora não tenha podido verificar se de fato pertence ao autor, a desenvolvo aqui por engenhosa e útil aos propósitos da presente resenha. Segundo aquela idéia, no mundo contemporâneo o intelectual ver-se-ia constantemente emaranhado na fragmentação e proliferação de saberes especializados, havendo, no entanto, oportunidades de encontro destes saberes segmentals com determinadas conjunturas históricas demandantes de reflexão aguda e específica, momento em que ocorreria como que uma metamorfose deste intelectual — de mestre de uma região particular do saber a interlocutor do conjunto da sociedade.

Este parece ser o caso do livro organizado por Carlos Augusto Monteiro, onde análises até então dispersas em diversos periódicos, alguns deles pouco acessíveis ao não especialista, além de inúmeras outras inéditas, ganham a unidade e a sistematicidade de um corpus de conhecimentos tanto abrangente como minucioso. Isso, somado a um momento crucial de mudança e debate acerca das concepções de sociedade e Estado brasileiros, confere à obra organizada por Monteiro uma dimensão que transcende os diversos saberes específicos do campo da saúde pública. A concepção do editor, ao incorporar um segmento denominado "Mudanças em condicionantes da saúde" (Parte II) à estrutura geral do livro, reforça esse caráter de abertura e abrangência do diálogo obra x sociedade, que é retomado em quase todos os capítulos — na interface das análises com dados tributários da economia, da demo-grafia e mesmo da antropologia social, como na brilhante (embora pouco desenvolvida) análise de Wünsch Filho — p. 322 — acerca das mudanças históricas na estrutura de trabalho e emprego.

Cabe o parêntese: lançando mão dos classificados de um jornal paulista ao longo do presente século, o autor retoma uma idéia pioneira (até onde é do nosso conhecimento) de Gilberto Freyre, de análise das transformações da sociedade (no caso de Freyre da economia agrária e de base escravocrata) através da leitura de anúncios classificados, no presente caso, de oferta de empregos em São Paulo, no caso de Freyre, do comércio de escravos.

O exemplo, pinçado de um dos capítulos, revela a arquitetura do conjunto da obra, preocupada em comparar e contrapor os dilemas do presente com dados extraídos de séries históricas. Todos nós que lidamos com bases de dados nacionais, sempre descontínuas e parciais, ao nos tornarmos leitores do livro de Monteiro, somos testemunhas do esforço do conjunto de autores nele reunido em analisar criticamente essas bases e extrair delas o máximo possível de hipóteses, por vezes conflitantes e inconclusas, mas sempre tributárias de análises metodologicamente bem fundamentadas.

Num momento de extremo "embaralhamento" midiático das opções ideológicas progressistas e conservadoras é bom contar com discussões não maniqueístas sobre temas fundamentais como a transição demográfica, a mudança nos padrões de morbi-mortalidade, as alterações dos perfis de nutrição e mortalidade infantis ou a emergência e/ou reemergência de doenças infecciosas como a AIDS ou a dengue.

O país que emerge da leitura do livro inegavelmente progrediu nas últimas décadas, mas freqüentemente às custas do aprofundamento de desigualdades regionais e, ainda que com a melhora de diversos indicadores, o mais das vezes muito aquém de patamares mínimos de eqüidade social e econômica. Uma das contribuições mais relevantes de todo o livro é desfazer mitos tecidos ao longo de décadas, como os que derivam de leituras lineares das alterações dos padrões de mortalidade infantil. Nesse sentido, se afigura muito oportuna a discussão franca de diversas hipóteses explicativas alternativas da alteração destes. Cite-se a título de exemplo o debate à página 168 do livro que inclui mesmo uma vertente analítica (proposta por Murray & Chen, em 1993) que relativiza as perspectivas das análises de corte clássico desenvolvidas nos parágrafos anteriores. Retoma-se assim o saudável debate científico em torno da falsificabilidade das proposições científicas caro a Karl Popper enquanto metodólogo (obscurecido recentemente em prol do Popper arauto da sociedade aberta, tomada enquanto sinônimo das propostas neo-liberais).

A nosso ver, a saúde pública, tanto em nosso meio como no mundo como um todo, atravessa uma série crise em suas perspectivas de atuação e na sua articulação, seja com as políticas públicas lato sensu, seja com a medicina clínica e a metodologia do ensaio clínico. No primeiro caso, o livro de Monteiro demonstra claramente que diversas medidas de saúde pública como a ampliação da cobertura va-cinal, a melhoria das condições de saneamento básico e a suplementação alimentar de escolares têm inequívocos reflexos positivos sobre o perfil de morbi-mortalidade e sobre as condições de bem- estar da população. Nesse sentido, o livro possui o duplo mérito de não ceder à tentação das relações imediatistas e simplistas entre ações e alterações constatadas nos diferentes indicadores e de se contrapor lucidamente à desconstrução neo-liberal da própria idéia de necessidade de políticas públicas e de uma ação normativa e propositiva do Estado.

Embora a questão das relações entre prática e metodologia da pesquisa clínica e saúde pública não seja tematizada diretamente pelo livro (nem é esse seu propósito), em diversas passagens afloram limites impostos pela desestruturação da rede assistencial sobre indicadores de saúde pública como é o caso da mortalidade perinatal.

Texto apresentado por Mervyn e Ezra Susser no Congresso de Epidemiologia realizado em Salvador em 1995 resgata a dimensão pública da epidemiologia, hoje freqüentemente amesquinhada pela função restrita de instrumental do ensaio clínico. A articulação presente em diversos momentos do livro de Monteiro contribui, ainda que indiretamente, para tal propósito, ao enfatizar a relevância do monitoramento sistemático dos dados de saúde em diversos níveis de agregação, de uma análise crítica e independente e da ousadia na elaboração de hipóteses explicativas. Somente assim poderemos auscultar as tendências não só da saúde como da nossa sociedade no seu conjunto e retomar a dignidade do nosso exercício profissional enquanto pesquisadores da área de saúde pública.

Embora não concorde com algumas passagens do livro tais como:

— "esses estratos correspondiam... a não mais — sic — do que 11% do total da população adulta de todo o país." (ou seja o 'não mais' de pessoas com deficiência energética diz respeito a alguns milhões de pessoas!)

louvo antes de tudo a coragem do empreendimento e a sua abrangência e importância para o atual momento vivido pelo Brasil, tão repleto de desinformações e tão carente de propostas efetivas e pragmáticas. O amplo leque de questões formuladas pelo livro de Monteiro tem presença obrigatória nos anos por vir, pois como diz Virgínia Woolf numa passagem luminosa de Orlando:

'"Estou crescendo' (...). 'Estou perdendo algumas ilusões' (...), 'talvez para adquirir outras', e desceu (...) por onde jaziam os ossos dos seus antepassados."

P.S. Quando já havíamos terminado de escrever a presente resenha, soubemos da premiação do livro em tela com o Prêmio Jabuti. Congratulamo-nos com a escolha, que referenda nossas conclusões e, oxalá, contribuirá para uma difusão ainda maior da obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    1996
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