Resumo
O objetivo do estudo é analisar as notificações de violência por parceiro íntimo (VPI) contra as mulheres indígenas da macrorregião de Dourados-MS, entre os anos de 2009 a 2020. Trata-se de um estudo transversal com dados secundários das notificações registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) de mulheres indígenas que sofreram violência. Foi realizada a estatística descritiva das variáveis e a regressão de Poisson para determinar a razão de prevalência (RP). A VPI representou 56,6% das notificações. Os tipos de violência mais notificados foram violência física (93,3%) e violência psicológica (27%). Na análise ajustada, a VPI esteve associada às mulheres com companheiros (RP 1,32, IC95% 1,19; 1,46), às mulheres em situação de violência de repetição (RP 1,15, IC95% 1,05; 1,25) e ao domicílio como local de ocorrência (RP 1,13, IC95% 1,01; 1,29). A maioria das notificações de violência contra as mulheres indígenas registradas na macrorregião de saúde de Dourados foi perpetrada por parceiro íntimo. O conhecimento do perfil das violências que chegam nos serviços de saúde aliado aos fatores associados, deverão possibilitar a implementação de estratégias voltadas para a redução do número de casos.
Palavras-chave: Mulheres Indígenas; Violência contra Mulher; Violência por Parceiro Íntimo; Notificação
Abstract
The present study aimed to analyze notifications of intimate partner violence (IPV) against indigenous women in the macro-region of Dourados-MS, Brazil, from 2009 to 2020. This is a cross-sectional study with secondary data from registered reports in the Notifiable Diseases Information System (SINAN) of indigenous women who suffered violence. Descriptive statistics of the variables and Poisson regression were performed to determine the prevalence ratio (PR). IPV represented 56.6% of reports. The most reported types of violence were physical violence (93.3%) and psychological violence (27%). In the adjusted analysis, IPV was associated with women with partners (PR 1.32, 95%CI 1.19; 1.46), and women in situations of repeated violence (PR 1.15, 95%CI 1.05; 1.25) and at home as the place of occurrence (PR 1.13, 95%CI 1.01; 1.29). The majority of reports of violence against indigenous women registered in the Dourados health macro-region were perpetrated by an intimate partner. Knowledge of the profile of violence that arrives at health services, combined with associated factors, should enable the implementation of strategies aimed at reducing the number of cases.
Key words: Indigenous Women; Violence against Women; Violence by Intimate Partner; Reports
Resumen
El objetivo del estudio es analizar las notificaciones de violencia de pareja íntima (VPI) contra mujeres indígenas en la macrorregión Dourados-MS, entre 2009 y 2020. Se trata de un estudio transversal con datos secundarios de notificaciones registradas en el Sistema de Información de Enfermedades/Daños a la salud de Notificación (SINAN) de mujeres indígenas que han sufrido violencia. Se realizó estadística descriptiva de las variables y regresión de Poisson para determinar la razón de prevalencia (RP). La VPI representó el 56,6% de las notificaciones. Los tipos de violencia más notificados fueron la violencia física (93,3%) y la violencia psicológica (27%). En el análisis ajustado, la VPI se asoció a mujeres con pareja (RP 1,32; IC95%: 1,19; 1,46), a mujeres en situación de violencia reiterada (RP 1,15; IC95%: 1,05; 1,25) y al hogar como lugar de ocurrencia (RP 1,13; IC95%: 1,01; 1,29). La mayoría de las denuncias de violencia contra mujeres indígenas en la macrorregión de salud de Dourados fue perpetrada por la pareja íntima. El conocimiento del perfil de violencia que llega a los servicios de salud, junto con los factores asociados, debe permitir implementar estrategias dirigidas a reducir el número de casos.
Palabras clave: Mujeres indígenas; Violencia contra mujer; Violencia de pareja íntima; Notificación
Introdução
A violência contra as mulheres é um problema de saúde pública, de direitos humanos e uma importante causa de morbidade e mortalidade feminina1. De acordo com alguns estudos, o principal local de ocorrência de violência contra as mulheres é o ambiente domiciliar, sendo os parceiros íntimos os principais agressores2. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mundialmente 1 em cada 3 mulheres (30%), com idade entre 15 e 49 anos e que tiveram algum relacionamento, sofreram algum tipo de violência por parte de seus parceiros, denominada violência por parceiro íntimo (VPI)3.
De acordo com a OMS, os fatores de risco para a ocorrência da VPI são: grande diferença de idade entre os parceiros; baixo nível de escolaridade; ser separada ou divorciada; ter sido exposta a maus-tratos na infância; presenciar a violência entre os pais; uso nocivo do álcool; uso de drogas ilícitas; e dificuldade de comunicação entre os parceiros3.
No Brasil, em um estudo ecológico que analisou dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) entre os anos de 2000 e 2019, a taxa média de violência letal entre as mulheres de todas as regiões brasileiras foi de 6,24 casos por 100 mil habitantes. As maiores vítimas foram mulheres negras/pardas e indígenas4. A VPI tem graves consequências para a saúde mental e física das mulheres, seja pela lesão física que pode resultar em incapacidade ou óbito, ou pelo contato prolongado com o estresse causado pela situação de violência, que leva a problemas crônicos de saúde5.
A VPI atinge mulheres de todas as origens, no entanto, mulheres indígenas quando comparadas com mulheres não indígenas, possuem uma prevalência maior6. A abordagem da VPI em mulheres indígenas é complexa pois muitos aspectos devem ser considerados como a exclusão e a violação dos direitos humanos a que os povos indígenas foram submetidos. A população indígena representa 5% da população mundial estando entre os povos mais desfavorecidos e marginalizados com altas taxas de pobreza e de mortalidade precoce7,8. As condições em que a população indígena é inserida, pode contribuir para a ocorrência de altos índices de violência, e dentre elas a VPI9. Historicamente esta condição tem influência do processo de dominação europeia durante a colonização, onde o modo de vida tradicional foi alterado através do contato com a população não indígena10. Este contato resultou no deslocamento de alguns povos do seu território tradicional para outras localidades, ocasionando a alteração das atividades econômicas e do padrão alimentar, além da extrema pobreza, e da inserção de drogas ilícitas e o uso excessivo e prejudicial do álcool10.
Um estudo realizado no Canadá em 2014, sobre VPI autorreferida, demonstrou que mulheres indígenas possuem o dobro de chances de sofrerem violência por parceiro íntimo, quando comparadas com mulheres não indígenas11. Na Austrália, dados de 2001 a 2010, demonstraram que a mulher indígena possui chance seis vezes maior de sofrer VPI quando comparada com mulheres não indígenas12.
No Brasil a população indígena representa cerca de 0,83% da população nacional pertencentes a mais de 300 etnias com suas particularidades políticas, econômicas e sociais13. No estado do Mato Grosso do Sul, na macrorregião de Dourados, localizada na região sul do estado, os indígenas foram confinados em reservas indígenas e atualmente vivem em situações de extrema pobreza e com altos índices de marginalidade e violência14.
Apesar das peculiaridades em que a população indígena vive, existe uma carência de estudos para abordar os aspectos epidemiológicos da VPI em mulheres indígenas. Estudos voltados para esta temática poderão contribuir para o entendimento dos fatores associados à ocorrência de VPI e auxiliar na elaboração de políticas públicas capazes de prevenir a situação de violência além de melhorar a qualidade de vida destes povos. Portanto, o objetivo deste estudo é analisar as notificações de violência por parceiro íntimo (VPI) contra as mulheres indígenas da macrorregião de Dourados-MS, entre os anos de 2009 e 2020.
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal, com base de dados secundários sobre a violência contra mulheres indígenas, notificados na macrorregião de saúde de Dourados, Mato Grosso do Sul, e registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação-SINAN, no período entre 2009 e 2020.
Esta macrorregião possui cerca de 1 milhão de habitantes15. A região é habitada majoritariamente pelos indígenas das etnias Guarani e Kaiowá. Os indígenas da etnia Terena também habitam essa região, mas em menor número. A maior concentração de Terenas da região está localizada no município de Dourados16.
Os registros não identificados das notificações do SINAN foram fornecidos em setembro de 2022 pelo Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde - CIEVS estadual. O SINAN é um sistema nacional que é descentralizado para os municípios, onde são inseridos os dados dos agravos de notificação compulsória. A notificação de violência é realizada pelos profissionais de saúde e encaminhada para as vigilâncias epidemiológicas municipais, que são responsáveis pela inserção dos dados no SINAN.
Neste estudo foram analisadas as notificações de violência de mulheres com idade a partir de 10 anos, indígenas e residentes na macrorregião de saúde de Dourados. Foram excluídas do estudo notificações com registros de lesão autoprovocada e de mulheres que residem fora da localidade da macrorregião de saúde de Dourados-MS. Foi considerada violência praticada por parceiro íntimo, a notificação cujo agressor foi o cônjuge, ex-cônjuge, namorado ou ex-namorado, conforme o vínculo/grau de parentesco. A variável desfecho foi categorizada em violência por parceiro íntimo (sim) e violência realizada por outro perpetrador diferente do parceiro íntimo (não). As variáveis explicativas foram divididas em três grupos:
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Características das mulheres: faixa etária (10-19, 20-29, 30-39, 40-49, >50); gestante (sim; não), situação conjugal (com parceiro; sem parceiro);
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Características do agressor: ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (sim; não);
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Características do ato violento: violência de repetição, ou seja, se a mulher sofreu violência em outros momentos (sim; não); local de ocorrência (residência; outro local); município de ocorrência (interior do estado; linha de fronteira) e tipos de violência (física; psicológica; sexual).
Com relação ao município em que o ato violento ocorreu, foram considerados municípios de linha de fronteira, aqueles que possuem divisa territorial com o Paraguai, cortados pela fronteira, seja essa seca ou fluvial, com ou sem infraestrutura e integração econômica e cultural, podendo ou não apresentar uma conurbação ou semiconurbação. Neste grupo constam os seguintes municípios: Antônio João, Aral Moreira, Coronel Sapucaia, Japorã, Paranhos, Ponta Porã e Sete Quedas. O grupo dos municípios da macrorregião de Dourados que não são cidades gêmeas e que não possuem divisa territorial com o Paraguai são: Amambai, Caarapó, Dourados, Douradina, Itaporã, Eldorado, Ivinhema, Rio Brilhante, Juti, Laguna Carapã, Naviraí, Nova Andradina, Tacuru, Iguatemi, Taquarussu e Vicentina17.
As seguintes variáveis não foram avaliadas devido à baixa completitude: escolaridade (68,4%), horário de ocorrência (67,6%) e ocupação (48,9%). As análises sobre o ciclo de vida do agressor não foram realizadas, pois somente foram incluídas na ficha de notificação a partir de 2014.
As análises estatísticas foram processadas no software R (versão 4.1.2). Para a análise descritiva, as variáveis explicativas foram categorizadas e descritas conforme frequências e proporções de acordo com o desfecho (VPI; Violência por não parceiro íntimo). Os missings e os dados ignorados das variáveis não foram analisados. O Teste qui-quadrado foi utilizado para comparar as proporções. Para estimar a razão de prevalência (RP) foi realizada a regressão de Poisson em duas etapas: inicialmente realizou-se a análise bivariada com todas as variáveis (idade, gestação, uso de bebida alcóolica por parte do agressor, local de ocorrência, cidade de ocorrência e violência de repetição) e posteriormente todas as variáveis com p<0.20 foram incluídas na análise multivariada.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (CEP/ENSP-FIOCRUZ- parecer nº 5.274.177) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP-parecer nº 5.469.695). A Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Mato Grosso do Sul assinou a carta anuência para a realização da pesquisa, e o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde - CIEVS estadual forneceu os dados não identificados do SINAN.
Resultados
Foram notificados 3.080 casos de violência contra as mulheres indígenas na macrorregião de saúde de Dourados, entre os anos de 2009 e 2020. Deste total, 202 notificações foram excluídas por serem de lesão autoprovocada. Também foram excluídas 237 notificações de mulheres com idade inferior a 10 anos, 11 notificações de mulheres que residiam em outro município, 225 notificações que não possuíam informações sobre o parceiro e 942 notificações com variáveis sem registro (missing) ou com o registro ignorado. Foram analisadas 1.463 notificações (Figura 1).
Do total de notificações analisadas, a maior proporção foi de violência física e posteriormente de violência psicológica, 93,3% e 27,0% respectivamente. A violência sexual esteve presente em 9,8% das notificações e as outras violências (violência financeira; intervenção legal; negligência e abandono; tortura; tráfico de seres humanos) em 4,8% das notificações (Figura 2).
Proporção de notificações de mulheres indígenas que sofreram violência na macrorregião de Dourados, Mato Grosso do Sul, segundo o tipo de violência, 2009-2020.
Entre as notificações, 831 (56,8%) foram de mulheres que sofreram VPI. Na análise descritiva das características das mulheres indígenas que sofreram VPI, a maior proporção foi em mulheres com idade 20 a 29 anos (34,3%), não gestante (83,4%) e que possuíam parceiro atual (87,0%). Entre as mulheres que sofreram violência por não parceiro, o maior percentual foi de mulheres entre 10 e 19 anos (39,7%), não gestante (92,7%) e que não possuíam parceiro (61,7%) (Tabela 1).
Na análise descritiva das características do agressor, a ingestão de bebida alcoólica por parte do agressor teve a maior proporção em ambos os eventos, 86,3% na VPI e 70,3% na violência por não parceiro (Tabela 1).
Entre as variáveis relacionadas ao ato violento, apresentaram maiores proporções na VPI a violência de repetição (64,1%), ocorrência da VPI nas cidades que não fazem linha de fronteira com alguma cidade paraguaia (75,0%) e a residência como local de ocorrência do ato (91,3%). Na violência por não parceiro íntimo a maior parte das mulheres não sofreram violência de repetição (69,5%), a maior proporção de ocorrência da violência ocorreu em cidades que não fazem linha de fronteira com alguma cidade paraguaia (75,0%) e 69,0% dos casos de violência ocorreram na residência. Em todas as análises a diferença entre as proporções foram estatisticamente significativas exceto cidade de ocorrência (p=0,989) (Tabela 1).
De acordo com o modelo ajustado, mulheres com companheiros apresentaram a prevalência de VPI 32% maior, quando comparadas com as mulheres sem companheiro (RP 1,32, IC95% 1,19; 1,46). Mulheres que sofrem a violência crônica, chamada de violência de repetição, apresentaram uma prevalência de 15% maior (RP 1,15, IC95% 1,05; 1,25) quando comparadas com as mulheres que não sofrem violência crônica, controladas pelas demais variáveis. Quanto ao local de ocorrência, a mulher estando no domicílio, aumenta a prevalência de VPI (RP 1,13, IC95% 1,01; 1,29), quando comparada com a ocorrência da violência em outros locais, ajustadas pelas demais variáveis (Tabela 2).
Discussão
A VPI é identificada como a forma mais comum de violência contra as mulheres, estando entre as cinco principais causas de incapacidades a nível mundial1,18. No presente estudo, não houve um aumento significativo das prevalências de VPI associado as faixas etárias. Em um estudo realizado no estado do Paraná com mulheres não indígenas, a proporção de notificações de VPI entre 2009 e 2012 foi de 38,4% e entre 2013 e 2016 foi 39,1% na faixa etária de 20 a 29 anos19. Já em outro estudo que realizou a análise de 2.807 boletins de ocorrência de violência doméstica contra mulheres no município de Dourados-MS, entre os anos de 2017 e 2018, a média de idade das vítimas foi de 32,5 anos. Deste total, 265 boletins de ocorrência foram de mulheres indígenas que sofreram violência doméstica e a média de idade das vítimas foi de 32,1 anos20. No entanto, podemos concluir que em termos proporcionais, os resultados encontrados neste estudo em relação à idade, são semelhantes ao que a literatura demonstra.
Merece preocupação, a alta proporção de mulheres que sofrem violência com idade entre 10 e 19 anos. Neste estudo, na violência por não parceiro íntimo, 40,7% das mulheres estão na faixa etária entre 10 e 19 anos, o que pode ter associação com as transformações sociais, culturais, econômicas, desestruturação familiar e a perda do território. A população indígena da macrorregião de saúde de Dourados vive em reservas indígenas, aldeias ou em áreas de retomada, sendo estes últimos considerados instáveis e não reconhecidos pelo estado, não havendo se quer em alguns locais, o atendimento da equipe de saúde indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Neste processo de criação das reservas indígenas, a população indígena vive em regiões com altas densidades populacionais, recursos produtivos insuficientes, quadros econômicos precários e a persistência de racismo por não indígenas, o que impacta no modo e na qualidade de vida, levando ao crescimento dos conflitos políticos, sociais, econômicos e de gênero21. Essa dinâmica complexa e desfavorável pode contribuir para que as mulheres indígenas sejam precocemente vítimas da violência.
Quanto à gestação, nos resultados obtidos neste estudo, não houve aumento da prevalência da VPI em mulheres gestantes quando comparadas a mulheres não gestantes. A mulher está sujeita à violência em qualquer momento da vida, e a violência na gestação merece uma atenção especial, pois ocorre num período de maior sensibilidade emocional e alterações físicas podendo causar danos tanto para a mulher quanto para o feto22. Poucos estudos abordam a gravidez como fator relacionado a VPI, sendo protetor ou gatilho para a ocorrência23. Em um estudo realizado na cidade do Recife, estado do Pernambuco, foi analisado o padrão da violência por parceiro íntimo antes e durante a gestação e no pós-parto. Nesta pesquisa, não se observou grandes alterações na prevalência da VPI pré-gestação e na gestação, sendo de 32,4% e 31,0% respectivamente. No entanto, houve alteração em relação ao tipo de violência sendo a física prevalente no período pré-gestação, a psicológica na gestação e a violência sexual se mantendo constante24. Em algumas das comunidades, é comum a ideia de posse masculina do corpo feminino, sendo esse pensamento no contexto indígena, possivelmente uma herança do processo de dominação europeia no período colonial, ou um reflexo da interação dos indígenas com a população não indígena25. Na medida que existe a iniquidade de gênero na população, é possível que a ocorrência de práticas violentas aumente em todas as fases da vida, inclusive na gravidez.
Este estudo também demonstrou um aumento da prevalência de VPI na presença de um parceiro atual. Situação semelhante foi observada na análise das notificações de violência doméstica no estado de Santa Catarina26. Conforme um estudo realizado na Paraíba, com mulheres atendidas em um Centro de Referência da Mulher, as mulheres permanecem na situação de violência devido à dependência financeira27. Nas etnias Guarani e Kaiowá as relações de gênero têm se tornado conflituosas devido ao recolhimento dos indígenas em pequenos territórios, degradação do ambiente natural e redução das práticas xamânticas e rituais28. Mas outros fatores também podem ter relação com a associação entre a VPI e a situação conjugal nesta população. Enquanto as mulheres indígenas Guarani e Kaiowá geralmente são responsáveis por ficar no território indígena cuidando do lar, dos filhos e mantendo as tradições culturais, os homens frequentemente buscam trabalho fora das terras indígenas29. Portanto, o fato de a mulher permanecer no ambiente doméstico e o homem sair do território indígena em busca de trabalho, pode contribuir para aumentar a dependência financeira das mulheres em relação aos companheiros, obrigando as mulheres a permanecerem em situação de violência.
O consumo de álcool por parte do agressor na VPI é um achado presente em vários estudos no mundo30. Acredita-se que o uso do álcool por parte do parceiro íntimo é um fator que pode facilitar a ocorrência de atos violentos através da modificação do comportamento30. Um estudo realizado com mulheres indígenas americanas entre 1999 e 2004, demonstra uma associação positiva entre o consumo de álcool e a ocorrência de VPI31. Em um estudo com entrevistou mulheres indígenas da etnia Sateré-Mawé, do estado do Amazonas, o álcool foi elencado como o principal responsável pela violência doméstica32. Entre os indígenas da macrorregião de saúde de Dourados-MS, a mistura étnica através do contato com a população não indígena e com os indígenas do Paraguai, tem proporcionado modificações incluindo o uso excessivo e prejudicial do álcool e de outras drogas ilícitas dentro das terras indígenas, gerando um aumento no número de casos de violência33. As terras e reservas indígenas próximas aos centros urbanos possuem uma intensificação do contato com a população urbana o que também contribui para o aumento do consumo excessivo do álcool e drogas ilícitas dentro dos seus territórios16. No entanto, neste estudo não houve um aumento significativo da prevalência de violência por parceiro íntimo entre as mulheres cujo agressor estava sob efeito do álcool. O resultado sobre o uso do álcool pelo agressor e a VPI neste estudo deverá ser interpretado com cautela uma vez que a amostra aqui analisada representa somente as mulheres que foram atendidas nos serviços de saúde e foram notificadas através da ficha de notificação compulsória.
Na caracterização do tipo de violência é importante destacar que raramente a mulher está sujeita apenas a um tipo de violência pois alguns fatores de risco são compartilhados pelos vários tipos de violência (física, psicológica, sexual e outras violências). Normas econômicas, sociais, culturais, o uso abusivo do álcool e outras drogas, e o acesso a armas de fogo são fatores relacionados a ocorrência de mais de um tipo de violência. Mulheres que sofrem VPI estão sujeitas à todo tipo de violência, sejam elas isoladas ou associadas34. Neste estudo, o tipo de violência mais praticado foi a física. Este resultado corrobora com o achado de outros estudos que utilizaram dados do SINAN para avaliar a violência em populações não indígenas. Em um estudo realizado no estado do Pernambuco, que analisou 18.125 notificações de violência entre os anos de 2015 e 2019, o tipo de violência predominante foi a física (53,3%)35. É importante ressaltar que a violência física é a mais notificada e valorizada pelos profissionais, pois a mesma desencadeia a ida ao serviço de saúde, deixa marcas físicas e é a representação da imagem da violência36. Já a violência psicológica dentro de um relacionamento, em algumas situações não é percebida pelo profissional notificador, por ser um tipo de violência que não permite identificar algum “marcador” da agressão associado à violência36.
A violência de repetição neste estudo apresentou uma prevalência maior na VPI. Estudos demonstram que a violência de repetição está conectada ao ambiente doméstico e consequentemente à VPI. A violência de repetição envolve o convívio próximo com o agressor que pode ser um familiar (pai, mãe, irmão, irmã) ou parceiro íntimo37. Muitas mulheres continuam no ambiente de violência pois acreditam na mudança dos parceiros, que eles deixarão de ser violentos, ou porque possuem dependência financeira. Outros fatores também contribuem para que a mulher se mantenha em uma relação de violência, tais como: medo de perder os filhos, exposição perante aos amigos e familiares, dependência emocional e afetiva do companheiro e medo das ameaças realizadas pelos agressores27. Na ocorrência de um ato de violência contra mulheres, o fato é levado primeiramente para a liderança local, sendo esta que decide se vai prosseguir com a denúncia ou realizar o aconselhamento. No entanto, muitas mulheres deixam de levar o fato para a liderança com receio da incompreensão ou por sofrerem alguma pressão por parte da comunidade e/ou dos familiares. Outras já não denunciam com receio da situação de violência se agravar ou por considerarem que a justiça indígena e não indígena não garantem a proteção, ou por não conhecerem a lei, ou por considerarem de difícil acesso38. Portanto, a falta da denúncia e a dificuldade de aplicação da lei dentro do território indígena podem contribuir para a manutenção do ciclo vicioso da violência no ambiente doméstico nessa população estudada.
Em relação ao local de ocorrência do ato violento, a residência também esteve associada ao aumento da prevalência VPI corroborando com os resultados de outros estudos. Este achado demonstra que o domicílio, ao invés de ser um local de acolhimento e protetor contra as diversas formas de violência, pode ser um lugar perigoso na presença do agressor, sendo um ambiente de medo, tensão e agressões constantes27. Em um estudo realizado na Paraíba entre os anos de 2010 e 2012, a maioria da vítimas de violência sofreram o ato dentro do seu próprio domicílio27. Nos indígenas Guarani e Kaiowá, a organização social destaca-se pelo fogo doméstico como a unidade dos coletivos indígenas e influenciadora das relações de gênero29. O fogo doméstico é constituído por pessoas ligadas por conjugalidade que unem os homens e mulheres e por descendência que unem pais e filhos, sendo as mulheres responsáveis por controlar este fogo doméstico unindo e alimentando seus integrantes29. Portanto, a modificação social, econômica e cultural entre estes indígenas, e a descontinuação do fogo doméstico, devido ao contato com não indígenas, à falta de terras e os constantes conflitos com agropecuários, tem aumentado a violência nos territórios indígenas39.
Na verificação da cidade de ocorrência da VPI, residir em cidades gêmeas ou que possuem linha de fronteira com o Paraguai, não teve associação com a VPI. O estado do Mato Grosso do Sul faz divisa com vários estados brasileiros (Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Paraná) e, também, com dois países, a Bolívia e o Paraguai. Essa localização geográfica faz com que o estado seja uma rota para as drogas que saem dos países fronteiriços40. Apesar de ser uma região violenta, outros fatores como as características sociodemográficas dos municípios, precisam ser avaliados para verificar se o contexto municipal influencia na ocorrência de VPI contra as mulheres indígenas da região.
A notificação do agravo violência e a inserção dos dados nos sistemas de informação em saúde são ferramentas importantes pois possibilitam o reconhecimento dos tipos de violência que são atendidos pelos serviços de saúde, o perfil da população mais acometida, além de subsidiar a implantação de políticas públicas de prevenção e enfrentamento das situações de violência. No entanto, em se tratando de população indígena, durante a notificação dos casos suspeitos e/ou confirmados de violência, é preciso considerar o contexto intercultural e a diversidade dos povos indígenas do Brasil. Ao respeitar as especificidades de cada povo será possível cumprir o direito de autodeterminação e possibilitar a inclusão dos povos indígenas na discussão das políticas de enfrentamento da violência.
O presente estudo apresentou algumas limitações. Dentre essas, a etnia dos indígenas não pode ser identificada. A etnia está vinculada com à cultura e ao modo de vida e através da análise desta variável, seria possível conhecer os comportamentos de cada grupo étnico perante à ocorrência da VPI. Uma outra limitação é a falta de análises de outros bancos de dados como o da Segurança Pública, do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) para determinar a magnitude e a gravidade dos casos de violências contra as mulheres indígenas da macrorregião de saúde de Dourados. Ao utilizar dados secundários neste estudo, não possível comparar as mulheres que sofreram VPI com aquelas que não sofreram nenhum tipo de violência, uma vez que todas as mulheres deste estudo sofreram violência, seja por parceiro íntimo ou por outro perpetrador. Para além disso, a incompletude e a inconsistência dos dados do SINAN presente nos dados secundários podem influenciar nas análises.
Este estudo demonstrou que a maioria das notificações de violência contra as mulheres indígenas registradas nos serviços de saúde da macrorregião de saúde de Dourados-MS são perpetradas por parceiro íntimo. O conhecimento do perfil das violências que chegam nos serviços de saúde aliado aos fatores associados, deverão possibilitar a implementação de estratégias voltadas para a redução do número de casos além de auxiliar os profissionais de saúde, assistência social, segurança pública e judiciário a realizar um atendimento adequado das mulheres vítimas de violência, através do entendimento do contexto em que essa violência ocorre.
Agradecimentos
Ao Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde do Estado do Mato Grosso do Sul pelo fornecimento dos dados.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 -
Data do Fascículo
Dez 2024
Histórico
-
Recebido
15 Set 2023 -
Aceito
29 Fev 2024 -
Publicado
19 Jun 2024